A
obra “A Conquista do Pão” (em francês: La Conquête du Pain; em
inglês: The Conquest of Bread; em russo: Хлеб и воля) é um
livro escrito pelo anarco-comunista russo Piotr Kropotkin. Originalmente, havia sido uma série de artigos escritos nos anos 1880 em francês para os
jornais anarquistas Le Révolté e seu sucessor parisiense, La
Révolte. Enquanto livro, foi publicado pela primeira vez no ano de 1892
em Paris com um prefácio de Élisée Reclus (que explicara que o título
não se restringe ao “pão”, e sim engloba tudo que é necessário
à qualidade de vida do homem).
Nessa
obra, Kropotkin aponta os defeitos nos sistemas
econômicos feudal e capitalista, e como ele acredita que estes
sistemas acabam prosperando a partir da manutenção da pobreza e da
escassez, apesar da abundância material obtida graças à tecnologia. Critica a manutenção de privilégios sociais, tendo como símbolo
a riqueza. Ele propõe um sistema econômico mais descentralizado,
baseado no apoio mútuo e na cooperação voluntária, afirmando que
as tendências para esse tipo de organização já existem na
Evolução e nas sociedades humanas(1). Ele também detalha quais
seriam as formas de revolução e expropriação que não
despertariam forças reacionárias. Nas palavras de Kropotkin, se
trata de um estudo das necessidades da humanidade, e dos significados
da economia que as satisfazem.
Nota (1): em “Ajuda Mútua: um fator de evolução”, Kropotkin desenvolve a tese de que todos os seres vivos oscilam, em seus processos evolucionários, entre competição e ajuda mútua. A primeira forma de relação geralmente está associada a uma situação de recursos escassos e a segunda, inversamente, a recursos abundantes (mas nem sempre essa condição determina o vetor competitivo ou cooperativo). Kropotkin criticava o “darwinismo social” (hegemônico em sua época) e a crença de que havia um instinto competitivo inato nas formas vivas como força motriz da evolução (a ideia de que “o mais forte sobrevive” era uma concepção reducionista da seleção natural para ele). Não só constatou modos de vida baseados na ajuda mútua (formas de cooperação), como estabeleceu uma hierarquia em relação aos “mais aptos” à sobrevivência, disse ele: “‘Quem são os mais aptos: aqueles que vivem em guerra ou aqueles que se apoiam mutuamente?’, vemos de imediato e sem sombra de dúvida que são estes últimos. Os que adquirem hábitos de ajuda mútua têm mais chances de sobreviver e atingem, em suas classes respectivas, o desenvolvimento mais elevado do intelecto e da organização corporal”.
Acesse esse link para obter a versão escaneada de: KROPOTKIN, Piotr. A conquista do pão. Rio de janeiro: Achiamé, 2011.
ÍNDICE
PREFÁCIO
Kropotkin
pediu-me para abrir este livro com algumas palavras minhas. Acedo à
sua vontade, mas faço-o, todavia, com um certo constrangimento. E a
razão é que, nada trazendo que contribua para robustecer os
argumentos do autor, pode suceder até que as minhas palavras tirem
força às suas. A amizade, porém, tudo perdoa. Enquanto os
“republicanos” consideram um requinte de bom gosto prosternar-se
aos pés o czar, eu sinto-me satisfeito e envaidecido por me
aproximar daqueles homens dignos sobre quem o déspota, se pudesse,
cevaria os seus ódios, mandando-os vergastar nas masmorras duma
cidadela ou enforcar nos fossos de qualquer presídio. No convívio
desses amigos esqueço momentaneamente a abjeção dos renegados que
na mocidade enrouqueciam a gritar: Liberdade! Liberdade! E que hoje
celebram, com tanto entusiasmo, as bodas da Marselhesa e do Boje
Tsara Khrasi (hino nacional russo).
A
última obra de Kropotkin, Palavras de um revoltado, é caracterizada
por uma crítica ardente da sociedade burguesa, tão feroz como
corrompida, e nela faz o autor um apelo às energias revolucionárias
contra o Estado e contra o regime capitalista. A obra atual,
sequência das Palavras, é mais calma e ponderada. Nela se dirige
Kropotkin aos homens de boa vontade que desejam honestamente
colaborar na transformação social e expõe-lhes, a grandes traços,
as fases da história iminente que nos permitirão enfim constituir a
família humana sobre as ruínas dos bancos e dos Estados.
O
título da obra: - A Conquista do Pão deve, é claro, ser tomado num
sentido mais amplo, porque “nem só de pão vive o homem”. Numa
época em que os espíritos generosos e arrojados tentam transformar
o seu ideal de justiça social em realidade objetiva, as nossas
ambições não se limitam à conquista do pão, vinho e o sal. –
Queremos conquistas tudo o que é necessário à vida humana e até
mesmo a utilidade que forma o conforto da existência; queremos a
faculdade de poder assegurar a todos os homens a plena satisfação
das suas necessidades e dos seus gozos. Enquanto não fizermos esta
primeira “conquista”, enquanto na terra “houver pobres”, é
um gracejo de mau gosto, é uma ironia cruel dar o nome de
“sociedade” a este conjunto de seres humanos que se odeiam e se
despedaçam como feras encerradas numa arena.
Logo
nos primeiros capítulos da sua obra o autor dá conta das riquezas
imensas que a humanidade possui já, da prodigiosa maquinaria
adquirida para o trabalho coletivo. Os produtos obtidos em cada ano
seriam mais do que suficientes para abastecer de pão, amplamente, a
humanidade inteira. E se o capital enorme de cidades e de casas, de
terras cultiváveis e de fábricas, de vias de transporte e de
escolas, se tornasse propriedade comum em vez de estar detido em
propriedade privada, como seria fácil a conquista do bem estar para
todos! As forças de que os homens dispõem seriam então aplicadas,
não a trabalhos inúteis ou contraditórios, mas à produção de
tudo o que é indispensável à vida, desde o alimento, a habitação
e o vestuário, até ao conforto e à cultura das ciências e das
artes.
Mas,
a reivindicação de todos os bens usurpados à comunidade, isto é,
a expropriação, só o comunismo anárquico a pode realizar. E para
isso teremos que destruir o governo, rasgar as leis, repudiar a sua
moral, desobedecer à autoridade e seguir os estímulos da nossa
própria iniciativa, agregando-nos segundo as afinidades, os nossos
interesses, o nosso ideal e a natureza dos trabalhos a realizar. Esta
questão da expropriação, a mais importante do livro, é também
uma das que o autor tratou mais detalhadamente, sobriamente e sem
exaltação, é certo, mas com a segurança e a clareza que requer o
estudo de uma revolução próxima, já agora inevitável. E só
depois desta reviravolta do Estado é que os grupos de trabalhadores,
emancipados do jugo dos usurpadores e parasitas, poderão dedicar-se
às ocupações atraentes do trabalho livremente escolhido e proceder
cientificamente à cultura do solo e à produção industrial, de
permeio com as recreações do estudo e o prazer natural da vida.
As
páginas do livro que tratam dos trabalhos agrícolas oferecem um
interesse digno de especial menção porque recapitularam fatos que a
prática verificou já e que fácil se torna aplicar por toda a parte
e em grande escala, para proveito de todos e não, como até hoje,
para enriquecimento de alguns.
Há
quem fale em “fim de século” para verberar as aberrações e os
caprichos da sociedade elegante; mas trata-se agora duma outra coisa
muito diferente do fim de um século. Não é um éculo que se
termina, é uma época, é uma era da história que acabam. É toda a
antiga civilização que finda. O direito da força e o capricho da
autoridade, a dura tradição judaica e a cruel jurisprudência
romana não nos dominam mais. Uma nova fé arde nos nossos cérebros
e desde que essa fé, - que é ao mesmo tempo a ciência, pulse no
coração de todos aqueles que procuram a verdade, da esfera do ideal
ela transitará para o mundo das realizações, em harmonia com a
mais importante lei histórica segundo a qual a sociedade se modela
sucessivamente sobre o seu ideal.
Como
poderão os defensores desta ordem arcaica das coisas continuar a
mantê-la como até aqui? Sem plano de combate, sem guia nem
bandeira, defendem-se ao acaso, opondo à penetração dos inovadores
as suas leis e as suas espingardas, a sua polícia brutal e a sua
artilharia certeira. Nada disto, porém, é capaz de dar equilíbrio
a um pensamento, e todo o antigo regime de favor e de compreensão,
condenado a desaparecer inevitavelmente, estará reconduzido daqui a
pouco, na vertigem da evolução social, a uma espécie de pré-
história longínqua.
Evidentemente,
a revolução que se prepara, por muito que influa no desenvolvimento
da humanidade, não se diferenciará bruscamente das revoluções
precedentes: a natureza não dá saltos. Mas pode dizer-se, por
milhares de fenômenos e modificações profundas observadas, que a
sociedade anárquica saiu há muito do estado embrionário.
Pressentimo-la onde quer que o pensamento se liberte da letra do
dogma, onde quer que o gênio do investigador despreze as velhas
fórmulas, onde quer que a vontade se manifeste por atos
independentes, finalmente onde quer que os homens sinceros, rebeldes
a toda a disciplina imposta, se reúnam espontaneamente para se
instruírem em comum e reconquistarem mutuamente e liberrimamente a
sua quota parte na vida e na satisfação integral das suas
necessidades. Tudo isto é a anarquia, inconsciente no fundo, talvez,
mas, incontestavelmente, racionalizando-se cada vez mais. E como não
há de ela triunfar por si o ideal que a acalenta e a vontade que a
estimula, enquanto que os seus adversários, já desiludidos e sem
fé, se lançam ao acaso do destino, gritando: “Fim do século! Fim
do século!”.
A
revolução que se anuncia tem que vir inevitavelmente, e o nosso
amigo Kropotkin está no seu direito de historiador, considerando-a
não só como uma coisa certa, mas já em plena laboração atual, ao
expor as suas ideias sobre a reivindicação do bem coletivo devido
ao trabalho de todos e fazendo apelo aos tímidos que não ignoram as
injustiças que nos dominam, mas que não ousam revoltar-se
abertamente contra uma sociedade de que se acham dependentes pelos
múltiplos laços dos interesses e da tradição.
Bem
sabem eles que a lei é iníqua e mentirosa, que os magistrados são
defensores dos fortes e tiranos dos fracos, que a conduta regular da
vida e a probidade do trabalho nem sempre são recompensadas pela
certeza de ter um bocado de pão garantido, e que a imprudência
cínica de agiota e a crueldade insensível do penhorista são
melhores armas e de resultados mais eficazes para a “conquista do
pão” do que todas as virtudes e a honestidade de caráter. Mas, em
vez de harmonizarem os seus pensamentos e bons desejos com o natural
estímulo do empreendimento, em vez de conformarem as suas ações no
sentido claro da justiça, esses espíritos conscientes do mal, na
sua maioria, refugiam-se numa quietude abstrata e cômoda para
escapar dos perigos duma atitude franca. Tais são, por exemplo, os
neo-religiosos que, não podendo já admitir a “fé absurda” de
seus pais, se entregam a qualquer mistagogia mais original, sem
dogmas precisos e se exaustam numa embrulhada de sentimentos
confusos: uns espiritistas ou rosa-cruz, outros budistas ou
taumaturgos. Pretendidos discípulos de Çakyamouni, mas sem
estudarem a doutrina do mestre, esses cavalheiros melancólicos e
essas damas vaporosas fingem deste modo procurar a paz no
aniquilamento do nirvana.
Tranquilizem-se,
porém, essas “belas-almas” que tão frequentemente apregoam o
ideal. Como seres materiais que somos, temos, é certo, a fragilidade
de pensar no alimento que tantas vezes nos falta não só a nos, mas
a milhões de nossos irmãos, súbditos eslavos do czar e a tantos
milhões de outros ainda; mas para lá do bem-estar e de todas as
riquezas coletivas que nos pode proporcionar a laboração da terra,
um mundo novo no qual poderemos amar-nos plenamente e satisfazer esta
nobre paixão de ideal que os amantes etéreos do belo, enfastiados
da vida material, dizem constituir a sede infinita das suas almas!
Quando
não houver nem pobre nem rico, quando o famélico não olhar com
inveja o repleto, a amizade desinteressada tornará melhores as
relações dos homens e a religião da solidariedade, hoje asfixiada,
substituir-se-á a esta religião vaga e fictícia que cria
alucinadamente quiméricas personagens na vacuidade imponderável do
céu.
A
revolução que sentimos próxima irá ainda muito além do que ela
nos promete. Regenerando as forças da vida, resgatar-nos-á das
imperfeições com que nos macula o contato da autoridade e das
preocupações de dinheiro que tanto amargura e envenena a nossa
existência. Só então poderá cada um seguir o caminho que melhor
se lhe afigurar: o trabalhador procurando a ocupação que mais lhe
agrade, o investigador dedicando-se com o espírito livre aos seus
problemas; o artista não prostituindo jamais o seu ideal de beleza
pelo ganha pão quotidiano e de comum acordo, todos amigos, poderemos
realizar as grandes coisas entrevistas pelos poetas.
E
hão de ser lembrados então com amor, os nomes daqueles que, pela
sua intensa e dedicada propaganda, - tantas vezes caminho para a
prisão ou para o desterro – andaram preparando a sociedade nova. É
neles que pensamos ao editar a Conquista do Pão.
O
seu sofrimento dulcificar-se-á neste testemunho do pensamento comum
voando através das grades dos cárceres e pelos países longínquos
do exílio. E certamente o autor estará comigo neste oferecimento
que faço da sua obra a todos os que sofrem pela nossa causa e
sobretudo a um amigo muito querido cuja vida foi – toda ela – um
longo combate pela justiça. Não quero por aqui o seu nome, mas
lendo estas palavras, ele, o amigo querido, mais do que amigo –
irmão, adivinhará quem é, escutando as palpitações do seu
coração.
Elisée
Reclus, 1892.
[Retirado
da edição portuguesa de 1975: KROPOTKINE, Pedro. A Conquista do
Pão. 3ª Ed. Guimarães Editores. Lisboa. 1975.]
A RIQUEZA
I
A
humanidade andou bastante desde o tempo em que a pedra lascada lhe
servia para fabricar a suas armas, para lutar desesperadamente pela
existência. Esse período durou milhares e milhares de anos durante
os quais o gênero humano acumulou tesouros incomensuráveis.
Desbravou o solo, aterrou pântanos, devastou florestas, abriu
estradas, edificou, construiu e raciocinou; arranjou utensílios
complicados, arrancou à Natureza os seus arcanos, aprisionou o
vapor. Hoje o homem civilizado já ao nascer encontra um capital
imenso, acumulado pelos seus antepassados, com o qual, só com o
trabalho, combinado com o alheio, obtém riquezas que deixam a perder
de vista os sonhos orientais das Mil e uma Noites.
Parte
do solo está pronto para colher o trabalho do lavrador inteligente e
as sementes escolhidas, e enfeitar-se com colheitas deslumbrantes,
mais do que o preciso para satisfazer todas as necessidades do homem,
pelos meios conhecidos da agricultura.
No
solo virgem dos prados da América, cem homens, munidos de máquinas
valentes, produzem em poucos meses o trigo necessário para o
sustento de dez mil pessoas durante um ano inteiro. Quando o homem
quer multiplicar o seu rendimento, prepara o solo, dá às plantações
cuidados que lhes convém e obtém colheitas prodigiosas. E onde o
selvagem tinha de ocupar cem quilômetros quadrados para sustentar a
sua família, o civilizado cria com incomparavelmente menos trabalho
e mais segurança, tudo quanto precisa para sustentar os seus na
décima milésima parte desse espaço.
O
clima já não é um obstáculo. Falta o sol? O homem substituiu-o
pelo calor artificial, enquanto não faz também a luz para ativar a
vegetação. Com vidro e condutores d’água quente, recolhe num
espaço determinado dez vezes maior produção do que dantes.
Os
prodígios efetuados na indústria ainda são mais frizantes. Com
esses seres inteligentes – as máquinas modernas – fruto de três
ou quatro gerações de inventores, na maior parte desconhecidos, -
cem homens produzem com que vestir dez mil homens no espaço de dois
anos. Nas minas de carvão bem organizadas, cem homens tiram cada ano
com que aquecer dez mil famílias, sob um clima rigoroso. E viu-se já
uma cidade maravilhosa surgir toda inteira em poucos meses no Campo
de Marte, sem haver a menor interrupção nos trabalhos normais da
nação francesa.
E
se o trabalho dos nossos maiores não aproveita senão sobre tudo ao
menor número, é todavia certo que a humanidade podia já
permitir-se uma existência de riqueza e de luxo, só com os
trabalhadores de ferro e de aço que possui.
Sim,
sem dúvida, somos ricos, infinitamente mais ricos do que julgamos.
Ricos pelo que já possuímos; ainda mais ricos pelo que podemos
produzir com o material conhecido. Infinitamente mais ricos pelo que
poderíamos retirar do solo, das manufaturas, da nossa ciência e do
nosso saber técnico, se fossem aplicados a procurar o bem-estar de
todos.
II
Nas
sociedades civilizadas somos ricos. Como se explica então tanta
miséria em redor de nós? Para que este trabalho pesado que
embrutece as massas? Por que a falta de segurança do dia de amanhã?
Tem-no dito e respeito a cada momento os socialistas com argumentos
colhidos em todas as ciências. Porque tudo o que é necessário à
produção: terra, minas, máquinas, estradas, educação, ciência
foi açambarcado por alguns, durante a vasta história de pilhagem,
êxodos, guerras, ignorância e opressão, que a humanidade viveu
antes de aprender a dominar as forças naturais.
Porque,
à sombra de pretendidos direitos ganhos no passado, usurpam hoje
dois terços do trabalho humano, que entregam à mais insensata e
escandalosa dissipação, porque não tendo as massas com que se
manter um mês, nem mesmo oito dias, só permitem que o homem
trabalhe, com a condição de lhes deixar tirar a parte do leão;
porque não deixam produzir quanto é necessário aos outros, mas só
o que oferece grandes lucros ao açambarcador.
Todo
o socialismo consiste nisso!
Vejamos
um país civilizado. Os bosques que o cobriam antes foram derrubados,
os pântanos aterrados, o clima saneado: tornando-se habitável. O
solo, que só dava ervas inúteis, está dando ricas messes. Os
rochedos que sobrecarregavam os vales, estão cortados em planaltos
onde cresce a vinha. Plantas selvagens, que davam um fruto amargo,
intragável transforma-se por seleção em legumes suculentos e em
árvores carregadas de frutos deliciosos.
Milhares
de estradas sulcam a terra, atravessam as montanhas; a locomotiva
silva nas gargantas dos Alpes, desde o Cáucaso até o Himalaia; os
rios tornaram-se navegável; as costas cuidadosamente estudadas, são
de fácil acesso; portos artificiais dão refugio aos navios contra o
furor do oceano. Em todos os pontos onde se cruzam as estradas
surgiram cidades, engrandeceram-se e no seu seio aparecem os tesouros
da indústria, da arte, da ciência.
Gerações
inteiras, nascidas e mortas na miséria, legaram esta imensa herança
ao século XIX.
Em
milhares de anos, milhões de homens trabalharam em desbastar os
matos, dissecar os pântanos, abrir estradas, a margear os rios. Cada
hectare do solo que se cultiva na Europa foi regado pelo suor de
diversas raças; cada estrada tem uma história das fadigas do
trabalho humano, dos sofrimentos do povo.
Cada
légua de caminho de ferro, cada metro de túnel recebeu sua parte de
sangue humano.
Nas
minas podem-se contar os homens mortos na força da idade pelos
grisus, desabamento ou inundação, e sabe-se quantas lagrimas,
privações e misérias sem nome custou à família que vivia do
magro salário do mineiro.
Escavai
o solo de qualquer cidade e no subsolo encontrarei enterradas outras
ruas, casas, teatros, edifícios públicos, tudo devido ao trabalho
dos que nela viveram.
E
mesmo agora, o valor de cada casa, fábrica ou armazém, é feito do
trabalho acumulado de milhões de trabalhadores sepultados sob a
terra.
Milhões
de seres humanos trabalharam para criar esta civilização de que
hoje nos glorificamos; outros milhões disseminados na superfície da
terra trabalharam para a manter.
Mesmo
o pensamento, mesmo a invenção são fatos coletivos nascidos do
passado e do presente. Milhares de inventores mortos na miséria
prepararam a invenção de cada uma dessas máquinas, em que o homem
admira o seu gênio. Milhares de escritores, poetas e sábios,
trabalharam na elaboração do saber, em criar a atmosfera do
pensamento científico, sem a qual nenhuma das maravilhas do nosso
século teria aparecido. Mas todos esses sábios, poetas e filósofos,
já tinham sido suscitados pelo trabalho dos séculos anteriores;
tinham sido mantidos física e moralmente, por legiões de
trabalhadores e artistas de toda a espécie.
Os
gênios de Séguin, de Meyer e de Grove fizeram mais para lançar a
indústria em novas vias que todos os capitalistas do mundo, mas eles
mesmos são tão filhos da industria como da ciência, não foi
preciso que milhares de máquinas a vapor transformasse anualmente, à
vista de todos, o calor em força dinâmica e esta força em som, luz
e eletricidade; e se nós mesmos temos compreendido esta ideia e
soubemos aplicá-las, é porque estávamos preparados pela
experiência de cada dia.
Todas
as máquinas têm a mesma história de noites em claro e de miséria,
de desilusões e de alegrias; melhoramentos parciais achados por
diversas legiões de obreiros desconhecidos que vinham acrescentar ao
invento primitivo estes pequenos nadas, sem os quais a ideia mais
fecunda fica estéril.
Cada
descoberta, cada progresso, cada aumento da riqueza da humanidade tem
o seu princípio no conjunto do trabalho manual e cerebral do passado
e do presente.
Logo,
com que direito poderia alguém apossar-se da menor parcela desse
imenso patrimônio e dizer: “Isto é meu, não é vosso?”.
III
Mas
tudo o que, na série das idades, permite aos homens produzir e
aumentar a sua força de produção, foi açambarcado por alguns. Um
dia contaremos como isso se passou.
Hoje
o solo, que tira o seu valor precisamente das necessidades duma
população, sempre em aumento, pertence às minorias, que podem
impedir, e impedem o povo de cultivá-lo segundo as necessidades das
várias gerações, e que não tiram o seu valor senão modernas. As
minas que representam o labor de várias gerações, e que não tiram
seu o seu valor senão das necessidades da indústria e da densidade
da população, pertencem também a alguns, e estes diminuem a
extração do carvão ou proíbem-na totalmente, se encontram melhor
colocação para os seus capitais. Se os netos do inventor, que há
cem anos construiu a máquina de rendas, se apresentassem hoje em uma
manufatura de Bale ou de Notthingham e reclamassem seus direitos,
gritar-lhe-iam: “Vão se embora, esta máquina não é sua”, –
e fuzilá-los-iam, se quisessem tomar posse dela.
Se
os filhos dos que morreram aos milhares, abrindo as vias e os túneis
dos caminhos de ferro, se apresentassem esfarrapados e famintos a
reclamar pão aos acionistas, encontrariam as baionetas e a metralha
para os dispersar e pôr a salvo os direitos adquiridos.
Em
virtude desta monstruosa organização, o filho do trabalhador, ao
entrar na vida, não encontra nem um campo que possa cultivar, nem
uma máquina que possa manejar, nem uma mina que possa explorar, sem
ceder a um senhor uma boa parte do que produzir. Deve vender sua
atividade em troca de uma pitança magra e incerta. Seu pai e seu avô
trabalharam arroteando este campo, edificando essa oficina,
aperfeiçoando as máquinas, trabalharam na medida das suas forças,
mas ele ao vir ao mundo, é mais pobre que o último selvagem. Se lhe
consentem que se aplique a cultura dum campo, é com a condição de
ceder um quarto do produto ao dono e um quarto ao governo e aos
intermediários. Se se entrega à indústria, permite-lhe que
trabalhe, aliás nem sempre mas com a condição de não receber mais
que um terço ou metade do produto, devendo o restante ficar com
aquele que a lei reconhece como dono da máquina.
Gritamos
contra o barão feudal que não consentia que ele mexesse na terra
sem ele deixar metade da colheita; chamamos a isto época de
barbaria, mas se as formas mudaram, as relações ficaram as mesmas;
e o trabalhador aceita porque em parte nenhuma aceita condições
melhores.
Resulta
deste estado de coisas que toda a nossa produção é dirigida
insensatamente. A empresa não se preocupa com as necessidades da
sociedade, apenas procura aumentar os benefícios do empresário.
Donde as flutuações contínuas da indústria, as crises em estado
crônico, lançando por terra cada uma centena de milhares de
trabalhadores.
Não
podendo os operários comprar com os seus salários as riquezas que
produziram, a indústria procura mercados fora do país, entre os
açambarcadores das outras nações. O europeu nestas condições
deve aumentar o número dos seus servos. Mas em toda parte encontra
concorrentes, visto que todas as nações evoluem no mesmo sentido. E
a guerra permanente deve rebentar a favor do direito de primazia nos
mercados. Guerras pelas possessões no Oriente, guerras pelo império
dos mares, guerra para impor direitos de entrada e ditar condições
aos vizinhos; guerras contra os que se revoltam! Na Europa o canhão
nunca esta calado, gerações inteiras são massacradas e os estados
gastam em armamentos o terço das suas receitas – em bem se sabe o
que são os impostos e o que custam ao pobre.
A
educação é um privilégio. Pode-se lá falar em educação, quando
o filho do obreiro é obrigado a descer à mina aos 13 anos e ajudar
seu pai na fazenda? Falar de estudos ao trabalhador que volta a
noite, quebrado por um dia inteiro de trabalho forçado! As
sociedades dividem-se em dois campos contrários e nestas condições
a liberdade torna-se uma palavra vã. O radical pede uma extensão
maior das liberdades políticas, enquanto se apercebe que o sopro da
liberdade rapidamente conduz ao levantamento dos proletários; e
então recua, muda de opinião, e volta às leis de exceção e ao
governo do sabre.
Uma
legião de autoridades é necessária para manter os privilégios e
este mesmo conjunto torna-se a origem de todo um sistema de delações,
mentiras, ameaças e de corrupção.
Por
outro lado este sistema atrasa o desenvolvimento dos sentimentos
sociais. Compreende-se que sem retidão, sem o respeito de si mesmo,
sem simpatia e sem auxílio mútuo, a espécie deve definhar como
definham certas espécies animais, que vivem de rapina. Mas isto não
convém as classes dirigentes, que inventaram para provar o contrário
uma ciência absolutamente falsa.
Tem-se
dito coisas muito bonitas sobre a necessidade de repartir o que se
possui pelos que não tem nada. Mas se alguém se lembra de pôr este
princípio em prática é logo advertido de que todos estes grandes
sentimentos são bons nos livros de poesia, mas não na vida prática.
“Mentir
é aviltar-se, rebaixar-se”, dizemos nós, e toda a existência
civilizada torna-se uma colossal mentira. Hipocrisia e sofisma
tornam-se a segunda natureza do homem civilizado. Mas uma sociedade
não pode viver assim; precisa voltar à verdade ou desaparecer.
Assim
o simples fato do açambarcamento estende suas consequências sobre o
conjunto da vida social. As sociedades humanas são forçadas a
voltar aos princípios fundamentais.
