sábado, 8 de agosto de 2020

O comunismo primitivo não foi o que te contaram (2020) – Emancipação

Reconstrução digital de Talianki, uma cidade comunista primitiva de cerca de 5.000 anos.

Publicaremos aqui a tradução que realizamos do primeiro artigo sobre o “comunismo primitivo” disponível no site “Nuevo Curso” do grupo Emancipação. Consideramos que as sínteses que eles apresentam são de suma importância para a compreensão adequada do que se convencionou chamar de “comunismo primitivo”. O segundo artigo também foi traduzido por nós e se encontra publicado em nosso blog, veja-se: link.

Não obstante, é necessário fazer uma ressalva quanto ao uso do termo “primitivo”: trata-se de um qualificativo equivocado, pois nos induz a cometer o erro de projetar uma linearidade progressiva sobre as sociedades.

As imagens, legendas e links que incluímos estavam na publicação original (tomamos a liberdade de corrigir os links quebrados). Ao final deixamos, como complemento, um vídeo sobre o templo de Göbekli Tepe.


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No relato que nos ensinaram na escola, há uns 9.000 anos, o descobrimento da agricultura produziu a sedentarização, a urbanização e a divisão de classes. O comunismo primitivo foi deixado para trás e a História da Humanidade começou como tal com a ruptura da comunidade social originária e o início dos modos de produção baseados na exploração de umas classes por outras. Os descobrimentos arqueológicos das últimas décadas desmentem, porém, estes relatos e nos pintam um mundo em que o comunismo primitivo desenvolveu a agricultura e a pecuária sem dividir a sociedade em classes, produziu grandes cidades muito distintas daquelas do “Crescente Fértil” e resistiu à emergência das classes exploradoras até datas relativamente recentes, chegando a coexistir temporalmente com os primeiros reis romanos e a primeira democracia escravista grega.


No início da agricultura havia… o comunismo


Göbekli Tepe


A velha história tinha falhas evidentes. A primeira grande revolução produtiva de nossa espécie, no fim de meio milhão de anos de vida nômade, que abriu as portas para a divisão em classes sociais, escrita, religiões desenvolvidas, os primeiros estados… não poderia ser explicada como uma melhoria na produtividade. A agricultura exigia mais recursos e produzia menos do que permanecer como caçadores nômades. Durante décadas, se experimentou todo o tipo de modelos explicativos, mas nenhum conseguia alcançar resultados realmente satisfatórios. Parecia que nossos antepassados tinham passado fome e penúrias voluntariamente para aprender a cultivar grãos e criar gafo, embora essas práticas levassem muitas gerações para serem mais proveitosas do que a caça e a coleta.

Klaus Schimidt, o arqueólogo que dirigiu a escavação de Göbekli Tepe, considerada por muitos como a descoberta arqueológica mais importante até hoje, foi o primeiro a desenvolver uma teoria satisfatória a partir das novas evidências. Göbekli Tepe, descoberto em 1994 e construído há cerca de 11.500 anos, cerca de três milênios antes da fundação de Uruk/Suméria, tem sido conhecido na mídia como “o primeiro templo”, mas, acima de tudo, é o primeiro vestígio material descoberto até agora da sedentarização e de produção agrícola.

Schimidt argumentou que Göbekli Tepe havia sido um centro de onde o cultivo e a pecuária se espalharam em direção ao que chamamos de “Crescente Fértil”. Mas os construtores dessas edificações ainda eram nômades e caçadores. Teriam sido as necessidades de manutenção das próprias estruturas do santuário que teriam gerado os incentivos para investir recursos no árduo trabalho de cultivo de cereais silvestres e domesticação de algumas espécies. Podia ser antieconômico em relação à caça, mas a caça exigia longas viagens em ciclos sazonais, se você quisesse ficar em Göbekli, teria que dedicar mais tempo cuidando dos grãos selvagens que o cercavam. Ainda mais se, ao que parece, o santuário recolhesse e abrigasse regularmente os aleijados e enfermos, funcionando como uma espécie de “base” para um grupo que ainda era nômade.

Faltava, contudo, uma peça a polir: que sentido tinha manter uma estrutura tão cara e ao mesmo tempo tão precária? O que esses santuários forneciam de importante o suficiente para organizar toda a vida comunitária ao seu redor? A resposta seria dada novamente por Göbekli Tepe. A descoberta de grandes cubas de fermentação iluminou um novo elemento. Escavações paralelas na China, entretanto, deram origem às primeiras teorias que afirmavam que a agricultura foi um subproduto da necessidade de produzir bebidas alcoólicas para as celebrações periódicas dos caçadores nômades.


Relevo encontrado em Jiahu.


