sábado, 4 de julho de 2020

Comunismo e Anarquia (1900) – Piotr Kropotkin

Imagem representando Piotr Kropotkin (autoria desconhecida)


Trouxemos uma tradução de “Communisme et anarchie”, ensaio escrito por Piotr Kropotkin, cuja primeira publicação de que se tem registro foi realizada em francês, através do periódico Les Temps nouveaux, ano de 1900, supplément littéraire, Nº 23.

Extraímos essa tradução de “O princípio anarquista e outros ensaios”, compilação de textos publicadas pela editora Hedra, sob organização de Plínio Augusto Coêlho. Referência: KROPOTKIN, Piotr. O princípio anarquista e outros ensaios. São Paulo: Hedra, 2007.

Estrela rubro-negra, um dos símbolos do comunismo anarquista.

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A importância da questão nem precisa ser lembrada. Muitos anarquistas e pensadores em geral, conquanto reconhecendo as imensas vantagens que o comunismo pode oferecer à sociedade, veem nesta forma de organização social um perigo para a liberdade e o livre desenvolvimento do indivíduo. Esses perigos são também reconhecidos por um grande número de comunistas. Por outro lado, considerada em seu conjunto, da questão decorre outro problema, tão vasto, apresentado em toda a sua extensão por nosso século: a questão do indivíduo e da sociedade.

O problema foi obscurecido de diversas maneiras. Na maioria das vezes, quando se falou de comunismo, pensou-se no comunismo mais ou menos cristão e monástico, e sempre autoritário, que foi pregado na primeira metade desse século e posto em prática em certas comunas. Buscavam constituir “a grande família comunista”, “reformar o homem”, e impunham, nesse objetivo, além do trabalho em comum, a coabitação compacta em família, o distanciamento da civilização atual, o isolamento, a intervenção dos “irmãos” e das “irmãs” em toda a vida psíquica de cada um dos membros.

Além disso, distinção suficiente não foi feita entre as poucas comunas isoladas, fundadas muitas vezes durante esses três ou quatro Últimos séculos, e as comunas numerosas e federadas que poderiam surgir numa sociedade em vias de realizar a revolução social.

Seria preciso, pois, no interesse da discussão considerar separadamente:

• A produção e o consumo em comum;
• A coabitação – é necessário modelá-la na família atual?
• As comunas isoladas de nossa época;
• As comunas federadas do futuro.
• E, enfim, como conclusão: o comunismo traz necessariamente com ele a diminuição do indivíduo? Ou ainda: o indivíduo na sociedade comunista.

Sob o nome de socialismo em geral, um imenso movimento de ideias realizou-se na corrente de nosso século, começando por Babeuf, Saint-Simon, Robert Owen e Proudhon, que formularam as correntes dominantes do socialismo e, em seguida, por seus inúmeros continuadores franceses (Considérant, Pierre Leroux, Louis Mane), alemães (Marx, Engels), russos (Tchernichevski, Bakunin) etc., que trabalharam, seja para popularizar as ideias dos fundadores do socialismo moderno, seja para apresentá-las em bases científicas.

Essas ideias, ao se delinearem, engendrariam duas correntes principais: o comunismo autoritário e o comunismo anarquista, bem como um certo número de escolas intermediárias, buscando compromissos, tais como o Estado único capitalista, o coletivismo, a cooperação; enquanto, nas massas operárias, davam origem a um formidável movimento operário, que busca agrupar cada trabalhador por ofícios, para a luta contra o capital, tornando-se cada vez mais internacional.

Três pontos essenciais foram conquistados por esse formidável movimento de ideias e de e eles já penetraram amplamente na consciência pública. São:

• A abolição do salariado – forma atual da antiga servidão;
• A abolição da propriedade individual de tudo o que deve servir à produção;
• E a emancipação do indivíduo e da sociedade da engrenagem política, o Estado, que serve para manter a servidão econômica.

Sobre esses três pontos, a concordância está bastante próxima de estabelecer-se; pois esses mesmos que preconizam os “bônus de trabalho”, ou nos dizem (como Brousse): dos funcionários! Isto é, “todos assalariados do Estado ou da comuna”, admitem que preconizam esses paliativos unicamente porque não veem a possibilidade imediata do comunismo. Aceitam esses compromissos por falta de melhor opção. Quanto ao Estado, esses mesmos que permanecem partidários encarniçados do Estado, da autoridade, até mesmo da ditadura, reconhecem que, quando as classes que temos hoje cessarem de existir, o Estado deverá desaparecer com elas.