Sendo
os meios de produção obra coletiva da humanidade, devem regressar a
coletividade humana. A apropriação pessoal não é justa nem
proveitosa. Tudo é de todos, visto que todos precisam de tudo, visto
que todos tem trabalhado na medida das suas forças, e que é
materialmente impossível determinar a parte que poderia pertencer a
cada um na produção atual das riquezas.
Tudo
é de todos! Eis um formidável instrumento que o século XIX criou:
eis milhões de escravos de ferro, que nós chamamos máquinas, e que
aplainam e serram; tecem e fiam para nós; que decompõem a matéria
prima e formam as maravilhas na nossa época.
Ninguém
tem direito de se apoderar duma só dessas máquinas e dizer: “É
minha, quem quiser servir-se dela há de me pagar um tributo sobre
cada um dos seus produtos”, tanto como o senhor da idade média não
tinha direito de dizer ao cultivador: “Esta colina, este prado são
meus e vós pagar-me-eis um tributo sobre os molhos de trigo que
colherdes, sobre cada molho de feno que arrecadardes”.
Tudo
é de todos e contanto que o homem e a mulher tragam a sua cota parte
do trabalho, tem direito à sua cota parte de tudo quanto for
produzido por todo mundo. E esta parte lhes dará o bem-estar.
Basta
estas fórmulas ambíguas, tais como: “direito ao trabalho” ou “a
cada um o direito integral do seu trabalho”. O que nós proclamamos
é o – O DIREITO AO BEM-ESTAR – O BEM-ESTAR PARA TODOS.
O BEM-ESTAR PARA TODOS
I
O
bem-estar para todos não é um sonho. É possível, realizável,
depois do que os nossos maiores fizeram para fundar a nossa força de
trabalho.
Sabemos
com efeito que os produtores, que apenas constituem um terço dos
habitantes dos países civilizados, já produzem o bastante para
levar um certo bem-estar ao seio de cada família. Sabemos, por outro
lado, que se todos os que hoje esbanjam o fruto do trabalho alheio
fossem obrigados a empregar os seus ócios em trabalhos úteis a
nossa riqueza cresceria em proporção múltipla dos braços
produtores. E sabemos, finalmente, que contra a teoria do pontífice
da ciência burguesa (contra Malthus) o homem aumenta a sua força de
produção bem mais rapidamente do que a si mesmo se multiplica.
Quanto
mais apertados estão os homens num território, mais rápido é o
progresso das suas forças produtivas. Com efeito enquanto a
população na Inglaterra só aumentou 62% desde 1844, a sua força
de produção cresceu, pelo baixo, numa proporção dupla, ou seja,
130%. Em França, onde a população aumentou menos, o acréscimo é,
entretanto muito rápido. Apesar da crise em que se debate a
agricultura, a ingerência do Estado, o imposto de sangue, a finança
e a indústria, a produção do trigo quadruplicou e a produção
industrial mais do que duplicou no correr dos últimos oitenta anos.
Nos Estados Unidos o progresso é ainda mais frisante: apesar da
imigração, ou antes precisamente por causa deste acréscimo de
trabalhadores, da Europa, os Estados Unidos decuplicaram a sua
produção.
Mas
estas cifras dão apenas uma ideia bem fraca do que poderia ser, em
melhores condições, a nossa produção. Hoje, a medida que se
desenvolve a capacidade de produção, o número dos ociosos e dos
intermediários aumenta prodigiosamente. Tudo ao contrário do que se
dizia antes entre socialistas, que o capital chegaria a concentrar-se
num tão pequeno número de mãos que não haveria mais senão
expropriar alguns milionários para entrar na posse das riquezas
comuns, o número dos que vivem à custa do trabalho alheio é cada
vez mais considerável.
Em
França não há dez produtores diretos em trinta habitantes. Toda a
riqueza agrícola do país é obra de menos de sete milhões de
homens e nas duas grandes indústrias, - minas e tecidos, contam-se
menos de dois milhões e meio de obreiros.
Ainda
mais. Os detentores do capital reduzem constantemente a produção,
não deixando produzir. Não falemos já dos tonéis d’ostras
atiradas ao mar, para impedir que a ostra passe a ser alimento da
plebe? e deixe de ser a guloseima da gente de teres; não falemos já
dos milhares e milhares de objetos de luxo: estofos, alimentos etc.
etc., tratados do mesmo modo que as ostras. Lembremos somente a
maneira como se limita a produção das coisas necessárias a todos.
Exércitos de mineiros desejam trabalhar para mandarem carvão aos
que tremem de frio; mas a maior parte do tempo um ou dois terços são
impedidos de trabalhar mais de três dias por semana para manter os
altos preços. Milhares de tecelões não podem bater os seus teares
enquanto as mulheres e os filhos só tem farrapos para se cobrirem e
três quartas partes dos europeus não tem uma roupa que mereça esse
nome.
Das
centenas de altos fornos milhares de manufaturas ficam constantemente
paradas e nas nações civilizadas há permanentemente uma população
de dois milhões de indivíduos que não pedem senão trabalho.
Milhões
de homens seriam felizes transformando os espaços incultos ou mal
cultivados em campos cobertos de ricas searas. Um ano de trabalho
inteligente bastaria para levar ao quíntuplo o produto de terras que
hoje não dão mais de oito hectolitros de trigo por hectare; mas tem
que estar ociosos, porque os donos da terra preferem entregar os seus
capitais, roubados à comunidade, em especulações financeiras.
É
a limitação direta da produção, mas há também a limitação
indireta que consiste em gastar o trabalho humano em objetos
absolutamente inúteis e destinados a favorecer a tola vaidade
humana.
Nem
se poderia avaliar em números a que ponto é reduzida a
produtividade pelo esbanjamento das forças que poderiam servir para
preparar e produzir o aparelho necessário a essa produção. Basta
citar os milhões gastos pela Europa em armamentos, sem outro objeto
mais que conquistar mercados para impor a lei econômica aos vizinhos
e facilitar a exploração no interior; os milhões pagos por ano aos
funcionários de toda a espécie; os milhões pagos aos juízes, às
prisões, para propagar pela imprensa ideias nocivas, notícias
falsas no interesse de um partido de um personagem político ou de
uma campanha de especuladores.
Ainda
mais; mais trabalho se despende ainda em pura perda, em manter a
estrebaria, o canil, a criadagem do rico, aqui para corresponder aos
caprichos das mundanas, ao luxo depravado da alta sociedade, ali,
para impor um artigo de má qualidade. O que estraga deste modo
bastaria para duplicar a produção útil ou para guarnecer
manufaturas e oficinas que em pouco inundariam os armazéns de tudo o
necessário para o abastecimento de tudo quanto carecem duas terças
partes da nação.
Donde
resulta que dos que se aplicam aos trabalhos produtivos uma quarta
parte esta sem trabalho três a quatro meses cada ano.
Assim,
se tomarmos em consideração por um lado a rapidez com que as nações
civilizadas aumentam sua força produtiva e por outro lado os limites
traçados a essa produção, conclui-se que seria necessária uma
organização econômica que permitisse as nações civilizadas
amontoar em poucos anos tantos produtos úteis que chegariam
fartamente para toda a gente. Não, o bem-estar para todos não é um
sonho... Não é um sonho desde que o homem inventou o motor que, com
um pouco de ferro e uns quilos de carvão, lhe dá a força dum
cavalo, capaz de pôr em movimento a máquina mais complicada.
Mas
para que o bem-estar seja uma realidade é necessário que esse
imenso capital: cidades, casas, campos, oficinas, vias de
comunicação, deixe de ser considerado propriedade privada de que o
açambarcador dispõe ao seu bel-prazer. É preciso que tudo isso,
obtido com tanto trabalho, se torne propriedade comum. É preciso um
EXPROPRIAÇÃO.
II
Expropriação,
tal é, pois o problema que a história pôs diante de nós, homens
do fim do século XIX. Regresso à comunidade de tudo o que servir
para se obter o bem-estar.
Mas
este problema não poderia ser resolvido por meio da legislação.
Ninguém pensa nisso. Tanto o pobre como o rico compreendem que nem
os governos atuais nem os futuros seriam capazes de lhe encontrar uma
solução. Sente-se a necessidade duma revolução social e ricos e
pobres não dissimulam que ela está próxima e que pode rebentar dum
dia para o outro.
Donde
virá? Como se anunciará? Ninguém sabe, é o incógnito; mas os que
observam e refletem não se enganam. Trabalhadores e explorados,
revolucionários e conservadores, pensadores e gente prática, todos
sentem que está à porta.
Pois
bem! Que faremos quando a revolução tiver rebentado?
Todos
nós temos estudado tanto o lado dramático das revoluções e tão
pouco a sua obra verdadeiramente revolucionária, que muitos dentre
nós veem nestes grandes movimentos senão a “mise-en-scène”, a
luta dos primeiros dias, as barricadas. Mas esta luta, a primeira
escaramuça depressa acaba e é só depois da derrota dos antigos
governos que começa a obra real da revolução.
Incapazes
e impotentes, atacados por todos os lados, depressa são arrastados
pelo sopro da insurreição. Em alguns dias a monarquia burguesa de
1848 não existia mais e quando um carro de praça conduzia Luís
Felipe para fora de França já Paris se não importava com o ex-rei.
Em algumas horas desaparecia o governo de Thiers a 18 de março de
1871 e deixava Paris senhora dos seus destinos. Todavia 1848 e 1871
não eram senão insurreições. Ante uma revolução popular os
governos eclipsam-se com uma rapidez surpreendente. Começam por
fugir, salvo o direito de conspirarem noutro lugar, tentando preparar
um regresso possível.
Desaparecido
o antigo governo, o exército, hesitando ante a onda do levantamento
popular, deixa de obedecer aos seus chefes; estes, aliás, também se
rasparam prudentemente. A tropa de braços cruzados, deixa correr o
marfim, ou de coronha para o ar junta-se aos insurretos. A polícia,
braços pendentes, não sabe já se deve carregar ou gritar: “Viva
a Comuna!” e os guardas-civis metem-se em casa. Os burgueses ricos
fazem as malas e escapam-se para lugar seguro. O povo fica. – Eis
como se anuncia uma revolução.
Tudo
isso é belo e sublime, mas ainda não é a revolução. Pelo
contrário, agora é que vai começar a missão do revolucionário.
Haverá
com certeza vinganças satisfeitas. Alguns Watrin e Tomás pagarão a
sua impopularidade.
Mas
isso será um acidente da luta e não da revolução.
Os
socialistas governamentais, os radicais, os gênios ignorantes do
jornalismo, os oradores de efeito burgueses ex-trabalhadores –
correrão à casa municipal e aos ministérios tomar posse dos
lugares abandonados, tomarão os galões de coração alegre,
admirar-se-ão nos espelhos ministeriais, ensaiar-se-ão para dar
ordens com um ar de gravidade à altura das circunstâncias. Precisam
de um cinto vermelho, um quepe agaloado e um gesto magistral para se
imporem ao ex-camarada de redação ou de atelier. Os outros
enterrar-se-ão na papelada com a melhor vontade de perceberem alguma
coisa. Redigirão leis, lançarão decretos com palavrões
bombásticos, que ninguém pensará em executar, justamente por estar
em revolução.
Tomarão
os nomes de Governo Provisório, de Comitê de Salvação Pública,
de Maire, de Comandante da Municipalidade, de Chefe de Segurança e
que sei eu? Eleitos e aclamados reunir-se-ão em Parlamento ou em
Conselhos da Comuna. Ali encontrar-se-ão homens pertencentes a dez,
a vinte escolas diferentes, que não são “capelas” pessoas, como
se diz muitas vezes, mas que correspondem a maneiras particulares de
conceber a extensão e alcance, o dever da revolução. Partidários
de todos os matizes, gente honesta confundindo-se com os ambiciosos:
todos apresentando-se com idéias diametralmente opostas, fazendo
alianças fictícias para constituir maiorias, disputando,
tratando-se de reacionários, de autoridades, de bandalhos,
discutindo asneiras, não publicando senão proclamações roncantes;
tomando-se todos a sério, enquanto a verdadeira força do movimento
está na RUA.
Tudo
isto pode divertir os aficionados do teatro. Mas ainda não é a
revolução. Nada está feito.
Entretanto
o povo sofre. As oficinas não têm trabalho, os atelieres estão
fechados; o comércio não vai. O trabalhador nem mesmo vence o
salário-mínimo que ganhava antes; o preço dos gêneros aumenta.
Com
esse devotamento heroico que sempre o caracterizou e que chega ao
sublime por ocasião das grandes épocas, o povo pacienta. É ele
quem exclama em oitocentos e quarenta e oito: “Nós pomos três
meses de miséria ao serviço da República” enquanto os
“representantes” e os senhores do novo governo até ao último,
recebiam religiosamente os seus vencimentos! O povo sofre. Com a sua
confiança pueril, com a bonomia da massa espera que em cima, na
câmara, no Hotel de Ville, no Comitê de Salvação Pública se
ocupem dele.
Mas
lá em cima pensa-se em tudo, menos nos sofrimentos da multidão.
Quando a fome corrói a França em 1793, comprometendo a revolução,
quando o povo está reduzido à última miséria; enquanto os Campos
Elísios são cortados por fáetons soberbos, em que mulheres exibem
suas soberbas “toilettes” Robespiére insiste nos Jacobinos para
fazer discutir a sua memória sobre a Constituição inglesa! Quando
o trabalhador sofre em 1845 da suspensão geral da indústria, o
governo provisório e a Câmara tagarelam sobre as pensões militares
e o trabalho das prisões, sem perguntarem do que vive o povo nesta
época de crise. E se é censurável a Comuna, que nasceu sob os
canhões do Prussianos e não durou senão setenta dias, é de não
ter compreendido que a revolução comunal não podia triunfar sem
combatentes bem alimentados e que com 30 soldos por dia não se pode
ao mesmo tempo pelejar nas fortalezas e alimentar uma família.
O
povo sofre e pergunta: “Que fazer para sair deste caso?”
III
Ora
pois; parece-nos que não há senão uma resposta a esta pergunta:
— Reconhecer
e proclamar bem alto que cada um, seja qual for o seu passado, seja
qual for a sua força ou a sua fraqueza, suas aptidões ou a sua
incapacidade, possui antes de tudo o “direito de viver”?; e que a
sociedade deve repartir, entre todos, sem exceção, os meios de que
dispõe. Reconhecê-lo, proclamá-lo e agir de conformidade!
Fazer
de modo que desde o primeiro dia da Revolução o trabalhador saiba
que se abre diante dele uma nova era: que desde agora ninguém será
obrigado a dormir debaixo das pontes, ao lado dos palácios; a ficar
em jejum enquanto houver que comer; tremer de frio ao lado dos
armazéns de peles. Que tudo seja de todos na realidade, como em
princípio e que enfim na história se produza uma revolução que
cuide das “necessidades” do povo antes de lhe ensinar a lição
dos seus “deveres”.
Isto
não se pode fazer com decretos, mas unicamente tomando posse
imediata, efetiva de tudo o que é necessário para assegurar a vida
de todos. Tal é a única maneira verdadeiramente científica de
proceder, a única que seja compreendida e desejada pela massa do
povo.
Tomar
posse, em nome do povo revoltado, dos depósitos de trigo, dos
armazéns que regurgitam de vestuários, das casas habitáveis. Não
esbanjar coisa alguma, organizar-se logo para preencher os claros,
fazer face a todas as necessidades, satisfazer todas as precisões,
produzir, não mais para dar benefícios a quem quer que seja, mas
para fazer viver e desenvolver-se a sociedade.
Fora
com essas fórmulas ambíguas como o “direito ao trabalho”, com
que lograram o povo em 1848 e que ainda lográ-lo.
Tenhamos
a coragem de reconhecer que o bem-estar, desde já possível, deve
realizar-se a todo o custo.
Quando
em 1848 os trabalhadores reclamavam o direito ao trabalho
organizavam-se atelieres nacionais ou municipais, e mandavam-se os
homens penar nesses atelieres à razão de quarenta soldos por dia!
Quando pediam a organização do trabalho, respondiam-lhes: “Esperem,
meus amigos, o governo vai se ocupar disso e por hoje aqui estão
quarenta soldos. Descanse, rude trabalhador, que penou toda a sua
vida”. E enquanto esperavam, apontavam-lhes os canhões. E um belo
dia disseram-lhes: “Partam para colonizar a África, senão vamos
metralhá-los”.
Muito
outro será o resultado se os trabalhadores reivindicarem o “direito
ao bem-estar”! Desse modo, proclamam o direito de se apoderarem de
toda a riqueza social; de tomar as casas e instalar-se nelas conforme
as necessidades da família; de tomar os víveres acumulados e de
servir-se deles de modo a conhecer o bem-estar, depois de ter
demasiadamente conhecido a fome. Proclamam o seu direito a todas as
riquezas – fruto do labor das gerações passadas e presentes e
usam delas de modo a conhecer o que são os altos gozos da arte e da
ciência, demasiado tempo açambarcados pelos burgueses. E afirmando
o seu direito ao bem-estar, declaram o seu direito de decidirem eles
mesmos o que deve ser esse bem-estar.
O
direito ao bem-estar é a possibilidade de viver como seres humanos e
criar os filhos para os fazer membros iguais duma sociedade superior
à nossa, enquanto o direito ao trabalho é o direito de ficar sempre
escravo assalariado, “homem de pena” governado e explorado pelos
burgueses de amanhã. O direito ao bem-estar é a revolução social;
o direito ao trabalho é quando muito um degredo industrial.
É
tempo do trabalhador proclamar o seu direito à herança comum e de
tomar posse dela.
O COMUNISMO ANARQUISTA
I
Toda
a sociedade que tiver rompido com a propriedade privada é obrigada,
quanto a nós, a organizar-se em comunismo-anarquista. A anarquia
conduz ao comunismo, assim como o comunismo leva à anarquia, sendo
ambos a expressão da tendência das sociedades modernas para a
procura da igualdade.
Houve
um tempo em que uma família de camponeses podia considerar o trigo
que fazia brotar e os vestidos de lã tecidos no lar como produtos do
seu próprio trabalho. Mesmo então esta maneira de ver não era
assaz correta. Havia estradas e pontes feitas em comum, pântanos
dessecados por um trabalho coletivo, tapumes de sebes que todos
conservavam. Um melhoramento nos teares ou na maneira de tingir os
tecidos aproveitava a todos nessa época; uma família de camponeses
não podia viver senão com a condição de achar apoio, em mil
ocasiões na aldeia, na comuna.
Mas
hoje, neste estado da indústria, em que tudo se entrelaça e se
sustenta, em que cada ramo da produção se serve de todos os outros,
a pretensão de dar origem individual aos produtos é insustentável.
Se as indústrias têxteis ou a metalurgia atingiram uma estupenda
perfeição nos países civilizados, devem-no ao desenvolvimento
simultâneo de mil outras indústrias grandes e pequenas; à extensão
da rede férrea, à navegação transatlântica, à destreza de
milhões de trabalhadores, a um certo grau de cultura geral de toda a
classe obreira, enfim, a trabalhos executados de um extremo ao outro
do mundo.
Como
querer avaliar a parte que cabe a cada um nas riquezas que todos
ajudamos a acumular?
Colocando-nos
neste ponto de vista geral, sintético, da produção, não podemos
admitir com os coletivistas que uma remuneração proporcional às
horas de trabalho fornecidas por cada um à produção das riquezas
possa ser um ideal ou mesmo um passo à frente para esse ideal. Sem
discutir aqui se realmente o valor de troca das mercadorias se mede
na sociedade atual pela quantidade de trabalho necessário para as
produzir, basta dizer, salvo voltar mais tarde ao objeto, que o ideal
coletivista nos parece irrealizável numa sociedade que considerasse
os instrumentos de produção como um patrimônio comum. Baseada
neste princípio, ela ver-se-ia forçada a abandonar desde logo toda
a forma de salariado.
Estamos
persuadidos que o individualismo mitigado pelo sistema coletivista
não poderia existir ao lado do comunismo parcial da posse por todos
do solo e dos instrumentos de trabalho. Uma nova forma de posse
requer uma nova forma de retribuição. Uma nova forma de produção
não poderia manter a antiga forma de consumo, como não poderia
acomodar-se às antigas formas de organização política.
O
salariado nasceu da apropriação pessoal do solo e dos instrumentos
de produção por alguns. Era a condição necessária para o
desenvolvimento da produção capitalista: morrerá com ela, mesmo
que se quisesse disfarçá-la sob a forma de “bondes de trabalho”.
A posse comum dos instrumentos de trabalho trará necessariamente o
gozo em comum dos frutos do labor comum.
Sustentamos
além disso que o comunismo não só é desejável, mas que as
sociedades atuais fundadas sobre o individualismo são mesmo
“continuamente forçadas a marchar para o comunismo”.
Com
efeito, a par desta corrente individualista, vemos em toda a história
moderna a tendência duma parte a conservar o que resta do comunismo
parcial da antiguidade e doutra parte a restabelecer o princípio
comunista em mil manifestações da vida.
Desde
que as comunas dos X, XI e XII séculos conseguiram emancipar-se do
senhor, laico ou religioso, deram imediatamente grande extensão ao
trabalho comum e ao consumo em comum.
A
cidade (já não os particulares) afretava navios e expedia as suas
caravanas para o comércio distante, cujo benefício revertia a
todos, não aos indivíduos. Também comprava as provisões para os
habitantes. Os rastros ou vestígios destas instituições
mantiveram-se até ao século XIX e os povos nas suas legendas
conservaram-lhes piedosamente a lembrança.
Tudo
isso desapareceu, mas a comuna rural ainda luta para manter os
últimos vestígios desse comunismo e consegue-o, enquanto o estado
não vier atirar a sua espada sobre a balança.
Ao
mesmo tempo, novas organizações baseadas no mesmo princípio: “a
cada um conforme as suas necessidades”, surgem sob mil aspectos
diversos: porque sem uma certa dose de comunismo as sociedades atuais
não poderiam viver. Apesar do tom estreitamente egoísta dado ao
espírito pela produção mercante, a tendência comunista revela-se
a cada instante e penetra nas nossas relações sob todas as formas.
A
ponte, cuja passagem dantes era paga, tornou-se monumento público. A
estrada calçada, que antes se pagava a tanto por légua já não
existe senão no Oriente. Os museus, as bibliotecas livres, as
escolas gratuitas, as refeições comuns das crianças; os parques e
jardins abertos a todos, as ruas calçadas e iluminadas, livres para
todo o mundo, a água distribuída a domicílio com a tendência
geral de não olhar à quantidade consumida; - tantas instituições
fundadas no princípio: “Tomais o que precisardes”.
Os
“tramwais” e as estradas de ferro introduzem já a assinatura
mensal ou anual, sem ter em conta o número de viagens, e
recentemente uma nação inteira, a Hungria, introduziu na sua rede
de caminhos de ferro o bilhete por zonas, que permite percorrer
quinhentos ou mil quilômetros pelo mesmo preço. Em todas estas
inovações e mil outras a tendência é para não medir o consumo.
Eis os fenômenos que se mostram até nas nossas sociedades
individualistas.
A
tendência, posto ainda tão fraca é de pôr as precisões do
individuo acima da avaliação dos serviços que prestou ou que
prestará um dia à sociedade. Chega-se a considerar a sociedade como
um todo, de que cada parte está tão intimamente ligada às outras,
que o serviço prestado a certo indivíduo é um serviço prestado a
todos.
Quando
ides a uma biblioteca pública, o bibliotecário não vos pergunta
quais os serviços que prestastes à sociedade, para vos dar o volume
ou os 50 volumes que lhes pedes e ainda vos ajuda, senão sabeis
procurá-los no catálogo. Mediante uma espórtula de entradas
uniforme, e muitas vezes o que se pede é uma contribuição em
trabalho, que se refere, a sociedade científica abre os seus museus,
os seus jardins, a sua biblioteca, as suas festas anuais a cada um
dos seus membros, seja ele um Darwin ou simples amador.
Em
Petersburgo, se estudais uma invenção, ides a um atelier especial,
onde vos dão um lugar, ferramentas de marceneiro, um torno mecânico,
todos os utensílios necessários, todos os instrumentos de precisão,
contanto que o saibas manejar, e vos deixam trabalhar tanto quanto
vos aprouver. Aí estão os instrumentos, interessai amigos na vossa
idéia, associai-vos com outros camaradas de diversos ofícios se não
preferis trabalhar só, inventai a máquina de aviação ou não
inventeis nada, isso é lá convosco. Os marinheiros de um barco de
salvamento não pedem os seus títulos aos tripulantes dum navio que
se afunda; lançam a embarcação, arriscam a vida nas ondas
furibundas, morrendo às vezes, para salvarem homens que nem
conhecem. E para que era preciso conhecê-los?
Precisam
dos nossos serviços, há aí seres humanos – é quanto basta, está
estabelecido o seu direito – Salvemo-los.
Eis
a tendência eminentemente comunista que se mostra em toda parte sob
todos os aspectos possíveis – mesmo no seio das nossas sociedades
que pregam o individualismo.
Submetida
uma cidade a um cerco, o primeiro cuidado dos cercados é que as
primeiras provisões a fazer são as dos velhos e das crianças, sem
se indaga dos serviços que prestaram ou prestarão à sociedade.
A
tendência existe. Acentua-se desde que as precisões mais imperiosas
de cada um estão satisfeitas, à medida que a força produtriz da
humanidade aumenta.
Como
pois duvidar que um dia em que os instrumentos de produção fossem
devolvidos a todos, em que a tarefa se fizessem em comum e o
trabalho, recobrando então o lugar da honra na sociedade produzisse
mais que o necessário para todos – como duvidar que esta tendência
(já tão poderosa) alarga-se a esfera de ação até tornar-se mesmo
o princípio da vida social?
Segundo
estes indícios, somos de opinião que a nossa primeira obrigação,
quando a revolução tiver quebrado a força que sustenta o sistema
atual, será realizar imediatamente o comunismo: comunismo
anarquista, sem governo – o dos homens livres. È a síntese dos
dois fins visados pela humanidade econômica e a liberdade política.
Sabemos
que nenhum povo esta por enquanto moralmente preparado para proclamar
a anarquia e viver nela, tendo o cidadão as necessárias virtudes
para viver dentro do seu direito, sem violar os direitos alheios.
Essas virtudes hão de o povo adquiri-las mediante o ensino e o
exemplo dos homens superiores que tem a peito o advento do
anarquismo, isto é, da liberdade absoluta, tendo só a restringi-la
a liberdade dos outros. Nem se diga que o anarquismo trará a
liberdade do crime. O criminoso convicto não ficara impune: numa
sociedade anárquica, o povo reunido constituirá um tribunal de
única instância que julgará sem recurso e executará ele mesmo as
suas sentenças.
Vê-se
na história que, cada vez que o desenvolvimento das sociedades
europeias o permitia, elas sacudiam o juízo da autoridade e
esboçavam um sistema baseado na liberdade individual; e sempre que
os governos foram abalados em resultado de revoltas, foram épocas de
súbito progresso econômico e intelectual.
Umas
vezes é a libertação das comunas, cujos monumentos não foram
depois excedidos, outras vezes é a sublevação dos camponeses quem
faz a “Reforma” e põe em perigo o papado; outras vezes é a
sociedade, livre, um movimento que criavam do outro lado do
Atlântico, os descontentamentos vindos da velha Europa.
