domingo, 8 de agosto de 2021

Iraque, de um motim a uma reforma impossível 2018-2019 (entre novembro e dezembro de 2019) – Tristan Leoni

Manifestante na ponte Al-Jumhuriyah em frente ao bloqueio repressivo da “Zona Verde”. Imagem extraída de: link.

Traduzimos as duas partes do texto de Tristan Leoni sobre os protestos no Iraque em 2018 e 2019. As manifestações analisadas pelo autor fazem parte da onda internacional de revoltas proletárias (sobre essa questão, veja o texto do Proletarios Internacionalistas traduzido ao português e disponível em: link).

A primeira parte foi originalmente publicada em francês em novembro de 2019, disponível em: link. Ela foi traduzida ao espanhol por “Pensamiento inútil” e publicada em 28 de fevereiro de 2020 em: link. A tradução ao português dessa primeira parte é baseada exclusivamente na versão em espanhol.

A segunda parte foi originalmente publicada em francês em dezembro de 2019, disponível em: link. Essa segunda parte foi traduzida para o inglês por Friends of the Class War e está disponível em: link. A tradução ao português é baseada na versão em inglês com a inclusão das notas que estavam presentes apenas na publicação original em francês (da onde foram traduzidas).

As notas foram divididas de acordo com as duas partes (ou seja, essa publicação terá duas listas de notas).

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Primeira parte: Raiva e Incêndios, 2018


“Eu saí da escola primária, mas já sabia atirar com a Kalachnikov. Treinávamos no bairro”. Um habitante de Basra, ex-miliciano [1].

Praça Tahrir de Bagdá (imagem extraída da publicação de “Pensamiento inútil”).

Desde o esmagamento do Estado Islâmico (EI, ISIS, Daesh, etc.) no outono de 2017, as notícias do Iraque têm sido regularmente perturbadas por episódios de manifestações e motins com o pano de fundo das demandas sociais básicas (por acesso à eletricidade, água potável e emprego) e denúncias de corrupção do pessoal político.

No contexto de paz e harmonia nacional finalmente recuperado, abre-se um período particularmente favorável para iniciar reformas e tentar satisfazer as imensas expectativas da população. Valioso capital político que o governo esbanjou em apenas alguns meses de intensa inação. A raiva e a frustração da população, mais uma vez, não têm limites; os esforços e sacrifícios feitos durante a guerra contra o califado foram em vão. Com o passar dos meses, as ondas de mobilização, a violência e a determinação dos manifestantes pareciam aumentar; distúrbios, incêndios e confrontos com agências de aplicação da lei abalaram cada vez mais o país. Até este mês de outubro de 2019, quando o movimento de protesto entra em uma nova fase, de maior magnitude, mas com práticas diferenciadas. Embora o governo esteja mais do que nunca aberto a críticas, sabemos que o estado será preservado.

Um país em ruínas


Guerra após guerra, ruína após ruína. De 2014 a 2017, a metade sunita do norte do Iraque é mais uma vez devastada pelos combates, primeiro pela conquista incendiária liderada pelo EI (que se deteve a 100 km ao norte de Bagdá) e depois por sua libertação muito lenta. O custo da destruição vinculada a este conflito foi estimado pelo Banco Mundial, em janeiro de 2018, em 45,7 bilhões de dólares. Em algumas áreas está tudo destruído, as cidades estão quase totalmente arrasadas, em outras não sobrou nenhuma infraestrutura. Por exemplo, apenas 38% das escolas do país ainda estão de pé e apenas metade dos hospitais. Uma cidade como Mosul foi apenas “libertada” do EI em troca de 8 milhões de toneladas de entulho e centenas de milhares de pessoas deslocadas [2].

Obviamente, a economia do país não se libertou do setor essencial de hidrocarbonetos, que representa 88% dos recursos orçamentários, 51% do PIB e 99% das exportações do país. O Iraque continua sendo o segundo maior produtor de petróleo da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), depois da Arábia Saudita, com uma produção média de 4,5 milhões de barris por dia. Algumas infraestruturas foram particularmente afetadas, por exemplo a refinaria de Baiji, a maior do país, que apenas será parcialmente reiniciada na primavera de 2018. Durante vários anos, o Iraque teve de importar produtos refinados (incluindo combustível), gás e eletricidade de países vizinhos, particularmente o Irã [3]. Três quartos da infraestrutura hidráulica e metade das usinas foram destruídas. Dependendo da região, os iraquianos recebem apenas entre cinco e oito horas de eletricidade por dia e a escassez de água potável é crônica; em Bagdá, por exemplo, um quarto dos habitantes não tem acesso à água potável. A produção agrícola também diminuiu, em particular devido à destruição dos sistemas de irrigação, exacerbando um êxodo rural já endêmico.

Em 2018, a taxa oficial de desemprego no Iraque era de 23%, mas deve chegar a 40% entre os jovens (os menores de 24 anos representam 60% da população). Na verdade, há relativamente pouco trabalho no Iraque. O setor econômico primário, o petróleo, em última análise, fornece poucos empregos, especialmente porque as empresas estrangeiras contratam muitos migrantes asiáticos (que são considerados mais dóceis e amigáveis do que os trabalhadores locais). O setor privado continua fraco e, de fato, existem apenas dois ramos de atividade que dão emprego à população: primeiro, a administração pública, com cinco milhões de funcionários (incluindo aposentados), ante meio milhão em 2003; em segundo lugar, o setor da violência, com o exército iraquiano totalizando cerca de 200.000 homens, e o Hashd al-Chaabi, unidades de mobilização popular (PMUs), cerca de 100.000. Este último é uma coalizão de cerca de cinquenta milícias, principalmente xiitas, que cresceu fortemente em 2014 depois que a fatwa do Grande Aiatolá Ali al-Sistani [4] ordenou a mobilização contra as tropas do EI. Dezenas de milhares de voluntários (a maioria formada por desempregados), um terço dos quais são da província de Basra, responderam a este apelo. Milhares de pessoas morreram e muitas voltaram feridas, às vezes com amputações [5]. O fim da guerra contra o EI leva a uma desmobilização parcial dessas tropas; um miliciano de volta à vida civil significa uma fonte a menos de renda para uma família e mais uma boca para alimentar.

No Kuwait, em fevereiro de 2018, em uma conferência sobre a reconstrução do país, enquanto o governo iraquiano pede mais de 88 bilhões de dólares, a comunidade internacional só promete cerca de 30 bilhões na forma de créditos e investimentos (em particular Turquia, Kuwait, Arábia Saudita e Qatar) [6]. Porém, devido à corrupção excepcional, que está entre as maiores do mundo, sabe-se que parte da ajuda internacional – assim como parte da receita do petróleo – desaparece no bolso dos políticos locais; sucessivos governos desviaram desde a queda de Saddam Hussein em 2003 cerca de 410 bilhões de euros, o dobro do PIB do país.

Para piorar a situação, o Iraque outrora devastado pela guerra, endividou-se, em 2016 o país fechou um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e, em troca de empréstimos, prometeu tomar medidas de austeridade (redução do número de funcionários, aumento do preço da eletricidade, aumento dos impostos alfandegários e de renda, etc.).

Como podemos ver, no Iraque, os anos de libertação e reconstrução provavelmente não serão descritos como gloriosos. A decepção, frustração e raiva dos habitantes parecem tão grandes como antes do episódio do Califado; ou porque eles realmente não se beneficiam disso (veteranos de guerra ou civis arruinados ou deslocados), ou porque eles perderam tudo de novo (partidários do EI, sunitas humilhados pela ocupação xiita). Parece haver um retorno ao status quo ante (nota da tradução: expressão em latim: Status quo ante bellum, cujo significado é: “o estado em que as coisas estavam antes da guerra”). Ou pior.

As premissas da revolta (2011-2015)


Durante a Primavera Árabe de 2011, milhares de iraquianos saíram às ruas de muitas cidades para expressar sua raiva contra um regime (já) corrupto e (já) deploráveis condições de vida. O movimento é rápida e violentamente reprimido pelo primeiro-ministro Nouri al-Maliki, ao custo de dezenas de mortes. Como a segurança parecia ter sido definitivamente restaurada em todos os níveis, as tropas americanas deixaram o país no final do ano. Depois disso, as províncias sunitas experimentaram novos episódios de protesto e a resposta do governo foi idêntica: a polícia. Isso foi o suficiente para enriquecer o terreno fértil para o crescimento do EI e explicar o motivo pelo qual parte da população vai abraçá-lo em 2014 como um libertador.

Apesar da guerra, manifestações populares contra a corrupção estouraram em Bagdá, apoiadas pelo clero xiita; em julho de 2015, eles eram liderados principalmente por apoiadores da estrondosa Moqtada al-Sadr [7]. Mas no sul do país, em Basra e Kerbala, são as repetidas quedas de energia que levam principalmente as pessoas às ruas. Para acalmar os ânimos, o primeiro-ministro Haidar al-Abadi, no cargo desde 2014, se contenta em prometer reformas… que não vão acontecer. A raiva dos iraquianos aumenta novamente de fevereiro a maio de 2016; incluso a “zona verde”, o perímetro ultrasseguro de Bagdá que abriga prédios oficiais [8], é invadida brevemente, e o parlamento é ocupado por manifestantes sadristas. Uma nova tentativa de ocupação em fevereiro de 2017 não teve sucesso, com quatro mortos e dezenas de feridos. Em frente à “zona verde”, na margem oposta do Tigre, a Praça Tahrir tornou-se um local simbólico de protesto; onde geralmente às sextas-feiras após a oração, grupos de ativistas e manifestantes se reúnem com seus cartazes. Mas o epicentro da revolta proletária está mais ao sul.

Veneza à deriva


A província do sudeste tem uma população de cerca de cinco milhões de habitantes, mas apenas sua capital, Basra, tem uma população de três a quatro milhões. Em teoria, é uma das regiões mais ricas do país (senão do mundo), com quase 80% do petróleo do Iraque extraído dela (mais do que do vizinho Kuwait). A cidade abriga uma importante atividade petroquímica e, na periferia, os únicos portos do Iraque abertos para o Golfo Pérsico, incluindo o porto de águas profundas de Umm Qasr (50 km mais ao sul). Deste ponto totalmente saturado, mercadorias (especialmente alimentos) entram no Iraque e milhões de barris de petróleo são exportados todos os dias. Muitos investidores estrangeiros estão presentes na cidade (por exemplo, companhias marítimas francesas ou italianas) e não faltam estudos para novas infraestruturas industriais e logísticas. Nem tampouco os projetos imobiliários faraônicos dos mais delirantes: construção de hotéis cinco estrelas, casas de alto padrão, shopping centers, bairros comerciais com a torre mais alta do mundo (230 andares); o suficiente – alguns esperam – para rivalizar com Dubai. Enquanto isso, a atividade econômica real traz milhões de dólares todos os dias para o estado iraquiano, quase nada para a região e menos ainda para seus habitantes.