Podemos dizer, portanto, sem exagerar a importância de nossa fração no movimento socialista, – que, apesar das divergências que se produzem entre as diversas facções socialistas, e que se acentuam sobretudo pela diferença dos meios de ação revolucionários aceitos por cada uma delas, podemos dizer que todas, pelas palavras de seus pensadores, reconhecem como centro de interesse o comunismo libertário. O resto, segundo suas próprias declarações, são apenas etapas intermediárias.

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Toda discussão das etapas a atravessar seria inútil se ela não se baseasse no estudo das tendências que surgem na sociedade atual. E, dessas tendências diversas, duas, sobretudo, merecem nossa atenção.

Uma é que se torna cada vez mais difícil determinar a parte que cabe a cada um na produção atual. A indústria e a agricultura modernas tornam-se tão complicadas, tão encavaladas, todas as indústrias são tão independentes umas das outras que o sistema de pagamento do produtor-operário pelos resultados torna-se impossível. Assim, vernos que, quanto mais desenvolvida é uma indústria, mais desaparece o salário por peças [1] para ser substituído por um salário por jornada. Este, por outro lado, tende a igualar-se. A sociedade burguesa atual permanece certamente dividida em classes, e temos toda uma classe de burgueses cujos emolumentos aumentam em proporção inversa do trabalho que eles fazem: quanto mais bem pagos são, menos trabalham. Por outro lado, na própria classe operária, vemos quatro grandes divisões: as mulheres, os trabalhadores agrícolas, os trabalhadores que fazem um trabalho simples, e, enfim, aqueles que têm um ofício mais ou menos especial. Essas divisões representam quatro graus de exploração e são apenas resultados da organização burguesa.

Todavia, numa sociedade de iguais, onde todos poderão aprender uma profissão e onde a exploração da mulher pelo homem, e do camponês pelo industrial cessará, essas classes desaparecerão. E hoje, inclusive, em cada uma dessas classes, os salários tendem a igualar-se. Foi o que fez com que se dissesse, com razão, que uma jornada de trabalho de um trabalhador de aterros valesse a de um joalheiro, e o que fez com que Robert Owen pensasse nos bônus de trabalho, pagos a cada um daqueles que deram tantas horas de trabalho à produção das coisas reconhecidas necessárias.

Entretanto, quando consideramos o conjunto das tentativas de socialização, vemos que, à parte a união de alguns milhares de fazendeiros nos Estados Unidos, o bônus de trabalho não avançou desde os três quartos de século que se passaram desde a tentativa de Owen de aplicá-lo. Em outros trabalhos, como A conquista do pão e O salariado, apresentamos as razões disso.

Em contrapartida, vemos produzir-se uma série de tentativas parciais de socialização na direção do comunismo. Centenas de comunas comunistas foram fundadas durante esse século, em toda parte, e, neste momento mesmo, conhecemos mais de uma centena – todas mais ou menos comunistas.

É igualmente no sentido do comunismo – parcial, evidentemente – que se fazem quase todas as numerosas tentativas de que surgem na sociedade burguesa, seja entre particulares, seja na socialização das coisas municipais.

O hotel, o barco a vapor, a pensão são todos, nesse sentido, tentativas feitas pelos burgueses. Em troca de uma contribuição diária, é possível escolher entre dez ou cinquenta pratos oferecidos no hotel ou no barco, e ninguém controla a quantidade do que é consumido. Essa organização estende. Se inclusive internacionalmente, e antes de partir de Paris ou de Londres, é possível munir-se de bônus (à razão de 10 francos por dia) que permitem a hospedagem à vontade em centenas de hotéis na França, na Alemanha, na Suíça etc., que pertencem a uma Liga Internacional dos Hotéis.

Os burgueses compreenderam muito bem as vantagens do comunismo parcial, combinado com uma liberdade quase completa do individuo, para o consumo; e em todas essas instituições, por um preço fixo por mês, encarregam-se de satisfazer todas as necessidades de hospedagem e alimentação, exceto aquelas extras relativas ao luxo (vinhos, quartos especiais), pagos separadamente.

