sábado, 20 de abril de 2019

Ensaio sobre o controle reprodutivo: o caso da Bayer e a esterilização de adolescentes periféricas em Porto Alegre

Antes de darmos início às discussões, indicamos a leitura da seguinte notícia sobre o caso que serve de ponto de partida para nossas problematizações, (Link): https://luizmuller.com/2018/09/26/meninas-pobres-da-periferia-de-porto-alegre-sao-usadas-como-cobaias-humanas-pela-bayer/ | Título: “Meninas pobres da periferia de Porto Alegre são usadas como cobaias humanas pela Bayer”.

Para uma notícia mais atual sobre o caso, veja-se (link): https://jornalggn.com.br/justica/justica-suspende-acordo-entre-bayer-mpf-e-prefeitura-de-porto-alegre-para-esterilizar-adolescentes/ | Título: “Justiça suspende acordo entre Bayer, MPF e Prefeitura de Porto Alegre para esterilizar adolescentes”.

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O pesadelo eugenista está longe de acabar, pois, conforme a segunda notícia mencionada, “a decisão de Souza é uma liminar, [portanto] o mérito do tema será julgado pela 6ª Turma, que irá decidir em segunda instância se o acordo deve ou não vigorar. A data do julgamento ainda não foi marcada. Enquanto isso a ação civil pública segue tramitando na 2ª Vara Federal de Porto Alegre”.

Quando essa situação chegou até nosso conhecimento ano passado, decidimos escrever um texto trazendo alguns processos históricos que levaram ao paroxismo essa associação entre Indústria Farmacêutica e as políticas de controle de natalidade dos Estados Modernos. Segue-se o texto que foi resultado dessas reflexões:
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Introdução:


Esta situação expressa uma realidade ainda muito atual dos Estados Modernos e das Indústrias do nosso Modo de Produção Capitalista. O que evidenciamos é, em síntese, uma política de controle de natalidade associada a experimentos com humanos. Neste texto discutiremos estas e outras questões relacionadas à governamentalidade (entendida como: racionalidade e modos de governo) que envolvem a questão da reprodução humana. Iremos abordar dois casos históricos conjuntamente a este para que a comparação deles nos ajude a entender o funcionamento dos mecanismos de poder envolvidos na articulação mencionada.

Há quem diga que o eugenismo teria sido “superado”, pois teríamos “progredido” e deixado para trás esse “passado sombrio”. Há quem fique “surpreso” que, “em pleno século XXI”, isso possa acontecer. Por exemplo, a Associação Brasileira Rede Unida publicou um abaixo assinado pela suspensão do termo de cooperação, dizendo que suas motivações são “de dimensões éticas, técnicas e econômicas”, uma vez que a proposta de implantação do SIU-LING (produto comercializado pela Bayer) nas adolescentes tuteladas pelo Estado remonta às velhas políticas eugenistas de “controle de natalidade que vigoraram nas décadas de 1960 e 1970, e a experimentações com populações vulneráveis, com sérias implicações bioéticas”. Mas por que seriam “velhas” as coisas que acontecem hoje mesmo? Apenas porque isso se tornou explícito numa situação limite, não significa que seja uma exceção, isto é, algo que difere em natureza das práticas ditas “atuais” do Estado. Em nossa análise, isso não passa de uma diferença de grau de uma governamentalidade ainda muito presente.

O Nazismo, a IG Farben e os poderes modernos sobre a vida e a morte


Em 1925, as gigantes químicas Bayer e Basf se fundiram com outras quatro empresas, formando a I.G. Farbenindustrie na Alemanha(1). Durante o período da Alemanha Nazista, a IG Farben se utilizou de trabalhos forçados de pessoas retiradas dos campos de concentração nas suas indústrias. De certa forma, isto pode ser lido com a expressão grafada nos portões de Auschwitz: “Arbeit macht frei” (“o trabalho liberta”). Este conglomerado industrial também forneceu o inseticida Zyklon B, um gás tóxico que seria usado para exterminar prisioneiros nos campos de concentração. Tudo isto está inscrito na história da Indústria Farmacêutica (em pleno regime de acumulação bélico na Alemanha).