Sudeste do Iraque (imagem extraída da publicação de “Pensamiento inútil”).

A província de Basra tem sido, durante muito tempo, uma área agrícola de grande importância, conhecida por suas tamareiras. O estuário Chatt Al-Arab, que costumava ser uma agricultura ecologicamente rica e exuberante, se transformou em um inferno ecológico, devastado por décadas de guerra, concreto e poluição industrial – com incidência ad hoc de câncer para sua população. Mas, o que é pior, entre a elevação do nível do mar devido ao aquecimento global e a diminuição do fluxo dos rios devido à irrigação intensiva (construção de barragens na Turquia e no Irã, resíduos no Iraque), estamos testemunhando agora uma salinização crescente de terra e água subterrânea.

“Algumas ervas daninhas estão espalhadas pelo pedaço de terra rachado. ‘Antigamente tudo era muito verde aqui. Eu plantei vegetais, forragem para meus animais, tâmaras e maçãs’. Com os seus quatro hectares de terra, o seu rebanho de cerca de 30 ovelhas e algumas vacas, este agricultor podia ganhar até 25 milhões de dinares por ano (cerca de 20.000 euros). ‘Mas este ano, perdi tudo. Nada vai crescer. Tenho três filhos para alimentar, então, para sobreviver, vendo meus animais’. Dada a escassez de água potável, esse homem de 60 anos deve encher os cochos com água engarrafada” [9].

Recentemente, o governo teve que proibir plantações que consomem muita água doce, como milho e arroz. Isso, junto com a expropriação de fazendeiros para a expansão da infraestrutura de petróleo, está contribuindo para um êxodo rural significativo que alimenta as favelas e assentamentos informais nos arredores de Basra. Assim, a população da cidade aumentou em mais de um milhão de habitantes desde 2003. A “taxa de criação de empregos” obviamente não seguiu a mesma taxa e um terço da população vive agora abaixo da linha da pobreza, com menos de 2 dólares um dia. Os majestosos canais da cidade, que antes a tornavam conhecida como a “Veneza do Oriente Médio”, agora parecem esgotos a céu aberto e lixões flutuantes. Seus habitantes têm pouco ou nenhum acesso a serviços públicos básicos como água encanada, eletricidade ou gerenciamento de lixo [10]. Na tentativa de resolver essas questões, a governadoria de Basra assinou acordos diretamente com os países vizinhos. O Kuwait, por exemplo, abastece as usinas de energia iraquianas com combustível diariamente, mas isso se deve principalmente ao temor de que ondas de migrantes cruzem sua fronteira. O fornecimento de eletricidade do Irã está sujeito a riscos, como sanções dos EUA ou dificuldades de pagamento. Quanto à Arábia Saudita, que ainda assim deseja se opor à influência de Teerã, por enquanto apenas se contenta com promessas.

Mapa apontando a localização de Basra (imagem extraída da publicação de “Pensamiento inútil”).

Os habitantes de Basra não se conformam com isso, certamente a região preserva traços de uma tradição de luta, especialmente nos sindicatos e no passado a influência dos movimentos políticos marxistas foi muito importante [11]. O xiismo político iraquiano permeou nessa região na segunda metade do século 20 (para conter a influência comunista), contando com o verniz pró-justiça social que essa religião possui. Uma insurreição quase mítica como a de 1991 contra o regime de Saddam Hussein permanece na memória. A capital da província, compreensivelmente, não é conhecida por sua estabilidade social e as manifestações fazem parte da vida cotidiana lá.

Os distúrbios de julho / A eletricidade


As notícias iraquianas do verão de 2018 deveriam ter sido dominadas pelos desdobramentos políticos após as eleições legislativas de maio. Essas eleições, nas quais foi registrada uma abstenção recorde de mais de 55%, resultaram em um parlamento fragmentado sem uma maioria clara.

À frente estava a coalizão Sayirun (Em Movimento), que poderia ser descrita como populista e nacionalista; uma aliança sem precedentes de apoiadores xiitas do soberano Moqtada al-Sadr e do modesto Partido Comunista Iraquiano (este último, entretanto, tem apenas 2 deputados dos 54 membros eleitos da coalizão). Em segundo lugar, a Fatah Alliance (Aliança da Conquista); Xiita ortodoxo e politicamente inspirado no modelo iraniano, é liderado por Hadi al-Ameri; braço político da UMP, obtém sua legitimidade de sua participação ativa na luta contra o EI. A formação do Primeiro-Ministro Al-Abadi, o Partido Islâmico Al-Dawa, está apenas em terceiro lugar.

Se, a princípio, esses blocos políticos parecem difíceis de conciliar, pelo menos dois deles têm de unir forças para nomear um primeiro-ministro e dividir o poder; isso é ainda mais complexo porque eles devem respeitar as cotas étnico-confessionais na distribuição de cargos e, finalmente, não devem incomodar Teerã ou Washington. Depois de um mês de negociações e mudanças espetaculares de rumo, a primeira etapa parece ter passado: um acordo para a formação de um governo foi finalmente alcançado entre Haidar al-Abadi e Moqtada al-Sadr.

Mas enquanto os políticos nos palácios com ar-condicionado da “zona verde” lutam febrilmente pela alocação de ministérios, os habitantes de Basra enfrentam a pior crise de água do Iraque, bem como terríveis ondas de calor. Com temperaturas acima de 50°C, ventiladores, ares-condicionados e geladeiras estão se tornando mais do que essenciais. A eletricidade ainda é necessária. Em 6 de julho, devido a contas não pagas, o Irã simplesmente fechou várias linhas de energia, incluindo a que abastece Basra. Os proletários, percebendo que a solidariedade xiita tem seus limites, tiveram que recorrer a seus geradores antigos, caros e poluentes. Quanto às autoridades iraquianas, não encontram outra solução senão pedir aos habitantes… que economizem energia.

Dois dias depois, no domingo, 8 de julho [12], um tipo bastante comum de manifestação ocorreu nos arredores de Basra: algumas dezenas de pessoas bloquearam uma estrada que leva aos campos de petróleo West Qurna-2 (explorados pela empresa russa Lukoil) e West Qurna-1 (pela Exxon Mobil), evitando que os funcionários acessem os campos. Eles esperavam conseguir alguns empregos, mas a situação se degenerou, um manifestante foi baleado e morto pela polícia [13]. Na época, ninguém sabia que esse evento acenderia o pavio.

Parece que os xeiques tribais locais buscaram primeiro justiça e reparação e depois receberam apoio de outras tribos. As manifestações recomeçaram na terça-feira seguinte. No dia seguinte, os manifestantes tentaram entrar nas instalações de petróleo perto de Basra, entraram em confronto com as forças de segurança e incendiaram os prédios de entrada do local. A tensão era tanta que as petrolíferas estrangeiras ordenaram a evacuação de seus executivos. Nos dois dias seguintes, manifestações ocorreram em várias cidades do sul do país (Basra, Nassiriya, Najaf, Samawa e Kerbala) até Bagdá. Em muitos casos, os manifestantes tentaram bloquear rotas economicamente estratégicas, como campos de petróleo, passagens de fronteira (para impedir a passagem de caminhões), aeroportos e o porto de Umm Qasr. Os prédios oficiais foram ocupados. Houve confrontos com a polícia e feridos em várias cidades.

Na sexta-feira, dia 13, o primeiro-ministro Haidar al-Abadi viajou para Basra, onde se reuniu com líderes militares, políticos, tribais e econômicos para tentar acalmar a população anunciando (sem maiores detalhes) que liberaria “os fundos necessários” para a cidade. Por ocasião do sermão de sexta-feira, o Grande Aiatolá Ali al-Sistani, fiel à sua postura equilibrada, deu seu apoio aos manifestantes, mas pediu-lhes que evitassem a desordem e a destruição. No entanto, ao anoitecer, revoltas eclodiram em várias cidades; os manifestantes, embora muito respeitosos com seus religiosos, optaram por ignorar suas recomendações e, pelo contrário, atacaram edifícios oficiais, instalações de partidos políticos e milícias (com exceção de organizações sadristas), e até mesmo tentaram incendiá-los. A luta com as forças de segurança continuou durante a noite; oito manifestantes foram mortos. Ao longo da semana seguinte, essas manifestações se repetiram e se espalharam por outras províncias do sul do país.

O que esses manifestantes querem? Principalmente água, eletricidade, melhores serviços e empregos. Um homem de 25 anos, formado pela Universidade de Basra, disse: “Queremos empregos, água potável e eletricidade. Queremos ser tratados como seres humanos, não como animais” [14]. Outro funcionário de 29 anos afirmou: “As pessoas estão com fome e vivem sem água e sem luz. Nossas demandas são simples: mais trabalho, estruturas de dessalinização de água e construção de usinas” [15]. Além dessas demandas materiais básicas, os manifestantes acrescentaram uma denúncia vaga, mas virulenta, da corrupção e de todos os “ladrões” que governam o país; eles também fizeram slogans políticos parecerem mais explícitos, como “O povo quer que o regime caia!”.

Conforme a semana avançava, a raiva expressa também assumiu matizes de soberanismo, com os manifestantes gritando: “Fora com o Irã! Bagdá livre!”. Os partidos xiitas, que estão no poder há anos, estão de fato associados a um Irã cujo domínio sobre o país parece estar se expandindo e os símbolos da República Islâmica (muito presentes no sul do país) servem de escape para a ira dos amotinados: por exemplo, atear fogo a faixas e painéis em homenagem a Khomeini (fundador da República Islâmica do Irã).

Quem são esses manifestantes? Em primeiro lugar, eles são homens, exclusivamente; especialmente os jovens (às vezes muito jovens), proletários pobres e desempregados, incluindo jovens licenciados (os menores de 35 anos representam 70% da população). As manifestações são bastante espontâneas, não respondem ao apelo de nenhum partido ou sindicato, não surge nenhum líder ou dirigente e, embora localmente as reuniões possam ser iniciadas por militantes ou xeiques tribais, rapidamente se tornam incontroláveis. Inicialmente, a mobilização parece dizer respeito apenas aos xiitas (que ainda assim representam 60% da população) e às regiões do país e bairros da capital em que são maioria, mas logo fica claro que realmente transcende a divisões da comunidade, das quais os sunitas participam, e algumas regiões mistas são, por sua vez, afetadas [16].

Basra (imagem extraída da publicação de “Pensamiento inútil”).