E
se observarmos o presente desenvolvimento das nações civilizadas,
aí vemos sem risco de nos enganarmos, um movimento cada vez mais
acentuado para limitar a esfera de ação do governo e deixar mais
liberdade ao individuo.
Depois
de haver tentado longamente e sem resultado resolver este problema
insolúvel, qual o de se dar um governo que possa obrigar o indivíduo
à obediência, sem deixar ele mesmo de obedecer à sociedade, a
humanidade tenta livrar-se de toda a espécie de governo e satisfazer
suas necessidades de organização pelo livre entendimento entre
indivíduos e grupos que visam o mesmo fim.
Tudo
o que antes era considerado como função do governo é-lhe hoje
disputado: tudo se arranja melhor e mais facilmente sem a sua
intervenção. Estudando os progressos feitos nesta direção, somos
levados a concluir que a humanidade tende a reduzir a zero a ação
dos governos, isto é, a abolir o Estado.
Já
podemos entrever um mundo onde o indivíduo, não mais ligado por
leis, só terá hábitos sociais, resultado da necessidade de
procurar o apoio, a cooperação e a simpatia dos vizinhos.
De
certo uma sociedade sem Estado suscitará tantas objeções como a
economia política sem capital privado. Todos nós fomos educados
desde as tradições romanas e as ciências professadas nas
universidades, a crer no governo e no Estado-Providência.
Para
manter esse prejuízo elaboraram-se sistemas de filosofia; teorias da
lei são redigidas com o mesmo fim. Toda a política se baseia neste
princípio e cada político, de qualquer divisa, vem sempre dizer ao
povo? “Dai-me o poder, eu quero e posso libertar-vos das misérias
que vos oprimem”.
Abri
um livro de sociologia, de jurisprudência, achareis sempre o governo
tomando um lugar tão grande que chegamos a crer que não há nada
fora do governo e dos homens de Estado.
A
imprensa canta no mesmo tom. Consagram-se colunas inteiras aos
debates parlamentares, às intrigas dos políticos, deixando espaço
quase nulo para assuntos econômicos e os casos do dia.
Entretanto,
desde que se passa da matéria impressa à própria vida, fica-se
espantado da parte infinitesimal, que o governo aí representa. Já
Balzac havia notado os milhares de seres que passam a vida sem nada
saberem do Estado, senão os pesados impostos que lhes fazem pagar.
Fazem-se milhões de transações cada dia, entre as quais as do
comércio, de tal maneira que nem o governo poderia ser invocado
quando uma das partes tivesse vontade de faltar ao seu compromisso.
Qualquer comerciante vos poderá dizer que as trocas operadas cada
dia entre comerciantes seriam de uma inutilidade absoluta se não
tivesse por base a confiança mútua, o hábito de cumprir a palavra
e o desejo de não perder o crédito.
Outro
fato ainda se faz notar melhor em favor das nossas ideias: é o
acréscimo contínuo no campo das empresas, devidas à iniciativa
particular, e o desenvolvimento prodigioso dos agrupamentos livres
são um resultado tão necessário do acréscimo contínuo das
precisões do homem civilizado e substituem tão vantajosamente a
intervenção do governo, que devemos reconhecer nelas um fator cada
vez mais importante na vida das sociedades.
A
história dos últimos 50 anos fornece a prova viva da impotência do
governo representativo para se desempenhar das funções com que o
quiseram sobrecarregar. Um dia há de citar-se o século XIX como a
época do fracasso do parlamentarismo. Mas esta impotência torna-se
tão evidente para todos, as faltas do parlamentarismo e os vícios
fundamentais do parlamentarismo são tão evidentes que os poucos
pensadores que lhe tem feito a crítica (J. S. Mill, Levardays)
tem-se contentado com traduzir o descontentamento dos povos. Com
efeito, não se concebe que é absurdo nomear alguns homens e
dizer-lhes: “Fazei-nos leis sobre todas as manifestações da nossa
vida, mesmo que algum de vós as ignore?”.
A
união postal internacional, as uniões de caminhos de ferro, as
sociedades sábias dão-nos o exemplo de soluções achadas pelo
livre entendimento em vez e lugar da lei.
Hoje,
quando grupos espalhados em todo o globo querem chegar a organizar-se
para qualquer fim, não nomeiam um parlamento internacional de
deputados “bons à tout faire”, dizendo-lhes: “Votem-nos leis,
nós obedeceremos”. Enviam-se delegados conhecedores da questão
especial a tratar e diz-se lhes: “Tratai de entrar em acordo sobre
tal questão e volta, - não com uma lei no bolso, mas com uma
proposta de acordo que aceitaremos ou rejeitaremos”.
É
assim que deverá agir uma sociedade livre. Para fazer a expropriação
será absolutamente impossível organizar-se sobre o princípio da
representação parlamentar.
Uma
sociedade livre, reentrando na posse da herança comum, deverá
buscar no livre agrupamento e na livre federação dos grupos uma
organização nova, que convenha à fase econômica nova da história.
A cada fase econômica corresponde a sua fase política e será
impossível tocar na propriedade sem olhar ao mesmo tempo um novo
modo de vida político.
A EXPROPRIAÇÃO
I
Contam
que em 1848, Rothschild, vendo-se ameaçado na sua fortuna pela
Revolução, inventou esta farsa: “Quero admitir que a minha
fortuna fosse adquirida à custa dos outros, mas dividida por tantos
milhões de europeus cabia um escudo a cada um. Pois bem, obrigo-me a
restituir a cada um o seu escudo, logo que mo reclame”.
Dito
isto e publicado, o nosso milionário passeava tranquilamente nas
ruas de Frankfurt. Três ou quatro transeuntes pediram-lhe o seu
escudo e ele desembolsou-o com um sorriso sardônico. A família do
milionário está ainda de posse dos seus tesouros.
É
pouco mais ou menos assim que raciocinam as fortes cabeças da
burguesia, quando nos dizem: “Ah! A expropriação? Estou de
acordo. Tirai a todos os seus paletós, ponham-nos num monte e cada
um vá tirar um, embora tenha de se bater pelo melhor!”.
É
uma brincadeira de mau gosto. O que queremos não é amontoar os
paletós para depois distribuir, embora os que tiritam de frio sempre
tivessem alguma vantagem. Também não é repartir os escudos de
Rothschild. É organizar-nos de modo que a cada ser humano que vem ao
mundo seja assegurado, em primeiro lugar aprender um trabalho
produtivo e se habituar a ele; depois, de poder fazer esse trabalho
sem patrão e sem pagar açambarcadores da terra e das máquinas a
parte do leão sobre tudo o que produzir.
Quanto
às riquezas dos Rothschilds e dos Vanderbilts, elas nos servirão
para organizar melhor a nossa produção em comum.
No
dia em que o trabalhador do campo puder lavrar a terra sem pagar
metade do que produz; em que as máquinas necessárias para preparar
a terra para as grandes colheitas estiverem com profusão à
disposição dos cultivadores, o obreiro de oficina produzir para a
comunidade e não para o monopólio, os trabalhadores não andarão
esfarrapados e não haverá mais Rothschilds e quejandos. Ninguém
terá de vender o seu trabalho por um salário que represente só uma
parte do que produziu.
Dirão:
“Mas virão Rothschilds de fora. Podereis impedir que venha
estabelecer-se entre vós um indivíduo que juntou milhões na China,
que se rodeie de trabalhadores assalariados, que os explore e
enriqueça à sua custa? Fareis a revolução em toda a terra ao
mesmo tempo? Ou estabelecereis alfândegas nas fronteiras para
revistar os que chegam e apreender o ouro que trouxerem? – Guardas
anarquistas fazendo fogo sobre quem passa há de ser divertido”.
Há
aí em erro grosseiro. Ninguém jamais quis saber donde vêm as
fortunas dos ricos. Um pouco de reflexão basta para mostrar que a
origem dessas fortunas é a miséria dos pobres.
Onde
não houver miseráveis, não haverá mais ricos para os explorarem.
É na idade media que as grandes fortunas começam a surgir.
Um
barão feudal faz mão baixa num fértil vale. Mas enquanto esta
campina não está povoada, o barão não é nada rico. A terra não
lhe rende nada, é o mesmo que possuir bens na lua. Que vai fazer o
barão para se enriquecer? Procurará camponeses.
Entretanto
se cada agricultor tivesse um cantinho de terra livre de todo o
encargo, os utensílios e o gado necessário para a lavoura, quem
desbravaria as terras do barão? Cada um ficaria em sua casa. Mas
existem populações inteiras de miseráveis. Uns foram arruinados
pelas guerras, secas, pestes; não tem cavalo nem charrua (o ferro na
idade media era caro, mais caro ainda o cavalo de lavoura).
Todos
os miseráveis buscam melhores condições. Um dia veem na estrada,
no limite das terras do barão, um poste indicando por sinais
compreensíveis que o lavrador que vier estabelecer-se nessas terras
receberá terra, instrumentos e materiais para edificar sua cabana,
semear o seu campo sem pagar nada durante um certo número de anos.
Este número de anos é marcado com cruzes no poste – e o camponês
sabe o que significa as cruzes. Então os miseráveis afluem às
terras do barão, abrem estradas, dessecam pântanos, criam aldeias.
Em nove anos o barão impõe-lhes uma renda, paga-se dos
adiantamentos cinco anos mais tarde, o lavrador aceita estas novas
condições, porque noutra parte não as acharia melhores. E pouco a
pouco, com a ajuda da lei feita pelos senhores, a miséria do
camponês torna-se a nascente riqueza do patrão.
Passava-se
isto na idade media e passa-se ainda hoje. O camponês tem de pagar
mil francos ao senhor Visconde que quiser vender-lhe uma geira, ou
pagar uma renda onerosa que lhe leva o terço do que produz. Ele não
tem nada e é forçoso que aceite todas as condições, contanto que
possa viver cultivando o solo. Em pleno século XIX como na idade
média, é anda a pobreza do camponês que faz a riqueza dos
proprietários de terras.
II
O
proprietário da terra enriquece-se com a miséria dos camponeses. O
mesmo acontece com o empresário industrial.
Vemos
um burguês que duma maneira ou doutra possui um pecúlio de
quinhentos mil francos. Pode certamente despender o seu dinheiro à
razão de cinquenta mil francos por ano – muito pouco enfim com o
luxo fantasista, insensato que vemos em nossos dias. Mas assim, no
fim de dez anos não tem nada. Assim, como homem “patético” ele
prefere guardar intacta a sua fortuna e arranjar ainda por cima um
pequeno rendimento anual.
É
muito simples na nossa sociedade, porque as cidades regurgitam de
trabalhadores que não têm de que viver um mês, nem ainda quinze
dias. O burguês monta uma oficina: os banqueiros ainda lhe emprestam
quinhentos mil francos, sobre tudo se tem a reputação de esperto; e
com o seu milhão poderá fazer trabalhar quinhentos operários.
Se
nos arredores não houvesse senão homens e mulheres com a existência
garantida, quem trabalharia com o burguês? Ninguém consentiria em
lhe fabricar por três francos diários mercadorias que valiam cinco
ou mesmo dez francos. Ainda a oficina não está acabada e já os
trabalhadores acodem para tomar lugar. Precisa cem e vieram mil. E o
patrão se não é um imbecil, embolsará por ano mil francos de cada
trabalhador.
Assim
o patrão arranja um bonito rendimento e se a indústria é
lucrativa, sua oficina engrandece pouco a pouco e aumentará as suas
rendas aumentando o número de operários que explora.
Nove
décimos das fortunas colossais dos Estados Unidos são devidos a
alguma grande falcatrua feita com o concurso do Estado. Na Europa
acontece outro tanto e não há duas maneiras de se fazer milionário.
Falta
ainda falar das pequenas fortunas atribuídas pelos economistas à
economia, enquanto a economia por si só não rende nada, enquanto os
saldos poupados não se aplicam a explorar os mortos de fome.
Vejamos
um sapateiro. O seu trabalho é bem pago, tem uma boa clientela e à
força de privações chegou a pôr de parte dois francos por dia,
cinquenta francos por mês. Admitamos que nunca esteja doente e que
enche o estômago, apesar da sua gana de economizar; que não se casa
ou não tem filhos, que não morra tísico.
Ora
pois, chegando aos cinquenta anos não pôs de parte nem quinze mil
francos e chegando à velhice, não terá com que viver se não puder
trabalhar. De certo não é assim que se arranjam fortunas.
Mas
vejamos outro sapateiro.
Assim
que tiver posto uns soldos de parte, leva-os cuidadosamente à caixa
econômica e esta empresta-os ao burguês que vai montar uma
exploração de pés descalços. Depois toma um aprendiz filho dum
miserável, que se julgará muito feliz se no fim de cinco anos o
filho sabe o ofício e chega a ganhar a sua vida. O aprendiz dará
lucro ao sapateiro e se este tem clientela, breve tomará outro
aprendiz e depois ainda outro. Mais tarde terá três obreiros –
miseráveis, felizes, ganhando três francos diários por um trabalho
que vale pelo menos seis. Se tem sorte, ou antes se é esperto, em
breve esse pessoal render-lhe-á vinte francos por dia, além do seu
próprio trabalho, e poderá deixar à família um pequeno pecúlio.
O
comércio “parece” fazer exceção à regra. Dirão: “um
sujeito compra chá na China, importa-o em França e ganha trinta por
cento: não explorou ninguém”.
Entretanto
o caso é análogo.
Se
o homem tivesse transportado o chá às costas, então sim! Era
precisamente assim que se comerciava na idade média, mas nunca se
chegava às surpreendentes fortunas de hoje. Agora o método é mais
simples. O negociante que possui capital não precisa sair do seu
escritório para enriquecer. Telegrafa a um comissionista uma ordem
de comprar cem toneladas de chá, freta um navio e em poucas semanas
têm o carregamento em casa. Não corre os riscos do transporte
porque o chá e o navio estão seguros e se despendeu cem mil
francos, recolherá cento e trinta mil.
Como
achou homens que se decidiram a ir a China e voltar, suportar
fadigas, arriscar a vida por um magro salário? Como achou nas docas
carregadores e descarregadores, pagando-lhes justamente o preciso
para não morrerem de fome enquanto trabalhavam? Porque são
miseráveis. Ide a um porto de mar, visitai os cafés da praia,
observai esses homens que se batem às portas das docas, que assediam
desde madrugada para serem admitidos a trabalhar nos navios. Vede
esses marinheiros, felizes de serem contratados para uma viagem
longínqua depois de esperarem semanas e meses; passaram toda a vida
de uns navios para outros até perecerem um dia nas ondas.
Entrai
nos seus tugúrios, considerai essas mulheres e essas crianças
esfarrapadas, que vivem não se sabe como, esperando o pai e tereis a
resposta.
Digamos,
portanto, o que é a expropriação. A expropriação deve recair
sobre tudo o que permite, seja a quem for – banqueiro, industrial
ou cultivador, - apropriar-se do trabalho alheio. A fórmula é
simples e compreensível.
Não
queremos despojar ninguém do seu paletó; mas queremos restituir aos
trabalhadores “tudo” o que permite a quem quer que seja que os
explore, e faremos todos os esforços para que, não faltando nada a
ninguém, não haja “um único homem” que seja “forçado” a
vender os seus braços – ele e seus filhos.
III
Dizem-nos
muitas vezes os nossos amigos a propósito da ideia anarquista:
“Cuidado não ir demasiado longe! A humanidade não se modifica num
dia, não é bom ir muito depressa em projetos de expropriação e de
anarquia, ou arriscareis não fazer nada de durável.” Pois bem, o
que nós tememos, pelo contrário, é uma expropriação numa escala
muito pequena para ser duradoura; que o impulso revolucionário pare
a meio caminho; que se esgote em meias medidas que não contentariam
ninguém e que, ainda que produzindo um abalo extraordinário, na
sociedade e uma suspensão das suas funções, não fossem,
entretanto, viáveis, semeassem o descontentamento geral e trouxessem
fatalmente o triunfo da reação.
Há
com efeito nas nossas sociedades relações estabelecidas que é
impossível modificar, tocando-lhes só em parte. As diversas
engrenagens da nossa organização econômica estão tão intimamente
ligadas entre si, que se não pode modificar uma sem modificar o
conjunto; isto se perceberá desde que queiramos expropriar seja o
que for.
Suponhamos
que numa região qualquer se faça uma expropriação limitada,
limitando-se por exemplo a expropriar os grandes senhores de terras,
sem tocar nas oficinas, como queria há pouco Henry Georges; que em
tal cidade se expropriem as casas sem pôr os gêneros em comum; ou
que em certa região industrial se expropriem as fábricas sem tocar
as grandes propriedades em terras: O resultado será em todos os
casos o mesmo, abalo imenso da vida econômica, sem meios de
organizar essa vida econômica em bases novas. Paragem da indústria
e das permutas, sem regresso aos princípios de justiça,
impossibilidade para a sociedade de reconstruir um todo harmônico.
Se
o agricultor se liberta do grande proprietário de terras sem que a
indústria se liberte do capitalista industrial, do comerciante e do
banqueiro, não há nada feito. O cultivador sofre não só por ter
de pagar rendas ao dono do solo, mas padece do conjunto das condições
atuais: padece do imposto que paga ao industrial, que lhe leva três
francos por uma enxada que não vale, mais de quinze soldos; das
taxas que lhe leva o Estado, que não dispensa um exército de
funcionários; das despesas de conservação do exército que mantém
o Estado. O agricultor sofre com a despopulação dos campos, cuja a
mocidade é arrastada para as manufaturas das grandes cidades seja
pelo engodo de salários maiores, pagos temporariamente pelos
produtores de objetos de luxo, seja pelo atrativo duma vida mais
movimentada, sofre ainda pela proteção artificial da indústria, da
exploração mercante dos países vizinhos, da agiotagem etc. E
quando mesmo a expropriação permitisse a todos cultivarem a terra e
fazê-la valer sem pagar rendas a ninguém a agricultura – mesmo
quando tivesse um momento de bem-estar, o que ainda não está
provado, recairia bem cedo no marasmo em que se encontra hoje.
O
mesmo com a indústria. Entregai amanhã as indústrias aos
trabalhadores, fazei o que se fez com um certo número de camponeses
que se fizeram proprietários da terra. Suprimi o patrão mas deixai
a terra ao senhor, o dinheiro ao banqueiro, a Bolsa ao comerciante,
conservai na sociedade a massa de ociosos que vivem do trabalho do
obreiro, conservai os mil intermediários, o Estado com seus
inumeráveis funcionários, - a indústria não marchará. Não
achando mais compradores na massa dos camponeses que ficaram pobres,
não possuindo a matéria-prima e não podendo exportar os seus
produtos, em parte por causa da suspensão do comércio e sobretudo
por efeito da descentralização das indústrias, só poderá
vegetar, abandonando os obreiros no meio da rua; e esses batalhões
de famintos estarão prontos a submeter-se ao primeiro intrigante que
lhe aparecer, ou mesmo a voltar ao antigo regime, contanto que se
lhes garanta a mão-de-obra.
Ou,
por fim expropriai os donos da terra e entregai as fábricas aos
trabalhadores, mas sem tocar nas nuvens de intermediários que
especulam sobre as farinhas e os trigos, as carnes e as especiarias
nos grandes centros, ao mesmo tempo que escoam os produtos das nossas
manufaturas. Pois bem, logo que o escândalo parar e os produtos não
circularem, logo que Paris não tiver pão e Lyon não tiver
compradores para as suas sedas, a reação voltará terrível
marchando sobre os cadáveres, passeando as metralhadoras nas cidades
e nos campos, fazendo orgias de execuções e de deportações, como
fez em 1815, em 1848 e 1871.
Tudo
é solidário nas nossas sociedades e é impossível reformar o que
quer que seja sem derrubar o conjunto.
No
dia em que se tocar na propriedade particular sob uma das formas –
agrícola ou industrial, tem de se tocar em todas as outras. Assim o
exigirá o sucesso da Revolução. Além disso, a expropriação não
poderia ser senão geral; uma expropriação parcial não se
compreenderia.
Alguns
socialistas têm procurado estabelecer uma distinção. “Exproprie-se
o solo, o subsolo, a oficina, a manufatura, isso queremos nós”,
dizem eles. São instrumentos de produção e seria justo ver ai uma
propriedade pública. Mas há, além disso, os objetos de consumo: o
alimento, o vestuário, a habitação, que se devem considerar
propriedade particular.
O
bom senso popular deu razão a esta distinção sutil. Com efeito nós
não somos selvagens para vivermos no bosque sob um abrigo de ramos;
o europeu que trabalha precisa dum quarto, duma casa, duma cama e de
louça.
A
cama, o quarto, a casa, são lugares de ócio para aquele que nada
produz. Mas para um trabalhador, uma câmara aquecida e com luz é
tanto um instrumento de produção como a máquina e a ferramenta. É
o lugar de reparação de seus músculos e de seus nervos, que amanhã
se gastarão no trabalho. O descanso do produtor é a limpeza da
máquina.
Os
pretendidos economistas nunca se lembraram de dizer que o carvão,
que se queima numa máquina, não deva ser contado entre os objetos
tão necessários à produção como matéria prima. Como é pois que
o alimento, sem o qual a máquina humana não poderia dar nenhum
esforço, poderá ser excluído dos objetos indispensáveis ao
produtor?
A
refeição copiosa e superior do rico é bem um dispêndio de luxo.
Mas a refeição do produtor é um dos objetos indispensáveis à
produção, pela mesma razão que o carvão queimado pela máquina a
vapor.
O
mesmo é com o vestuário porque se os economistas que fazem tal
distinção entre objetos de produção e objetos de consumo,
andassem de tanga como os selvagens da Nova-Guiné, então
compreenderíamos essas reservas. Mas indivíduos que não podem
escrever uma linha sem terem uma camisa sobre o tronco, estão em mau
terreno para fazerem uma tamanha distinção entre a sua pena e a sua
camisa. E se os vestidos ostentados das suas senhoras são bem
objetos de luxo, há todavia uma certa quantidade de tecido, algodão
ou lã, que o produtor não pode dispensar para produzir.
Queira
ou não, é assim que o povo entende a revolução. Quando tiver
varrido os governos, ele buscará, antes de tudo, garantir-se um
alojamento saudável, uma alimentação suficiente e vestuário sem
pagar impostos.
E
terá razão. O seu modo de agir será infinitamente mais conforme
com a “ciência” que o dos economistas, que fazem tanta distinção
entre os instrumentos de produção e os artigos de consumo.
Compreenderá que é precisamente aí que a Revolução deve começar
e lançará os fundamentos da verdadeira ciência econômica, que
possa reclamar o título de ciência e que se poderia intitular:
“estudo das necessidades da humanidade e dos meios econômicos de
as satisfazer”.
OS PRODUTOS
I
Se
a próxima revolução deve ser uma revolução social, há de
distinguir-se das sublevações precedentes, não só pelo seu
objeto, mas ainda pelos seus processos. Um objeto novo requer
processos novos.
Os
três grandes movimentos populares que vimos em França desde um
século diferem entre si a muitos respeitos, mas tem todos um traço
comum.
O
povo bate-se para derrubar o antigo regime. Depois de dar o golpe
decisivo, reentra na sombra. Constitui-se um governo de homens mais
ou menos honestos e é por ele o que se encarrega de organizar: em
1793, a república, em 1848, o trabalho, em 1871, a Comuna.
Saturado
de ideias jacobinas, este governo ocupa-se, antes de tudo, de
questões políticas, reorganização da máquina do poder, limpeza
da administração, separação da Igreja, e do Estado, liberdades
cívicas e assim por diante.
É
certo que os clubes obreiros vigiam os novos governantes. Impõem
muitas vezes as suas ideias. Mas, mesmo nesses clubes ou os oradores
sejam burgueses ou sejam trabalhadores, a ideia burguesa é sempre a
que domina. Fala-se muito de questões do pão. Emitiram-se nessas
épocas grandes ideias, ideias que agitaram o mundo, pronunciaram-se
palavras que ainda fazem bater os nossos corações a um século de
distância.
Mas
nos arrabaldes faltava o pão!
Desde
que a revolução rebentava o trabalho faltava inevitavelmente. A
circulação dos produtos parava, os capitais sumiam-se. Nessas
épocas o patrão não tinha absolutamente nada a temer. A penúria
anunciava-se.
A
miséria fazia a sua aparição – uma miséria como outra se não
tinha visto no antigo regime. “São os Girondinos que nos matam à
fome”, diziam nos arrabaldes em 1793. E guilhotinavam os
Girondinos. Davam-se plenos poderes a Montagne, na Comuna de Paris.
Em Lyon, Fouché e Collot d’Herbois, iam criando os celeiros de
abundância; mas para os encher apenas dispunha de somas ínfimas. As
municipalidades cansavam-se para arranjar trigo – enforcavam os
padeiros que açambarcavam as farinhas – e o pão faltava sempre.
Então
queixaram-se dos conspiradores realistas. Guilhotinavam doze a quinze
por dia. Mas tivessem eles guilhotinado cem duques e viscondes cada
vinte e quatro horas que nada teria mudado.
A
miséria crescia, pois que era preciso sempre receber um salário
para viver – e o salário não aparecia. Que podiam fazer mil
cadáveres a mais ou a menos?
Agora
o povo começava a cansar-se. – “A vossa Revolução vai bem”,
soprava o reacionário ao ouvido do trabalhador. “Nunca vocês
foram tão miseráveis!” E pouco a pouco, o rico tranquilizava-se;
saía do seu esconderijo, afronta os trabalhadores com o seu luxo
principesco, envolvia-se em perfumarias e dizia aos trabalhadores:
“Vamos lá, basta de asneiras! Que ganharam vocês com a Revolução?
Já é tempo de acabar com isso!”.
E
o revolucionário, acabrunhado, metia-se na sua choça e deixava
correr o marfim. E então a redução pavoneava-se altiva. Morta a
Revolução, espezinhava-se-lhe o cadáver. Derramavam-se ondas de
sangue, abatiam-se cabeças, povoavam-se as prisões e as orgias da
alta súcia retomavam o seu ouro.
Pão!
A Revolução precisa de pão! Que outros se ocupem a lançar
circulares em períodos brilhantes; que tomem tantos galões quantos
suas espáduas possam levar; que outros enfim alanzoem sobre as
liberdades políticas. A nossa tarefa será fazer que desde os
primeiros dias da Revolução e enquanto durar não falte pão nem a
um homem, no território insurrecto, nem haja uma mulher que seja
obrigada a esperar à porta da padaria para levar o bolo de farelos
que lhe quiserem atirar por esmola; nem uma única criança que
careça do necessário à sua fraca constituição.
A
ideia burguesa tem sido perorar sobre os grandes princípios, ou
antes saber as grandes mentiras; a ideia popular será garantir o pão
a todos.
Temos
a audácia de afirmar que cada um deve e pode comer quanto lhe
apeteça e que é pelo pão para todos que a Revolução deve vencer.
II
Somos
utopistas, é sabido. Tão utopistas na verdade que levamos a utopia
até crer que a Revolução deverá e poderá garantir a todos
alojamento, vestuário e pão, o que muito desagrada aos burgueses,
porque sabem perfeitamente que um que comer até satisfazer-se, será
muito custoso de dominar. Portanto é preciso assegurar o pão ao
povo revoltado e que a questão do pão prefira a todas.