O que nos interessa destacar deste primeiro caso histórico é o seguinte: a IG Farben realizou experimentos com cobaias humanas, se associando com a política natalista do nazismo. Ainda no século XXI, a sobrevivente judia Zoe Polanska espera uma indenização e um pedido de desculpas da Bayer por ter sido usada como cobaia por Victor Capesius (ex-médico da Bayer) e ficado estéril durante o nazismo(2).

Quando olhamos para a atuação do Estado, percebemos que, em 1935, a política eugênica legitimou a prática do aborto seguido de esterilização naquelas mulheres que, diga-se de passagem, “degeneravam a raça ariana” ao procriarem. Os experimentos da Bayer tornaram-se muito úteis para este propósito. Em 1936, Himmler criou o Escritório Central do Reich para o Combate à Homossexualidade e ao Aborto. Tratava-se de uma parte da política eugênica que pretendia reverter um certo declínio da natalidade “ariana”, atribuída à homossexualidade masculina e a abortos entre mulheres alemãs sadias.

O controle dos corpos e da reprodução se impôs nos dois polos: uma política de supressão populacional de todo o tipo de “anomalia” que não se enquadrasse no referencial ariano e uma política de procriação imposta às mulheres alemãs consideradas “saudáveis” o suficiente para serem submetidas à função de “reprodutoras da raça ariana”. Em outras palavras: houve um efetivo controle político da reprodução, onde se determinou quem deveria procriar e prosperar e quem deveria ser evitado e, até mesmo, perecer. Em ambos os casos, a dominação e controle dos corpos das mulheres é essencial. Trata-se de uma constante sócio-histórica das formas patriarcais de sociedade que já foi objeto de estudos críticos por feministas como Silvia Federici (2017).

Mas por que estou falando sobre o nazismo? Por um motivo simples explicitado por Michel Foucault: “o nazismo, é claro, levou até o paroxismo o jogo entre o direito soberano de matar e os mecanismos do biopoder. Mas tal jogo está efetivamente inscrito no funcionamento de todos os Estados” (FOUCAULT, 2005, p. 311). Explicaremos o significado desses três aspectos do Estado a seguir. Primeiramente, devemos fazer observações quanto às outras características que nasceram nas margens do Estado e depois se acoplaram ao seu desenvolvimento. Neste sentido, reservaremos um breve comentário às disciplinas.

As disciplinas formam o conjunto das tecnologias de poder que servem para o controle politico dos corpos dispersos das massas populacionais. Instituições como os exércitos civis, as escolas, as prisões, os hospitais, dentre outras, reproduzem o mesmo modelo de subjetivação que tornou-se o paradigma da “anatomia política do corpo”. Suas funções são: 1) produzir uma utilidade econômica (aumentar a eficiência produtiva) e 2) produzir uma docilidade política (constituir uma obediência passiva às sanções de normalização). Estes dois aspectos são a subjetivação do indivíduo moderno. Continuaremos com nossa análise genealógica e articularemos as disciplinas com os aspectos mencionados antes.

Existe uma correlação entre disciplina corporal e biopoder populacional na sexualidade: o homossexual combatido pelo “Escritório Central do Reich” figura como “corpo anormal” e sinal de “degenerescência populacional” a um só tempo. Sua eliminação, tanto como doença no indivíduo quanto como algo “endêmico” à certa parcela populacional, representa os efeitos do poder normalizador, pois visa “corrigir”: 1) uma identificada patologia individual (poder disciplinar) e 2) regular o aumento da salubridade geral da nação, através da produção de uma média populacional de “cidadãos normais” (biopoder). Como vimos, o regime nazista não é diferente em natureza dos outros Estados Modernos. O que lhe distingue, na verdade, é uma diferença de grau em relação aos demais. Resta falarmos sobre o direito soberano de matar.