Desde o início, a raiva dos manifestantes foi dirigida contra a elite política e seus símbolos, às sedes da autoridade, como governos, conselhos municipais ou tribunais; os escritórios dos partidos políticos são regularmente atacados, saqueados e queimados. Esses jovens proletários usam a violência de uma forma bastante “natural”, espontânea e primitiva. Isso pode ser facilmente explicado pela dureza do cotidiano iraquiano, pela “brutalização” que os anos de guerra infligiram à sociedade (no sentido de George L. Mosse), mas também por uma cultura popular que banaliza a violência [17]. O governo iraquiano prefere denunciar a presença de “vândalos” infiltrados nas manifestações. No entanto, esse uso moderado da violência parece estar se espalhando, ou, pelo menos, sendo aceito por outras categorias de manifestantes, como afirma a jornalista Hélène Sallon: “Essa disposição de usar a violência foi mais tarde compartilhada por muitos manifestantes. Pessoas que não eram necessariamente daquela geração raivosa e muito jovem me disseram: Bem, sim, porque não temos outro recurso, eles não nos ouvem, apenas fazem promessa após promessa. E então, em algum momento, sim, por que não violência?” [18]. Onde estaríamos sem os apelos incessantes de contenção por parte das autoridades políticas e religiosas?

O jornalista nota, no entanto, uma mobilização mais fraca em Bagdá, talvez pelo peso que Moqtada al-Sadr ali exerce sobre uma parte do proletariado, mas também, sem dúvida, pelo distanciamento entre os militantes e os jovens proletários que seguem nas ruas: “Em Bagdá, vemos que esse movimento também não decolou, porque tenho a impressão de que o protesto lá é muito mais politizado, no sentido dos partidos, e vimos nas manifestações deste verão algumas diferenças entre esses ativistas mais velhos, mais politizados e mais apegados aos partidos, e a essa nova geração, diferenças que eles próprios não conseguiam entender e das quais não tinham certeza de suas intenções. Vimos em Bagdá uma dificuldade maior na capacidade de mistura do movimento, mais do que em Basra ou Najaf, onde as razões socioeconômicas são compartilhadas por todos” [19].

As autoridades, atordoadas pela urgência e desordem, só gradualmente perceberam a magnitude da revolta. A primeira coisa que eles tiveram que fazer foi limitar a destruição, daí a implementação de um toque de recolher noturno e o envio de tropas de choque usando gás lacrimogêneo e canhões d'água. Mas o exército será chamado rapidamente para proteger as instalações de petróleo que os manifestantes regularmente ameaçam entrar. Para limitar a mobilização, o acesso à Internet é interrompido várias vezes em todo o país, às vezes por vários dias, com interrupções totais ou às vezes apenas nas redes sociais.

O primeiro-ministro Al-Abadi adotará publicamente uma postura conciliatória com os manifestantes, cujas demandas legítimas ele diz entender e diz que quer proteger o direito de manifestar-se (pacificamente). Ele também promete acelerar projetos de água e eletricidade no sul, convida delegações de líderes tribais para se reunirem com ele e anuncia uma alocação imediata de 3 bilhões de dólares para a região de Basra. Apenas pode contar com o apoio do seu aliado Moqtada al-Sadr, que, embora já tenha um pé na “zona verde”, espera, como sempre, contornar o protesto sem chamar os seus apoiantes às ruas. Sem medo, o líder xiita não hesita em usar a hashtag do Twitter “a revolução da fome vence”; com cautela, pede aos manifestantes que mostrem contenção e não ataquem prédios públicos. Após mais de oito dias de manifestações e, sem dúvida, muitas hesitações, acreditando na continuidade do movimento, ele pede a seus deputados que suspendam as negociações para a formação de um novo governo até que as reivindicações dos manifestantes sejam atendidas.

O 20 de julho parece ser um ponto de inflexão. Diante do imponente aparato policial e militar implantado tanto nas províncias do sul quanto na capital, os manifestantes evitaram o confronto e se aglomeraram nas principais praças públicas. Em Bagdá, vários milhares de manifestantes tentaram se aproximar da “zona verde”, mas a polícia os fez retroceder. As manifestações, que se tornaram muito menos violentas, continuaram até o domingo, dia 22. Nessa época o movimento chega ao fim, após quatorze dias de manifestações em todo o sul do país, incluindo pelo menos oito dias de distúrbios. A repressão deixou 11 mortos, a maioria deles manifestantes mortos a tiros. Essa mobilização, essa violência e essa repressão parecem sem precedentes no Iraque.

Motins de setembro / A água


Alguém poderia pensar que, uma vez que a revolta acabasse, o governo poderia desfrutar de um momento de trégua, mas isso não aconteceu. Tudo está recomeçando em Basra, desta vez por causa da água. Devido às deploráveis condições sanitárias e meteorológicas, a água distribuída pelas autoridades, a partir de agosto, mostra-se muito mais salgada e poluída do que de costume. Em poucas semanas, seu consumo provoca a intoxicação e hospitalização de mais de 30.000 pessoas. Como de costume, o governo responde com alvoroço, imaginando que a suspensão do Ministro da Eletricidade e de alguns funcionários será suficiente para acalmar os ânimos e permitir que a “zona verde” volte ao seu pitoresco curso diário. No entanto, um mau sinal, no domingo, 2 de setembro, centenas de manifestantes bloquearam vários pontos estratégicos na província de Basra. No dia seguinte, em Bagdá, realiza-se a reunião inaugural do parlamento eleito em maio; dividida entre a aliança de Moqtada al-Sadr e o primeiro-ministro Haidar al-Abadi por um lado e a do líder da milícia pró-iraniana Hadi al-Ameri e o ex-primeiro-ministro Nouri al-Maliki por outro, não podendo eleger um presidente da câmara.

Na terça-feira, vários milhares de pessoas se reuniram em Basra para protestar contra a negligência das autoridades. As forças da ordem dispararam para o ar e usaram gás lacrimogêneo para dispersá-las, eclodiram confrontos. No final do dia, seis pessoas foram mortas. Os manifestantes foram ainda mais numerosos na quarta-feira. Na quinta-feira, 6 de setembro, o acesso ao porto de Umm Qasr foi bloqueado por manifestantes e, à noite, em Basra, agitadores atacaram prédios públicos e sedes de partidos políticos, incluindo o consulado iraniano, sendo repelidos pelas forças de segurança.

As autoridades, temendo a eclosão de manifestações após as orações de sexta-feira (que acontecem ao meio-dia), enviarão um grande número de policiais para Basra e introduziram um toque de recolher na cidade a partir das 16 h. No entanto, durante o dia os manifestantes tentam entrar em um dos centros petrolíferos próximos à cidade e outros bloqueiam os acessos a Umm Qasr novamente, a situação se intensifica à noite. Os moradores se reúnem nas ruas e, em números crescentes, atacam rapidamente edifícios do governo, escritórios de partidos e milícias, as oficinas e a residência do governador regional, queimando tudo o que podem. O que causa grande repercussão, até internacionalmente, é o assalto, pela segunda vez, ao consulado iraniano, e, desta vez, para se desfazer em fumaça. No decorrer da noite, mais três manifestantes são mortos a tiros pela polícia.

O dia seguinte, sábado, 8 de setembro, é particularmente calmo em comparação ao precedente. O porto de Umm Qasr retomará suas atividades e a polícia estará de prontidão. Alguns militantes que se apresentaram como “organizadores” dos protestos denunciaram a destruição do dia anterior e anunciaram que parariam o movimento. O toque de recolher será finalmente suspenso à tarde. Deve-se notar que, pela primeira vez, o comandante da UMP declara que suas tropas estão prontas para se posicionar nas ruas de Basra para garantir a segurança e proteger os manifestantes pacíficos contra os agentes provocadores.

Por outro lado, o governo promete mais uma vez liberar recursos (sem dar valor ou prazo), embora ninguém tenha visto ainda nenhum dos 3 bilhões de dólares prometidos em julho. No mesmo dia, o parlamento se reunirá com urgência para discutir a crise de Basra, mas parte da assembleia, incluindo a Fatah Alliance (o braço político do UMP), pede a renúncia do primeiro-ministro Al-Abadi. No entanto, teatralmente, esse pedido será atendido por Moqtada al-Sadr, que até então tinha sido um aliado de Al-Abadi! O líder soberanista, portanto, insinuou uma aliança com o bloco pró-iraniano. Essa mudança de curso foi facilitada pelas posições assumidas pelo Grande Aiatolá Ali al-Sistani, que era altamente crítico em relação ao primeiro-ministro. Este último foi finalmente forçado a jogar a toalha e foi Adel Abdel Mahdi, ex-ministro do Petróleo, quem foi nomeado para sucedê-lo (ele só assumiu o cargo em 25 de outubro de 2018).

A situação permanece um tanto confusa, mas, embora alguns denunciem a agitação como resultado de um complô para conter a influência iraniana, parece, paradoxalmente, que o bloco pró-iraniano emergiu mais forte [20].

Nada que, a princípio, pudesse satisfazer os manifestantes, dos quais, em menos de uma semana, treze foram mortos e dezenas a mais feridos. Nada que anuncie uma melhora em suas condições materiais de vida. No entanto, as manifestações não estão recomeçando e a vida quotidiana em Basra e Bagdá está voltando à normalidade. Por quanto tempo? Todos estão esperando a próxima explosão e permanecem em guarda. Mas ninguém suspeita que levará cerca de um ano para ver os proletários iraquianos de volta às ruas, equipados com sua raiva incendiária.

Fim da primeira parte.

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Segunda parte: 2019, reforma política ou guerra civil?


Após as revoltas de outubro de 2018, o Iraque experimentou doze meses de relativa calma. No entanto, basicamente a situação econômica e social permaneceu praticamente a mesma. O Iraque não experimentou uma nova onda de protestos até outubro de 2019, que inicialmente se revelou muito semelhante ao anterior. O que é novo, no entanto, é a magnitude e intensidade da mobilização, o nível de violência usado pelos manifestantes e o nível de repressão. Após um intervalo de algumas semanas devido a uma peregrinação xiita, o protesto, que parecia extinto, foi retomado, mas parecia estar transformado, tanto na forma como no conteúdo, e tanto em termos de demandas como na sociologia dos participantes. Com o passar das semanas, apesar das mortes, do cansaço e das fases de recuo, o movimento continua numa quase-rotina de manifestações e motins… mas não consegue encontrar uma saída. Embora o primeiro-ministro tenha prometido atender às demandas dos manifestantes, ele foi forçado a jogar a toalha no final de novembro, mergulhando o Iraque ainda mais na incerteza. No momento da redação, a mobilização permanece.

O primeiro-ministro Adil Abdul-Mahdi, que chegou ao poder em outubro de 2018, após a revolta proletária em Basra que causou a saída de seu antecessor, prometeu introduzir mudanças e combater a corrupção. Mas, como parece um hábito, ele não delineou nenhuma reforma significativa. É verdade que as agendas políticas não são ditadas por considerações econômicas e sociais, mas, de forma mais prosaica, por rivalidades comerciais e políticas. No entanto, estes últimos fazem parte da oposição entre Washington e Teerã, que tem sido particularmente forte desde maio de 2018 e a retirada americana do acordo sobre a energia nuclear iraniana.