O seguro contra incêndio (sobretudo nos vilarejos onde uma certa igualdade de condições permite um prêmio igual para todos os habitantes), contra acidente, contra roubo; esse arranjo que permite às grandes loias inglesas fornecer toda semana, à razão de um shilling por semana, todos os peixes consumidos numa pequena família; o clube; as inúmeras sociedades de seguro em caso de enfermidade, toda essa imensa série de instituições nascidas no fluxo deste século, entram na mesma categoria de aproximação rumo ao comunismo para uma certa parte do consumo.

Enfim, temos toda uma vasta série de instituições municipais – água, gás, eletricidade, casas operárias, linhas de bonde a preso fixo, força motriz etc. – nas quais as mesmas tentativas de socialização do consumo são aplicadas numa escala que se amplia continuamente.

Tudo isso ainda não é certamente o comunismo. Longe disso. Mas o princípio que prevalece nessas instituições contém uma parte do princípio comunista: Por uma contribuição anual ou diária (em dinheiro hoje, em trabalho amanhã), tem-se direito de satisfazer tal categoria de necessidades – exceto o luxo.

Para ser comunistas, faltam a esses esboços de comunismo muitas coisas, das quais duas, sobretudo, são essenciais:

1. O pagamento fixo se faz em dinheiro, em vez de se fazer em trabalho;
2. Os consumidores não têm voz na administração da empresa.

Entretanto, se a ideia e a tendência dessas instituições fosse bem compreendida, não haveria nenhuma dificuldade, hoje, inclusive, de lançar por empresa privada ou societária uma comuna, na qual o primeiro ponto seria realizado. Assim, suponhamos um terreno de 500 hectares. Duzentas casinhas, cada uma cercada por um quarto de hectare de jardim ou horta, são construídas nesse terreno. A empresa dá a cada família que ocupa uma dessas casas, a escolher sobre cinquenta pratos por dia, tudo o que eles quiserem, ou, então, fornecer lhes o pão, os legumes, a carne, o café à vontade, para preparo no domicílio. Em troca, pede, seja uma quantia por ano em dinheiro, seja uma quantidade de horas de trabalho à escolha num dos ramos de trabalho do estabelecimento: agricultura, criação de gado, cozinha, serviço de limpeza. Isso pode ser feito imediatamente no dia seguinte se se quiser; e podemos nos surpreender com o fato de que tal fazenda-hotel-jardim ainda não tenha sido construído por algum empreendedor hoteleiro.

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Observaremos, sem dúvida, que é aqui, introduzindo o trabalho em comum, que os comunistas geralmente fracassaram. E, contudo, a objeção não poderia ser apoiada. As causas dos fracassos sempre estiveram alhures.

De início, quase todas as comunas foram fundadas em consequência de um ímpeto de entusiasmo quase religioso. Pedia-se aos homens para serem “pioneiros da humanidade”, para submeterem-se a regras de moral minuciosas, para refazerem-se inteiramente pela vida comunista, para dar todo o seu tempo à comuna, durante as horas de trabalho e, fora dessas horas, para viver inteiramente para a comuna.

Seria fazer como fazem os monges e pedir aos homens – sem qualquer necessidade – para ser o que não são. Foi apenas muito recentemente que comunas foram fundadas por operários anarquistas sem qualquer pretensão, num objetivo puramente econômico – aquele de subtrair-se à exploração patronal.

O outro erro era o de sempre modelar a comuna com base na família e querer fazer dela “a grande família”. Para isso, vivia-se sob um mesmo teto, sempre forçado, a todo instante, a estar em companhia dos mesmos “irmãos e irmãs”. Ora, se dois irmãos acham amiúde difícil viver sob um mesmo teto, e se a vida em família não serve para todos, era um erro fundamental impor a todos “a grande família”, em vez de buscar, ao contrário, garantir tanto quanto possível a liberdade e o cantinho de cada um.

Além do mais, uma pequena comuna não consegue viver. Os “irmãos e irmãs”, forçados ao contato contínuo com a pobreza de impressões que os cerca, acabam por se detestar. Mas, se basta que duas pessoas, tornando-se rivais, ou simplesmente não suportando uma a outra, possam por sua desavença provocar a dissolução de uma comuna, seria estranho se essa comuna vivesse, ainda mais porque todas as comunas fundadas até este dia isolavam-se do mundo inteiro. É preciso dizer de antemão que uma associação pequena de dez, vinte, cem pessoas só poderá durar três ou quatro anos. Se durasse mais, seria inclusive lamentável, porquanto isso apenas provaria que todos se deixaram subjugar por um único, ou que todos perderam sua individualidade. Visto que é certo que em três, quatro ou cinco anos uma parte dos membros da comuna desejará se separar, seria preciso ao menos ter uma dezena ou mais de comunas federadas, a fim de que aqueles que, por uma razão ou outra, quiserem abandonar tal comuna, possam entrar numa outra comuna e ser substituídos por pessoas provenientes de outros grupos. De outro modo, a colmeia comunista deve necessariamente perecer, ou cair (como quase sempre acontece) nas mãos de um único – geralmente “o irmão” mais esperto que os outros.