Se
ela se resolver no interesse do povo, a revolução irá em bom
caminho, porquanto, para resolver a questão dos gêneros é preciso
aceitar um princípio de igualdade que se imporá com exclusão de
todas as outras soluções.
É
certo que a próxima revolução – igual nisto à de 1848, -
rebentará no meio duma formidável crise industrial. Há já uma
dúzia de anos que estamos em plena efervescência e a situação só
pode agravar-se. Tudo para isso contribui: a concorrência de nações
novas, que entram na liça pela conquista dos velhos mercados, as
guerras, os impostos sempre crescentes, as dívidas dos Estados, a
insegurança do dia de amanhã, as grandes empresas longínquas.
Neste
momento há na França milhões de trabalhadores sem trabalho. Pior
será ainda quando a revolução tiver rebentado e se tiver propagado
como o fogo posto a um rastilho de pólvora. O número de obreiros
sem trabalho dobrará quando as barricadas se tiverem levantado na
Europa ou nos Estados Unidos. Que se vai fazer para assegurar o pão
a essas pessoas?
Não
sabemos se a gente que se diz prática viu esta questão em toda a
sua crueza. O que sabemos é que querem manter o salariado e vemos
preconizar os trabalhos públicos para dar pão aos desocupados.
Porque
se abriam atelieres nacionais em 1789 e em 1793; porque se recorreu a
igual meio em 1848; porque Napoleão III conseguiu, durante dezoito
anos, conter o proletariado parisiense dando-lhe trabalhos – que
valem hoje em Paris a sua dívida de dois mil milhões e o seu
imposto municipal de 90 francos por cabeça; porque este excelente
movimento de “matar a fera” se aplicava em Roma e mesmo no Egito,
há quatro mil anos; porque enfim déspotas, reis e imperadores
souberam sempre atirar um pedaço de pão ao povo para terem tempo de
empunhar o chicote, - é natural que a “gente prática” preconize
esse método de perpetuar o salariado. Para que quebrar a cabeça
quando se dispõe de um método experimentado pelos Faraós do Egito?
Ora
bem: se a Revolução tivesse a desgraça de entrar por esse caminho,
estava perdida.
A
revolução na Europa é a suspensão imediata de metade, pelo menos,
das oficinas e manufaturas. São milhões de trabalhadores com suas
famílias atiradas à margem.
É
a esta situação verdadeiramente terrível que se procuraria obstar
por meio de atelieres nacionais, ou seja, de novas indústrias
criadas de improviso para empregar os desocupados.
É
evidente, como já disse Proudhon, que o menor atentado à
propriedade trará a desorganização completa sobre o regime baseado
na empresa particular e no salariado. A própria sociedade será
obrigada a lançar mão da produção no seu conjunto e de
reorganizar segundo as “necessidades do conjunto da população”.
Mas como esta reorganização se não faz num dia nem num mês, como
demandará um certo período de adaptação, durante o qual milhões
de homens ficarão privados dos meios de subsistência que se há de
fazer?
Em
tais circunstâncias não há senão uma solução verdadeiramente
prática. É reconhecer a imensidade da tarefa que se impõe, em
lugar de tentar restaurar uma situação que se tornou impossível,
proceder à reorganização da produção segundo os novos
princípios.
Será
pois necessário, quanto a nós, que o povo se aposse imediatamente
de todos os gêneros que se encontrarem nas comunas insurgidas,
inventariá-los e fazer de todo modo que, sem os esbanjar, todos se
aproveitem dos produtos acumulados para atravessar o período da
crise. E entretanto entender-se com os obreiros de fábricas,
oferecendo-lhes as matérias-primas que lhe faltarem, garantindo-lhes
a existência durante alguns meses a fim de produzirem o que faltar
ao cultivador.
Enfim,
fazer valer as terras improdutivas que não faltam, e melhorar
outras, que não dão nem um quarto, nem mesmo um décimo do que
produziriam submetidos à cultura intensiva agrícola ou jardineira.
É a solução prática que podemos entrever e que, quer queiram quer
não, se há de impor pela força das coisas.
III
A
feição predominante, distintiva do presente sistema capitalista é
o salariado.
Um
homem ou um grupo, possuindo o capital necessário, monta uma empresa
industrial; encarrega-se de alimentar a manufatura ou oficina de
matéria- prima, de organizar a produção, de vender os produtos
manufaturados, de pagar aos obreiros um salário fixo; enfim, embolsa
o excedente valor ou os lucros a pretexto de se indenizar da
gerência, do risco que correu, das flutuações de preço que a
mercadoria sofreu no mercado.
Eis
todo o sistema do “salariado”. Para salvar este sistema, os
detentores atuais do capital estariam prontos a fazer certas
concessões: repetir, por exemplo, uma parte dos lucros com os
trabalhadores, ou então estabelecer uma escala de salários, que os
faça elevar quando o lucro sobe: em suma, consentiriam em certos
sacrifícios, contanto que conservassem o direito de gerir a
indústria e de guardar os benefícios.
O
coletivismo, como se sabe, faz a este regime importantes
modificações, sem deixar de manter o salariado. Unicamente
substitui o padrão pelo Estado, isto é, pelo governo representativo
nacional ou comunal. São os representantes da nação ou da comuna e
seus delegados seus funcionários, que se tornam gerentes da
indústria. São também eles que se reservam o direito de empregar,
no interesse de todos, os lucros da produção. Por outra,
estabelece-se uma distinção muito sutil, mas prenhe de
consequências entre o trabalho do operário e o do homem que fez uma
aprendizagem prévia: o trabalho do operário, aos olhos do
coletivista, não é mais que um trabalho “simples”, enquanto o
artífice, o engenheiro, o sábio, etc. fazem o que Marx chama um
trabalho “composto” e tem direito a um salário mais elevado. Mas
operários e engenheiros, tecelões e sábios são salariados do
Estado - “todos funcionários”, diziam ultimamente para dourar a
pílula.
Pois
bem, o maior serviço que a próxima Revolução poderá fazer à
humanidade será criar uma situação em que todo o salariado será
impossível, inaplicável e em que se imporá, como única solução
aceitável, o comunismo – negação do salariado.
Uma
revolução política pode-se fazer sem que a indústria seja
atacada, mas uma revolução em que o povo puser a mão sobre a
propriedade trará inevitavelmente uma súbita suspensão de trocas e
de produção. Os milhões do Estado não chegariam para salariar os
milhões de desocupados.
Não
será demasiado insistir neste ponto; a reorganização da indústria
sobre bases novas (e logo demonstraremos a imensidade deste problema)
não se fará em poucos dias e o proletário não poderá gastar anos
de miséria ao serviço dos teóricos do salariado. Para atravessar o
período de embaraço ele reclamará o que sempre em igual ocorrência
reclamou: porem-se os gêneros em comum, arraçoamento.
Se
a pressão do povo não for suficiente, fuzilá-o-ão. Para que o
coletivismo possa tentar a experiência, precisará antes de tudo
“ordem”, disciplina, obediência. E como os capitalistas cedo
perceberão que fazer fuzilar o povo pelos que se intitulam
revolucionários é o melhor meio de desgostar da revolução,
prestarão certamente o seu apoio aos defensores da “ordem”,
mesmo coletivistas. Aí verão um meio de mais tarde os esmagar por
seu turno.
Se
a “ordem” se restabelece por este modo, as consequências são
fáceis de prever. Não se limitarão a fuzilar os “rapinantes”.
Deverão buscar os autores da “desordem”, restabelecer os
tribunais, a guilhotina: e os revolucionários mais ardentes subirão
ao cadafalso. Será uma “reprise” de 1793.
Se
“a ordem se restabelecer”, dizemos nós, os coletivistas
guilhotinarão os anarquistas, os possibilistas guilhotinarão os
coletivistas e eles mesmos serão guilhotinados pelos reacionários.
A revolução terá de recomeçar.
Mas
tudo leva a crer que o impulso do povo será bastante forte e que,
quando a Revolução se fizer, a ideia do Comunismo-anarquista terá
ganho terreno. Não é uma ideia inventada, é o povo mesmo que no-la
assopra e o número dos comunistas aumentará à medida que se tornar
mais evidente a impossibilidade de qualquer outra solução.
E
se o impulso for bastante forte, os negócios tomarão outro aspecto.
Em vez de saquear algumas padarias, certo de jejuar no dia seguinte,
o povo das cidades insurretas, os insurrectos tomarão posse dos
celeiros de trigo, dos matadouros, dos armazéns de comestíveis –
em suma de todos os gêneros disponíveis. Cidadãos e cidadãs de
boa vontade entregar-se-ão logo a inventariar o que se acha em cada
armazém, em cada celeiro de abundância. Em vinte e quatro horas a
Comuna revoltada saberá o que Paris ainda hoje não sabe, apesar dos
seus Comités de estatística, e o que nunca soube durante o cerco –
quantas provisões encerra. Em duas vezes vinte e quatro horas
ter-se-á tirado em milhões de exemplares quadros exatos de todos os
gêneros, lugares onde estão armazenados e os meios de os
distribuir. Em cada grupo de casas, em cada rua, em cada bairro
ter-se-ão organizado grupos de voluntários – os Voluntários dos
Gêneros, que saberão entender-se e conservar-se ao corrente dos
seus trabalhos. Que as baionetas não venham interpor-se: que os
teóricos pretendidos científicos não venham embrulhar ou antes,
que embrulhem quanto queiram contanto que não tenham direito de
comandar! E com este com este admirável espírito de organização
espontânea que a nação francesa possui em tão alto grau em todas
as suas camadas sociais, surgirá, mesmo em plena efervescência
revolucionária, um imenso serviço livremente constituído para
fornecer os gêneros indispensáveis a cada um.
IV
O
povo das grandes cidades será assim levado pela própria força das
coisas, a apoderar-se de todos os gêneros, procedendo do simples ao
composto, para satisfazer as precisões de todos os habitantes. Mas
em que bases poderia fazer-se a organização para gozar os gêneros
em comum? É uma pergunta que surge naturalmente.
Pois
bem, não há duas maneiras diferentes para o fazer com equidade: há
uma só, uma só que corresponda aos sentimentos de justiça e que
seja realmente prática. É o sistema já adotado pelas comunas
agrárias na Europa.
Tome-se
uma comuna de camponeses não importa onde, possuindo, por exemplo,
uma mata. Ora, enquanto não falta, cada um tem o direito de gastar
“tanta quanto queira”, sem outra fiscalização, além da opinião
pública dos seus vizinhos. Quanto à madeira grossa, que nunca é
demais, recorre-se à distribuição por meio de rações.
O
mesmo quanto aos prados comunais. Enquanto há que chegue para a
comuna, ninguém quer saber o que comeram as vacas de cada família
nem o número de vacas que pastaram. Não se recorre à partilha ou
arraçoamento senão quando os prados são insuficientes. Este
sistema pratica-se em toda a Suíça, em muitas comunas da França,
na Alemanha, etc.
Se
fordes aos países da Europa oriental, onde a madeira grossa se
encontra à discrição e onde o terreno não falta, vereis os
camponeses cortarem árvores nos bosques segundo as suas precisões,
cultivar tanta terra como desejam, sem pensarem em arraçoar a
madeira ou em dividir a terra em quinhões. Numa palavra: Tomar a
esmo o que se possui em abundância; arraçoamento do que tiver de
ser partilhado!
Será
preciso entrar em detalhes, fazer tabelas sobre a maneira de fazer
funcionar o arraçoamento? Provar que seria infinitamente mais justo
do que tudo o que hoje existe? Com essas tabelas e esses detalhes não
chegaríamos a convencer os burgueses e os trabalhadores
aburguesados, que consideram o povo como um agregado de selvagens,
perdendo o ânimo se o governo cessa de funcionar. Mas é preciso
nunca ter visto o povo deliberar para crer que, se fosse senhor, ele
não o fizesse conforme os mais puros sentimentos de justiça e de
equidade.
Ide
dizer na mesma reunião, pregai nos quatro cantos duma praça que o
alimento mais delicado deve ser reservado para os fracos, para os
doentes em primeiro lugar. Dizei que se houvesse dez perdizes em
Paris e só uma caixa de Málaga, tudo isso devia ser levado aos
quartos dos convalescentes; dizei-o…
Dizei
que a criança vem logo após o doente, para ela o leite das vacas e
das cabras. Á criança e ao velho o último bocado de carne e ao
homem robusto o pão seco, se não há melhor. Dizei isso e vereis
como todos vos aplaudem.
Os
teóricos, para quem o uniforme e a marmita do soldado são a última
palavra da civilização, exigirão sem dúvida que se introduza
desde logo a cozinha nacional e a sopa com lentilhas. Invocarão a
vantagem de economizar o combustível e os gêneros, estabelecendo
cozinhas imensas onde todos viriam buscar a sua ração de caldo, de
pão e de legumes.
Não
contestamos essas vantagens. Sabemos que a humanidade realizou
economias em combustível e em trabalho, renunciando primeiro ao
moinho a braço e depois ao forno onde outrora cada um cozia o seu
pão. Seria mais econômico fazer o caldo para cem famílias duma vez
em lugar de acender cem fornalhas separadas. Sabemos que há mil
modos de preparar batatas, mas que cozidas numa panela só para cem
famílias não seriam piores.
Compreendemos
finalmente que a variedade da cozinha consiste principalmente no
caráter individual, do modo de temperar de cada dona de casa; a
cozedura em comum dum quintal de batatas impede as donas de casa de
as temperar cada uma a seu gosto. E sabemos que com o caldo gordo se
podem fazer cem sopas diferentes para satisfazer cem gostos diversos.
Mas
afirmamos que ninguém tem o direito de obrigar a dona de casa a
tomar no armazém comunal batatas já cozidas, se prefere cozê-las
ela mesma na sua marmita e no “seu” fogo.
Hão
de surgir, de certo, grandes cozinhas em lugar dos restaurantes onde
hoje envenenam a gente. E desde que a cozinha comum deixe de ser um
lugar de fraude, de falsificação e de envenenamento, virá o hábito
de ir a essas casas para trazer prontas as partes fundamentais da
refeição. Mas fazer disso uma lei seria repugnante.
Quem
terá direito aos gêneros da Comuna? Responda cada cidade por si, e
estamos persuadidos que todas as respostas serão ditas pelo
sentimento da justiça. Enquanto os trabalhos não estiverem
organizados e se estiver num período de efervescência, e for
impossível discernir entre o vagabundo ocioso e o sem trabalho
involuntário, os gêneros disponíveis devem ser para todos sem
exceção. Os que tiverem resistido com armas, na mão à vitória
popular ou conspirado contra ela, terão o cuidado eles mesmos de
livrar da sua presença o território insurgido. Mas parece-nos que o
povo, sempre magnânimo e inimigo de represálias, repartirá o pão
com todos os que tiverem permanecido no seu seio, ou sejam
expropriantes ou expropriados. Inspirando-se nesta ideia, a Revolução
nada terá perdido; e quando o trabalho tiver continuado, ver-se-ão
os combatentes da véspera encontrarem-se no mesmo atelier.
“Mas
os víveres faltarão no fim dum mês”, exclamam já os críticos.
Tanto
melhor, respondemos nós, isso provará que pela primeira vez na vida
o proletário terá comido à sua vontade. Quanto aos meios de
substituir o que tiver sido consumido, é precisamente a questão que
vamos abordar.
V
Com
efeito, por que meios pode prover à sua subsistência uma cidade em
plena revolução social?
Responderemos
a esta pergunta; mas evidentemente os processos a que se recorrer
dependerão do caráter da revolução nas províncias, como dentro
das nações vizinhas. Se toda a nação, ou ainda melhor toda a
Europa, pudesse fazer a revolução social duma vez só, e lançar-se
em pleno comunismo, agir-se-ia em consequência. Mas se na Europa
somente algumas comunas fazem o ensaio do comunismo, será preciso
escolher outros processos. Tal situação, tais meios.
Eis-nos
pois levados, antes de ir mais longe, a lançar um golpe de vista
sobre a Europa e, sem pretender ser profeta, devemos ver qual seria a
marcha da Revolução, ao menos nos seus traços essenciais.
É
certo muito a desejar que toda a Europa se subleve ao mesmo tempo,
que por toda a parte se exproprie e que por toda a parte se inspirem
nos princípios comunistas. Um tal levantamento facilitaria
singularmente a tarefa do nosso século.
Mas
tudo leva a crer que assim não sucederá. Que a revolução abrace a
Europa, não duvidamos. Se uma das quatro grandes capitais do
continente – Paris, Viena, Bruxelas ou Berlim – se levanta e
derruba o seu governo, é quase certo que as três outras farão o
mesmo com intervalo de algumas semanas. É também muito provável
que nas penínsulas e mesmo em Londres e Petersburgo a revolução
não se fará esperar. Mas o caráter será o mesmo em toda a parte?
- Pode-se duvidar.
É
mais que provável que haverá por toda a parte atos de expropriação
em maior ou menor escala e esses atos praticados por uma grande nação
europeia exercerão a sua influência em toas as outras. Mas os
inícios da revolução oferecerão grandes diferenças locais e o
seu desenvolvimento não será sempre idêntico nos diversos países.
Quanto
a tomas em todas as nações europeias um caráter francamente
socialista, principalmente no começo, é também duvidoso.
Lembremo-nos que a Alemanha está ainda em pleno império unitário e
que os seus partidos avançados sonham com a república de 1848 e com
“a organização do trabalho” de Louis Blanc, e o povo francês
quer pelo menos a Comuna livre, se não poder ser a Comuna comunista.
Sem
ligar a estas previsões mais importância do que elas merecem,
podemos delas concluir que: A Revolução tomará um caráter
diferente nas diversas nações da Europa; o nível atingido
relativamente à socialização dos produtos não será o mesmo.
Segue-se
daí que as nações mais avançadas devem medir seus passos pelas
nações atrasadas, como algumas vezes se disse? Esperar que a
revolução comunista tenha amadurecido em todas as nações
civilizadas? Não evidentemente! Se o quisessem, seria além disso
impossível: a história não espera pelos retardatários.
Por
outro lado não acreditamos que num só e mesmo país a revolução
se faça com a unanimidade sonhada por alguns socialistas. É
provável que se uma das cinco ou seis grandes cidades de França –
Paris, Lyon, Marselha, Tille, St. Etienne, Bordeaux – proclama a
Comuna, as outras seguirão o seu exemplo e que o mesmo farão as
outras cidades menos populosas, como provavelmente várias bacias
mineiras e diversos centros industriais, não tardarão a licenciar
os seus patrões e constituir-se em agrupamentos livres.
VI
Mas
voltemos à nossa cidade de revolta e vejamos em que condições
deverá prover à sua sustentação.
Onde
tomar os gêneros necessários, se a nação inteira ainda não
aceitou o comunismo? Tal é a questão que está posta.
Tomemos
uma grande cidade francesa, a capital, se quiserem. Paris consome por
ano milhões de quintais de cereais, 350.000 bois e vacas, 200.000
bezerros, 300.000 porcos e mais de dois milhões de carneiros, sem
contar os animais abatidos particularmente. Precisa mais oito milhões
de quilos de manteiga e 172 milhões de ovos e tudo mais nas mesmas
proporções.
As
farinhas e os cereais chegam da Rússia, da Hungria, da Itália, do
Egito, das Índias e dos Estados Unidos. O gado é trazido da
Alemanha, Itália e da Espanha. Quanto à especiaria, não há um
país no mundo que não dê a sua contribuição. Vejamos primeiro
como se poderiam arranjar para suprir Paris, ou qualquer grande
cidade, produtos que se cultivam nos campos franceses e que os
agricultores franceses nada demandam melhor do que entregá-los ao
consumo.
Para
os autoritários a questão não apresenta dificuldade. Começariam
por implantar um governo fortemente centralizado, armado com todos os
órgãos de coação: polícia, tropas, guilhotina. Esse governo
mandaria fazer a estatística de tudo o que se colhe em França;
dividiria o país num certo número de zonas de alimentação e
“ordenaria” que certos gêneros, em tal quantidade, fossem
transportados a tal lugar, entregues tal dia, em tal estação,
recebidos tal dia por tal funcionário, armazenados em tal armazém e
assim sucessivamente.
Ora
bem, nós afirmamos com plena convicção que não só uma tal
solução não seria para desejar; mas que por outro lado nunca
poderia ser posta em prática. É pura utopia.
Pode-se
fantasiar um tal estado de coisas com a pena na mão; mas na prática
torna-se materialmente impossível; seria preciso não contar com o
espírito de independência da humanidade. Seria a insurreição
geral: três ou quatro Vendeas em lugar duma, a guerra das aldeias
contra as cidades, a França inteira insurgida contra a cidade que
ousasse impor esse regime.
Basta
de utopias jacobinas!
Vejamos
se se pode organizar a Revolução doutro modo.
Em
1793 o “Campo” reduziu as grandes cidades à fome e matou a
revolução. Entretanto está provado que a produção dos cereais em
França não tinha diminuído em 1792-93; até tudo leva a crer que
tinha aumentado. Mas, depois de tomar posse de boa parte das terras
senhoriais, depois de terem feito a colheita nessas terras, os
burgueses lavradores não quiseram vender o trigo por vale.
Guardaram-no à espera da alta dos preços ou da moeda de ouro. E nem
as medidas mais rigorosas dos convencionais para “forçar” os
açambarcadores a venderem o trigo nem às execuções venceram a
“greve”. Entretanto sabe-se que os comissários da Convenção
não se ensaiavam para guilhotinar os açambarcadores, nem o povo
para os pendurar nos lampiões; entretanto o trigo ficava nos
armazéns e o povo das cidades passava fome.
Mas
que ofereciam aos cultivadores dos campos em troca de seus rudes
trabalhos? “Assinados!” Farrapos de papel, cujo valor caía todos
os dias, bilhetes levando quinhentas libras em caracteres impressos,
mas sem valor real. Com um bilhete de mil libras já se não comprava
um par de botas; e o camponês – compreende-se – não tinha
vontade nenhuma de trocar um ano de trabalho por um bocado de papel
com que não podia comprar nem uma blusa.
E
enquanto oferecem ao trabalhador da terra um pedaço de papel sem
valor – ou se chame “assinado” ou “bond” de trabalho –
será a mesma coisa. Os gêneros ficarão no campo: a cidade não os
terá, ainda que recorram de novo a guilhotina ou ao afogamento.
O
que é preciso oferecer ao camponês não é papel, mas a mercadoria
que lhe é imediatamente precisa. É a máquina de que ele se priva
agora com desgosto; é o vestuário para se garantir das intempéries;
é a lâmpada e o petróleo, que substituem a candeia; a enxada, o
ancinho, a charrua; é enfim tudo o que o camponês não pode comprar
em vista do seu elevado preço.
Que
a cidade fabrique todas essas coisas; em lugar de bugigangas e
bijuterias para as mulheres, em vez de esperar que os ingleses no-las
mandem em troca de nossos vinhos.
Que
a cidade mande às aldeias, em vez de comissários portadores de
decretos intimando os lavradores a entregarem os seus produtos,
amigos e irmãos, oferecendo-lhes os produtos manufaturados que
precisarem e que existirem nos seus armazéns. E então o camponês
guardando o que precisa para si, enviará o remanescente aos
trabalhadores da cidade, em quem verá “pela primeira vez na
história”, irmãos e não exploradores.
Talvez
nos digam que isso exige uma transformação completa da indústria.
Certamente sim para certos ramos, mas há mil outros que se poderão
modificar rapidamente de modo a fornecer aos camponeses o vestuário,
o relógio, o mobiliário, os utensílios e as máquinas simples que
a cidade lhes pagar tão caro neste momento.
Tecelões,
alfaiates, sapateiros, quinquilheiros, marceneiros e muitos outros
não acharão dificuldade em deixar a produção de luxo pelo
trabalho de utilidade, uma vez convencidos da utilidade desta
transformação como um ato de justiça.
VII
Dissemos
que todas as grandes cidades compram pão, farinha, carne, não só
nos departamentos, mais ainda no exterior. O estrangeiro manda a
Paris as especiarias, o peixe e os comestíveis de luxo, quantidades
consideráveis de trigo e de carne.
Mas
em revolução não se deve contar com o estrangeiro ou contar o
menos possível. Se o trigo russo, o arroz da Itália ou das Índias
e as vinhas da Espanha ou da Hungria afluem hoje aos mercados da
Europa ocidental, não é porque os países expedidores os possuíam
em demasia ou que esses produtos aí se criem espontâneos como a
chicória nos prados. Na Rússia por exemplo o camponês trabalha até
16 horas por dia e jejua de três a seis meses por ano para exportar
o trigo, com que paga ao senhor e ao Estado. Hoje a polícia aparece
nas aldeias russas logo que a colheita está feita e vende a última
vaca, o último cavalo do agricultor por dívidas atrasadas de
impostos e de rendas dos senhores, quando o camponês não se resolve
às boas, vendendo o trigo aos exportadores. Assim guarda
simplesmente trigo para nove meses, a fim de não ver sua vaca
vendida por quinze francos. Para viver até a colheita próxima, três
meses quando o ano é bom, seis quando é mau, mistura à sua farinha
diversas porcarias, enquanto em Londres saboreiam os biscoitos feitos
com a sua farinha.
Mas
chegando a revolução, o cultivador russo guardará o pão para si e
seus filhos. Os camponeses húngaros e italianos farão o mesmo. O
hindu aproveitará os bons exemplos e os trabalhadores de
“Bonanza-farms” na América, a menos que esses domínios não
estejam já desorganizados pela crise. Portanto será conveniente não
contar mais com as entradas de trigo e de milho vindos do exterior.
Sendo
toda a nossa civilização burguesa baseada na exploração das raças
inferiores, o primeiro benefício da revolução será já ameaçar
esta “civilização”, permitindo às raças chamadas inferiores
emanciparem-se. Mas este imenso benefício traduzir-se-á por uma
diminuição certa e considerável da entrada dos gêneros que afluem
às grandes cidades do Ocidente.
Quanto
ao interior é mais difícil prevenir a marcha dos negócios. Por um
lado o cultivador aproveitará a Revolução para endireitar as
costas curvadas sobre a terra. Em lugar de quatorze a dezesseis horas
que agora trabalha, terá motivo para não trabalhar senão metade, o
que poderá ter como consequência a diminuição da produção dos
gêneros principais, trigo e carne.
Mas
por outro lado haverá aumento de produção desde que o cultivador
deixe de ser obrigado a trabalhar para sustentar os ociosos. Novos
tratos de terreno serão desbravados; máquinas mais perfeitas serão
empregadas. “Nunca o trabalho foi tão vigoroso como em 1792”
quando os trabalhadores retomaram a terra, tão longamente desejada,
aos seus senhores – diz Michelet falando da grande Revolução.
Dentro
em pouco a cultura intensiva se tornará acessível a todos os
trabalhadores, quando a máquina aperfeiçoada e os adubos químicos
e outros forem postos ao alcance da comunidade. Mas tudo leva a crer
que no começo poderá haver diminuição na produção agrícola em
França, assim como noutros lugares.
Em
todo caso, o mais acertado seria contar com uma diminuição de
entradas, tanto do interior quanto de exterior.
Como
suprir esse vácuo?
Por
Deus! Tratar cada um de o preencher por si mesmo. Não vale procurar
meio dia às 14 horas, quando a solução é simples.