1. Da remoção ao motim (29 de setembro – 5 de outubro)


Há sempre uma fagulha para desencadear uma mobilização, um pretexto para ir para a rua, um passo muito longe que leva a uma mudança, ainda que esta causa primeira rapidamente se torne ultrapassada ou mesmo esquecida [1]. No final de setembro, Bagdá enfrentou manifestações estudantis que foram reprimidas de forma bastante clássica pelo governo e a data de domingo, 29 de setembro, é considerada o ponto de partida do movimento [2]: várias centenas de pessoas se reuniram naquele dia para protestar contra a remoção de Abdul Wahab al-Saadi que aconteceu dois dias antes. Este comandante do Serviço de Contra-Terrorismo do Iraque [3], um herói nacional na luta contra o ISIS, é muito popular em algumas partes da população. Para seus detratores, ele é antes de tudo o homem dos Estados Unidos dentro do aparato militar. O caso provocou uma mobilização muito forte na internet, notadamente via Twitter com a hashtag “Somos todos Abdul Wahab al-Saadi”.

Dois dias depois, começaram as manifestações em várias cidades do país. Em Bagdá, o ponto de encontro dos manifestantes é obviamente a Praça Tahrir, em frente à “Zona Verde” na margem oposta do rio Tigre. A remoção já passou e os participantes adotam os slogans clássicos iraquianos para a melhoria dos serviços básicos, para a criação de empregos ou contra a corrupção, uma reminiscência da revolta de 2018. Um manifestante disse: “Tudo o que queremos é viver e nada mais, queremos viver como o resto do mundo. Queremos direitos muito básicos, eletricidade, água, emprego e remédios. Não queremos poder, dinheiro ou propriedade, tudo o que pedimos é para viver” [Deutsche Welle]. E outro acrescentou: “Estou sem trabalho. Eu quero me casar. Tenho apenas 250 dinares (menos de um quarto de dólar) no bolso e os funcionários do estado têm milhões” [Recapitulações de dinares].

Enquanto os manifestantes tentavam atravessar a ponte Al-Jumariyah, que os separa da “Zona Verde”, eles foram recebidos por canhões de água e bombas de gás lacrimogêneo, aos quais responderam com pedras e construindo barricadas de tipo com pneus em chamas e lixo [4]. Mas a polícia também usou munição real; dois manifestantes foram mortos, um em Bagdá e outro em Nasiriya, e mais de 200 outros ficaram feridos.

Praça Tahrir e as pontes Al-Jumhuriyah e Al-Sinak que dão acesso à “Zona Verde” atravessando o Rio Tigre. Print do Google Maps.

No dia seguinte, quarta-feira, 2 de outubro, as forças militares e de segurança foram massivamente implantadas em Bagdá. As estradas principais foram bloqueadas por veículos blindados, blocos de concreto e arame farpado. A Internet foi cortada em todo o país (exceto no Curdistão); as autoridades, visando o Facebook, Twitter e WhatsApp, esperavam pôr fim à mobilização.

Mesmo assim, os manifestantes se reuniram na Praça Tahrir e em várias cidades provinciais, incluindo Basra, Najaf, Nasiriya, Wasit e Diwaniyah. Em Bagdá, a estrada que leva ao aeroporto (oeste da cidade) foi bloqueada com pneus em chamas. Os confrontos eclodiram em várias localidades, onde edifícios que simbolizam o poder, bem como as instalações de partidos políticos [5] e milícias foram invadidos. Pelo menos sete manifestantes foram mortos.

Enquanto denunciavam as ações de “desordeiros” e “infiltrados” [na França seriam chamados de “casseurs”, que significa quem participa de “quebra-quebra”] entre manifestantes pacíficos, as autoridades impuseram toques de recolher em várias cidades. Mas nada ajudou: as manifestações agora eram diárias em todo o sul do país e se transformavam em tumultos, geralmente ao anoitecer.

Em Bagdá, a Praça Tahrir se tornou em poucos dias um ponto de fixação a partir do qual os manifestantes tentaram chegar à “Zona Verde” forçando o caminho para a ponte sobre o rio Tigre. Mas os quase 500 metros da ponte foram fortemente defendidos pela polícia e segmentados por várias barreiras de concreto, pelas quais os dois lados lutam pelo controle [6]. Nos primeiros dias, as batalhas às vezes ocorriam ao redor da praça, por exemplo, em 3 de outubro em uma praça 500 metros mais ao norte, onde dois veículos blindados [Humvees] das forças de segurança foram incendiados pelos manifestantes, mas a violência foi depois restringida à margem do rio Tigre. Esta mobilização em grande escala no coração da capital é uma novidade em comparação com os eventos de 2018.

Depois de alguns dias, o movimento assume um aspecto antissistema e agora existe, além das demandas de natureza econômica básica, uma exigência bem explícita de renúncia do governo. Mas que força política poderia compensar a folga e, no processo, satisfazer os manifestantes?

Assim como em 2018, o governo parece estar dominado pela violência do levante e faz malabarismos desajeitados entre cenoura e pau. Um toque de recolher completo foi imposto em Bagdá e em várias regiões, os funcionários públicos (ou seja, a maioria dos trabalhadores) foram instruídos a ficar fora das ruas. Apesar das ordens para mostrar moderação, os membros das forças de segurança frequentemente usam suas Kalashnikov para assustar os manifestantes, às vezes também para atingir os mais determinados deles ou para escapar de situações complicadas. Porque os combates têm sido particularmente acirrados e, até 3 de outubro, já morreram 31 pessoas, entre elas dois policiais (o que não é pouca coisa) [7]. Dois dias depois, o número de mortos já era de 100 mortos e 4.000 feridos. Durante esse período, houve muitas prisões, mas os manifestantes geralmente eram libertados após algumas horas em troca da assinatura de uma promessa de não voltar às ruas.

Do lado da cenoura, o primeiro-ministro Adel Abdul Mahdi explicou aos manifestantes que suas “demandas legítimas” foram ouvidas e que eles podem voltar para casa. Ele anunciou medidas sociais ambiciosas, incluindo seguro-desemprego, a construção de 100.000 unidades habitacionais e distribuição de terras subsidiadas, mas não definiu um cronograma. Ele se comprometeu a se reunir com os manifestantes para ouvir suas reivindicações e afirmou que os mortos durante as manifestações serão considerados “mártires”, o que significa que suas famílias terão direito a diversos benefícios.

Por sua vez, o muito influente Muqtada al-Sadr hesita (como sempre) entre elogiar a ordem (o poder, onde agora tem um pé dentro) e questionar o estabelecido: denunciou a violência dos serviços de segurança e apelou aos seus apoiadores para organizar manifestações pacíficas. Mas, em 4 de outubro, outra reviravolta acrobática, ele agora exige nada menos do que a renúncia do governo (que sua coalizão havia levado ao poder [ver a primeira parte deste artigo]) e a organização de eleições antecipadas!

No domingo, dia 6, a mobilização da polícia foi impressionante e a dos manifestantes muito limitada. As procissões foram impedidas de chegar à Praça Tahrir, o que levou a confrontos, especialmente no distrito de Sadr City, onde muitos manifestantes foram mortos ou feridos.

No dia seguinte, a calma voltou, a Internet foi restaurada e o protesto terminou. O número oficial de mortos nesta semana de violência foi de 157 mortos, incluindo 8 policiais, e cerca de 6.000 feridos. Além disso, 51 edifícios públicos e 8 sedes de partidos políticos foram incendiados. Algo nunca visto antes. O fim repentino dos protestos não é em si inédito, já que os movimentos sociais às vezes morrem de forma inexplicada e os comentaristas tentam, em vão, determinar a causa. A mídia ocidental geralmente não se interessa por isso, mas essa interrupção repentina pode ser facilmente explicada…  pelo peso da religião: a celebração de Arba’een, que aconteceria este ano nos dias 19 e 20 de outubro [8]. Esta peregrinação xiita, parte da qual é feita a pé, atrai milhões de crentes de todo o mundo (mas principalmente de iraquianos) que vão para a cidade sagrada de Kerbala. Durante este período, o sul do país está paralisado, as cidades e vilas xiitas estão vazias e as estradas ficam cheias de peregrinos; a polícia e o exército são amplamente implantados para garantir a segurança.

Mas a política nunca está longe. Em 20 de outubro, alguns peregrinos agitam bandeiras iraquianas e entoam “Liberte Bagdá, fora corrupção!” ou “Não para a América! Não a Israel! Não à corrupção!”. Muqtada al-Sadr de fato pediu a seus apoiadores que dessem um aspecto anticorrupção a essa jornada.

2. Do motim à reforma? (25 a 27 de outubro)


Depois do Dia de Arba’een, esses milhões de peregrinos ainda não partiram para que as coisas voltassem ao normal. Não será bem assim. Já no dia 21, as forças de segurança iraquianas estavam começando a erguer fortificações em torno da “Zona Verde”. De fato, algumas pessoas já planejaram que a “retomada da turbulência social” [“rentrée sociale”] terá início na sexta-feira, 25 de outubro, ao sair das mesquitas, no aniversário da posse do primeiro-ministro. Os convites para manifestação naquele dia bem como as reuniões se multiplicaram nas redes sociais por iniciativa de ativistas da sociedade civil. Muqtada al-Sadr informou cautelosamente a seus apoiadores que eles têm “o direito de participar” dessas reuniões. O prazo dado pelo Grande Aiatolá Ali al-Sistani ao governo para responder às demandas dos manifestantes de outubro e para lançar luz sobre a violência que sofreram também expirou nesta data. Para piorar a situação, a comissão encarregada de investigar esses fatos deu suas conclusões alguns dias antes e anunciou a demissão de alguns oficiais. Nada que acalme uma população obcecada por boatos sobre tramas e presença de atiradores. Pelo contrário. A raiva está crescendo e, em antecipação, muitos iraquianos estavam estocando alimentos e combustível.

Na sexta-feira, dia 25, em seu sermão, o Grande Aiatolá exortou as forças de segurança e os manifestantes a “mostrarem moderação”. No início da tarde, a mobilização foi impressionante. Alguns manifestantes ocuparam os telhados dos edifícios que provavelmente hospedariam atiradores, incluindo uma torre abandonada de 18 andares com vista para a Praça Tahrir e a Ponte Al-Jumariyah, conhecida como Restaurante Turco.

As manifestações ocorreram em várias cidades no sul do país, incluindo Basra, Wasit, Nasiriya, Najaf, Karbala, Samawah, Amarah e Diwaniyah. As demandas econômicas ainda estavam muito presentes (água, luz, empregos, saúde). Notamos a notável participação, particularmente retratada, de algumas mulheres, inclusive mulheres sem véu, no meio de milhares de manifestantes do sexo masculino; uma delas disse: “Eu quero a minha parte do óleo!”.