Enfim, todas as comunas fundadas até o presente momento isolaram-se da sociedade. Mas a luta, uma vida de luta, é, para o homem ativo, uma necessidade bem mais imperativa do que uma mesa bem servida. Essa necessidade de ver o mundo, lançar-se em seu fluxo, lutar suas lutas, sofrer seus sofrimentos, é muito mais imperativa para a jovem geração, Eis por que (como observa Tchaikovski por experiência) os jovens, tão logo atingem dezoito ou vinte anos, deixam necessariamente uma comuna que não faz parte da sociedade inteira.

Inútil acrescentar que o governo, qualquer que seja, sempre foi o obstáculo mais sério para todas as comunas. Aquelas que só tiveram um governo pouco marcante ou as que não tiveram governo algum (como a jovem Icária) foram as mais bem-sucedidas. Isso é compreensível. Os ódios políticos são dos mais violentos. Podemos viver, numa cidade, ao lado de nossos adversários políticos, se não formos forçados a nos deparar com eles a todo instante. Mas como viver, se formos forçados, numa pequena comuna, a nos ver a todo momento? A luta política transporta-se para o ateliê, para o local de trabalho, para o quarto de dormir, e a vida torna-se impossível.

Em contrapartida, foi provado e comprovado que o trabalho comunista e a produção comunista, têm êxito maravilhoso. Em nenhuma empresa comercial a mais-valia dada à terra pelo trabalho foi tão grande quanto o foi em cada uma das comunas fundadas, seja na América, seja na Europa. Certamente, houve em toda parte erros de organização, como os há em toda empresa capitalista; entretanto, uma vez que sabemos que a proporção das falências comerciais é de, aproximadamente, quatro quintos, nos primeiros cinco anos após sua fundação, devemos reconhecer que nada de semelhante a essa enorme proporção é encontrado nas comunas comunistas. Assim, quando a imprensa burguesa faz pilhéria e fala de oferecer aos anarquistas uma ilha para que lá estabeleçam sua comuna – fortalecidos pela experiência, estamos prontos para aceitar essa proposta, sob a condição, contudo, de que essa ilha seja, por exemplo, a Île-de-France [2] e que, depois de feita a avaliação do capital social, recebêssemos nossa parte. Mas, como sabemos que não nos darão nem a Île-de-France nem nossa parte do capital social, tornaremos um dia uma e outra, nós mesmos, pela revolução social. Paris e Barcelona, em 1871, não estiveram assim tão longe disso – e as ideias progrediram desde então.

O progresso se deu sobretudo com a compreensão de que uma cidade, sozinha, pondo-se em comuna, encontraria dificuldade para viver. A tentativa deveria ser começada, consequentemente, num território aquele, por exemplo, de um dos Estados do Oeste, Idaho ou Ohio – dizem-nos os socialistas americanos – e eles têm razão. E num território bastante grande, compreendendo cidade e campo – e não apenas numa cidade isolada – que será preciso, com efeito, lançar-se um dia ao futuro comunista.

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Demonstramos, com frequência, que o comunismo estatista é impossível, que seria inútil insistir nesse assunto. A prova disso está, por sinal, no fato de que os estatistas, os próprios defensores do Estado socialista não creem nisso. Uns, ocupados em conquistar uma parte do poder no Estado atual – o Estado burguês – nem sequer se preocupam em precisar o que compreendem por um Estado socialista que não se ria o Estado único capitalista, e todos assalariados do Estado. Quando lhes dizemos que é isso que querem, zangam-se; mas não especificam que outra forma de organização pretendem estabelecer. Porquanto não creem na possibilidade de uma próxima revolução social, Seu objetivo é tornar-se parte do governo no Estado burguês atual, e deixam assim o porvir determinar onde se chegará.