Em 2004, as escavações em Jiahu, a mais antiga aldeia neolítica chinesa descoberta até agora, fundada há cerca de 9.000 anos, forneceu uma nova pista. O arqueólogo Patrick McGovern descobriu restos de uma bebida, uma espécie de chicha, que devia conter cerca de dez graus de álcool. O que é mais interessante é que a produção dessa “cerveja” primitiva teria sido, segundo McGovern, a causa da sedentarização. Santuários como Göbekli Tepe, ou assentamentos como Jiahu, ou aqueles que dariam origem à Suméria, teriam sido o produto da necessidade de comunidades e grupos de caça nômades em se reunirem novamente para celebrar e redistribuir o fruto de seu trabalho.

Como em Göbekli Tepe, Jiahu originalmente não abrigava toda a tribo. É bem possível que tenha nascido como um assentamento de apenas umas poucas pessoas que cuidavam de cultivos “fermentáveis” que em cada ciclo sazonal permitiam a produção da bebida. Tratava-se de bebidas cuja função era integrar-se em uma espécie de festa em que a comunidade nômade se reencontrava com seus aleijados e com os menos produtivos e sacrificados agricultores. Como observa McGovern:

Apesar de caracterizarmos essas bebidas como neolíticas tal qual a domesticação destas plantas, veremos que é um esforço igualitário, com todos trabalhando juntos.

Em uma economia comunista primitiva, a celebração é o principal mecanismo coletivo de coesão social. Ao unir a redistribuição entre agricultores e caçadores por meios de cerimônias, a comunidade não se dividia em classes, afirmando sem fricções seu igualitarismo. A fermentação de grãos silvestres – a forma mais primitiva de cerveja – começa a ter um papel cada vez mais importante nesses festivais, porque eles se convertem naturalmente no “objetivo” de todos. Toda celebração precisa de algo especial. Desse modo, algo aparentemente antieconômico, como semear e cultivar em tempo integral, torna-se objeto de uma primeira divisão do trabalho que não servia à exploração de uns por outros.

Ainda há exemplos dessa lógica comunista primitiva operando em sociedades vivas, por exemplo, os Enawene-Nawe, cuja sociedade combina caça e agricultura articulando-se em torno de um festival cíclico central. Cada vez que os grupos de caça e pesca voltam, uma casa diferente – os responsáveis de um pomar – organiza uma festa comunitária onde os resultados da caça e do cultivo são redistribuídos, mantendo a organização social. As casas estão distribuídas radialmente e a casa que deve organizar o festival está mudando de raio para raio como o calendário cíclico amazônico.


Foto de canoas Kwakiutl de 1914.


Essa lógica redistributiva parece ter sido também a origem das primeiras redes “globais”. Com toda a probabilidade, uma troca não-mercantil mais parecida com as extensas redes de troca ritual polinésia ou dos Kwakiutl até o século 20, do que com o comércio posterior dos fenícios ou gregos. Pesquisas recentes sobre o DNA da flora britânica levaram uma equipe de cientistas a concluir que as comunidades neolíticas do Sul da Europa compartilhavam sementes de grãos cultivados com seus vizinhos mais atrasados do Norte há mais de oito mil anos, dois mil anos antes das primeiras evidências conhecidas de agricultura nas ilhas.

Ou seja, os “santuários” – originalmente o centro dos itinerários de caça das partes de uma tribo – possivelmente também serviam para a redistribuição entre diferentes tribos, difundindo e equalizando os avanços em diferentes regiões geográficas. A revolução agrária criou um mundo interconectado com trocas de longa distância muito antes do nascimento da mercadoria.

O resultado geral é uma imagem da Revolução Neolítica e do nascimento da civilização muito diferente daquela que se tivera durante o século XX. A comunidade agrária primitiva não tinha uma estrutura social nem um ciclo produtivo essencialmente diferente daquele das tribos nômades. Depois do comunalismo primitivo dos caçadores e coletores que fascinou os primeiros antropólogos, não veio imediatamente o Estado, a propriedade privada e a divisão sócio-sexual do trabalho, mas uma longa fase de comunismo agrário que continuou a ser sustentado em parte pela caça, pela pesca e coleta. Esse sistema de produção ocupava amplos espaços geográficos, certamente mais conectados entre si do que imaginamos. E, o que é mais importante: o grande salto não foi a descoberta da agricultura em si, mas o nascimento do comunal agrário a partir da lógica cerimonial da celebração.


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Göbekli Tepe: El descubrimiento que puede cambiar la historia | Tarihi değiştirebilecek keşif


Observação: é possível utilizar a ferramenta de tradução automática das legendas pelo YouTube, caso seja necessário ativar legendas em português.

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