Cumpre
que as grandes cidades cultivem a terra, tal qual como fazem os
campos; cumpre voltar ao que a biologia chamaria “integração das
funções”.
“Depois
de ter dividido o trabalho, é preciso integrar”: é a marcha
seguida em toda a natureza.
Além
disso, filosofia à parte – a isso seremos levados pela força das
coisas. Que Paris compreenda que ao cabo de oito meses vai
encontrar-se sem trigo – e Paris o cultivará.
Terra?
Isso não falta. É principalmente em torno das grandes cidades – e
sobretudo de Paris, que se agrupam os parques e gramados dos
senhores, os milhões de hectares, que não esperam senão o trabalho
inteligente do lavrador para rodear Paris de plainos férteis
produtivos de diversos modos que as charnecas cobertas de húmus, mas
queimadas pelo sol, do meio dia da Rússia.
Braços?
Mas em que quereis que se ocupem os dois milhões de parisienses,
homens e mulheres, quando não tiverem que vestir e divertir os
príncipes russos, os boyardos romanos e as damas da finança de
Berlim.
Tendo
todos os aperfeiçoamentos modernos, tendo o espírito organizador do
povo de Paris, a sua alegria de corações, a sua boa disposição, a
agricultura da Comuna anarquista de Paris será muito diversa da dos
cavadores da Ardenne.
A
terra amadurecida e enriquecida só espera os cuidados inteligentes
do homem, e mais ainda da mulher, para se vestir de plantas bem
cuidadas, que se renovam três, quatro vezes por ano. Homens,
mulheres e crianças sentir-se-iam felizes de se aplicarem a esse
trabalho dos campos, que deixará de ser um trabalho forçado, para
se tornar um prazer, uma festa, uma renovação do ser humano.
“Não
há terras estéreis. A terra vale o que vale o homem”. Eis a
última palavra do agricultor moderno: é só pedir-lho
inteligentemente.
A HABITAÇÃO
I
Há
um fato certo: nas grandes cidades de França e em muitas das
pequenas os trabalhadores vão chegando pouco a pouco à conclusão
que as casas habitadas não são, de modo nenhum, propriedade
daqueles que o Estado reconhece como seus proprietários.
É
uma evolução que se completa nos espíritos e já ninguém fará o
povo crer que o direito de propriedade sobre as casas seja justo.
A
casa não foi construída pelo proprietário; foi construída,
decorada, atapetada por centenas de trabalhadores que a fome atirou
aos andaimes, que a necessidade obrigou a aceitar um trabalho
cerceado.
O
dinheiro despendido pelo pretendido proprietário não era um produto
do seu próprio trabalho. Tinha-o acumulado, como todas as riquezas,
pagando aos trabalhadores dois terços ou só metade do que lhes era
devido.
Enfim,
e é aqui sobretudo que a enormidade salta aos olhos. – A casa deve
o seu valor atual ao proveito que o proprietário poder tirar dela.
Ora, esse proveito será devido à circunstância que a propriedade
está edificada numa cidade calçada, iluminada a gás, sem
comunicação regular com outras cidades e reunindo no seu seio
estabelecimentos de indústria, de comércio, de ciência, de arte;
que está cidade é ornada de pontes, de cais, de monumentos de
arquitetura, oferecendo aos habitantes mil confortos e mil agrados
desconhecidos nas aldeias; que vinte, trinta gerações tem
trabalhado para a tornar habitável, saneá-la e embelezá-la.
O
valor duma casa em certos bairros de Paris é um milhão, não que
nas suas paredes tenha um milhão de trabalho, mas porque está em
Paris; porque desde séculos, os obreiros, os artistas, os
pensadores, os sábios e os literatos têm contribuído para fazer
Paris o que ela é hoje: um centro industrial, comercial, político,
artístico e científico: porque tem um passado; porque as suas ruas
são conhecidas graças à literatura, na província como no
estrangeiro; porque é produto dum trabalho de dezoito séculos, de
cinquenta gerações, de toda a nação francesa.
Quem,
pois, tem o direito de se apropriar da mais ínfima parcela desse
terreno ou da última das construções, sem cometer uma clamorosa
injustiça?
Quem
tem o direito de vender, seja a quem for, a menor parcela do
patrimônio comum?
Sobre
isso, dizemos nós, estabeleceu-se o acordo entre os trabalhadores. A
ideia do alojamento gratuito bem se manifestou durante o cerco de
Paris, quando se pedia a restituição pura e simples dos vencimentos
reclamados pelos proprietários. Manifestou-se também durante a
Comuna de 1871, quando Paris obreiro esperava do Conselho da Comuna
uma decisão viril sobre a abolição dos aluguéis. Será ainda a
primeira preocupação do pobre quando a Revolução tiver rebentado.
Com
revolução ou sem ela o trabalhador precisa de um abrigo, dum
alojamento, mas mesmo mau, mesmo insalubre, há sempre um
proprietário que pode expulsar-vos de lá. É verdade que em
revolução ele não achará oficial de justiça para vos pôr os
trastes na rua, mas quem sabe se amanhã o novo governo, por mais
revolucionário que pretenda ser, não reconstituirá a força e não
lançará contra vós a pressão judicial! Já se viu a Comuna
adiando os vencimentos até 1 de abril somente! Depois disso seria
preciso pagar, mesmo estando Paris silenciosa com a indústria parada
e o revolucionário sem outro recurso além dos seus trinta soldos!
Entretanto
é preciso que o trabalhador saiba que não pagando ao proprietário
não aproveita só duma desorganização do poder, mas que a
gratuidade do alojamento está reconhecida em princípios e
sancionada, por assim dizer, pelo consenso popular que é um direto
altamente proclamado pelo povo.
Ora
bem, iremos nós esperar que esta medida correspondendo tão bem ao
sentimento de justiça de todo homem honesto, será adotada pelos
socialistas que se acharem misturados com os burgueses, num governo
provisório? Esperaríamos muito tempo, até à volta da reação!
Eis porque os revolucionários sinceros trabalharão com o povo para
que a expropriação das casas se torne um fato consumado.
No
dia em que a expropriação das casas estiver feita, o explorado e o
trabalhador compreenderão que novos tempos são chegados, que não
estarão mais, de espinha curvada, diante dos ricos e poderosos, que
a igualdade se afirmou à grande luz, que a Revolução é um fato
consumado e não um lance de teatro como já demasiado se tem visto.
II
Se
a ideia da expropriação se tornar popular, a sua execução não
esbarrará de modo algum nos obstáculos invencíveis com que gostam
de nos ameaçar.
É
certo que os senhores agaloados que tiverem ocupado as cadeiras vagas
dos ministérios e do Hotel de Ville não deixarão de acumular
obstáculos. Falarão de conceder indenização aos proprietários,
de formar estatísticas, de elaborar longos relatórios, - tão
longos que poderiam durar até ao momento em que o povo, esmagado
pela miséria do desemprego, não vendo vir nada e perdendo a fé na
Revolução, deixaria o campo livre aos reacionários e acabaria por
se tornar a expropriação burocrática odiosa a todo o mundo.
Há
aí, com efeito, um escolho sobre o qual tudo poderia afundar-se. Mas
se o povo não der ouvido aos falsos argumentos com que procurarem
iludi-lo; se compreender que vida nova requer processos novos, e se
ele mesmo tomar a tarefa, nas suas mãos, então a expropriação
poderá fazer-se sem grandes dificuldades.
“Mas
como? Como poderá fazer-se?”, perguntar-nos-ão. Vamos dizê-lo,
mas com uma reserva. Repugna-nos traçar nos seus menores detalhes
planos de expropriação. Sabemos antecipadamente que tudo o que um
homem ou um grupo podem sugerir hoje, será excedido pela vida
humana.
Assim,
esboçando o método segundo o qual a expropriação e a repartição
das riquezas expropriadas “poderia” fazer-se sem a intervenção
do governo, não queremos senão responder aos que declaram a coisa
impossível. Mas queremos lembrar que de nenhum modo pretendemos
preconizar tal ou tal maneira de se organizar. O que somente nos
importa é demonstrar que a expropriação “pode” fazer-se pela
iniciativa popular e “não pode” fazer-se doutro modo.
É
de prever que desde os primeiros atos de a expropriação surgirão
no bairro, na rua ou agregado de casas, grupos de cidadãos de boa
vontade, que virão oferecer os seus serviços, para se informarem do
número de apartamentos vazios, dos apartamentos atulhados de
famílias numerosas, dos alojamentos insalubres e das casas que,
demasiado espaçosas para os seus ocupantes, poderiam ser ocupadas
por aqueles que não tem ar nas suas mansardas. Em alguns dias esses
voluntários espalharão pela rua, pelo bairro, listas completas de
todos os apartamentos, salubres e insalubres, estreitos e largos,
alojamentos infectos e moradas suntuosas.
Comunicarão
livremente entre si e as suas listas e em poucos dias terão
estatísticas completas. A estatística mentirosa pode-se fabricar em
repartições, a estatística verdadeira, exata, não pode vir senão
do indivíduo, subindo do simples ao composto.
Então,
sem esperar coisa alguma de ninguém, esses cidadãos irão
provavelmente encontrar os seus camaradas que habitam espeluncas e
lhes dirão mui simplesmente: “Desta vez, camaradas, é a revolução
a valer. Venham esta tarde a tal sítio. Todo o bairro lá estará,
repartiremos os apartamentos de cinco divisões que estão devolutos.
E logo que estiverdes ‘em casa’, será negócio feito. O povo
armado responderá a quem quiser desolar-nos”.
Dirão:
“Mas todos hão de querer um apartamento de vinte divisões!”.
Pois
bem, não, não é verdade! O povo nunca quis abraçar o céu com as
mãos ambas. Pelo contrário, cada vez que vemos iguais tendo uma
injustiça a reparar, somos levados a admirar o bom senso e a justiça
que animam a coletividade. Viu-se alguma vez reclamar o impossível?
Alguém viu o povo de Paris brigar quando ia buscar a sua ração de
pão ou de lenha durante os dois cercos?
Há
certamente bastantes instintos egoístas nos indivíduos isolados das
nossas sociedades, bem o sabemos, mas também sabemos que o melhor
meio de despertar e de alimentar esses instintos seria confiar a
questão dos alojamentos a uma repartição qualquer. A menor
desigualdade faria soltar altos gritos; a menor vantagem dada a
alguém faria protestos veementes.
Mas
quando o próprio povo reunido por bairros, quarteirões e ruas se
encarregue de acomodar os habitantes das choças nos apartamentos
demasiado espaçosos dos burgueses, os pequenos inconvenientes, as
pequenas desigualdades serão ligeiramente compensadas. Apesar de
tudo haverá provavelmente injustiças impossíveis de evitar. Há
indivíduos nas nossas sociedades que nenhum grande acontecimento
fará sair da sua rotina egoísta. Mas a questão não é de saber se
haverá injustiças ou não, mas sim de saber como se poderá limitar
o seu número. Pois bem, toda a história, toda a experiência da
humanidade, assim como a psicologia das sociedades atestam que o meio
mais equitativo é entregar a questão aos interessados.
III
Além
disso, não se trataria de modo algum de fazer uma partilha
absolutamente igual dos alojamentos, mas os inconvenientes que certas
famílias teriam ainda de suportar seriam facilmente reparados numa
sociedade em via de expropriação.
Contanto
que os pedreiros, os canteiros – de “edificação” em uma
palavra – saibam que tem a sua existência assegurada, eles não
pedirão mais do que retomar por algumas horas por dia o trabalho a
que estão habituados. Eles aceitarão doutro modo os grandes
apartamentos que exigiriam um estado-maior de criados. E dentro de
alguns meses, terão surgido casas mais salubres do que as atuais. A
Comuna anarquista poderá dizer: “Esperem com paciência,
camaradas. Palácios salubres, confortáveis e belos, superiores aos
que eram edificados pelos capitalistas vão levantar-se sobre o solo
da cidade livre e serão de quem precisar mais deles”.
A
expropriação das casas traz consigo, em germe, toda a revolução
social. De como se fizer dependerá o caráter dos acontecimentos. Ou
abrimos um caminho ao comunismo anarquista ou ficaremos a patinar na
lama do individualismo autoritário.
É
fácil prever as objeções que nos vão fazer: “Não é infame,
exclamarão, que os parisienses se apoderem para si das belas casas e
deixarem as cabanas aos camponeses?” Esses partidários acérrimos
da justiça esquecem a clamorosa desigualdade de que se fazem
defensores. Esquecem que mesmo em Paris o trabalhador sufoca numa
pocilga com sua mulher e filhos, enquanto da sua janela está a ver o
palácio do rico. Esquecem que as gerações inteiras morrem em
bairros entupidos, sem ar nem sol.
Não
nos demoremos nessas reclamações interesseiras. Sabemos que a
desigualdade que realmente existe ainda entre Paris e a aldeia é
daquelas que diminuem todos os dias; a aldeia não deixará de ter
alojamentos mais salubres que os de hoje, quando o camponês tiver
deixado de ser besta de carga do fazendeiro, do fabricante, do
usuário e do Estado.
As
objeções que se dizem práticas também não são mais fortes.
Dizem-nos
“aí está um pobre-diabo, que à força de privações chegou a
comprar uma casa bastante grande para alojar a sua família. Aí ele
é tão feliz! Também o atirais à rua?”.
De
certo que não! Se a sua casa chega apenas para alojar a sua família,
que a habite, por Deus! Que cultivem o jardim debaixo das suas
janelas! Os nossos rapazes, se for preciso, até lhe darão uma
ajuda. Mas se tem na sua casa um apartamento que aluga a um terceiro,
o povo irá ter com esse terceiro e dir-lhe-á “Sabe, camarada, que
não deve mais nada ao velho? Deixe-se estar no seu apartamento e não
pague mais nada, desde agora não tenha medo do oficial de justiça,
é Social!”.
E
se o proprietário ocupa só por si vinte quartos e há no bairro uma
mãe com cinco filhos, alojados num quarto só, então o povo irá
ver se dos vinte quartos não há alguns que, mediante algumas
reparações, poderiam fazer um bom alojamentozinho para essa mãe de
cinco filhos. Não será isto mais justo do que deixar a mãe e os
cinco pequenos jazer no cubículo e o senhor a engordar no castelo?
Demais o senhor acostumar-se-á bem depressa a isso; quando lhe
faltarem as criadas para arrumarem os vinte quartos, sua burguesia
ficará encantada por se desembaraçar do seu apartamento.
“Mas
será uma desordem completa”, vão exclamar os defensores da
“ordem”. “Serão mudanças que não terão fim! Seria melhor
por toda a gente na rua e tirar os apartamentos à sorte!”.
Pois
bem, estamos convencidos que se nenhuma espécie de governo se
metesse nisso e toda a transformação fosse confiada às mãos dos
grupos surgidos espontaneamente para este serviço, as mudanças
seriam menos numerosas do que as que se fazem em um ano em
consequência da rapacidade dos proprietários.
Há
em todas as cidades consideráveis tão grande número de
apartamentos vagos que quase chegariam para alojar a maior parte dos
habitantes dos cubículos. Quanto aos palácios e aos apartamentos
suntuosos, muitas famílias obreiras nem mesmo os quereriam: não se
podem aproveitar senão com uma numerosa criadagem. Assim os seus
ocupantes ver-se-iam, em breve, obrigados a procurar habitações
menos luxuosas, ou as senhoras banqueiras teriam elas mesmas de fazer
a comida.
Assim,
pouco a pouco, sem desordem nem espalhafato, a população se
repartiria amigavelmente nos alojamentos existentes.
Demais
toda a revolução implica um certo desarranjo da vida cotidiana e os
que esperam atravessar uma grande crise sem que sua burguesia seja
estorvada nas suas comodidades, arriscam-se a um desapontamento.
Pode-se mudar de governo sem que jamais ao bom burguês falte a hora
do seu jantar, mas não se reparam assim os crimes duma sociedade
contra os que a sustentam.
O
povo pode cometer erros sobre erros, quando se trata de escolher os
seus representantes, mas tratando-se de organizar o que ele conhece e
lhe toca diretamente, faz melhor serviço que todas as secretarias
possíveis.
O VESTUÁRIO
I
Se
as casas são consideradas como patrimônio comum da cidade e se se
procede ao arraçoamento dos gêneros, se é obrigado a dar um passo
mais além. Temos necessariamente de considerar a questão do
vestuário; e a única solução possível será ainda tomar posse,
em nome do povo, de todo os armazéns de roupas e de abrir as suas
portas a todos, a fim de cada um tomar o que lhe é preciso. Por em
comum os vestuários e o direito para cada um adquirir nos armazéns
comuns o que precisam ou pedi-lo aos atelieres de confecção é uma
solução que se impõe, desde que o princípio comunista houver sido
aplicado às casas e aos produtos.
É
claro que não despojaremos todos os cidadãos dos seus paletós, de
pôr todas as roupas num monte para as atirar à sorte, como dizem os
nossos críticos. Cada um guardará o seu paletó se tem um e mesmo
que tenha dez, é muito provável que ninguém pretenda tirar-lhos.
Preferirão um fato novo aqueles que o burguês terá já ostentado
no seu corpo e há de haver bastantes roupas novas para não
requisitar os velhos guarda-roupas.
Se
fizermos a estatística dos vestuários acumulados nos armazéns das
grandes cidades, veremos provavelmente que em Paris, Lyon, Bordeaux,
e Marselha se encontram bastantes para que a Comuna possa oferecer um
vestuário a cada cidadão e a cada cidadã. Além disso, se todo o
mundo deixasse de os achar a seu gosto, os atelieres comunais
depressa preencheriam as lacunas. Sabe-se com que rapidez trabalham
hoje os nossos atelieres de confecção providos de máquinas
aperfeiçoadas e organizadas para produzirem em larga escala.
– “Mas
todo o mundo há de querer uma pelica em zibelina e cada mulher
pedirá um vestido de veludo!” exclamarão os nossos adversários.
Francamente
não acreditamos.
Nem
todo mundo prefere o veludo ou sonha numa pelica de zibelina. Se hoje
mesmo propusessem às parisienses escolher cada um seu vestido,
haveria muito quem preferisse um vestido simples a todos os enfeites
fantasistas das nossas mundanas.
Os
gostos variam como as épocas e aquele que estiver de cima no momento
da revolução será certamente um gosto de simplicidade. A
sociedade, como os indivíduos, tem as suas horas de cobardia, mas
também tem seus minutos de heroísmo. Por miserável que seja quando
se rebaixa, como agora, em busca de interesses mesquinhos e
estupidamente pessoais, ela tem seus momentos de nobreza. Os homens
de coração adquirirem o ascendente que hoje é próprio de gente
interesseira. As dedicações demonstram-se, os grandes exemplos são
imitados; só os egoístas sentem-se envergonhados de ficar para trás
e, de boa má vontade, apressam-se em fazer coro com os generosos e
os valentes.
Não
queremos exagerar o papel destas belas paixões e não é sobre elas
que fundamos o nosso ideal de sociedade. Mas não exageremos se
admitimos que nos ajudarão a atravessar os primeiros momentos, os
mais difíceis. Não podemos contar com a continuidade destas
devotações na vida cotidiana; mas podemos esperá-las nos
ocorrentes, – e é quando é preciso. É precisamente no momento em
que se precisa desbravar o terreno, limpar a imundice acumulada em
séculos de opressão e de escravatura que a sociedade anarquista
terá necessidades desses lances de fraternidade.
Além
disso, se a revolução se fizer no sentido de que falamos, a livre
iniciativa achará um vasto campo de ação para evitar as investidas
dos egoístas. Em cada rua, em cada quarteirão poderão surgir
grupos de se encarregarem de prover ao vestuário. Farão o
inventário do que possui a cidade revoltada e conhecerão muito
aproximadamente que recursos possui neste gênero.
Não
podendo oferecer a cada cidadão uma pelica em zibelina e a cada
cidadã um vestido de veludo, a sociedade distinguirá provavelmente
entre o supérfluo e o necessário.
Mas
dirão; “é o nivelamento! O hábito cinzento do frade! É o
desaparecimento de todos os objetos de arte, de tudo o que embeleza a
vida!”.
Não,
certamente, e baseando-nos sobre o que há existe, vamos já
demonstrar como uma sociedade anarquista poderia satisfazer os gostos
mais artísticos dos seus cidadãos sem por isso lhes conceder
fortunas de milionários.
AS VIAS E OS MEIOS
I
Que
uma sociedade, cidade ou território assegure a todos os seus
habitantes o necessário (e nós vamos ver como a concepção do
necessário poderá apoderar-se de tudo que é indispensável para
produzir, isto é, da terra, das máquinas, das oficinas, dos meios
de transporte, etc). Não deixará de expropriar os detentores atuais
do capital para o entregar à comunidade.
Com
efeito, o que se lança em rosto à organização burguesa não é só
o capitalista açambarcar uma grande parte dos benefícios de cada
empresa industrial e comercial, permitindo-lhe que viva sem
trabalhar; a principal queixa, como já notamos, é que toda a
produção tomou uma direção absolutamente falsa, visto que não se
faz no intuito de assegurar o bem-estar de todos; está nisso a sua
condenação.
Tirando
proveito da revolução operada na indústria pelo vapor, o
desenvolvimento súbito da química e da mecânica e nas invenções
do século, o capitalismo aplicou-se, no seu próprio interesse, a
aumentar o rendimento do trabalho humano e conseguiu-o numa muito
grande medida. Mas dar-lhe outra missão seria desarrazoado.
Agora
compete à sociedade generalizar esta produtividade superior,
limitada hoje a certas indústrias, e aplicá-las no interesse de
todos. Mas é evidente que para garantir a todos o bem-estar, a
sociedade deve retomar posse de todos os meios de produção.
Os
economistas nos lembrarão sem dúvida, – e gostam de o lembrar –
o bem-estar relativo de uma certa categoria de jovens obreiros,
robustos, hábeis em certos ramos especiais da indústria. É sempre
esta minoria que nós apontamos com orgulho. Mas mesmo esse
bem-estar, de alguns, estar-lhes assegurado? Amanhã, a incúria, a
imprevidência ou a avidez de seus patrões pode atirar estes
privilegiados à rua e estes pagarão então com meses ou anos de
mal-estar ou de miséria o período de bem-estar de que tinham
gozado. Que de indústrias maiores (estojos, ferro, açúcar etc.)
sem falar das indústrias efêmeras, não temos nós visto estacionar
e desfalecer, ora em resultado de especulações, ora em consequência
dos deslocamentos naturais do trabalho, ora finalmente por efeito da
concorrência, suscitada pelos próprios capitalistas! Todas as
indústrias principais da tecelagem e da mecânica passaram
recentemente por esta crise, que dizer então daquelas, cujo caráter
distintivo é da periodicidade da falta de trabalho!
Que
dizer ainda do preço que custa o bem-estar relativo de algumas
categorias de obreiros? Porque é bem pela ruína da agricultura,
pela exploração descarada do camponês e pela miséria das massas
que se obtém. Em face dessa franca minoria de trabalhadores gozando
dum certo bem-estar, quantos milhões de seres humanos vivem dia a
dia sem salário certo, prontos a dirigir-se onde os chamarem;
quantos camponeses trabalham quatorze horas por dia por uma pitança
medíocre! O capital despovoa o campo, explora as colônias e os
países onde a indústria está pouco desenvolvida; condena a imensa
maioria dos obreiros a ficarem sem educação técnica, medíocres
mesmo no seu ofício. O estado florescente duma indústria compra-se
constantemente pela ruína de dez outras.
E
não é um acidente; é uma necessidade do regime capitalista. Para
estar no caso de retribuir algumas categorias de obreiros, é preciso
que o camponês seja a besta de carga da sociedade; é preciso que o
campo fique deserto em favor da cidade; é preciso que os pequenos se
aglomerem nos arrabaldes infectos das grandes cidades e fabriquem
quase por nada os mil objetos de pequeno valor que põem os produtos
da grande manufatura ao alcance dos compradores de salário medíocre:
para que o pano ruim possa gastar-se vestindo trabalhadores pagos
pobremente, é preciso que o alfaiate se contente com um salário de
matar fome. É preciso que os países atrasados do Oriente sejam
explorados pelos do Ocidente, para que, em certas indústrias
privilegiadas o trabalhador tenha, sob o regime capitalista, uma
espécie de bem-estar limitado.
O
mal da atual organização não está, pois, em que o lucro da
produção passe ao capitalista, como tinham dito Rodbertus e Marx
estreitando assim a concepção social e as vistas de conjunto sobre
o regime do capital. O lucro não é mesmo senão uma consequência
de causas mais profundas. O mal está em que pode haver um lucro
qualquer em lugar dum simples excesso não consumido por cada
geração. Para haver lucro é preciso que homens, mulheres e
crianças sejam obrigados pela fome a vender as suas forças de
trabalho por uma parte mínima do que essas forças produzem e,
sobretudo, do que são capazes de produzir.
Em
quanto o homem for obrigado a pagar um tributo ao detentor para ter o
direito de cultivar o solo ou de pôr uma máquina em movimento, e o
proprietário for livre de produzir o que lhe prometer maiores lucros
ante que a maior soma dos objetos necessários à existência, o
bem-estar não poderá ser assegurado senão temporariamente ao
pequeno número, e será comprado de cada vez pela miséria duma
parte da sociedade. Com efeito não basta distribuir em partes iguais
os benefícios que uma indústria consegue realizar, se se tem ao
mesmo tempo de explorar milhares de obreiros. Trata-se de produzir,
com a menor perda possível de força humana, a maior soma possível
dos produtos mais necessários ao bem-estar de todos.
Esta
vista em conjunto não poderia ser do domínio dum proprietário
particular. E é por isso que toda a sociedade, tomando-a como ideal,
será levada a expropriar tudo o que serve para proporcionar o
bem-estar produzindo as riquezas. Será preciso apoderar-se da terra,
das oficinas, das minas, dos meios de comunicação, etc., e além
disso, que estude o que é preciso para produzir no interesse todos,
assim como as vias e meios de produção.
II
Quantas
horas de trabalho por dia deverá o homem fornecer para assegurar à
sua família um sustento confortável, uma casa conveniente e o
vestuário indispensável? Esta pergunta tem muitas vezes preocupado
os socialistas, e eles admitem geralmente que bastariam quatro a
cinco horas por dia, contanto, bem entendido, que toda a gente
trabalhasse. No fim do século passado, Benjamin Franklin ficava-se
no limite de cinco horas! E se as necessidades de conforto aumentaram
depois, também a força de produção aumentou mais rapidamente.
Num
outro capítulo, falando da agricultura, veremos tudo o que a terra
pode dar ao homem que a cultivar razoavelmente, em lugar de atirar a
semente ao acaso num solo mal lavrado, conforme se pratica hoje. Nas
grandes fazendas do Oeste americano, que cobrem dezenas de léguas
quadradas, mas cujo terrenos é muito mais pobre do que o solo
beneficiado dos países civilizados, obtém-se apenas 12 a 18
hectolitros por hectare, isto é, metade do rendimento das fazendas
dos Estados do Leste americano. E entretanto, graças as máquinas,
que permitem a dois homens lavrar num dia dois hectares e meio, cem
homens produzem num ano o bastante para entregar em domicílio o pão
de dez mil pessoas durante um ano inteiro.