Quanto àqueles que tentaram desenhar o Estado socialista futuro, atacados por nossas críticas, respondem-nos que tudo o que querem são as agências de estatística. Mas isso é apenas um jogo de palavras. Hoje sabemos, por sinal, que a única estatística válida é aquela que é feita pelo próprio indivíduo, informando sua idade, sexo, ocupação, posição social, ou então a lista do que ele vendeu ou comprou.

As perguntas a serem feitas ao indivíduo são geralmente elaboradas pelos voluntários (cientistas, sociedades de estatística) e o papel das agências de estatística reduz-se hoje a distribuir os questionários, ordenar as fichas e adicionar, por meio de máquinas de sornar. Reduzir, assim, o Estado, o governo, a esse papel, e dizer que por governo não Se compreende isso, significa simplesmente (quando é dito sinceramente) bater em uma retirada honorável. Com efeito, deve-se reconhecer que os jacobinos de trinta anos atrás insistiram imensamente em seu ideal de ditadura e centralização socialista. Ninguém ousaria mais dizer hoje que o consumo e a produção de batatas ou de arroz devam ser regulamentados pelo Parlamento do Volkstaat (Estado Popular) alemão em Berlim. Essas asneiras iá não são ditas.

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Sendo o Estado comunista uma utopia abandonada por Seus próprios criadores, é tempo de avançar. O que é bem mais importante a estudar, com efeito, é a questão de saber se o comunismo anarquista ou o comunismo libertário não deve necessariamente provocar, ele também, uma diminuição da liberdade individual.

O fato é que, em todas as discussões sobre a liberdade, nossas ideias encontram-se obscurecidas pelas reminiscências dos séculos de servidão e opressão religiosa que vivemos.

Os economistas representaram o contrato forçado, concluído sob a ameaça da fome entre o patrão e o operário, como um estado de liberdade. Os políticos, por outro lado, descreveram como um estado de liberdade aquele no qual hoje se encontra o cidadão convertido em servo e contribuinte do Estado. Seu erro é, portanto, evidente. Mas os moralistas mais avançados, tais como Mill e seus numerosíssimos alunos, determinando a liberdade como o direito de fazer tudo, exceto usurpar a liberdade igual dos outros, também limitaram inutilmente a liberdade. Sem dizer que a palavra “direito” é uma herança muito confusa do passado, que nada diz ou que diz em demasia, a determinação de Mill permitiu ao filósofo Spencer, a uma quantidade inumerável de escritores, e, inclusive, a alguns anarquistas individualistas reconstituírem o tribunal e a punição legal, até a pena de morte – isto é, forçosamente, em última análise, o Estado do qual eles próprios fizeram uma admirável crática. A ideia do livre-arbítrio oculta-se no fundo de todos esses raciocínios.

Vejamos, pois, o que é a liberdade.

Deixando de lado os atos irrefletidos e considerando apenas os atos ponderados (que a lei, as religiões e os sistemas penais buscam influenciar), cada ato desse tipo é precedido de uma certa discussão no cérebro humano: “Vou sair, passear, pensa tal homem. Mas não, marquei um encontro com um amigo, ou então, prometi ter minar tal trabalho, ou ainda, minha mulher e meus filhos ficarão tristes Se ficarem sozinhos, ou, por fim, perderei meu lugar se eu não for ao trabalho”.

Essa última reflexão implica, como Vernos, o temor de uma punição, enquanto que, nas três primeiras, o homem só responde a si próprio, com seus hábitos de lealdade, suas simpatias. E aí está toda a diferença. Dizemos que o homem que é forçado a fazer esta última reflexão: “Renuncio a tal prazer em razão de tal punição”, não é um homem livre. E afirmamos que a humanidade pode deve emancipar-se do medo das punições; que ela pode constituir uma sociedade anarquista, na qual o medo de uma e, inclusive, o desprazer de ser censurado desaparecerão. É rumo a esse ideal que caminhamos.