Na capital, os manifestantes que se aproximavam da “Zona Verde” foram repelidos. Os confrontos eclodiram em muitas cidades. Uma parte do edifício da governadoria de Basra foi incendiada e dois carros da polícia sofreram o mesmo destino. A passagem da fronteira de Safwan foi bloqueada e incendiada. As instalações de um grupo de milícia foram atacadas com uma granada em Amarah, resultando em duas mortes. Durante o dia, pelo menos 27 ataques e queimadas de prédios oficiais ocorreram em todo o país, sem contar os ataques a escritórios de partidos ou casas de líderes políticos. O saldo do dia é particularmente pesado e sem precedentes: 63 mortos e 2.300 feridos! A maioria deles eram manifestantes mortos a tiros por munições reais das forças de segurança ou atingidos por disparos de gás lacrimogêneo de trajetória plana. Alguns teriam sido mortos por milicianos que defendiam suas instalações. Várias pessoas também morreram em incêndios em edifícios. Várias províncias estavam sob toque de recolher.

Em Bagdá, à medida que o confronto com a polícia se arrastava, os revoltosos acabaram erguendo barracas na Praça Tahrir para que ali passassem a noite e não precisassem retomar a praça no dia seguinte. Não muito longe dali, caminhões cheios de homens armados da milícia Sadrist Saraya al-Salam (Brigadas de Paz, ex-Exército Mahdi) foram posicionados para proteger os manifestantes. Uma presença longe de tranquilizar a todos (eles se retiraram após vinte e quatro horas).

No dia seguinte, as manifestações, motins e ataques a edifícios recomeçaram na metade sul do país; eles agora são diários. Dia após dia, o movimento se espalhou até mesmo para outras províncias, até então relativamente incólumes, onde os xiitas são minoria. Há relatos de manifestações estudantis em cidades como Tikrit (principalmente sunitas) ou, mais simbolicamente, em Mosul (Curdistão). Embora as reuniões geralmente fossem pacíficas, frequentemente se transformavam em tumultos noturnos. O toque de recolher parecia ser um meio de dissuasão, com os manifestantes às vezes até esperando que ele começasse antes de tomar as ruas.

Em Bagdá, a ponte que liga a Praça Tahrir à “Zona Verde” é o foco da atenção dos manifestantes. Armados com pedras e, mais raramente, com coquetéis molotov, tentaram repelir a polícia. Os mortos e feridos eram numerosos.

O domingo, 27 de outubro, foi um ponto de inflexão na mobilização. Durante esta nova semana, estudantes universitários e colegiais se juntaram ao movimento [9], incluindo estudantes religiosos da cidade sagrada de Najaf. No dia seguinte, o sindicato dos professores convocou uma greve nacional de vários dias em solidariedade. Juntaram-se os sindicatos de advogados, médicos, dentistas e engenheiros. Em muitas localidades, piquetes e protestos foram armados em frente às entradas dos prédios do governo para obstruir seu funcionamento.

A composição sociológica do movimento está, portanto, mudando. Não temos mais que lidar apenas com jovens proletários pobres de subúrbios desfavorecidos. Portanto, não é por acaso que as demandas estão mudando, ao passo que até agora eram antes de tudo materiais e muito básicas, e além disso havia apenas um ódio furioso dos corruptos. A ordem das prioridades mudou. Pela primeira vez, a imprensa fez ecoar testemunhos totalmente contrários ao que ouvíamos desde 2018, como aquele deste manifestante em Bagdá: “Perdemos o nosso país, não queremos terra, luz nem água, queremos ser livres e queremos derrubar este governo” [França 24]. Ou este médico de rua de 24 anos na Praça Tahrir [10]: “Nossas demandas são claras: mudar a lei eleitoral e realizar uma nova eleição que nos permita eleger a pessoa que queremos, não um partido que faz acordos às portas fechadas para decidir nosso futuro de acordo com seus próprios interesses” [The Washington Post].

As demandas são confusas e variadas. Mas, a partir de então, as reivindicações mais destacadas incluem a renúncia de todos os governantes, a revisão da lei eleitoral e da Constituição, o fim de um sistema baseado na etnia e identidade confessional, a diminuição do número de deputados, eleições antecipadas, redução do poder dos partidos, um governo de tecnocratas, um regime presidencial, etc.

A impressão que se segue é que há muito mais manifestantes e que o protesto está se tornando bem-humorado, quase alegre. De fato, no final de outubro, uma ligeira diminuição da violência era perceptível. O saldo oficial na época foi de 100 mortos e 5.500 feridos. Além disso, 98 edifícios foram danificados ou queimados. Mas não se tratava mais de simplesmente expressar raiva queimando tudo ao seu alcance; a reforma política é agora o lema. Uma questão em relação à qual o capital pode fazer concessões imediatas e de baixo custo; uma questão de conforto.

3. A forma do movimento


– A “Ocupa” no rio Tigre

Enquanto algumas tendas foram erguidas na Praça Tahrir durante os primeiros dias para fornecer um posto de primeiros socorros, áreas de descanso ou refeitórios, o objetivo era, atrás das linhas, fornecer suporte logístico para aqueles na linha de frente (300 metros adiante) que tentavam forçar a entrada na ponte Al-Jumariyah.

Gradativamente, dois fenômenos paralelos foram surgindo: por um lado, os confrontos nesta ponte diminuíram de intensidade e se transformaram em uma “guerra falsa” para proteger, simbolicamente, os manifestantes reunidos na praça. Por outro lado, a organização se expandiu rapidamente. Moradores, “empresários e lojistas, senão cidadãos comuns, que não podem participar das manifestações porque estão trabalhando” [11], traziam comida e água em solidariedade. Tornou-se necessário administrar a logística, organizar o preparo e a distribuição das refeições (principalmente porque a comida de graça atrai os habitantes mais pobres da capital), bem como os equipamentos (máscaras, capacetes). O restaurante turco tornou-se um anexo da praça e foram construídos dormitórios em alguns andares. Os trabalhadores manuais fizeram as ligações necessárias para abastecer a praça com água e luz. Os primeiros postos médicos improvisados deram lugar a uma enfermaria com médicos, enfermeiras e farmacêuticos voluntários, depois a um verdadeiro hospital. Os tuk-tuks (autorriquixás) fornecem transporte para os feridos.

Praça Tahrir “ocupada”. Imagem extraída de: link.

Logo, dezenas de tendas foram erguidas, cobrindo toda a praça e transbordando para as estradas adjacentes. A praça é transformada em ponto de encontro de ativistas, sindicalistas, representantes tribais, membros da sociedade civil ou da classe média educada, espectadores, etc [12]. Há uma infinidade de estandes onde todos – associações, sindicatos, corporações, artistas – expressam suas demandas, dando à praça a aparência de um campo antiglobalização: uma tenda vira uma biblioteca militante, outra uma sala de cinema “revolucionária”, aqui se podem fazer propostas de emenda à Constituição, ali um estande promove o “made in Iraq” (contra produtos fabricados no Irã) ao lado de um vendedor de bandeiras tricolores, um escritório jurídico ou um estande do Partido Comunista do Iraque. Por sua vez, os “artistas de rua” decoram as paredes com pinturas murais políticas.

Com o passar dos dias, a praça se tornou um espaço de convivência mais confortável, restaurantes e vendedores ambulantes estão se expandindo rapidamente, cabeleireiros e barbeiros abriram lojas e, claro, salas de oração são abertas. Mas também é algo para se manter ocupado, porque os dias e as noites são longos, daí os shows e os torneios de xadrez. E depois tem o esporte: os maratonistas organizaram uma minimaratona, foram demarcadas quadras de vôlei e campos de futebol. Nas noites de jogos de futebol (como parte das eliminatórias da Copa do Mundo de 2022), uma enorme multidão assiste ao jogo em uma tela gigante. E quando o Iraque ganhou a partida, a festa durou a noite toda.

Embora seja um memorial dedicado aos manifestantes mortos, a atmosfera é festiva e bem-humorada. Como em Beirute, a música Baby Shark está a caminho de se tornar o (não muito guerreiro) hino da praça. Esse estilo de acampamento pode ser encontrado, em menor escala, em outras cidades, notadamente em Basra e Nasiriya.

A organização deve ser impecável porque, para algumas pessoas, deve refletir a imagem que têm do Iraque ideal… e evocam “uma espécie de mini-estado” na praça [13]. Assim, grupos de voluntários varrem as ruas e coletam lixo. Daí também a questão da segurança. Nos primeiros dias, os manifestantes montaram bloqueios de estradas ao redor da praça para redirecionar o tráfego. Em seguida, um serviço da ordem (SO) foi criado para controlar todas as entradas da praça; as pessoas são revistadas para evitar que armas e itens perigosos sejam contrabandeados. Se necessário, os indivíduos suspeitos são “denunciados” à polícia que patrulha as ruas adjacentes com o consentimento dos ocupantes [14]. As lojas (com cortinas fechadas) e os depósitos ao redor da praça são “protegidos” por SOs para evitar roubos ou saques. Enquanto muitos se orgulhavam do fato de que mulheres com carrinhos de bebê podiam se mover com segurança pela praça, os proletários mais determinados foram mandados embora.

– As mulheres

Outro dado marcante é que desde 27 de outubro as mulheres, até então ausentes da mobilização, se envolveram nas manifestações, embora ainda sejam uma minoria extremamente pequena. Na maioria das vezes, são mulheres universitárias e estudantes do ensino médio que se deslocam em grupo (frequentemente grupos só de meninas). Suas procissões às vezes são protegidas e supervisionadas por homens.

Sua presença é mais visível, claro, no centro da capital, a Praça Tahrir. Mas as mulheres podem ser maioria na cozinha comunitária, estande de primeiros socorros e arte de rua: “Essas mulheres e meninas ajudaram os feridos, carregaram os feridos, forneceram alimentos e suprimentos, pintaram slogans inspiradores nas paredes, lavaram roupas e limparam as ruas” [15]. Embora façam mais do que isso, a divisão do trabalho e a alocação de espaço continuam muito influenciadas pelo gênero.

Este envolvimento é uma novidade no Iraque, onde desde a década de 1990, e especialmente a partir de 2003, com a crescente islamização da sociedade, a situação das mulheres está piorando em todos os níveis (social, educacional, jurídico, trabalhista, violência, etc. [16]). Algumas pessoas consideram que o movimento de 2019 pode ajudar a mudar a visão “tradicional” de muitos iraquianos (e mulheres iraquianas), particularmente aquela que exclui as mulheres da vida política. Desse ponto de vista, vale ressaltar que as mulheres presentes na Praça Tahrir não são vítimas de assédio sexual generalizado ou violência (ao contrário do que aconteceu, por exemplo, em 2011 na Praça Tahrir do Cairo [17]).