Bastaria
assim que um homem trabalhasse nas mesmas condições durante trinta
horas, ou seis meios dias de cinco horas cada um, para ter pão todo
o ano, – e trinta meios dias para assegurar uma família de cinco
pessoas.
E
provaremos também com dados tomados na prática atual, que se se
tivesse recorrido à cultura intensiva, menos de sessenta meios dias
de trabalho poderiam assegurar a toda a família o pão, a carne, os
legumes e até as frutas de luxo.
Por
outro lado, estudando o preço que custam hoje as casas operárias,
edificadas nas grandes cidades, pode-se afirmar que para ter uma
casinha separada, como se edificam para os operários, bastariam de
1.400 a 1.800 dias de trabalho de cinco horas. E como uma casa deste
gênero dura cinquenta anos pelo menos, resulta que 28 a 36 meios
dias por ano, proporcionam à família um alojamento salubre,
bastante elegante e provido de todo o conforto necessário, ao passo
que alugando o mesmo alojamento com um patrão, o obreiro paga-a por
75 a 100 dias de trabalho por ano.
Note-se
que essas cifras representam o máximo do que custa hoje a habitação
na Inglaterra, dada a organização viciosa das nossas sociedades. Na
Bélgica tem-se edificado cidades obreiras bem mais baratas. Tudo bem
considerado pode-se afirmar que numa sociedade bem organizada, uns
trinta ou quarenta meios dias de trabalho por ano bastam para
garantir um alojamento absolutamente confortável.
Resta
o vestuário. Aqui o cálculo é quase impossível, porque os lucros
realizados sobre o preço de venda por uma nuvem de intermediários
escapam à apreciação. Tome-se como exemplo o pano e adicionem-se
todos os descontos feitos pelo proprietário do pasto, pelo dono dos
carneiros, pelo mercador de lã e todos os seus intermediários até
as companhias de estrada de ferro, dos fiadeiros e tecelões,
mercadores de confecção, vendedores e comissários e tudo o que se
paga por uma roupa tem sobre si uma nuvem de burgueses. Por isso é
absolutamente impossível dizer quantos dias de trabalho representa
um sobretudo que pagais por cem francos num grande armazém de Paris.
O
que é certo é que com as máquinas atuais chegam-se a fabricar
quantidades verdadeiramente incríveis de tecidos.
Bastarão
alguns exemplos. Nos Estados Unidos em 7551 manufaturas de algodão
(fios e tecidos), 157.000 obreiros e obreiras produzem um milhar, 939
milhões, 400.000 metros de obra de algodão e mais uma grande
quantidade de linhas. Admitindo que uma família gaste 200 metros por
ano, o que seria muito, equivaleria a cinquenta horas de trabalho ou
dez meios dias a cinco horas cada um. E ainda teria as linhas a mais,
isto é, fio para coser e fio para tramar o pano e fabricar estofos
de lã misturada com algodão.
Quanto
aos resultados obtidos pela tecelagem só, a estatística oficial dos
Estados Unidos ensina que se em 1870 um obreiro, trabalhando 13 a 14
horas por dia fazia 9500 metros de pano de algodão branco por ano,
treze anos mais tarde (1883) fazia 27.000 metros trabalhando apenas
55 horas por semana. Mesmo nos tecidos estampados obtinha-se,
compreendendo tecelagem e impressão, 29.150 metros em 2669 horas de
trabalho por ano, ou pouco mais ou menos 11 metros por hora. Assim,
para ter os seus 200 metros, bastaria trabalhar menos de vinte horas
por ano.
É
bom fazer notar que a matéria-prima chega a estas manufaturas quase
como vem dos campos e que a série de transformações por que passa
antes de se mudar em estofo é executada no lapso de vinte horas. Mas
para “comprar” esses 200 metros no comércio, o obreiro bem
retribuído deveria fornecer, “pelo baixo”, 10 a 15 dias de
trabalho a dez horas cada um, isto é, 100 a 150 horas. E quanto ao
camponês inglês, teria de penar um mês ou pouco mais, para se dar
esse luxo.
Está-se
vendo por este exemplo que os cinquenta meios dias de trabalho por
ano se poderia numa sociedade bem organizada vestir melhor que os
pequenos burgueses se vestem hoje.
Mas
com tudo isto não nos foi preciso senão sessenta meios dias de
cinco horas de trabalho para obter os produtos da terra, quarenta
para habitação e cinquenta para vestuário, o que ainda não perfaz
a metade do ano, pois que, deduzindo as festas, o ano representa
trezentos dias de trabalho. Restam ainda cento e cinquenta meios dias
úteis, que se podem aproveitar para as outras necessidades da vida:
vinho, açúcar, café ou chá, móveis, transportes etc. etc.
Mas
se contarmos nas nações policiadas os que nada produzem,
constataremos que o número de produtores propriamente ditos poderia
ser o duplo. E se em lugar de cada dez pessoas, vinte se ocupassem na
produção do necessário, essas vinte não teriam que trabalhar mais
cinco horas por sai sem diminuir a produção. E bastaria reduzir a
perda de forças humanas ao serviço das famílias ricas e da
administração, que conta um funcionário por cada dez habitantes e
utilizar essas forças em aumentar a produtividade da nação, para
reduzir a quatro e mesmo três horas de trabalho, querendo
contentar-se com a produção atual.
Em
conclusão: suponhamos uma sociedade de vários milhões de
habitantes metidos na agricultura e numa grande variedade de
indústrias; que nesta sociedade todas as crianças aprendem a
trabalhar com os braços tanto como o cérebro. Admitamos enfim que
todos os adultos menos as mulheres ocupadas na educação das
crianças se obrigam a trabalhar cinco horas por dia, dos vinte ou
vinte e dois anos até os quarenta e cinco ou cinquenta e que se
empregam em ocupações à sua escolha em qualquer dos ramos do
trabalho humano considerado “necessário”. Uma tal sociedade
poderia em troca garantir o bem-estar de todos os seus membros, -
isto é, um bem-estar diversamente real do que hoje goza a burguesia.
– E cada trabalhador dessa sociedade disporia por outro lado pelo
menos de cinco horas diárias, que poderia consagrar à ciência, à
arte e necessidades individuais fora da categoria do “necessário”,
podendo incluir mais tarde nesta categoria, quando a produtividade do
homem aumentasse, tudo o que ainda hoje é considerado luxuoso ou
inacessível.
AS NECESSIDADES DO LUXO
I
Entretanto
o homem não é um ser que possa viver exclusivamente para comer,
beber e procurar um abrigo. Desde que tenha satisfeito as exigências
materiais, as necessidades a que se possa atribuir um caráter
artístico se apresentarão tanto mais artísticas e ardentes. Tantos
indivíduos, tantos desejos; quanto mais civilizada for a sociedade,
mais a individualidade for desenvolvida, mais esses desejos serão
variados.
Mesmo
hoje veem-se homens e mulheres privarem-se do necessário para
adquirir tal bagatela, para obter tal prazer, certo gozo intelectual
ou material. São precisamente estas bagatelas que rompem a monotonia
da vida, que a fazem agradável. Valeria a pena viver-se com todos os
seus pesares inevitáveis se nunca, fora do trabalho cotidiano, o
homem pudesse obter um único prazer conforme os seus gostos
individuais?
Se
nós desejamos a revolução social, é certamente, em primeiro lugar
para assegurar o pão a todos, para metamorfosear esta sociedade
execrável, onde cada dia vemos trabalhadores robustos andarem com as
mãos abanando por não terem um patrão que os queira explorar;
mulheres e crianças vaguearem de noite sem abrigo; famílias
inteiras reduzidas a pão seco, crianças, homens e mulheres morrerem
por falta de cuidados, se não de alimento. É para por termo a estas
iniquidades que nos revoltamos.
Mas
nós esperamos da Revolução outra coisa. Vemos o trabalhador,
obrigado a lutar penosamente pela vida, está reduzido a nunca
conhecer esses altos gozos – os mais altos que sejam acessíveis ao
homem – da ciência e, sobretudo, da descoberta científica, da
arte e principalmente da criação artística. É para lhe deixar o
tempo, a possibilidade de desenvolver as suas capacidades
intelectuais que a Revolução deve garantir a cada um o pão
cotidiano.
Certamente
hoje, que centenas de milhares carecem de pão, de carvão, de roupa
e de abrigo, o luxo é um crime: para satisfazer é necessário que o
filho do trabalhador esteja sem pão. Mas numa sociedade que todos
comam conforme precisarem, as necessidades do que hoje chamamos luxo
serão mais vivas. E como os homens não são iguais, sempre haverá,
e é preciso que haja, homens e mulheres cujas necessidades estejam
acima da média numa qualquer direção.
Nem
toda a gente precisa dum telescópio; há pessoas que preferem os
estudos microscópicos ao das estrelas. Uns gostam de estátuas e
outros das telas dos mestres. Há quem deseje um piano, enquanto
outros se contentam com um berimbau. O camponês adorna o seu quarto
com uma imagem d’Espinal e se o seu gosto se desenvolvesse quereria
ter uma bela gravura. Acusa-se de ordinário as nossas sociedades
comunistas ideias de terem por único objetivo a vida material de
cada indivíduo: “Tereis talvez o pão para todos, nos dizem, mas
não tereis nos vossos armazéns comunais belas pinturas,
instrumentos de ótica, móveis de luxo, ornatos em suma, essas mil
coisas que servem para satisfazer a infinita variedade dos gostos
humanos. – E por isso mesmo suprimis toda a possibilidade de se
obter seja o que for fora do pão e da carne que a Comuna pode
oferecer a todos, e do pano cinzento com que ides vestir todas as
vossas cidadãs”.
II
Confessamos
francamente que quando pensamos nos abismos de miséria e de
sofrimento que nos cercam; quando ouvimos os estribilhos
desgarradores dos obreiros que percorrem as ruas pedindo trabalho,
repugna-nos discutir esta
questão:
“Como se fará em uma sociedade em que todos comam até saciar-se,
para satisfazer tal pessoa que deseja uma louça de Sevres ou um
vestido de veludo?”
Por
única resposta somos tentados a dizer:
“Angariemos
primeiro o pão. Quanto à porcelana e ao veludo, mais tarde o
veremos!”
Mas,
porque, além do pão, o homem tem outras precisões; e porque a
força da Anarquia está precisamente em que ela compreenda “todas”
as paixões e não ignora nenhuma, vamos dizer em poucas palavras
como ele se poderia arranjar para satisfazer as necessidades
intelectuais e artísticas do homem.
Trabalhando
cinco ou quatro horas por dia até a idade de 45 ou 50 anos,
dissemos, o homem poderia facilmente produzir “tudo” o que é
necessário para garantir cabalmente o bem-estar.
Mas
o dia do homem habituado ao trabalho e ligado a uma máquina não é
de cinco horas; é de dez horas, trezentos dias por ano e por toda a
sua vida. Assim gasta-se a saúde e esgota-se a inteligência.
Assim
quando se podem variar as ocupações e sobre tudo alternar o labor
manual com o trabalho intelectual, fica-se ocupado voluntariamente,
sem fadiga, dez ou doze horas. É normal. O homem que tiver feito
quatro ou cinco horas de trabalho manual necessário para viver, terá
ainda diante de si cinco ou seis horas, que procurará preencher
segundo o seu gosto. E essas horas lhe darão plena possibilidade de
obter, associando-se a outros, tudo o que quiser fora do necessário
garantido a todos.
Primeiro
desempenhar-se-á, nos campos, ou nas oficinas, do trabalho que dever
à sociedade pela sua parte de contribuição à produção geral e
empregará a outra metade do seu dia, da sua semana ou do seu ano na
satisfação dos seus gostos artísticos ou científicos.
Correspondendo
a todos os gostos e a todas as fantasias possíveis, nascerão mil
sociedades.
Uns,
por exemplo, poderão dar as suas horas de lazer à literatura.
Formar-se-ão em grupos, compreendendo escritores, compositores,
impressores, gravadores e desenhadores, todos perseguindo um fim
comum: a propagação das ideias que lhe são caras.
Hoje
o escritor sabe que há uma besta de carga, o obreiro, a quem pode
confiar, a troco de três ou quatro francos por dia, a impressão dos
seus livros, mas cuida muito pouco de saber o que é a imprensa. Se o
compositor se envenena com o pó do chumbo, e se o menor que serve a
máquina morre de anemia – outros míseros aparecerão que o
substituam.
Mas
quando deixar de haver famintos prontos a vender os braços por uma
magra pitança e quando o explorador de ontem tiver recebido
instrução e tiver as suas ideias a gravar no papel e a comunicar
aos outros, forçoso será aos literatos e aos sábios associar-se
entre si para imprimirem a sua prosa e os seus versos.
Enquanto
o escritor considerar a blusa e o trabalho manual como indício de
inferioridade, parecer-lhe-á estupefaciente ver um autor compor ele
mesmo o seu livro em caracteres de chumbo. Não tem a sala de
ginástica ou o dominó para se distrair? Mas quando o opróbrio que
ligam ao trabalho tiver desaparecido; quando todos forem obrigados a
servir-se dos braços , não tendo mais sobre quem descarregar, oh,
então os escritores, assim como seus admiradores e admiradoras,
aprenderão depressa a arte de manejar o componedor; compreenderão o
gozo de virem todos juntos – todos os apreciadores da obra que se
imprime – compô-la e vê-la sair, bela da sua pureza virginal,
duma máquina rotativa.
Perderá
a literatura alguma coisa com isso? O poeta será menos poeta depois
de ter trabalhado nos campos? Ou colaborado com as suas mãos a
multiplicar a sua obra? O romancista perderá do seu conhecimento do
coração humano depois de ter acotovelado o homem na oficina, na
mata, no traçado duma estrada ou atelier? Propor estas perguntas é
responder-lhes.
Certos
livros serão talvez menos volumosos, mas imprimir-se-ão menos
páginas para dizer mais.
Talvez
se publiquem menos nomenclatura, mas o que se imprime será mais bem
lido, mais bem apreciado. O livro dirigir-se-á a um círculo mais
vasto de leitores, mais instruídos, mais aptos para julgá-lo.
De
mais, a arte de imprimir, que tem progredido tão pouco depois de
Guttemberg, está ainda na infância. Precisa-se ainda duas horas
para compor em letras móveis o que se escreve em dez minutos e
procuram-se processos mais expeditos de multiplicar o pensamento, Hão
de se achar.
III
É
por ventura um sonho conceber uma sociedade onde, sendo todos
produtores, recebendo todos uma instrução que lhe permita cultivar
as ciências ou as artes, e tendo todos vagar de o fazer, se associem
entre si para publicarem seus trabalhos suportando a sua parte do
trabalho manual?
Neste
momento já se contam por milhares e milhares as sociedades sábias,
literárias e outras. Entretanto estas sociedades são agrupamentos
voluntários, entre gente que se interessa por determinado ramo do
saber, associada para publicar os seus trabalhos. Os autores que
trabalham nas descobertas científicas não são pagos. As
descobertas não se vendem; eles enviam-nas gratuitamente, em todos
os cantos do globo, a outras sociedades que cultivam os mesmos ramos
do saber. Certos membros da sociedade inserem uma nota duma página,
reunindo certa observação, outros publicam trabalhos extensos,
frutos de longos anos de estudo; enquanto outros se limitam a
consultá-los como pontos de partida de novas investigações. São
verdadeiramente associações entre autores e leitores para a
produção de trabalhosa que todos ligam interesse.
É
verdade que a sociedade sábia, tal qual como o diário dum banqueiro
– dirigi-se ao editor, que contrata obreiros para fazerem o
trabalho da impressão. Gente que exerce profissões liberais
“despreza” o trabalho manual que, com efeito, se efetua hoje em
condições embrutecedoras. Mas uma sociedade, que dispensa a cada um
dos seus membros a instrução larga, filosófica e “científica”,
saberá organizar o trabalho corporal de modo a fazer o orgulho da
humanidade; e a sociedade sábia tornar-se-á uma associação de
investigadores, de amadores, e de obreiros, conhecendo todos um
ofício doméstico e interessando-se todos pela ciência.
Se
por exemplo se ocupam de geologia, todos contribuirão a explorar as
camadas terrestres, todos darão a sua parte das investigações. Dez
mil observadores em vez de cem farão mais num ano do que hoje fazem
cem em vinte anos nos nossos dias. E quando se tratar de publicar os
diversos trabalhos, dez mil homens e mulheres versados nos diferentes
ofícios, lá estarão para levantar as cartas, gravar os desenhos,
compor e imprimir o texto. Alegremente, todos juntos darão os seus
vagares, no verão à exploração, no inverno ao trabalho no
atelier. E quando os seus trabalhos tiverem aparecido, não acharão
só cem leitores: acharão dez mil, todos interessados na obra comum.
É,
aliás, a obra do progresso que nos ensina este caminho.
Quando
a Inglaterra quis ter um grande dicionário da sua língua, fez um
apelo aos voluntários e mil pessoas vieram espontâneas escavar as
bibliotecas e terminaram em poucos anos o que um homem só não faria
numa vida inteira.
Para
que esta obra fosse verdadeiramente coletiva, seria preciso organiza-
la de modo que cinco mil voluntários autores, impressores, e
revisores, tivessem trabalhado em comum; mas deu-se esse passo para
frente, graças a imprensa socialista, que já nos oferece exemplos
do trabalho manual combinado com o intelectual.
É
o caminho da liberdade. No futuro, quando um homem tiver qualquer
coisa útil a dizer, uma palavra que vá além das idéias do seu
século, não procurará um editor que lhe adiante o capital
necessário. Procurará colaboradores entre os que conhecerem a
profissão e tenham compreendido o alcance da nova obra e publicarão
juntos o livro ou o jornal.
A
literatura e o jornalismo deixariam de ser um meio de fazer à custa
dos outros. Há alguém que conheça a literatura e o jornalismo e
que não deseje numa época enfim livrar-se dos que outrora a
protegiam e hoje a exploram? Só no dia em que as letras e a ciência
se virem livres da escravidão mercenária tomarão o seu verdadeiro
lugar na obra do desenvolvimento humano.
IV
A
literatura, a ciência e a arte devem ser servidas por voluntários.
Só com esta condição poderão libertar-se do jugo do Estado, do
capital e da mediocridade burguesa que os afogam.
Que
meios tem hoje o sábio para fazer as investigações que o
interessam? Pedir o auxílio do Estado, que não pode ser concedido a
mais dum aspirante em cem, e que nenhum obterá se se não obriga
ostensivamente a bater os caminhos abertos e a marchar sobre as
trilhas já conhecidas. Lembremo-nos do Instituto de França
condenando Darwin, da Academia de S. Petersburgo repelindo Mendeleff
e da Sociedade Real de Londres, recusando-se a publicar como “pouco
científica” a memória de Joule que continha a equivalência
mecânica do calor.
É
além disso o sistema de socorros concedidos pelo Estado é tão mau,
que em todos os tempos a ciência procurou passar sem ele. É
precisamente por isso que a Europa e a América estão cobertas de
milhares de sociedades científicas, organizadas e mantidas por
voluntários. Algumas tem tomado um desenvolvimento tão formidável
que todos os recursos das sociedades subvencionadas não seriam
bastantes para comprar os seus tesouros.
A
Sociedade Zoológica de Londres não compra os animais que povoam os
seus jardins aos milhões, são-lhe enviados por outras sociedades e
por colecionadores de todo o mundo. Estas remessas compreendem muitas
vezes animais que se não comprariam por todo o ouro do mundo; tal
dentre eles foi capturado com perigo de vida por um viajante que se
lhe afeiçoou como a um filho e que deu à Sociedade por ter a
certeza de o ver bem cuidado, que são inumeráveis, chega para a
manutenção desta “menagerie”.
O
que se pode dizer dos inventores em geral é o que se tem dito dos
sábios. Quem não sabe que preço de sofrimentos custaram as grandes
invenções! Noites em claro, privações do pão para a família,
falta de utensílios e de matérias-primas para as experiências, é
a história de todos os que tem dotado a indústria com o que faz o
orgulho, o único justo, da nossa civilização.
Mas
que é preciso para sair destas condições que todo o mundo é
unânime em achar más? Ensaiou-se a patente, cujos resultados são
conhecidos. Faminto o inventor vende-a por qualquer preço e quem não
fez mais que emprestar o capital é quem embolsa os lucros muitas
vezes enormes, da invenção. Por outro lado a patente isola o
inventor. Obriga-o a guardar o segredo das suas pesquisas, que muitas
vezes conduzem a um tardio desengano; enquanto a mais simples
sugestão que partisse dum cérebro estranho menos absorvido pela
ideia fundamental, bastaria para fecundar o invento e torná-lo
prático. Como toda a autoridade, a patente não faz senão entravar
o progresso da indústria. O breve, na prática, é um dos grandes
obstáculos ao desenvolvimento rápido da invenção.
O
que é preciso para favorecer o gênio das descobertas é
primeiramente o despertar do pensamento, é a audácia de concepção,
que toda a nossa educação contribuiu a fazer esmorecer; o saber
divulgado às mãos cheias que centuplica o número dos
investigadores; é finalmente a consciência de que a humanidade vai
dar um passo para a frente.
Só
a Revolução social pode dar esse choque ao pensamento, a audácia,
o saber, a convicção de que se trabalha para todos.
É
então que se verão vastas oficinas providas de força motriz e de
instrumentos de toda a espécie, imensos laboratórios industriais
abertos a todos os investigadores. É lá que eles virão trabalhar
nos seus sonhos depois de se terem desobrigado com a sociedade; lá
que passarão as suas cinco ou seis horas de lazer; lá que farão as
suas experiências; lá que encontraram outros camaradas, peritos em
outros ramos da indústria e vindo também estudar algum problema
difícil, poderão entreajudar-se, esclarecer-se mutuamente; fazer
enfim saltar do choque das idéias e da sua experiência a solução
desejada.
V
E
a arte? Chegam-nos de toda a parte queixas sobre a decadência da
arte. Estamos com efeito longe dos grandes mestres da Renascença. A
técnica da arte tem feito recentemente progressos imensos; milhares
de pessoas, dotadas dum certo talento, cultivam todos os ramos, mas a
arte parece fugir do mundo civilizado! A técnica progride, mas a
inspiração frequenta menos que nunca os ateliers dos artistas.
Donde
viria ela com efeito?
Só
uma grande ideia pode inspirar a arte. A arte é no nosso ideal
sinônimo de criação. Deve lançar os seus ideais para frente, mas
salvo algumas raras, muito raras exceções, o artista de profissão
fica muito ignorante, muito burguês, para entrever os horizontes
novos.
Esta
inspiração, além disso, não pode sair dos livros: deve ser
haurida na vida e a sociedade atual não a poderia dar.
Os
Rafaéis e os Murilos pintaram numa época onde a procura dum novo
ideal se acomodava ainda às velhas tradições religiosas. Pintavam
para decorar as grandes igrejas que representavam elas mesmas a obra
pia de várias gerações. A basílica, com o seu aspecto misterioso,
a sua grandeza, que a ligava à própria vida da cidade, podia
inspirar o pintor. Ele trabalhava para um monumento popular;
dirigia-se a uma multidão, dela recebendo em troca a inspiração.
Falava-lhe no mesmo sentido que lhe falavam a nave, os pilares, os
vitrais pintados, as estátuas e as portas ornamentadas. Hoje a maior
honra a que aspira o pintor é ver a sua tela, emoldurada em madeira
dourada e pendurada em um museu, uma espécie de loja de
“bric-a-brac”, - onde se verá, como se vê no prado, a Ascensão
de Murilo ao lado do Mendigo de Velasques e dos Cães de Filipe II.
Pobre Velasques, pobre Murilo! Pobres estátuas gregas, que “viviam”
nas acrópoles das suas cidades e que hoje se aborrecem sob os
cortinados de pano encarnado do Louvre! Só quando tal cidade, tal
território, tal nação ou tal grupo de nações tiver retomado a
sua unidade na vida social, a arte poderá haurir a sua inspiração
da “ideia comum” da cidade ou da federação. Então o arquiteto
conceberá o monumento da cidade, que já não será nem um templo
nem uma prisão nem uma fortaleza; então o pintor, o escultor, o
cinzelador, o ornamentista etc. saberão onde colocar suas telas,
suas estátuas e suas decorações, indo todos pedir a sua força de
execução à mesma nascente vital e todos marchando juntos
gloriosamente para o futuro. Mas até então a arte não poderá
senão vegetar.
As
melhores telas dos pintores modernos são ainda as que reproduzem a
natureza. Mas como poderá o pintor dar a poesia do trabalho dos
campos sem a ter ele mesmo sentido, se não seguiu a charrua desde o
romper da alva; se não teve a sensação de cortar as canas do trigo
com uma foice, ao lado dos robustos ceifeiros e das moças a encherem
os ares com alegres cantigas. Como pintar o amor da terra sem ter o
sentido?
É
preciso à volta do trabalho, ver o sol poente, ter sido camponês
com as camponesas, ter estado no mar com os pescadores, ter lutado
com as ondas, afrontado a tempestade e ter sentido, depois de
levantar uma rede sem nada, a decepção de voltar a casa com as mãos
vazias. É preciso ter sentido “viver” a máquina para saber o
que é a força do homem e traduzi-la numa obra de arte.
As
obras desses artistas do futuro, que terão vivido a vida do povo,
como os grandes artistas do passado, não serão destinadas à venda.
Farão parte dum todo vivo, que sem elas não existiria, como elas
não existiriam sem ele.
A
arte, para se desenvolver, deve estar ligada à indústria, de sorte
por assim dizer se confundam. Mas isto não poderá realizar senão
numa sociedade em que gozemos folga e bem-estar. Ver-se-ão então
surgir associações de arte, onde cada um poderá dar provas das
suas capacidades; porque a arte não poderia dispensar uma infinidade
de trabalhos suplementares puramente manuais e técnicos. Estas
associações artísticas encarregar-se-ão de embelezar os lares dos
seus membros, como fizeram esses amáveis voluntários, os jovens
pintores de Edimburgo, decorando as paredes e o teto do grande
hospital dos pobres da cidade.
Dir-se-á
o mesmo com todos os gozos que se procuram fora do necessário.
Aquele que quiser um piano de cauda entrará na associação dos
fabricantes de instrumentos de música. E dando-lhe uma parte dos
seus meios dias de folga, terá bem cedo o piano dos seus anelos. Se
se apaixonar pelos estudos astronômicos, entrará na associação
dos astrônomos e terá um telescópio, se o desejar, fornecendo uma
parte do seu trabalho à obra comum, e não falta trabalho ordinário
de que tanto precisa um observatório, como trabalhos de pedreiro,
carpinteiro, fundidor etc.
Numa
palavra, as cinco ou sete horas diárias de que cada um disponha
depois de ter consagrado algumas horas à produção do necessário
bastariam largamente para dar satisfação a todas as precisões de
luxo infinitamente variadas. Milhares de associações se
encarregariam de o satisfazer. O que hoje é privilégio duma maioria
ínfima, seria assim acessível a todos. O luxo, deixando de ser o
aparato tolo e berrante dos burgueses, tornar-se-ia uma satisfação
artística.
Todos
seriam mais felizes. No trabalho coletivo executado com alegria do
coração para alcançar um fim desejado – livre obra de arte ou
objeto de luxo, – cada um encontrará o estímulo e o repouso
necessário para tornar a vida mais agradável.