Mas também sabemos que nós não podemos nos emancipar, nem de nossos hábitos de lealdade (cumprir promessa), nem de nossas simpatias o sofrimento por causar um sofrimento àqueles a quem amamos ou a quem não queremos contrariar, ou mesmo desapontar). Sob este último aspecto, o homem nunca é livre. Robinson, em sua ilha não o era. Quando começou a construir seu barco, e a cultivar um jardim, ou fazer suas provisões para o inverno, deixou-se apanhar, enredar-se por seu trabalho. Se sentisse preguiça e preferisse permanecer deitado em sua caverna, hesitava por um momento, mas se dirigia, contudo, ao trabalho começado. Tão logo teve por companheiro um cão, assim que teve duas ou três cabras, e, sobretudo, assim que encontrou Sexta-feira, já não era mais absolutamente livre, no sentido amiúde atribuído a esse termo nas discussões. Tinha obrigações, devia pensar no interesse alheio, não era mais esse individualista perfeito com o qual gostam de nos entreter. A partir do momento que ama uma mulher, ou que tem filhos, educados por ele mesmo ou confiados a outros (a sociedade), desde o instante em que tem um animal doméstico – ou mesmo uma horta que precise ser regada em certas horas – o homem não é mais o “não-dou-a-mínima”, “o egoísta”, “individualista” imaginário que nos apresentam, algumas vezes como o típico homem livre. Nem na ilha de Robinson, menos ainda na sociedade, qualquer que seja, esse tipo não existe. O homem leva e levará em consideração os interesses dos outros homens, cada vez mais à medida que se estabelecerá entre eles relações de interesse mútuo mais estreitos, e que esses outros afirmarão mais claramente seus sentimentos e seus desejos.

Assim, não encontramos outra definição para a liberdade senão esta: a possibilidade de agir, sem fazer intervir nas decisões a tornar, o medo de um castigo societário (coação de corpo, ameaça de fome, ou, inclusive, a censura, a menos que esta venha de um amigo).

***


Compreendendo a liberdade desse modo, – e duvidamos que se possa encontrar uma definição mais ampla, e ao mesmo tempo real, da liberdade – podemos dizer certamente que o comunismo pode diminuir, matar inclusive toda liberdade individual, e assim tentaram em muitas comunas comunistas; mas é possível também ampliar essa liberdade até os seus últimos limites.

Tudo dependerá das ideias fundamentais com as quais se desejará associar. Não é a forma da associação que determina neste caso a servidão: serão as ideias sobre a liberdade individual trazidas para a associação que determinarão seu caráter mais ou menos libertário.

Isso é justo no que concerne a qualquer forma de associação. A coabitação de dois indivíduos numa mesma morada pode provocar a subjugação de um à vontade do outro, da mesma forma que ela pode proporcionar a liberdade para ambos. O mesmo ocorre na família. Também é assim se duas pessoas se põem a revolver o solo de uma horta ou a fazer um jornal. Igualmente para toda associação, por menor ou mais numerosa que seja. Válido também para toda instituição social. Assim, nos séculos X, XI e XII, Vemos a comuna de iguais, homens igualmente livres, ansiosos para manter essa liberdade e essa igualdade – e quatrocentos anos mais tarde vemos essa mesma comuna solicitando a ditadura de um monge ou de um rei. As instituições comunais permanecem; mas a ideia do direito romano, do Estado, domina, enquanto a de liberdade, de arbitragem nas disputas e de federação em todos os graus desaparece – e a servidão.

Pois bem, de todas as instituições, de todas as formas de agrupamento social que foram tentadas até hoje, é ainda o comunismo que garante mais liberdade ao indivíduo – desde que a ideia-mãe da comuna seja a liberdade, a anarquia.

O comunismo é capaz de cobrir todas as formas de liberdade ou de opressão – o que outras instituições não podem. Pode produzir um convento, no qual todos obedecerão implicitamente a seu superior; pode ser uma associação absolutamente livre, deixando ao indivíduo toda a sua liberdade – uma associação que só dura enquanto os associados quiserem permanecer juntos, não impondo nada a ninguém, orgulhosa, ao contrário, de intervir para defender a liberdade do indivíduo, aumentá-la, ampliá-la em todas as direções. Pode ser autoritário (neste caso a comuna logo perece) e pode ser anarquista. O Estado, ao contrário, não pode sê-lo. É autoritário ou então cessa de ser Estado.

O comunismo garante, melhor que qualquer outra forma de agrupamento, a liberdade econômica, visto que pode garantir o bem-estar e até mesmo o luxo, pedindo ao homem apenas algumas horas de trabalho por dia, em vez de toda uma jornada. Ora, dar ao homem o lazer de dez ou onze horas sobre as dezesseis que vivemos todos os dias da vida consciente (e oito para o sono), já é ampliar a liberdade do indivíduo a um ponto que é o ideal da humanidade há milhares de anos. Hoje, com os meios de produção modernos, com as máquinas, isso pode ser feito. Numa sociedade comunista, o homem poderia dispor de dez horas, ao menos, de lazer. E isso é a liberação da mais pesada das servidões que recai sobre o homem. É uma ampliação da liberdade.