Entretanto, pode-se perguntar qual é a situação além do centro de Bagdá, onde se concentram ativistas, estudantes e jovens da classe média, especialmente porque, não esqueçamos, a participação das mulheres ainda é uma minoria. Nas províncias, as manifestações costumam ter uma característica ainda mais dominada por homens. Embora algumas das principais cidades do país tenham acampamentos semelhantes ao da Praça Tahrir, a metade sul do país é conhecida por seu conservadorismo e as tradições tribais são dominantes lá, principalmente no que diz respeito às mulheres (necessidade de mostrar humildade, casamentos arranjados, sistema de dote, assassinatos por honra, etc.). As mulheres, especialmente as estudantes, muitas vezes têm que enfrentar a pressão familiar para se manifestar (algumas usam máscaras cirúrgicas, que são comuns entre os manifestantes, para evitar serem reconhecidas).

Por outro lado, assim que a situação fica mais tensa, assim que os confrontos começam, não vemos mais nenhuma mulher nas ruas, os distúrbios no Iraque são assunto de homem – isso obviamente não é uma questão de bravura. A propósito, mais de 99% dos manifestantes mortos são homens.

– Insurgência?

O que chama a atenção é o contraste entre o clima festivo da Praça Tahrir, “transformada em um polo carnavalesco” [18], e a dureza dos confrontos que acontecem a 500 metros de distância.

Depois de alguns dias de ocupação, a massa de manifestantes era tanta que transbordou da praça e aos poucos tomou conta da margem do rio Tigre a montante da ponte Al-Jumariyah. Devido ao crescente formalismo da Praça Tahrir, a ponte deixou de ser um ponto por onde se pretendia chegar à “Zona Verde”. A partir de então, todos defenderam suas posições em um confronto impressionante que parecia um espetáculo (os manifestantes tomaram posse de uma primeira barreira de concreto, e cada lado se posicionou em uma posição abrigada [19]). Os elementos mais radicais saíram, portanto, da praça e tentaram bloquear ou mesmo cruzar as três pontes localizadas mais ao norte (Al-Sinak, Al-Ahrar e Al-Shuhada). As forças policiais tentaram impedi-los. Muitas lutas aconteceram na Praça Al-Khalani e na Rua Al-Rasheed, pontos estratégicos de acesso a esse setor. Lutas eram geralmente muito violentas; com manifestantes (homens muito jovens) atirando pedras (muitas vezes com estilingues) e coquetéis molotov contra a polícia que respondeu com gás lacrimogêneo, pedras e às vezes coquetéis molotov! A aparência desleixada das forças de segurança às vezes era tal que se tinha a impressão de assistir a duas gangues rivais lutando entre si armadas com paus. Exceto que um deles tinha Kalashnikovs. Nessas condições, um dia de tumulto sem morte ou ferimentos graves é um milagre. Vários membros das forças policiais também morreram durante os confrontos.

Batalha na ponte Al-Sinak. Imagem extraída de: link.

Na capital, porém, o confronto mantém um aspecto simbólico e ritualizado. Não se estende além do distrito ao norte da Praça Tahrir, não há destruição, quase nenhum saque e nenhuma tentativa de espalhar o conflito para outras partes da cidade (exceto muito ocasionalmente). Além disso, é claro que, para muitos, não se trata de atacar o Estado e as forças policiais em geral, já que policiais estão circulando pela Praça Tahrir e colaborando com o serviço de ordem dos manifestantes (no dia 1º de dezembro, soldados e manifestantes limparam a rua Al-Rasheed juntos). Na capital, a estratégia policial parece ser de fato antes de tudo defensiva – defendendo a “Zona Verde” e as rotas estratégicas que levam a ela. Isso pode ser explicado principalmente pela fraqueza das forças anti-motim, que provavelmente não têm os meios para recapturar a Praça Tahrir. Tal recaptura exigiria o exército ou a PMU e provocaria um banho de sangue com consequências políticas incertas [20]. Nas cidades de província, esse aspecto ritualizado da violência parece muito menos presente e a destruição material é comum.

No final de novembro, quando um ressurgimento de confrontos era perceptível, parecia que alguns dos manifestantes eram mais críticos da ação dos revoltosos; alguns, retransmitidos pela mídia, inverteram a realidade evocando um movimento intrinsecamente pacífico dentro do qual elementos externos defendiam a violência e semeavam o caos. Podemos ver até mesmo alguns manifestantes se interpondo entre a polícia e os revoltosos (para dificultar a ação destes últimos).

– Bloqueando a economia?

Desde o início do movimento, os manifestantes têm como alvo a infraestrutura econômica – campos de petróleo, refinarias, estradas, pontes, passagens de fronteira, portos, aeroportos – que consideram ser de interesse estratégico. Algumas dezenas ou várias centenas deles bloqueiam o caminho que leva a esses locais e, acima de tudo, queimam pneus para impedir a passagem de caminhões e funcionários. É claro que não existe uma estratégia nacional desenvolvida, os bloqueios de estradas são, ao longo das semanas, erguidos e removidos repetidamente, dependendo da mobilização dos manifestantes, da repressão que sofrem ou das negociações locais que ocorrem entre as autoridades, xeiques tribais e potenciais representantes dos manifestantes (por exemplo, um chefe tribal pode ser acionado para recrutar cerca de dez pessoas contra o desbloqueio de um local). O caso mais emblemático é o do porto de Umm Qasr, perto de Basra, cujos acessos são frequentemente bloqueados. Os serviços administrativos do país também são alvo de inúmeros bloqueios e ocupações que paralisam seu funcionamento.

As ações de greve parecem afetar de forma intermitente apenas o setor público. O setor privado é, como vimos, relativamente subdesenvolvido (sobre essa questão, consulte a “primeira parte”). O setor mais estratégico é o petrolífero e, como resultado, é muito provável que os trabalhadores sejam tratados um pouco melhor lá do que em outros lugares. Uma vez que a extração e exportação de petróleo são quase a única fonte de receita do país, a prioridade do governo é garantir sua continuidade, portanto, as implementações de segurança adequadas. Funciona porque, apesar de dois meses de mobilização, o patamar das exportações de petróleo não foi afetado pelos acontecimentos. No máximo, foram relatadas algumas interrupções no fluxo de petróleo de alguns campos de petróleo para Umm Qasr, ou uma desaceleração na atividade nas refinarias (às vezes levando à escassez local de combustível), mas esses impactos são relativamente marginais [21]. Embora seja surpreendente que este setor não esteja, de uma forma ou de outra, no centro dos protestos, a situação ainda deve mudar [22].

No entanto, bloquear o porto de Umm Qasr, principal ponto de entrada das importações, custaria à economia iraquiana vários bilhões de dólares [23]. Dezenas de navios não conseguiram descarregar sua carga. Este é um problema real para a entrada de produtos alimentares (cereais, óleo, açúcar, etc.) dos quais o Iraque depende muito. O preço de alguns alimentos (principalmente de origem vegetal) aumentou fortemente na capital.

Por fim, deve-se notar que a atividade econômica das empresas (especialmente as menores) também é prejudicada por frequentes apagões de internet.

– Contra o Irã

Já mencionamos na primeira parte os aspectos anti-iranianos, soberanistas e nacionalistas das manifestações de 2018. Eles são muito perceptíveis também em 2019. Nas cidades do sul do Iraque, os manifestantes frequentemente visam os vários consulados iranianos na região (e alguns de seus funcionários foram evacuados no início de outubro). O consulado em Kerbala, por exemplo, foi invadido várias vezes e os manifestantes tentam regularmente hastear lá a bandeira do Iraque. Nas ruas, eles atacam retratos do Grande Aiatolá Khomeini ou do General Qassem Soleimani. Em Najaf, eles renomearam a Rua Khomeini como Rua da “Revolução de Outubro”. As declarações do Guia Supremo Iraniano, Ali Khamenei, que descreve as manifestações como resultado de um complô americano-sionista, contribuem para exacerbar a ira dos iraquianos.

Esse foco no controle iraniano sobre o país (associado à corrupção política) continua muito presente e até atingiu o pico no final de novembro, quando as manifestações foram severamente reprimidas no Irã. O consulado da cidade sagrada de Najaf foi, portanto, queimado duas vezes por rebeldes.

4. Da “Zona Verde”


A partir de 25 de outubro, a situação é tão confusa que as forças políticas representativas da burguesia iraquiana hesitam sobre as medidas a serem implementadas para pôr fim aos protestos.

As forças de segurança estão mobilizadas por todo o lado, mas o governo parece privilegiar sobretudo a utilização de unidades policiais, especialmente a polícia de choque, considerada mais confiável e para o qual foram recrutados muitos ex-milicianos da PMU nos últimos anos. Em alguns casos, o exército é deslocado como reforço, incluindo unidades muito leais (mas mal adaptadas), como as do Serviço Contra-Terrorista. Mas, a cada vez, significa correr o risco de ver essas unidades cometerem um massacre ou, ao contrário, mostrar pouco espírito de luta (no dia 5 de novembro, manifestantes capturaram um veículo blindado em Umm Qasr). Em Kerbala, em duas ocasiões, homens uniformizados desarmados puderam ser vistos mostrando seu apoio aos manifestantes ou marchando lado a lado com eles. O governo está ciente de que algumas unidades podem estar desobedecendo a ordens de repressão muito forte.

No domínio da segurança, importa acrescentar que, durante este período, o acesso à Internet foi repetidamente encerrado porque, segundo o Primeiro-Ministro, estava a ser utilizada para “espalhar violência e ódio”. Essas interrupções, que duram algumas horas ou alguns dias, às vezes são limitadas a redes sociais e aplicativos de mensagens apenas – embora sejam baseadas em uma tecnologia menos poderosa do que a usada no Irã ao mesmo tempo, uma vez que os aplicativos VPN são capazes de contorná-los.

A resposta do Estado também deve ser política a fim de separar os manifestantes mais moderados dos mais radicais. Mas os políticos estão divididos e os primeiros anúncios de uma remodelação do gabinete deixam os manifestantes completamente frios. Em 26 de outubro, os deputados sadristas e da Aliança Fatah (o braço político do PMU) retiraram seu apoio ao governo e exigiram eleições parlamentares antecipadas (e alguém se pergunta quem poderia se beneficiar delas) bem como uma mudança na lei eleitoral e na Constituição. A intervenção do general iraniano Qassem Soleimani [24], que então viajou para a capital iraquiana, foi necessária para que a Aliança Fatah restaurasse seu apoio ao primeiro-ministro 24 h depois.

Por sua vez, o presidente iraquiano, Barham Saleh, prometeu uma nova lei eleitoral e eleições antecipadas, que o primeiro-ministro se apressou em considerar inviáveis. Além disso, não há garantia de que o anúncio de tal eleição seria suficiente para desmobilizar a população como na França em junho de 1968.