Trabalhando
para abolir os senhores e os escravos, trabalhamos para a felicidade
duns e doutros para o bem da humanidade.
O TRABALHO AGRADÁVEL
I
Quando
os socialistas afirmam que uma sociedade liberta do capital poderia
tornar o trabalho agradável e suprimiria toda a tarefa repugnante e
malsã, há quem se lhes ria na cara. Entretanto podem-se ver hoje
mesmo progressos frisantes consumados neste caminho; e em toda a
parte onde estes progressos se tem produzido, os patrões só tem a
felicitar-se pela economia de força obtida por este modo.
É
evidente que a oficina poderia tornar-se tão sã e tão agradável
como um laboratório científico. E não menos evidente é que
haveria toda a vantagem em o fazer. Em uma oficina espaçosa e bem
arejada, o trabalho é melhor; aplicam-se-lhe facilmente os pequenos
melhoramentos de que cada um representa uma economia de tempo e de
mão de obra. E se a maior parte das oficinas continuam nos lugares
infectos e insalubres que conhecemos, é porque se não conta com o
trabalhador na organização das fábricas e porque a dissipação
mais absurda das forças humanas é o seu traço distintivo.
Entretanto
já se encontram por aqui e por ali, em estado de exceções, muito
raras, algumas oficinas tão bem acondicionadas que seria um
verdadeiro prazer trabalhar nelas, se o labor não devesse durar mais
de quatro ou cinco horas por dia, bem entendido, e se cada um tivesse
facilidade de o variar conforme os seus gostos.
Eis
aqui uma fábrica – infelizmente consagrada a engenhos de guerra,
que nada deixa a desejar com relação à organização sanitária e
inteligente. Ocupa vinte hectares de terreno, quinze dos quais estão
envidraçados. O chão, em tijolos refratários, está tão limpo
como o duma casita de mineiro e o teto de vidro é cuidadosamente
limpo por uma esquadra de obreiros que não fazem mais nada.
Forjam-se ai barras de aço pesando vinte toneladas e quando se para
em frente a trinta passos de um forno, cujas chamas têm a
temperatura de mais dum milhar de graus, não se lhe adivinha a
presença senão quando a imensa goela do forno deixa escapar um
monstro de aço. E este monstro é manobrado unicamente por três ou
quatro trabalhadores, que abrem, ora aqui, ora ali uma torneira
fazendo mover imensas engrenagens pela pressão da água nos tubos.
Entra-se
preparando para ouvir o ruído ensurdecedor dos golpes de pilão e
descobre-se que não há absolutamente pilões. Os imensos canhões
de cem toneladas e os eixos dos vapores transatlânticos são
forjados por pressão hidráulica e o obreiro limita-se a dar a volta
a uma torneira para comprimir o aço que se aperta em lugar de o
forjar.
Espera-se
um ruído infernal em veem-se máquinas que cortam blocos de aço de
dez metros de comprido sem mais bulha do que é precisa para cortar
um queijo. E quando exprimíamos a nossa admiração ao engenheiro
que nos acompanhava, ele respondeu:
“Mas
é uma simples questão de economia! Esta máquina que aplaina o aço
já nos serve há quarenta e dois anos. Não teria servido dez anos
se as suas partes mal ajustadas ou demasiado fracas, se chocassem,
chiassem e gastassem a cada golpe de plaina!”
“Os
altos fornos? Seria uma despreza inútil deixar fugir o calor em
lugar de o utilizar: para que torrar os fundidores quando o calor
perdido pela irradiação representa toneladas de carvão?”
“Os
pilões que faziam tremer os edifícios a cinco léguas em redondo,
eram ainda um desperdício”.
Forja-se
melhor pela pressão do que pelo choque e custa menos.
O
espaço dado a cada banco, a claridade da oficina, a sua limpeza,
tudo é uma simples questão de economia. Trabalha-se melhor quando
se vê bastante luz e não se aperta os cotovelos.
“É
verdade, acrescentou, que estávamos bastante apertados antes de
virmos para aqui. É que o terreno custa terrivelmente caro nos
arredores das grandes cidades: os proprietários são tão vorazes!”
O
mesmo acontece em relação às minas. Não só por Zola como pelos
jornais, sabe-se o que é a mina de hoje. Ora a mina, no futuro, será
bem arejada, com uma temperatura tão perfeitamente regulada como a
duma câmara de trabalho, sem cavalos condenados a morrer debaixo da
terra; fazendo-se a tração subterrânea por meio dum cabo
automático posto em movimento à boca do poço. Os ventiladores
estarão sempre em movimento e não haverá explosões. E esta mina
não é um sonho; já se veem assim na Inglaterra e nós visitamos
uma. Ainda que este arranjo é uma questão de economia. A mina de
que falamos, apesar de sua imensa profundidade, 430 metros, fornece
mil toneladas de hulha por dia, só com 200 trabalhadores, ou cinco
toneladas por dia só com um trabalhador, enquanto que a média para
os dois mil poços da Inglaterra é apenas de 300 toneladas por ano e
1 por trabalhador.
Poderíamos
se fosse preciso, multiplicar os exemplos, demonstrando que, para a
organização material, o sonho de Furrier não era uma utopia. Mas
os jornais socialistas têm já tratado frequentemente este assunto e
a opinião está formada. A manufatura, a fábrica, a mina, podem ser
salutares, tão soberbas como os melhores laboratórios das
universidades modernas e quanto melhor forem organizadas mais
produtivo será o trabalho humano.
Pode-se
então duvidar que numa sociedade de iguais, onde os “braços”
não sejam obrigados a vender-se, em quaisquer condições, o
trabalho seja realmente um prazer, um divertimento?
A
tarefa repugnante ou malsã deve desaparecer, porque é evidente que
nestas condições é nociva à sociedade inteira. Escravos
podiam-se-lhe entregar; o homem livre criará novas condições dum
trabalho agradável e infinitamente mais produtivo. As exceções de
hoje serão a regra amanhã.
O
mesmo será quanto ao trabalho doméstico, que a sociedade hoje atira
sobre os “sofredores” da humanidade – a mulher.
II
Uma
sociedade transformada pela Revolução saberá fazer desaparecer a
escravidão doméstica, – talvez a mais tenaz por ser também a
mais antiga. Unicamente não se apegará nem à maneira sonhada pelos
falansterianos nem à maneira imaginada pelos comunistas
autoritários.
O
falanstério repugna a milhões de seres humanos. O homem menos
expansivo experimenta certamente o desejo de se encontrar com os seus
semelhantes para um trabalho comum, tornando tanto mais atraente a
quem se sente como uma parte do grande todo. Mas não é assim nas
horas de folga destinadas a repouso e intimidade. O falanstério, e
mesmo o familistério, não contam com isso, ou antes, procuram
corresponder a esse desejo por agrupamentos factícios.
O
falanstério, que na realidade é um imenso hotel, pode agradar a
uns, ou mesmo a todos, em certos períodos da sua vida, mas a grande
massa prefere a vida de família (família do futuro, bem entendido).
Prefere o apartamento isolado e os normandos e anglo-saxões vão até
preferir a casinha de quatro, seis ou oito quartos onde a família,
ou a aglomeração de amigos podem viver separados.
Quanto
às considerações de economia que algumas vezes se fazem valer em
favor do falanstério, é economia de confeiteiro. A grande economia,
a única razoável é fazer a vida agradável a todos, porque o
homem, contente da sua vida, produz infinitamente mais que aquele que
maldiz o que o cerca.
Outros
socialistas repudiam o falanstério. Mas quando se lhes pergunta como
se poderia organizar o trabalho doméstico, respondem: “Cada um
fará o seu próprio trabalho”. “Minha mulher satisfaz bem o da
casa: as burguesas que façam o mesmo”. E se é um burguês
socializante que fala, ele atira a sua mulher com um sorriso
gracioso: “Não é assim, querida, que tu passarias bem sem criada
numa sociedade socialista? Tu farias, não é? Como a mulher do nosso
valente amigo Paulo, ou do João, o marceneiro, que tu conheces?”
E
a mulher responde-lhe com um sorriso agridoce: “Sim, querido”,
dizendo para si que, felizmente, isso virá para as calendas gregas.
Criada
ou esposa, é ainda e sempre com a mulher que o homem conta para se
descarregar dos trabalhos da casa.
Mas
a mulher também reclama – enfim – a sua parte de emancipação
da humanidade. Não quer ser a besta de carga da casa. Já lhe basta
o ter de dar tantos anos da sua vida à educação de seus filhos.
Não quer ser cozinheira, costureira, varredora da casa. E as
americanas, tomando a dianteira nesta obra de reivindicação, é um
queixume geral nos Estados Unidos sobre a falta de mulheres que
queiram entregar-se a trabalhos domésticos. A senhora prefere a
arte, a política, a literatura, ou o salão de jogo; a obreira faz o
mesmo e não se encontram criadas. São raras nos Estados Unidos as
moças e mulheres que queiram aceitar a escravidão do avental.
E
a solução vem ditada pela própria vida, evidentemente muito
simples. É a máquina quem se encarregará, pelas três quartas
partes, do serviço caseiro.
Engraxais
os vossos sapatos e sabeis quanto é ridículo esse trabalho: que
pode haver mais ridículo? Esfregar vinte ou trinta vezes um sapato
com uma escova, que pode haver de mais estúpido? É preciso que um
décimo da população europeia se venda, em troca dum grabato e dum
alimento insuficiente, para fazer esse serviço embrutecedor; é
preciso que a mulher se considere a si mesma uma escrava, para que
tal operação continue todas as manhãs por dezenas de milhões de
braços.
Entretanto
os barbeiros já tem máquinas para escovar os crânios lisos e as
cabeleiras crespas; não seria bem mais simples aplicar o mesmo
princípio à outra extremidade?
É
o que se faz. Hoje a máquina de engraxar sapatos torna-se de uso
geral nos grandes hotéis europeus e americanos. Também se vulgariza
fora dos hotéis. Nas grandes escolas da Inglaterra, divididas em
seções diferentes, sustentando cada uma de 50 a 200 alunos, acha-se
mais simples ter um só estabelecimento que todas as manhãs engraxa
à máquina os mil pares de sapatos e os entrega em domicílio, isto
dispensa ter uma centena de criadas destinadas unicamente a esta
estúpida operação. O estabelecimento cuida dos sapatos e
entrega-os todas as manhãs engraxados à máquina.
Lavar
a louça! Encontrarão por ventura uma dona de casa que não tenha
horror a este trabalho? Trabalho longo e sujo ao mesmo tempo e que
ainda o mais das vezes se faz à mão, unicamente porque se não liga
importância ao trabalho da escrava doméstica.
Na
América já se encontrou coisa melhor. Há já um certo número de
cidades onde a água quente é distribuída a domicílio tal qual a
água fria entre nós. Em tais condições o problema era duma grande
simplicidade e uma mulher, Mme. Cockrane, resolveu-o. A sua máquina
lava vinte dúzias de pratos, enxuga-os e seca-os em menos de três
minutos. Uma fábrica de Illinois faz estas máquinas, que se vendem
por um preço acessível às famílias médias. E quanto às
pequenas, podem enviar a sua louça ao estabelecimento, assim como os
sapatos. É até provável que as duas funções, lavagem e
engraxamento sejam feitas pela mesma empresa.
Limpar
as facas; esfolar a pele e torcer as mãos lavando a roupa, para
espremer a água; varrer as tábuas os escovar os tapetes, levantando
nuvens de poeira, que depois é preciso tirar dos sítios onde se vai
aninhar, tudo isto se faz ainda porque a mulher é escrava; mas se
não fosse, quem o havia de fazer? O homem que não é escravo? O
homem, ou há de estar no campo ou na oficina a trabalhar, salariado
ou não, ou há de estar em casa a arear facas e lavar roupa. A
mulher também tem que trabalhar, nisso ou noutra coisa, visto que
quer igualdade de direitos, aliás muito justa. Mas tudo isto começa
a desaparecer, fazendo-se estas coisas infinitamente melhor a
máquina; e as máquinas de toda a espécie serão introduzidas no
lar logo que a distribuição de força a domicílio permita pô-las
todas em movimento sem despender o menor esforço.
Mas
a pequena máquina a domicílio não é a última palavra para a
alforria do trabalho doméstico. A família sabe do seu isolamento
atual; associa-se com outras famílias para fazer em comum o que hoje
se faz em separado.
Com
efeito o futuro não está em ter uma máquina de engraxar, outra de
lavar a roupa e sucessivamente para cada família. O futuro está no
colarífero comum, que levará o calor a todas as casas de um
quarteirão e dispensará de acender o lume. Isto já se faz em
algumas cidades americanas. Um grande foco envia água quente a todas
as casas, em todos os quartos. A água circula em tubos e para
regular a temperatura, basta dar volta a uma torneira. E quem quiser
ter além disso fogo em chama em qualquer quarto pode acender o gás
especial de aquecimento expedido dum reservatório central.
A
vela, o candeeiro, e mesmo o gás fizeram o seu tempo. Há cidades
inteiras onde basta apertar um botão para que a luz salte e no fim,
é tudo um objeto de economia – e de saber – dar-se o luxo duma
lâmpada elétrica.
Enfim,
já se trata – sempre na América, de formar sociedades para
suprimir a quase totalidade do serviço doméstico. Bastaria criar
serviços de casa para cada grupo de casas. Um carro viria a
domicílio com o cesto dos sapatos para engraxar, louça para lavar,
roupa por limpar, tapetes por escovar e no outro dia pela manhã
traria feita e bem-feita, toda a obra que lhe tivésseis confiado.
– Algumas
horas mais tarde o vosso café quente e os vossos ovos cozidos
aparecerão na vossa mesa.
Efetivamente,
entre o meio dia e as duas horas há certamente mais de vinte milhões
de americanos e outros tantos ingleses, que todos comem um assado de
boi ou de carneiro, porco cozido, batatas cozidas e o legume da
estação. E são pelo menos oito milhões de fogos que ardem duas ou
três horas para assar esta carne e cozer estes legumes; oito milhões
de mulheres passando o seu tempo a preparar este banquete que não
consta senão talvez de dez pratos diferentes.
Por
que é que o trabalho da mulher nunca foi contado para nada, porque
em cada família a mãe, muitas vezes três ou quatro criadas, são
obrigadas a dar todo o seu tempo aos negócios da cozinha? Porque
aqueles mesmos que querem a emancipação do gênero humano não
incluíram a mulher no sonho de emancipação e consideraram isso
indigno da sua alta dignidade, mas recusam pensar “nesses negócios
de cozinha” de que se aliviaram sobre as costas do grande
“sofredores” que é a mulher.
Emancipar
a mulher não é abrir-lhe as portas da universidade, dos tribunais e
do parlamento. É sempre sobre uma outra mulher que a mulher
emancipada atira os trabalhos domésticos. Emancipar a mulher é
livrá-la do trabalho embrutecedor da cozinha e da lavagem; é
organizar-se de maneira que possa criar e educar os seus filhos, se
assim lhe parecer, considerando sempre bastante vagar para tomar a
sua parte na vida social.
Isto
se fará, já o dissemos, e começa já a fazer-se. Uma revolução
que se decorasse com as mais belas palavras de Liberdade, Igualdade,
Solidariedade, mantendo ao mesmo tempo a escravidão do lar, não
seria revolução. A metade da humanidade, submetida ainda à
escravidão do lar e da cozinha, teria ainda que se revoltar contra a
outra metade.
A LIBERDADE DE ENTENDIMENTO
I
Habituados como estamos, por preconceitos hereditários, uma educação e uma instrução absolutamente falsa, a não ver em toda a parte senão governo, legislação e magistratura, chegamos a crer que os homens se despedaçariam uns aos outros como as feras no dia em que o policial não tivesse os olhos abertos sobre nós, o que seria se a autoridade sucumbisse a qualquer cataclismo. E passamos, sem dar por isso, ao lado de mil e mil agrupamentos humanos, que se formam livremente, sem nenhuma intervenção da lei e que chegam a realizar coisas infinitamente superiores aquelas que se efetuam sob a tutela governamental.
Abra-se um jornal cotidiano. As suas páginas são inteiramente consagradas aos atos do governo, às intrigas políticas. Lendo-o um chinês julgaria que na Europa não se faz nada sem ordem dalgum senhor. Acha aí seja o que for sobre as instituições que nascem, crescem e se desenvolvem sem precisões ministeriais! Nada ou quase nada! Se há mesmo uma rubrica de “fatos diversos”, é porque se ligam a polícia. Um drama de família, um ato de revolta, não são mencionados se os policiais se não deixam ver.
Trezentos e cinquenta milhões de europeus amam-se ou aborrecem-se, trabalham ou vivem dos seus rendimentos, sofrem ou gozam. Mas a sua vida, seus atos (à parte a literatura, o teatro e o esporte), tudo fica ignorado dos jornais, se os governos não intervêm de qualquer modo.
Sucede o mesmo com a história.
Conhecemos os menores detalhes da vida dum rei ou dum parlamento, conservaram-nos todos os discursos bons e maus proferidos nas assembleias, “que nunca influíram no voto de um único membro”, como dizia um velho parlamentar. As visitas dos reis, o bom ou mau humor dos políticos, os seus trocadilhos e as suas intrigas, tudo isto é cuidadosamente guardado para a posteridade. Mas temos todas as dificuldades do mundo para reconstituir a vida duma cidade da idade média, para conhecer o mecanismo desse imenso comércio de troca que se fazia entre as cidades hanseáticas ou mesmo como a cidade de Rouen edificou a sua catedral. Se algum sábio passou a vida a estudá-lo as suas obras ficaram desconhecidas e as “histórias parlamentares”, isto é, falsas, visto que só falam de um lado da vida das sociedades multiplicam-se, apregoam-se, ensinam-se nas escolas.
E nós não chegamos a aperceber-nos da tarefa prodigiosa que executa cada dia o agrupamento espontâneo dos homens, e que constitui a obra capital do nosso século.
É de toda a evidência que na sociedade atual, baseada na propriedade individual, ou seja, a espoliação, e sob o individualismo limitado, portanto estúpido, os fatos deste gênero são necessariamente limitados: aí o entendimento não é sempre perfeitamente livre e funciona muitas vezes para um fim mesquinho, se não execrável.
Mas o que nos é preciso é mostrar que, apesar do individualismo autoritário que nos afoga, há sempre na nossa vida uma parte muito vasta em que se não age senão por livre entendimento; e que passar sem governo é muito mais fácil do que se pensa.
Já citamos os caminhos de ferro em apoio da nossa tese e aí voltamos ainda.
Sabe-se que a Europa tem uma rede de caminhos de ferro de 280.000 quilômetros e que sobre esta rede pode-se hoje circular – do norte ao sul, do nascente ao poente, de Lisboa a Petersburgo e de Calais a Constantinopla, – sem sofrer paragens, sem mesmo mudar de vagão (viajando em trem expresso). Melhor do que isso: um coli lançado em uma gare irá encontrar o destinatário, não importa onde, seja na Turquia ou na Ásia Central sem outra formalidade para o expedidor do que escrever o lugar do destino em um retalho de papel.
Este resultado podia ser obtido de dois modos. Ou bem um Napoleão, um Bismark, um potentado qualquer teria conquistado a Europa e de Paris, de Berlim ou de Roma teria traçado em uma carta as direções das vias férreas e regulado a marcha dos trens. O idiota coroado Nicolau I sonhou proceder assim.
Quando lhe apresentaram projetos de caminhos de ferro entre Moscou e Petersburgo, pegou numa régua e traçou na carta da Rússia uma linha reta entre as duas capitais, dizendo: “Eis o traçado”. E o caminho fez-se em linha reta, por sobre ravinas profundas, levantando pontes vertiginosas que foi preciso abandonar a cabo de alguns anos, custando dois a três milhões em média por cada quilômetro.
Eis um dos meios, mas em outras partes procedeu-se de modo diferente. Os caminhos de ferro foram construídos por seções; estas foram ligadas entre si; e depois as companhias diversas a que as seções pertenciam procuraram entender- se para fazerem combinar os seus trens à chegada e à partida a fim de fazerem rodar sobre seus rails wagons de todas as proveniências sem descarregar as mercadorias na passagem duma rede para outra.
Tudo isso se fez por livre entendimento, por troca de cartas e de propostas, por congressos onde os delegados vinham discutir tal questão social, não para legislar, – e depois dos congressos os delegados voltavam às suas companhias, não com uma lei, mas com um projeto a retificar ou rejeitar.
É claro que houve dificuldades, houve teimosos que não se queriam deixar convencer. Mas o interesse comum acabou pondo todos de acordo sem ter de invocar exércitos contra os recalcitrantes.
Esta imensa rede de caminhos de ferro ligados entre si, e este prodigioso tráfico a que dão lugar, constituem, sem dúvida, o traço mais frisante do nosso século; – e devem-se ao livre entendimento. Se alguém o tivesse previsto e predito a cinquenta anos, os nossos avós o teriam julgado louco ou imbecil. Teriam dito: “Nunca fareis chegar à razão a cem companhias de acionistas! É uma utopia um conto de fadas que nos estais contando. Só um governo central, com um diretor de pulso o poderia impor”.
Ora bem! Pois o que há de mais interessante nesta organização é que não há nenhum governo central europeu de caminhos de ferro! Nada! Nem ministro de caminhos de ferro, nem ditador nem mesmo um parlamento continental, nem ainda um comitê dirigente! Tudo se faz por convenção.
E nós perguntamos ao estadista se pretende que “nunca se poderá passar sem governo central, ainda que só fosse para regular o tráfico”, perguntamos-lhe: “Mas como podem os caminhos de ferro passar sem ele? Como conseguem fazer viajar milhões de viajantes e montanhas de mercadorias através de todo um continente? Se as companhias proprietárias dos caminhos de ferro puderam entender-se, porque não se acordariam da mesma maneira os trabalhadores que tomassem posse dos caminhos de ferro? E se a companhia de Petersburgo – Varsóvia e a de Paris – Belford podem agir em conjunto sem se darem o luxo dum chefe para uma e para outra, por que razão no seio das nossas sociedades, constituída cada uma por um grupo de trabalhadores livres, seria preciso um governo?
II
Quando tentamos demonstrar por exemplo que mesmo hoje, apesar da iniquidade que preside à organização da sociedade atual, os homens, uma vez que seus interesses não sejam diametralmente opostos, sabem muito bem pôr-se de acordo sem intervenção da autoridade, não ignoramos as objeções que nos serão opostas.
Estes exemplos têm o seu lado defeituoso, porque é impossível citar uma única organização isenta da exploração do fraco pelo forte, do pobre pelo rico. É por isso que os estadistas não deixaram de nos dizer com a lógica que se lhe conhece: “Bem vedes que a intervenção do Estado é necessária para por termo a essa exploração”.
Unicamente, esquecendo as lições da história, não nos dirão até que ponto o Estado tem contribuído para agravar esse estado de coisas, criando o proletariado e entregando-o aos exploradores. E também se esquecerão de nos dizer se é possível fazer cessar a exploração enquanto as suas causas primárias, – o Capital individual e a miséria, continuarem a existir.
A propósito do completo acordo entre as companhias de caminho de ferro, é de prever que nos digam: “Não vedes como as companhias de caminhos de ferro espremem e maltratam os seus empregados e viajantes? É preciso que o Estado intervenha para proteger o público”.
Mas nós não temos dito e tantas vezes repetido que enquanto houver capitalistas esses abusos de poder se perpetuarão? É precisamente o Estado, o pretendido benfeitor, quem deu às companhias esse terrível poder que exercem hoje. Não criou as concessões, as garantias? Não enviou tropas contra os empregados dos caminhos de ferro em greve? E, ao princípio (isto ainda se vê na Rússia) não estendeu o privilégio até proibir à imprensa mencionar acidentes de estradas de ferro, para não depreciar as ações, de que de fez fiador? Não foi ele, com efeito, quem favoreceu o monopólio que sagrou os Vanderbilt como os Polijahofl, os diretores do P. L. M. e os de Golhard, “os Reis da época?”.
Logo, se damos como exemplo o entendimento tacitamente estabelecido entre as companhias de caminhos de ferro, não é como um ideal de direção econômica, nem mesmo como um ideal de organização teórica. É para mostrar que se capitalistas sem outro objeto senão o de aumentar seus lucros à custa de todo o mundo podem chegar a explorar as vias férreas sem fundarem para isso um escritório internacional, também sociedades de trabalhadores o poderão, tão bem e mesmo melhor, sem nomearem um ministério dos caminhos de ferro europeus.
Apresenta-se uma outra objeção mais séria na aparência. Poderiam dizer-nos que o entendimento de que falamos não é inteiramente “livre” que as grandes companhias dão a lei às pequenas. Poderiam citar por exemplo, tal rica companhia, obrigando os viajantes que vão de Berlim a Bale a passarem por Colônia e Frankfurt, em lugar de seguirem a estrada de Leipzig; tal outra mandando fazer às mercadorias circuitos de cem e de duzentos quilômetros (em longos percursos) para favorecer poderosos acionistas; tal outra enfim arruinando as linhas secundárias. Nos Estados Unidos, viajantes e mercadorias são obrigados algumas vezes a seguir traçados fantásticos para que os dólares afluam à algibeira de Vanderbilt.
Marx demonstrou muito bem como a legislação inglesa fez tudo para arruinar a pequena indústria, reduzir o camponês a miséria e entregar aos grandes industriais batalhões de “pés frescos” forçados a trabalhar por qualquer salário. Dá-se exatamente o mesmo quanto à legislação relativa aos caminhos de ferro e todas as mais indústrias. Quando Rothschild – credor de todos os Estados europeus – empata capital em tal ou tal caminho de ferro, os seus fiéis súbditos, os ministros, arranjam-se de modo que lhe façam ganhar mais.
Nos Estados Unidos, essa democracia que os autoritários nos dão como ideal, a fraude mais escandalosa está misturada em tudo o que diz respeito a caminhos de ferro. Se tal companhia mata os seus concorrentes por uma tarifa muito baixa, é porque se reembolsa por outro lado com as terras que o Estado lhe concedeu a troco de gorjetas. E quando nós vemos sindicatos de companhias de caminhos de ferro (ainda produto da liberdade de entendimento) chegarem algumas vezes a proteger as pequenas companhias contra as grandes, só temos que nos admirar da força intrínseca do livre acordo, apesar da onipotência do grande capital secundado pelo Estado.
Com efeito, as pequenas companhias vivem, a despeito da parcialidade do Estado e se em França, país de centralização, apenas vemos cinco ou seis grandes companhias, na Grã-Bretanha contam-se mais de 110, que se entendem às mil maravilhas e que certo são mais bem organizadas para o transporte rápido das mercadorias e dos viajantes que os caminhos franceses e alemães.
De mais, o que nos ocupa é isto: O entendimento entre as centenas de companhias a que pertencem os caminhos de ferro da Europa “estabeleceu-se diretamente sem intervenção dum governo central”, dando a lei às diversas sociedades. É um princípio que difere absolutamente do princípio governamental, monárquico ou republicano, absoluto ou parlamentar. É uma inovação que se introduz, ainda timidamente, nos costumes da Europa, mas que tem por si o futuro.
III
Quantas vezes não temos lido nos escritos dos socialistas – estadistas reclamações deste gênero: “E quem então se encarregará na sociedade futura de regular o tráfico nos canais? Se passasse pela cabeça dum dos vossos ‘companheiros’ anarquistas atravessar a sua barca em um canal e cortar o caminho aos milhares de barcos, – quem o faria voltar à razão?”.