O poder de “fazer morrer” é realizado contra o outro do biopoder, uma vez que a morte deve atingir aqueles que são identificados em relação de oposição com os “exemplares nacionais vitais”. Neste caso, trata-se da morte de quem representa uma redução da salubridade geral da “espécie nacional”. Uma espécie retém vitalidade quando a “seleção” dos “corpos aptos” (individual) une-se a uma seleção dos “tipos” de pessoas “mais desenvolvidas” (populacional). Neste sentido, o racismo está presente em todos os Estados Modernos como forma de fazer passar o antigo direito soberano de matar (chamado, em certos casos, de “necropolítica” que incide sobre os “matáveis”). Os alvos desta morte são considerados a “escória da sociedade” (não por acaso se produz um desejo pela morte dos “vagabundos”, dos “bandidos”, etc.). Em suma, a lógica é a seguinte: tanto se é mais alvo da morte quanto se tem a pele mais escura. Como prova, podemos utilizar os “Dados do Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência 2017” apresentados numa reportagem do G1, indicando que: “Jovem negro tem 12,7 vezes mais chances de ser morto que um jovem branco em AL” (ver: Referências).

Essa morte passa a se tornar menos explícita (ainda que permaneça) e sendo justificada com coisas do tipo “foi encontrada uma arma junto ao corpo do jovem de periferia morto pela polícia” (veja-se o documentário: “Autos de Resistência” - Nota 3). Mas o que nos interessa destacar aqui é o seguinte: a função reprodutiva será o foco para administrar a procriação populacional.

Anticoncepcional e Eugenia


Avançando no tempo e em outro espaço, mas não mudando a lógica, podemos analisar o esforço conjunto dos “pioneiros no estudo do controle hormonal de natalidade: a ativista e educadora sexual Margaret Sanger, que apelou a eugenia para defender o controle da natalidade, o biólogo Gregory Pincus, a sufragista e milionária Katherine McCormick e o médico e ginecologista católico John Rock”(4). Já podemos imaginar que boa coisa não surgiu daí. Vejamos (citação extensa): “Pincus descobriu que os animais injetados com progestina não ovulavam. Mas as injeções não foram vistas como uma solução viável, assim o esforço foi para o desenvolvimento de um contraceptivo oral. McCormick financiou o desenvolvimento da pílula de seu próprio bolso. Na década de 1950, Rock forneceu os sujeitos de teste dando a pílula para suas pacientes em Massachusetts sob o disfarce de um estudo de fertilidade. Ele não informou suas pacientes que a pílula foi projetada para impedi-las de engravidar. Muitas mulheres abandonaram o estudo inicial de Massachusetts porque não podiam tolerar os efeitos colaterais: inchaço, coágulos de sangue potencialmente fatais e mudanças de humor. A equipe começou a ter dificuldade em fazer ensaios clínicos na América do Norte, em parte porque a contracepção ainda era ilegal na maioria dos estados e parcialmente por causa da alta taxa de abandono de seus estudos menores. Assim Pincus e Rock pensaram em Porto Rico, onde a preocupação com a superpopulação, alimentada em parte pelo movimento eugenista, significava que não haveria restrições de controle de natalidade e, além disso, o aborto era legal na ilha. De fato, muitas mulheres porto-riquenhas foram esterilizadas sem seu consentimento ou conhecimento em um procedimento conhecido como ‘La Operacion’ nos anos 50 e 60. Pincus e Rock presumiram que iriam encontrar uma população grande e obediente de sujeitos de teste. Acreditavam que se as mulheres pobres e sem instrução de Porto Rico pudessem usar a pílula, qualquer uma poderia”.

Eis que, novamente, experimentos científicos da Indústria Farmacêutica se unem a interesses natalistas dos Estados. Em Porto Rico, a preocupação malthusiana da superpopulação já nos dá sinais de como este racismo vai se transformar discursivamente para manter sua legitimidade.

Neoliberalismo: paternalismo dos pobres (pobretologia) e “redenção contra a procriação” (“indesejada”)


No contexto da Guerra Fria, os ideólogos do Banco Mundial buscaram estabelecer os parâmetros considerados “legítimos” para o “combate à pobreza”. Trata-se de conceber uma forma de administração da pobreza que se adequasse ao modelo neoliberal de políticas econômicas no capitalismo. Aquilo que viria a ser conhecido como “pobretologia” seria a “imposição da pobreza como unidade de análise, parâmetro legítimo e foco obrigatório para toda e qualquer iniciativa no âmbito da assistência ao desenvolvimento” (PEREIRA, 2014, p. 86). Seu objetivo é ofuscar o foco classicista acerca dos “problemas sociais” além de conduzir as “políticas de combate à pobreza” no sentido de administrar as, assim chamadas, “zonas de vulnerabilidade social”. É neste contexto que devemos entender as ONG’s assistencialistas de “combate à pobreza” incentivadas pelo Capital Financeiro.