Enquanto uma comissão parlamentar começava a redigir emendas à Constituição, a barganha e as negociações estavam bem encaminhadas e, em 9 de novembro, soubemos que as principais forças políticas do país acabavam de chegar a um acordo para manter o primeiro-ministro Adel Abdul Mahdi no cargo e pôr fim ao protesto “através de todos os meios”. No entanto, um programa de reformas, em particular anticorrupção, bem como emendas constitucionais é implementado para satisfazer a população. Este é também o trabalho do general Soleimani, que até conseguiu fazer com que Muqtada al-Sadr parasse de convocar novas eleições (uma ideia que agora é apoiada apenas pelos Estados Unidos). O anúncio deste acordo, embora o movimento de protesto pareça ter parado, não é suficiente para quebrar o impasse.

5. Sobre a ameaça de guerra civil


Apesar da vitória sobre o Estado Islâmico, a situação de segurança no Iraque está longe de ser ideal. Os últimos partidários do Califado parecem estar mais ativos (talvez por causa dos acontecimentos na Síria e da morte de Abu Bakr al-Baghdadi). E a isso devemos adicionar as ações de outros pequenos grupos guerrilheiros islâmicos sunitas. Todos eles se beneficiam da mobilização das forças de segurança contra os manifestantes. Não passa uma semana sem que uma patrulha militar seja emboscada ou que caia morteiros em um aeroporto, uma base militar ou mesmo na “Zona Verde”. Também há ativistas executados, sequestrados ou desaparecidos, sendo questionável se não é obra de espiões ou milicianos. Em Basra, por exemplo, em 3 de outubro, homens mascarados mataram um ativista conhecido e sua esposa em sua casa. No dia 5 de outubro, homens armados e mascarados atacaram as instalações de várias emissoras de televisão da capital, espancando funcionários e saqueando a cena. Em 1º de novembro, em Nasiriya, um comandante da PMU foi assassinado. Em 15 de novembro, as explosões feriram e mataram vários manifestantes em Nasiriya e Bagdá, etc. Quanto aos “atiradores não identificados” atirando em manifestantes pacíficos e policiais, eles são, sem dúvida, essencialmente uma lenda urbana.

A situação é confusa, mas, na verdade, nenhuma das forças políticas locais têm interesse na eclosão de uma guerra civil. Todo mundo sabe que esse evento também pode ser desencadeado involuntariamente [25]. Todas as partes interessadas locais, assim como o Irã, têm pressionado até o momento para que a situação não degenere, por isso que os milicianos do PMU estão na segunda linha desde o início dos eventos. Durante os primeiros dois meses de mobilização, os incidentes armados diretamente ligados ao protesto foram extremamente raros e com pouco impacto.

No final de novembro, paralelamente ao ressurgimento da violência (entre manifestantes e policiais), havia sinais de aumento da tensão no nível de segurança (nas tribos e na PMU), o que não era um bom augúrio. Como veremos a seguir, o movimento parece ter ficado paralisado e parece não haver saída. E mesmo que os ativistas locais descrevam a mobilização como sempre constante, isso é, pelo menos, duvidoso. Por outro lado, o número de mortos certamente está aumentando. Neste contexto, não seria surpreendente se os manifestantes mais determinados estivessem planejando ir mais longe em sua luta contra as forças policiais – vimos na França, à força dos motins, com os coletes amarelos expressando seu desejo de “voltar na próxima vez com uma arma”, mas no Iraque a proximidade com armas é bem diferente da França. Também no final de novembro, parece que os manifestantes usaram artefatos explosivos e há rumores de disparos de arma de fogo contra as forças de segurança.

6. Estagnação ou recurso à violência? (1 de novembro – 29 de novembro)


A sexta-feira, 1º de novembro, encerrou simbolicamente a semana que viu o movimento de protesto assumir uma nova cara com a entrada em cena dos sindicatos, classes médias e estudantes. Após a oração, dezenas de milhares, talvez centenas de milhares de “Bagdadis” reuniram-se na Praça Tahrir, provavelmente a maior manifestação da história do Iraque desde 2003. À noite, confrontos violentos acontecem com a polícia. Na própria Praça Tahrir, a situação se estabilizou e os confrontos na ponte Al-Jumariyah diminuíram de intensidade, concentrando-se doravante nas três pontes mais ao norte. Na segunda-feira, dia 4, em Bagdá e Salhiya, os manifestantes tentaram se aproximar dos prédios de rádio e televisão, mas foram repelidos. Há mais novos mortos na capital.

No final da semana, o governo, que notou a situação de impasse, mas também a crescente participação no movimento de uma classe média a princípio pouco familiarizada com o confronto físico, contou novamente com uma forte presença coercitiva. Na noite de quinta-feira, dia 7, os acampamentos dos manifestantes são atacados em Basra e Kerbala e em muitas cidades a polícia está na ofensiva. Houve muitas baixas e um grande número de prisões (agora são 300 mortos e mais de 15.000 feridos). Quando o porto de Umm Qasr retomou as operações, os sindicatos de professores pediram para voltar ao trabalho e, no sábado, as principais forças políticas anunciaram que concordariam em manter o primeiro-ministro no cargo (conforme exposto acima). Todos acreditavam que este teria sido um ponto de inflexão e que o fim de semana poderia paralisar o movimento.

No domingo, dia 10, a semana começou com manifestações em várias cidades, mas na capital a mobilização foi bem menor do que costumava ser. Os confrontos agora se concentravam na Praça Al-Khalani, que as forças de segurança tentavam apreender (ponto estratégico de controle de acesso às pontes da região). À noite, na Praça Tahrir, enquanto os combates ocorriam nas proximidades, os manifestantes lançaram balões brancos no céu em sinal de paz.

Nos dias seguintes, novos apelos à greve de professores e alunos permitiram que as fileiras de manifestantes aumentassem. Enquanto uma árvore de Natal decorada com bandeiras iraquianas [26] era erguida na Praça Tahrir, perto de Basra, pela enésima vez, os moradores bloquearam os acessos ao porto de Umm Qasr, a vários campos de petróleo, áreas industriais e ao aeroporto internacional da cidade.

Os confrontos em torno da Praça Al-Khalani ainda foram particularmente violentos e vários manifestantes morreram lá. Após várias noites de luta, os manifestantes desmontaram as imponentes barreiras de concreto instaladas pela polícia, recuperaram o controle da praça e parte da ponte Al-Sinak e apreenderam um imponente estacionamento de vários andares com vista para a entrada da ponte que eles converteram em posto de observação e dormitório.

A quarta semana consecutiva de mobilização começou em 17 de novembro com numerosos chamados por um dia de greve geral do movimento Sadrista e de várias organizações sindicais, incluindo, talvez pela primeira vez, um sindicato de trabalhadores do petróleo [27]. A convocação de uma greve, no entanto, tem efeito real apenas no setor público. O dia começou como de costume com vários bloqueios de estradas e foi marcado em Bagdá por confrontos em torno da ponte Al-Ahrar. Paradoxalmente, o porto estratégico de Umm Qasr retomou suas atividades… para ser novamente bloqueado no dia seguinte. No entanto, nos dias que se seguiram, a mobilização diminuiu e o Ministério do Interior pode, ainda na terça-feira, anunciar o fim do “alerta máximo”. Muitos, doravante, acreditam que o restabelecimento da calma é possível, e no dia 20 de novembro importantes chefes tribais do sul do país foram recebidos pelo Primeiro-Ministro para discutir as demandas dos manifestantes. À noite, os ocupantes da Praça Tahrir dançavam e tocavam música… mas a batalha pelo controle das pontes ainda estava feroz, e o tributo daquela noite de confrontos ficou mais pesado do que “normalmente” – quatro manifestantes foram mortos e dezenas de outros feridos (nesta fase, houve cerca de 330 mortos e 15.000 feridos em todo o país desde o início do movimento).

No dia seguinte, mais oito manifestantes foram mortos em Bagdá e os confrontos eclodiram em Kerbala. Os confrontos também ocorreram em torno do porto de Umm Qasr, mas os manifestantes que ocupavam os acessos desde segunda-feira foram expulsos. Na Praça Tahrir, os xeiques recebidos no dia anterior foram vaiados [28] e, durante a noite, foi o escritório de Assuntos Tribais em Nasiriya que foi incendiado por manifestantes. Os combates recomeçaram com maior força em torno das pontes de Bagdá, causando cerca de mais dez mortes. Mas, a partir daí, novos focos de violência desenfreada apareceram: Kerbala, mas acima de tudo Najaf e Nasiriya. Há vários dias, os manifestantes bloqueiam as principais pontes desta que é a quarta maior cidade do país e capital da província de Dhi Qar, a mais pobre do Iraque.

A última semana de novembro começou com bloqueios de estradas e manifestações em todo o país, mas os confrontos foram muito mais intensos do que nos dias anteriores (13 manifestantes mortos no domingo). Com o passar dos dias, o nível de violência aumentou e o número de mortos também.

Em Bagdá, a situação ao redor das pontes permaneceu tensa. No dia 25, um artefato explosivo foi lançado contra os policiais, ferindo cerca de dez deles. Dois dias depois, em Basra, outro artefato explosivo foi direcionado a um policial. Ainda em Basra, embora os manifestantes ainda estivessem mobilizados, eles removeram as barreiras após negociações com as autoridades. O resto do sul do Iraque está em chamas: motins em Samawa, quartéis da polícia atacados na Babilônia, um banco incendiado em Kerbala, etc.

Na cidade sagrada de Najaf, onde há relatos de tiros contra a polícia, as instalações de um partido islâmico foram incendiadas por manifestantes e, então, no dia 27, foi a vez (nada menos que) do consulado iraniano ser engolfado em chamas. Mas é em Nasiriya que a luta parece mais violenta, onde manifestantes atearam fogo no prédio da governadoria e na casa de um membro do parlamento, o que resultou em um alto número de mortos. A Internet foi fechada na cidade. No dia 28, as forças de segurança, que receberam reforços militares de Bagdá, tentam limpar as pontes sobre o Eufrates, causando um novo massacre. Em retaliação, um edifício das forças de segurança foi incendiado e o do comando militar da província sitiado. O número de mortos foi de 46 (33 em Nasiriya, 11 em Najaf e 2 em Bagdá), um dos dias mais mortais desde o início do movimento.

À noite, combatentes tribais armados com Kalashnikovs bloquearam alguns acessos à cidade para impedir a chegada de novas unidades policiais. Em Najaf, por outro lado, as milícias PMU chegaram como reforços, equipadas com veículos blindados, a fim de “proteger os santuários religiosos”. Nos dias seguintes, apesar do toque de recolher, as procissões fúnebres reuniram milhares de habitantes. A situação é explosiva… e o primeiro-ministro anunciou sua renúncia.

Fim da segunda parte.


Observação de Leoni: A conclusão deste texto, “De la crise de l’État”, será publicada em breve.