Reconhecer que todos são iguais e renunciar ao governo do homem pelo homem é ainda ampliar a liberdade do indivíduo a um ponto que nenhuma outra forma de agrupamento nem sequer admitiu em seus sonhos. Ela só se torna possível quando o primeiro passo foi dado: quando o homem tem sua existência garantida e não é forçado a vender sua e sua inteligência àquele que quer fazer-lhe a caridade de explorá-lo.

Enfim, reconhecer que a base de todo progresso é a variedade das ocupações e organizar-se de modo que o homem seja absolutamente livre nas horas de lazer, mas possa também variar seu trabalho, e que desde sua infância a educação prepare-o para essa variedade – e é fácil obter sob um regime comunista – é ainda liberar o indivíduo e escancarar diante dele as portas para seu completo desenvolvimento em todas as direções.

Para o resto, tudo depende das ideias com as quais a comuna será fundada. Conhecemos uma comuna religiosa na qual um homem, sem que se sentisse infeliz e demonstrasse tristeza, via-se abordado por um “irmão” que lhe dizia: “Estás triste? Procura ao menos demonstrar alegria, caso contrário entristeces os irmãos e as irmãs”. E, conhecemos uma comuna de sete pessoas das quais uma pedia a nomeação de quatro comitês: de jardinagem, subsistências, limpeza e exportação, com direitos absolutos, para o presidente de cada comitê. Houve certamente comunas fundadas, ou invadidas após sua fundação, por “criminosos da autoridade” (tipo especial recomendado à atenção do sr. Lombroso), e inúmeras comunas foram fundadas por maníacos da absorção do indivíduo pela sociedade. Mas não foi a instituição comunista que as produziu: foram o cristianismo (eminentemente autoritário em sua essência) e o direito romano, o Estado. É a ideia-mãe estatista desses homens, habituados a pensar que sem lictores e sem juízes não existe sociedade possível, que permanece uma ameaça permanente a toda liberdade, e não a ideia-mãe do comunismo que é consumir e produzir sem contar a parte exata de cada um. Esta, ao contrário, é uma ideia de liberdade, de liberação.

Assim, podemos extrair as seguintes conclusões.

Até o presente, as tentativas comunistas fracassaram porque:

• Baseavam-se num ímpeto de ordem religiosa, em vez de ver na comuna simplesmente um modo de consumo e de produção econômicos;
• Isolavam-se da sociedade;
• Estavam imbuídas de um espírito autoritário; Estavam isoladas, em vez de federar-se;
• Pediam aos fundadores uma quantidade de trabalho que não lhes deixava tempo para o lazer;
• Tornavam como modelo a família patriarcal, autoritária, em vez de se propor, ao contrário, como objetivo, a liberação tão completa quanto possível do individuo.

Instituição eminentemente econômica, o comunismo não prejulga em nada a parte de liberdade que nele será garantida ao indivíduo, ao inovador, ao revoltado contra os costumes cristalizadores. Pode ser autoritário o que conduz forçosamente à morte da comuna, e pode ser libertário o que conduziu ao século XII, mesmo com o comunismo parcial dos jovens citados há pouco, a criação de uma nova civilização repleta de vigor, uma renovação da Europa.

Entretanto, a única forma de comunismo que poderia durar é aquela na qual, tendo em vista o contato iá estreito entre cidadãos, tudo seria feito para estender a liberdade do indivíduo em todas as outras direções.

Nessas condições, sob a influência dessa ideia, a liberdade do indivíduo, aumentada por todo o lazer adquirido, não seria mais reduzida do que o é hoje pelo gás comunal, pelos alimentos enviados em domicílio pelas grandes loias, pelos hotéis modernos, ou pelo fato de que, nas horas de trabalho, acotovelamo-nos com milhares de trabalhadores.

Com a anarquia como objetivo e como meio, o comunismo torna-se possível. Sem isso, ele seria forçosamente a servidão, e, como tal, não poderia existir.

Notas:


[1] – Salário proporcional à produção (nota do editor).

[2] – Região administrativa da França, que compreende hoje oito departamentos incluindo o de Paris (nota do editor).

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