E aqui estamos nós: numa Porto Alegre notadamente neoliberal, o Ministério Público, a Bayer e uma ONG (Fundação O Pão dos Pobres) firmam um “Termo de Cooperação” para controlar a população e fazer experimentos humanos. Vejamos as justificativas encontradas na reportagem do G1(5):

“A instauração do projeto partiu de representação enviada pela Fundação O Pão dos Pobres ao MP em fevereiro deste ano, solicitando auxílio na atenção de saúde das adolescentes acolhidas nos seus abrigos. ‘Algumas se recusavam a fazer injeção contraceptiva e não tinham regularidade no uso da pílula’, disse a promotora Cinara Vianna Dutra Braga. De acordo com o gerente da Fundação O Pão dos Pobres João Rocha, em um ano a instituição recebeu cerca de oito adolescentes entre 14 e 17 anos que estavam grávidas. ‘Nós comunicamos a nossa preocupação ao MP, mas não indicamos nenhum método de prevenção específico. E estamos realizando um trabalho de consciência para que elas não voltem a engravidar’, afirma. Em nota, a prefeitura também se manifestou dizendo que com a parceria ‘serão ampliadas as opções contraceptivas disponibilizadas às adolescentes em situação de vulnerabilidade’”.

Seria impressionante se não fosse algo inerente ao modo de produção capitalista. Como bem pontuou Silvia Federici, o capitalismo possui intrinsecamente uma forma de patriarcado que exerce controle direto sobre a reprodução humana. Este tipo de situação horrível só acabará com a destruição deste Modo de Produção. Vale destacar que a destruição do capitalismo é indissociável de uma destruição de seu sistema de dominação política (o Estado).

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Notas:


(1) – “Volks, BMW, Hugo Boss: essas e outras gigantes ajudaram Alemanha nazista”, disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2017/09/12/empresas-nazismo.htm.

(2) – “Mulher usada como ‘cobaia’ pelos nazistas quer indenização da Bayer”, disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/story/2003/08/030820_cobaiamt.shtml.

(3) – Veja o trailer do documentário mencionado aqui: https://youtu.be/5QJUPanVCUo (Sinopse: Um documentário sobre os homicídios praticados pela polícia contra civis, no Rio de Janeiro, em casos conhecidos como autos de resistência. O filme acompanha a trajetória de personagens que lidam com essas mortes em seus cotidianos, mostrando o tratamento dado pelo Estado a esses casos, desde o momento em que um indivíduo é morto, passando pela investigação da polícia, até as fases de arquivamento ou julgamento por um tribunal do júri).


(5) – “Iniciativa do MP do RS para implantar contraceptivo em adolescentes de abrigos é alvo de críticas em Porto Alegre”, disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2018/07/26/iniciativa-do-mp-do-rs-para-implantar-contraceptivo-em-adolescentes-de-abrigos-e-alvo-de-criticas-em-porto-alegre.ghtml. (Observação: aconselhamos a ler os comentários da reportagem)
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Referências e Sugestões de Leitura:


FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.


FOUCAULT, Michel. Aula de 17 de março de 1976. In:______. Em defesa da sociedade. São Paulo: 2005, Martins Fontes, pp.285-315. (Uma ressalva: Foucault pode ser útil para abordar as questões que discutimos, mas é equivocado em alguns aspectos de gênero, como bem observou Federici em “Calibã e a Bruxa”, além de desconhecer a natureza e história de movimentos como o comunismo e o anarquismo).

PEREIRA, João Márcio Mendes. As ideias do poder e o poder das ideias: o Banco Mundial como ator político-intelectual. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, v. 19, n. 56, p. 77-100, Mar. 2014.

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