***


Notas:


Primeira parte:

[1] – Quentin Müller, “Mutilés de Bassora, no Iraque: ‘J’aurais préféré aller au paradis’”, Libération, 28 de agosto de 2018.

[2] – Sobre esta cidade, podemos recomendar o documentário de Anne Poiret: “Mossoul, après la guerre”, lançado em 2019 pela Arte. Disponível em:  <https://www.arte.tv/fr/videos/080541-000-A/mossoul-apres-la-guerre/>.

[3] – Os Estados Unidos concederam isenções ao Iraque para o comércio com o Irã, apesar das sanções que impõem a este país (relacionadas ao acordo nuclear).

[4] – O Grande Aiatolá Ali al-Sistani, uma figura respeitada em todas as comunidades por sua suposta sabedoria, é a mais alta autoridade religiosa do xiismo no Iraque. Ele desempenha o papel de árbitro, pesando o equilíbrio político dos dois lados, sempre à direita do atual equilíbrio de poder. No entanto, devido à sua aceitação do sistema político desde 2003, ele é um tanto ignorado aos olhos de muitos xiitas iraquianos.

[5] – Quentin Müller, op. cit.

[6] – Teva Meyer, “Reconstruire l’Irak: uma missão impossível?”, DSI, N° 143, setembro-outubro de 2019.

[7] – Moqtada al-Sadr, nacionalista xiita, soberanista e líder populista, goza de imensa popularidade entre o proletariado xiita iraquiano, mas não a adquiriu, ele a herdou de seu pai, o aiatolá Mohammad Sadeq al-Sadr, assassinado em 1999. Conhecido por sua versatilidade política e sua capacidade de manobra, ele é a personificação da oposição e da defesa dos pobres, sua aura foi um tanto maculada desde 2018 por sua participação no processo político institucional.

[8] – A “Zona Verde” é um enclave de alta segurança no coração da capital iraquiana que abriga o parlamento, ministérios, várias instituições e embaixadas. Algumas partes foram reabertas gradativamente à população ao longo de 2018, após quinze anos de fechamento total.

[9] – Noé Pignède, “Le sud de l’Irak face à une crise sanitaire et économique inédite”, La Croix, 29 de novembro de 2018.

[10] – Para uma descrição da cidade, ver por exemplo: Quentin Müller, “Bassora, la Venise d'Irak en péril”, orientxxi.info, 30 de agosto de 2018.

[11] – Myriam Benraad, “L'Irak est à nouveau en train de perdre la paix”, L'Opinion, 22 de agosto de 2018.

[12] – No Iraque, o fim de semana é de sexta a sábado e o domingo é o primeiro dia da semana.

[13] – Deve-se notar que, no Oriente Médio, disparar munição real (com uma Kalashnikov) na cabeça dos manifestantes para assustá-los e dispersá-los é uma prática comum dos órgãos de segurança pública. No entanto, é perigoso e pode, mesmo inadvertidamente, causar ferimentos ou morte. Este método é comumente usado nos eventos que evocamos no texto. Visar especificamente um manifestante é, portanto, apenas mais um passo que um policial pode facilmente dar no meio de um confronto violento, mesmo sem uma ordem específica de seu superior.

[14] – “Iraqi protesters withdraw from Najaf airport, air traffic resumes”, alarabiya.net, 13 de julho de 2018.

[15] – “Les manifestations s’étendent dans le sud de l’Irak”, lepoint.fr, 13 de julho de 2018.

[16] – Com exceção do Curdistão, que por suas especificidades sociais e políticas e sua autonomia muito avançada, permanece fora dessa mobilização, bem como daquela que terá início em outubro de 2019. Ver, por exemplo, Soulayma Mardam Bey, “Pourquoi les Kurdes d'Irak ne se soulèvent pas”, L'Orient le jour, 28 de novembro de 2019.

[17] – Loulouwa al-Rachid, “L’Irak après l’État Islamique: une victoire qui change tout ?”, Notes de l’Ifri, julho de 2017, p. 14

[18] – Hélène Sallon, “Le soulèvement social de Bassora, sintoma des maux de l’Irak”, 3 de outubro de 2018, Iremmo. Hélène Sallon, jornalista do Le Monde, é autora do livro altamente instrutivo “L'État islamique de Mossoul. Histoire d’une entreprise totalitaire”, La Découverte, 2018, 288 p.

[19] – Ibidem.

[20] – O primeiro-ministro Al-Abadi havia “relutantemente” se posicionado a favor de Washington, aplicando sanções a seu vizinho iraniano, atraindo a ira de Teerã. Elie Saïkali, “Lâché par Sadr, Abadi plus isolé que jamais”, L’Orient le jour, 10 de setembro de 2018.

Segunda parte:

[1] – O terremoto social no Líbano de 17 de outubro de 2019 é causado pelo anúncio de um imposto sobre as mensagens da WhatsApp.

[2] – Deve-se lembrar aqui que, no Iraque, o fim de semana vai de sexta-feira a sábado e o domingo é o primeiro dia da semana.

[3] – O Serviço Antiterrorista Iraquiano representa, com sua “Divisão de Ouro”, a ponta de lança do exército iraquiano. Colocado sob a autoridade direta do Primeiro-Ministro, equipado e supervisionado pelos americanos, participou ao lado das Unidades de Mobilização Popular (UGPs, equipadas e supervisionadas pelos iranianos) da recaptura, em 2016-2017, dos territórios detidos pela ISIS.

[4] – Ainda não se conhecem os paletes (plataformas de carga) no Iraque.

[5] – Com exceção das organizações Sadristas e do Partido Comunista.

[6] – Foi a partir da Praça Tahrir e através desta ponte que, em 2016, os manifestantes dos protestos contra a corrupção liderados por Al-Sadr entraram na “Zona Verde”.

[7] – Deve-se notar que, no Oriente Médio, disparar munição real (com uma Kalashnikov) acima das cabeças dos manifestantes para assustá-los e dispersá-los é uma prática comum para as autoridades responsáveis pela aplicação da lei. No entanto, a manobra é perigosa e pode, mesmo não intencionalmente, causar ferimentos ou morte. Este método é muito banalmente usado nas manifestações que evocamos neste texto. Visar especificamente um manifestante é, portanto, apenas mais um passo facilmente dado por um policial no meio de um confronto violento, mesmo sem ordens específicas de seus superiores.

[8] – Esta celebração ocorre no 20º safar do calendário muçulmano. Comemora o fim do período de luto em honra do Imam Hussein (filho de Ali e Fátima, neto de Muhammad) após o seu assassinato no ano de 680 em Kerbala. Reunindo milhões de fiéis a cada ano (15 milhões em 2018, talvez 20 milhões em 2019, incluindo 3,5 milhões de iranianos), esta peregrinação é o maior encontro religioso anual do mundo.

[9] – Isto pode ter começado como uma reação ao espancamento de um estudante em uma manifestação anterior.

[10] – Os jornalistas ocidentais estão agora mais propensos a encontrar interlocutores com este tipo de discurso e, portanto, os favorecerão, particularmente porque correspondem a seu próprio ponto de vista.

[11] – Mustafa Habib, “Visiting The Square In Baghdad, Where Protestors Rule A Utopian Iraq”, niqash.org, 7 de novembro de 2019.

[12] – Embora provavelmente com um pouco mais de moralidade do que nas rotundas francesas de 2018, há também encontros de um tipo completamente diferente. A imprensa relata assim a celebração do casamento de dois médicos voluntários na Praça Tahrir (em 16 de novembro).

[13] – “Angry Iraqis pour into the streets in protest”, kuwaittimes.net, 2 de novembro de 2019.

[14] – Sofia Barbarani, “Protesters say Tahrir Square is everything Iraq is not”, aljazeera.com, 12 de novembro de 2019.

[15] – “Peaceful Activities Continue Despite Bullets from the Government”, iraqicivilsociety.org, 25 de novembro de 2019.

[16] – Voir Myriam Benraad, L’Irak par-delà toutes les guerres. Idées reçues sur un état en transition, Paris, Le Cavalier Bleu, 2018, p. 75-81.

[17] – Mustafa Habib, “How Iraq’s Protests Are Also Changing The Country’s Culture”, niqash.org, 28 de novembro de 2019.

[18] – “Deadly bomb explosion hits Baghdad amid anti-gov’t protests”, aljazeera.com, 16 de novembro de 2019.

[19] – Postados no restaurante turco, os manifestantes tentam cegar a polícia com lasers.

[20] – É sem dúvida para evitar um tal impasse que, em novembro de 2019, o regime iraniano optou por uma repressão muito severa desde as primeiras manifestações.

[21] – “A Bagdad, les manifestants craignent un retour au pire”, L'Orient le jour, 6 de novembro de 2019.

[22] – O longo protesto iraniano de 1978 foi liderado pelos trabalhadores do petróleo, um setor de atividade vital para o regime; o quase total bloqueio da produção e das exportações infligiu um golpe fatal à ditadura do Xá. Entretanto, estes trabalhadores só entraram em greve vários meses após o início do movimento. Ver: Tristan Leoni, La Révolution iranienne. Notes sur l'islam, les femmes et le prolétariat, Entremonde, 2019, 264 p.

[23] – Lawk Ghafuri, “Human rights and economic concerns grow as internet curfew continues across Iraq”, rudaw.net, 11 de novembro de 2019.

[24] – Qassem Soleimani é o comandante da Força Al-Quds, uma unidade de elite da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã (o pasdaran) responsável pelas operações externas do regime. Ele faz visitas frequentes ao Iraque.

[25] – Somente atores externos hostis ao Irã, como os Estados Unidos ou Israel, têm interesse em ver a situação no Iraque aumentar (mas até que ponto?); a Arábia Saudita também tem interesse, mas como vizinha pode sofrer consequências infelizes (insegurança, imigração). Entretanto, iniciar conscientemente uma guerra civil é muito mais complicado e incerto do que algumas pessoas pensam. Quanto à pergunta “quem se beneficia do crime?”, não é tão relevante: “Se admitirmos que as consequências da ação social não correspondem sistematicamente aos resultados previstos no início, torna-se difícil considerar que podemos deduzir mecanicamente das consequências da ação e daqueles a quem elas ‘beneficiam’ a identidade dos indivíduos ou grupos que estão na origem da ação”, cf. Laure Bardiès, “Pas si élémentaire mon cher Watson!”, DSI, No. 143, Setembro-Outubro 2019, p. 58.

[26] – Os distritos centrais de Bagdá ainda são um pouco mistos do ponto de vista confessional, mas, como no resto do país desde 2003, os cristãos estão começando a ser raros lá.

[27] – Em 16 de novembro, no Irã, após o anúncio surpresa do governo de um aumento no preço da gasolina, surgiram manifestações em várias cidades. Este foi o início de um protesto que durou vários dias e foi duramente reprimido.

[28] – Vários líderes tribais recusaram o convite do Primeiro-Ministro, incluindo os de Kerbala.

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