Confessemos que a suposição é um pouco fantasista. Mas poder-se-ia acrescentar: “E se, por exemplo, tal Comuna ou tal grupo quisesse fazer passar as suas barcas adiante das outras, eles entupiriam o canal para carregar, talvez pedras, enquanto o trigo destinado a tal outra Comuna ficaria para trás. – Quem então regularia a marcha dos barcos, se não era o governo?” Ora pois, a vida real mostrou que se pode muito bem passar sem governo, aqui como em outra parte. O livre entendimento, e a livre organização substituem essa máquina custosa e nociva.
Sabe-se o que os canais para a Holanda, são suas estradas. Também se sabe o tráfico que se faz por esses canais. O que entre nós se transporta por uma estrada de ferro ou asfaltada, transporta-se na Holanda pelas vias dos canais. É lá que se poderiam bater para fazer passar os seus barcos primeiros que os outros. É lá que o governo deveria intervir para pôr ordem no tráfico.
Mais práticos, os holandeses, desde muito tempo tem sabido arranjar-se de modo diverso, criando espécies de “guildes”, sindicatos de barqueiros. Eram associações livres, surgidas das próprias necessidades da navegação. A passagem dos barcos fazia-se segundo uma ordem de inscrição, seguindo-se todos pela sua ordem. Nenhum devia meter-se adiante dos outros, sob pena de ser riscado do sindicato. Nenhum estacionava nos portos de embarque mais que um certo número de dias e se durante eles não arranjava carga, tanto pior para ele, partia vazio, mas deixava o lugar aos que chegavam de novo. O entupimento assim era impossível, mesmo com a concorrência dos empresários, consequência da propriedade individual. Suprimida esta e o entendimento será ainda mais cordial, mais equitativo para todos.
Pode ser, em todo o caso é muito provável que aqui mesmo o grande capital oprima o pequeno. Pode também acontecer que o sindicato tenha uma tendência para se erigir em monopólio, – principalmente com o patrocínio precioso do Estado, que não deixará de se ir lá meter. – Somente não esqueçamos que estes sindicatos representam uma associação cujos membros não tem senão interesses pessoais; mas que se cada armador fosse forçado pela socialização da produção, do consumo e da troca a fazer parte de cem outras associações necessárias à satisfação das suas necessidades, as coisas mudariam de aspecto. Poderoso sobre as águas, o grupo dos barqueiros sentir-se-ia fraco em terra firme e baixaria das suas pretensões, para se entender com os caminhos de ferro, as manufaturas e todos os outros agrupamentos. Eis, pois, uma associação que dispensou o governo.
Visto que estamos falando de navios e de barcos, mencionemos uma das mais belas organizações que surgiram no nosso século.
Sabe-se que cada ano mais de mil navios vem encalhar nas costas da Inglaterra. No mar um bom navio raras vezes teme a tempestade. É perto das costas que se esperam os perigos. Mar encapelado que lhe quebra as amaduras, golpes de vento que lhe levam os mastros e as velas, correntes que o tornam ingovernável, recifes e baixios ondos vem esbarrar.
Mesmo quando outrora os habitantes das costas acendiam fogueiras para atrair os navios para os recifes e apoderar-se, segundo o costume, das cargas, eles fizeram sempre o possível para salvar as equipagens. Avistando um navio em perigo, lançavam as suas cascas de nós e dirigiam-se em socorro dos náufragos, muitas vezes para encontrarem eles mesmos a morte nas vagas. Cada cabana à borda do mar tem a sua lenda de heroísmo, tanto desenvolvido pela mulher como pelo homem, para salvar as tripulações perdidas.
O Estado, os sábios fizeram alguma coisa para diminuir o número de sinistros. Os faróis, os sinais, as cartas, os avisos meteorológicos de certo os diminuíram muito, mas resta cada ano um milhar de navios e muitos milhares de vidas a salvar.
Assim alguns homens de boa vontade puseram-se ao trabalho. – Bons marinheiros, eles mesmo imaginaram um barco de salvação que pudesse afrontar a tempestade sem se afundar nem virar e abriram campanha para interessar o público na empresa, arranjar o dinheiro necessário, construir barcos e pô-los nas costas onde quer que pudessem prestar serviços.
Esses homens não eram jacobinos, não se dirigiam ao governo. Tinham compreendido que para levar a bom fim a sua empresa, precisavam do concurso, do entusiasmo dos marítimos, seu conhecimento dos lugares – principalmente da sua dedicação. E para achar homens que, ao primeiro sinal se lancem, de noite, no caos das vagas, nem pelos escolhos, e lutando cinco, seis, dez horas contra as ondas, antes de abordar o navio em angústia – homens prontos a sacrificar a sua vida para salvar a dos outros, – é preciso o sentimento de solidariedade, o espírito de sacrifício, que não se compra com galões.
Foi, pois, um movimento espontâneo saído do livre entendimento e da iniciativa individual.
Centenas de grupos locais surgiram ao longo das costas. Os iniciadores tiveram o bom senso de se não apresentarem como monstros procuraram as luzes: nas barcas dos pescadores. Um lorde mandava 25.000 francos, a uma aldeia próxima, para se construir um barco de salvação; a oferta era aceita, mas deixava-se a situação à escolha dos pescadores e marinheiros da localidade.
Tudo pelos voluntários, organizados em comitês ou grupos locais! Tudo pelo auxílio mútuo e pelo acordo: ó anarquistas – Assim eles nada pedem aos contribuintes e no ano passado lhes trazia um milhão e 76 mil francos de cotizações espontâneas.
Quanto aos resultados: a associação possuía em 1891, 293 barcos de salvação. Nesse mesmo ano salvava 601 náufragos e 33 navios e desde a sua fundação tem salvo 32.671 seres humanos. Notemos de passagem que a associação envia todos os anos aos pescadores e aos marinheiros excelentes barômetros por um preço três vezes menor que o seu valor real. Propaga os conhecimentos meteorológicos e conserva os interessados ao corrente das variações súbitas previstas pelos sábios.
Repetimos que as centenas de comitês ou grupos locais, não os organizados hierarquicamente e compõem-se unicamente dos voluntários- salvadores e das pessoas que se interessam por esta obra. O comitê central que é antes um centro de correspondências, não intervém de modo algum.
Tomemos uma outra sociedade do mesmo gênero: a Cruz Vermelha. Imaginai alguém vindo dizer a vinte anos: “O Estado, por mais capaz que seja de fazer massacrar vinte mil homens num dia ou ferir cinquenta mil, é incapaz de dar socorro às suas próprias vítimas. É preciso, pois, enquanto existir a guerra, – que a iniciativa particular intervenha e que os homens de boa vontade se organizem internacionalmente para esta obra da humanidade!”.
Que dilúvio de troças não teria caído sobre quem falasse de semelhante modo! Primeiro tratavam-no de utopista, depois respondiam-lhe: “Os voluntários faltarão precisamente onde serão mais precisos. Os hospitais livres serão todos centralizados em lugar seguro, enquanto às ambulâncias faltará o necessário. As rivalidades nacionais farão de modo que os pobres soldados morrerão sem socorros”. Tanto discursadores, tantas reflexões desanimadoras.
Quem é que não ouviu perorar neste tom? Pois bem, é sabido o que se passa. Sociedades da Cruz Vermelha organizaram-se livremente, em toda parte, em cada país em milhares de localidades e quando rebentou a guerra 1870-71, os voluntários puseram-se em ação. Vieram oferecer os seus serviços homens e mulheres de hospitais e ambulâncias, víveres, roupas, medicamentos para os feridos. Os comitês ingleses mandaram comboios inteiros de alimento, roupas, utensílios, grãos para semear, animais de carga, até charruas a vapor com homens para ajudar a lavoura dos departamentos devastados pela guerra!
Consulte-se somente “A Cruz Vermelha” por Gustavo Moynier e ficar-se-á pela imensidade da tarefa executada.
A dedicação dos voluntários da Cruz Vermelha foi superior a todo o elogio. Eles não podiam senão ocupar os postos mais perigosos; e enquanto médicos pagos pelo Estado fugiam com o seu estado-maior à aproximação dos prussianos, os voluntários da Cruz Vermelha continuavam a sua tarefa debaixo das balas, suportando as brutalidades dos oficiais bismarkinos e napoleônicos, prodigalizando os seus cuidados aos soldados de todas as nacionalidades: holandeses e italianos, suecos e belgas, – até aos japoneses e chineses – se entendiam maravilhosamente. Repartiam seus hospitais e ambulâncias segundo as necessidades do momento; rivalizavam sobre tudo pela higiene de seus hospitais. E quantos franceses não falam ainda, com uma gratidão profunda, dos ternos cuidados que receberam da parte de tal voluntária holandesa ou alemã nas ambulâncias da Cruz Vermelha!
Eis portanto uma organização, nascida de ontem, e que conta neste momento os seus membros por centena de milhares, que possui ambulâncias, hospitais, trens, que elabora processos novos no tratamento das feridas devido à iniciativa espontânea de alguns homens de coração.
Talvez se diga que os Estados são alguma coisa nesta organização. – Sim, os Estados puseram-lhe a mão para apoderarem dela. Os comitês dirigentes são presididos por quem os lacaios chamam príncipes de sangue. Imperadores e rainhas dispensam o seu patrocínio aos comitês nacionais. Mas não é a esse patronato que se deve o sucesso da organização. É a mil comitês locais de cada nação, à atividade dos indivíduos, à dedicação de todos os que buscam aliviar as vítimas da guerra. E essa dedicação seria bem maior, se os Estados se não metessem absolutamente de permeio.
Podemos lamentar que tão grandes esforços sejam postos ao serviço duma causa tão má e perguntamos como o filho do poeta: “Para que as ferem, se as curam depois?” Procurando demolir a força do Capital e o poder dos burgueses, nós trabalhamos para pôr fim às matanças e antes quereríamos ver os voluntários da Cruz Vermelha desenvolverem a sua atividade para chegarem conosco a suprimir a guerra. Mas devíamos mencionar esta imensa organização como uma prova a mais dos resultados do livre entendimento e da livre assistência.
Citaremos ainda as inúmeras sociedades às quais o exército alemão deve principalmente a sua força, que não depende só da disciplina, como geralmente se acredita. Estas sociedades pululam na Alemanha e tem por fim propagar os conhecimentos militares.
Num dos últimos congressos da “Aliança militar” (Kriegerbund), viram-se delegados de 2.452 sociedades, compreendendo 151.712 membros, e todas federadas entre si. É uma formidável rede de sociedades, englobando militares e civis, geógrafos e ginastas, caçadores e técnicos, que surgem espontaneamente, organizam-se, federam-se, discutem e vão fazer explorações no campo. São estas associações voluntárias e livres que fazem a verdadeira força do exército alemão.
O fim é execrável, mas o que nos importa salientar, é que o Estado compreendeu apesar da sua grandíssima missão, a organização militar – compreendeu que o seu desenvolvimento seria tanto mais certo, como fosse abandonado ao livre entendimento dos grupos e à livre iniciativa dos indivíduos.
Mesmo em matéria de guerra, é ao livre entendimento que todos se dirigem hoje, e para confirmar a nossa asserção basta lembrar os trezentos mil voluntários ingleses, a Associação internacional de artilharia e a Sociedade em via de formação para a defesa das costas da Inglaterra, que certamente, se se constituir, será ativa diversamente do ministério da marinha com os seus couraçados que saltam e as suas baionetas que dobram como chumbo.
Mas todos os fatos que vimos de citar apenas permitem entrever o que o livre entendimento nos reserva no futuro, quando não houver mais Estados.
OBJEÇÕES
I
Examinemos agora as principais objeções que são opostas no comunismo.
A maior parte provém evidentemente dum mal-entendido; mas algumas levantam questões importantes e merecem toda a nossa atenção.
Não temos que nos ocupar em repelir as objeções que são feitas ao comunismo autoritário: nós mesmos as constatamos. As nações civilizadas demasiado tem sofrido na luta que devia tender à libertação do indivíduo, para poderem relegar o seu passado e tolerar um governo que viesse impor-se até nos menores detalhes da vida do cidadão, mesmo quando esse não tivesse outro fim senão o bem da humanidade. Se, alguma vez uma sociedade comunista autoritária chegasse a constituir-se, pouco duraria e seria bem cedo obrigada pelo descontentamento geral, ou a dissolver-se, ou a reorganizar-se sob princípios de liberdade.
É duma sociedade comunista-anarquista que nos vamos ocupar, duma sociedade que reconheça a liberdade plena e integral do indivíduo, que não admita nenhuma autoridade, que não use de nenhum constrangimento para obrigar o homem ao trabalho. Limitando-nos nestes estudos ao lado econômico da questão, vejamos se, composta de homens tais como eles são hoje, – nem melhores, nem piores, nem mais nem menos laboriosos, – esta sociedade teria probabilidades de se desenvolver felizmente?
A objeção é conhecida: “Se a existência de cada um está assegurada e se a necessidade de ganhar um salário não obriga o homem a trabalhar, ninguém trabalhará. Cada um descarregará sobre os outros os trabalhos que não é obrigado a fazer.” Levantemos primeiro a incrível leviandade com que se lança esta objeção sem crer que a questão se reduz, na realidade, a saber se, duma parte, se do trabalho salariado se tiram efetivamente os resultados que se pretende obter? E se, doutra parte, o trabalho voluntário não é hoje mais produtivo que o trabalho estimulado pelo salário? Questão que demandaria um estudo aprofundado. Mas enquanto nas ciências exatas ninguém se pronuncia sobre objetos infinitamente menos importantes e menos complicados senão depois de sérios estudos, se recolhem cuidadosamente os fatos e se lhes analisam as relações, aqui há quem se contente com um fato qualquer, por exemplo, o insucesso de uma associação de comunistas na América – para decidir sem recurso. Fazem como o advogado que não vê no colega adverso o representante duma causa ou duma opinião contrária à sua, mas um simples competidor num torneio oratório; e que, se tem a sorte de achar a réplica, não cuida em achar outro meio de ter razão.
É por isso que o estudo desta base fundamental de toda a economia política, – o estudo das condições mais favoráveis para dar à sociedade a maior sombra de produtos úteis com a menor perda de forças humanas, não avança.
O que faz esta leviandade tanto mais tocante é que, mesmo na economia política capitalista, já se encontram certos escritores, levados pela força das coisas a pôr em dúvida este axioma dos fundadores da sua ciência, axioma segundo o qual a ameaça da fome seria o melhor estimulante do homem para o trabalho produtivo. Começam a perceber que entra na produção um certo elemento coletivo, muito desdenhado até aos nossos dias e que bem podia ser mais importante que a perspectiva do ganho pessoal. A qualidade inferior do trabalho salariado, a perda assustadora de força humana, nos trabalhos de agricultura e da indústria moderna; a quantidade sempre crescente de gozadores que hoje procuram descarregar-se sobre os braços dos outros, a ausência dum certo ardor na produção, que se manifesta cada vez mais, - tudo isso começa a preocupar os economistas da escola “clássica”. Alguns dentre eles perguntam-se se não erraram raciocinando sobre um ente imaginário, idealizado em feio, que se supunha ser guiado exclusivamente pelo engodo do ganho ou do salário? Esta heresia chega a penetrar nas universidades: há quem a avente nos livros de ortodoxia economista. O que não impede de um grande número de reformadores socialistas de ficarem partidários da remuneração individual e de defenderem a velha cidadela do salariado, mesmo quando os seus defensores de outrora a entregam já, pedra por pedra, aos assaltantes.
Assim temem que sem compreensão a massa não queira trabalhar. Mas não temos nós já na nossa vida ouvido exprimir estas mesmas apreensões por duas vezes, pelos escravagistas dos Estados Unidos antes da libertação dos negros e pelos senhores russos antes da libertação dos servos? “Sem o chicote, o negro não trabalhará” – diziam os escravagistas.
“Longe da vigilância do senhor, o servo deixará os campos incultos”, diziam os boyardos russos.
Estribilho dos senhores franceses de 1789, estribilho da idade média, estribilho velho como o mundo, ouvimo-lo cada vez que se trata de reparar uma injustiça da humanidade.
E de cada vez a realidade lhe vem dar um desmentido formal. O camponês liberto em 1792 trabalhava com uma energia feroz, desconhecida dos seus antepassados; o negro liberto trabalha mais que seus pais e o campônio russo, depois de ter honrado a lua de mel da sua alforria, festejando a Sexta-feira Santa como igual ao domingo, retomou o trabalho com tanto mais energia, quanto a laboração foi mais completa. Onde quer que a terra não lhe falte, ele lavra encarniçadamente, – é o termo.
Além disso, quem então, senão os economistas, nos ensinou que se o assalariado se desempenha, quer bem quer mal, da sua obrigação, um trabalho intenso e produtivo não se obtém senão do homem que vê o seu bem-estar crescer em razão dos seus esforços? Todos os cânticos entoados em honra da propriedade reduzem-se precisamente a este axioma.
Porque, – coisa notável, – quando alguns economistas, querendo celebrar os benefícios da propriedade, nos mostram como uma terra inculta, um pântano ou um solo pedregoso se cobrem de ricas searas sob o suor do camponês – proprietários, de modo nenhum provam a sua tese em favor da propriedade. Admitindo que a única garantia para não ser espoliado dos frutos do seu trabalho seja possuir os instrumentos de trabalho – o que é verdade, - provam somente que o homem não produz realmente senão quando trabalha em toda a liberdade, que tem uma certa escolha das suas ocupações, que não tem vigia para o incomodar e que enfim vê o seu trabalho aproveitar-lhe, assim como a outros que fazem como ele e não a um ocioso qualquer. É tudo que se pode deduzir da sua argumentação e o que nós também afirmamos.
Quanto à forma de posse do instrumento de trabalho, isso não intervém senão indiretamente na sua demonstração para assegurar ao cultivador que ninguém lhe arrancará o benefício dos seus produtos nem das suas benfeitorias. – E para apoiar a sua tese em favor da “prosperidade” contra qualquer outra forma de “posse”, não deveriam os economistas demonstrar-nos que sob a forma de posse comunal, a terra nunca produz tão ricas searas como quando a posse é pessoal? Ora isso não é, o contrário é o que se constata.
Vede uma comuna no cantão de Vaud, quando todos os homens da aldeia vão no inverno abater a madeira na floresta, que é de todos. Pois bem, é precisamente durante estas festas do trabalho que se mostra o maior ardor na tarefa e o maior ardor e o mais considerável desenvolvimento da força humana.
Ou então tomai uma aldeia russa, da qual todos os habitantes vão ceifar um prado pertencente à comuna ou arrendado a ela, é lá que compreendereis o que o homem “pode” produzir quando trabalha em comum para uma obra comum. Os companheiros rivalizam entre si quem traçará com a sua foice o círculo mais largo. Ao lado dos maridos as mulheres empenham-se em não lhes ficarem atrás.
É ainda uma festa de trabalho, durante a qual cem pessoas fazem em algumas horas o que seu trabalho executado separadamente não teria acabado em alguns dias. Que triste contraste faz ao lado disto o trabalho do proprietário isolado!
Poderíamos enfim citar milhares de exemplos entre os pioneiros da América, nas aldeias da Suíça, Alemanha, Rússia e certas partes da França; os trabalhos feitas na Rússia pelas esquadras de pedreiros, carpinteiros, barqueiros, pescadores etc., que empreendem uma tarefa para repartirem diretamente os lucros ou mesmo a remuneração sem passar pelas mãos do intermediário.
O bem-estar sempre foi o mais poderoso estímulo ao trabalho. O trabalhador livre que vê o bem-estar e o luxo aumentar em proporção dos seus esforços, desenvolve infinitamente mais energia e obtém os produtos de primeira ordem muito mais abundantes.
Nisso está todo o segredo. É por isso que uma sociedade que visa o bem-estar de todos e à possibilidade de todos gozarem a vida em todas as suas manifestações, fornecerá um trabalho voluntário infinitamente mais considerável do que a produção obtida até agora sob o aguilhão da escravidão e do salariado.
II
Todo aquele que pode hoje aliviar-se sobre outros do trabalho indispensável à existência, apressa-se em fazê-lo – e está admitindo que será sempre assim. Ora, o trabalho indispensável à existência é essencialmente manual. Sejamos artistas ou sábios, nenhum de nós e pode privar dos produtos obtidos pelo trabalho dos braços: pão, vestuário, estradas, navios, luz, calor etc. Até dos nossos gozos, não hã um que não se baseie no trabalho manual. E é precisamente deste labor, fundamento da vida, que se querem descarregar.
Compreendemo-lo perfeitamente. Hoje assim deve ser.
Porque, fazer um trabalho manual significa encerrar-se dez ou doze horas por dia num atelier doentio, ou ficar dez anos, trinta anos, toda a vida, agarrado à mesma tarefa.
Isto significa a condenação a um salário reles, à inferioridade por toda a vida perante toda a gente e até a seus próprios olhos, porque, digam o que quiserem os belos senhores, – o trabalhador manual é sempre considerado inferior ao trabalhador do pensamento, e quem penou dez horas no atelier não tem tempo e menos ainda meios de se dar os altos gozos da ciência e da arte, nem sobretudo preparar-se para os apreciar; deve contentar-se com as migalhas que caem da mesa dos privilegiados.
Compreendemos, pois, que todos tenham uma só aspiração: sair, ou fazer sair seus filhos desta condição inferior: de se criar, uma situação “independente”, isto é – viver também do trabalho alheio!
Assim será enquanto houver uma classe de trabalhadores de braços e outra classe de trabalhadores do pensamento – mão negras e mãos brancas – será sempre assim.
Com efeito, que interesse pode ter este trabalho embrutecedor para o obreiro, que antecipadamente conhece a sua sorte, que desde o berço até a campa há de viver na mediocridade, na pobreza, na incerteza do dia de amanhã? Assim, quando se vê a imensa maioria dos homens retomar todas as manhãs a triste tarefa, fica-se surpreendido da sua perseverança que lhes permite, como uma máquina, obediente e cega, ao impulso que lhe dão, de levar esta vida de miséria, sem esperança no dia de amanhã, sem mesmo entrever em vagos clarões que um dia eles, ou ao menos seus filhos, farão parte desta humanidade, rica enfim de todos os tesouros da livre natureza, de todos os gozos do saber e da criação científica e artística, reservados hoje a alguns privilegiados.
É precisamente para pôr fim a esta separação entre o trabalho mental e o trabalho manual, que nós queremos abolir o salariado, que queremos a Revolução social. Então já o trabalho não se apresentará como uma maldição da sorte, tornar-se-á o que deve ser: o livre exercício de “todas” as faculdades do homem.
Seria tempo, além disso, de submeter a uma análise rigorosa essa lenda de trabalho superior que se pretende obter debaixo do açoite do salário.
Basta visitar, não a manufatura e a oficina modelos que se encontram aqui e ali em estado de exceções, mas as oficinas tais como elas são ainda quase todas, para considerar o imenso desperdício de forças humanas que caracteriza a indústria atual.
Por uma fábrica organizada mais ou menos racionalmente, há cem ou mais que malbaratam o trabalho do homem, essa força precisa, sem outro motivo mais sério que o de procurar talvez dois soldos a mais para o patrão.
Aqui vereis moços de vinte a vinte e cinco anos, todo o dia sobre um banco, o peito oprimido, sacudindo febrilmente a cabeça e o corpo para atar com uma ligeireza de prestidigitador as duas pontas de maus restos de fios de algodão que sobraram do tear de rendas. Que progênie deixarão no mundo estes corpos trêmulos e raquíticos. Mas… “eles ocupam tão pouco lugar na oficina e rendem cada um cinquenta cêntimos por dia”, dirá o patrão.
Vereis além, numa imensa oficina de Londres, moças encalvecidas aos dezessete anos, a força de conduzir à cabeça, duma sala para outra, pratos de fósforos, enquanto a mais simples máquina poderia carrear os fósforos para as suas mesas. Mas… custa tão pouco o trabalho das mulheres que não tem ofício especial! Uma máquina para que? Quando aquelas não puderem mais, facilmente se substituem… Há tantas por aí na rua!
E por toda a parte assim, de S. Francisco a Moscou, de Nápoles a Estocolmo. O estrago das forças humanas é o traço predominante distintivo da indústria – sem falar do comércio, onde atinge proporções ainda mais colossais.
Ainda não é tudo. Se falardes ao diretor duma oficina bem organizada, ele vos explicará ingenuamente que hoje é difícil achar um obreiro hábil, vigoroso, enérgico, que se entregue ao trabalho com denodo. Se um se apresenta, dirá, entre os vinte ou trinta que vêm todas as segundas-feiras pedir-nos trabalho, ele tem a certeza de ser recebido, ainda mesmo que estejamos tratando de reduzir o número de braços. È reconhecido ao primeiro golpe de vista e aceita-se sempre, embora tenhamos de nos desfazer no outro dia dum obreiro idoso ou menos ativo: E aquele que acaba de ser despedido e todos os que seguirem amanhã, vão juntar-se a essa imensa reserva do capital – os obreiros sem trabalho, – que se não chamam aos teares e aos bancos senão em momentos de pressa ou para vencer a resistência dos grevistas. Ou ainda, esse refugo das melhores oficinas, esse trabalhador mediano vai reunir-se ao grande exército, também formidável de obreiros velhos ou medíocres, que circula continuamente entre as oficinas secundárias, as que apenas salvam as despesas e que se tiram de dificuldades por truques e embustices ao comprador e sobretudo ao consumidor dos países distantes.
E se falardes ao próprio trabalhador, sabereis que a regra dos atelieres é que o obreiro nunca faça aquilo que é capaz. Desgraçado daquele que, numa oficina inglesa, não seguisse este conselho que à entrada recebe dos camaradas.
Porque os trabalhadores sabem que se num momento de generosidade, cederam às instâncias dum patrão e consentirem em intensificar o trabalho para acabar obras urgentes, de então em diante esse trabalho nervoso será exigido como regra na escala dos trabalhos. Assim em nove oficinas por dez, preferem nunca produzir o que podem. Em certas indústrias limita-se a produção para manter os preços elevados e às vezes passa-se a palavra de ordem de “Cocanny”, que significa: “para má paga mau trabalho!”.
O trabalho salariado é um trabalho de servo: não pode nem deve dar tudo quanto poderia dar. Se a indústria rende atualmente cem vezes mais do que no tempo dos nossos avós, deve-se ao súbito despertar das ciências físicas e químicas no fim do século passado; não a organização capitalista do trabalho salariado, mas contra a vontade desta organização.
III
Os que estudaram seriamente a questão não negam nenhuma das vantagens do comunismo – com a condição, bem entendido, que seja completamente livre, isto é, anarquista. – Reconhecem que o trabalho pago em dinheiro, mesmo disfarçado sobre o nome de bônus, em associações obreiras governadas pelo Estado, guardaria estigma de salariado, e conservaria os seus inconvenientes. Constatam que todo o sistema não tardaria a sofrer, disso, mesmo quando a sociedade reentrasse na posse dos instrumentos de produção. E admitem que, graças à educação integral dada a todos os filhos, aos hábitos laboriosos das sociedades civilizadas, com a liberdade de escolher e variar de profissões e o atrativo do trabalho feito por iguais para o bem-estar de todos, uma sociedade comunista não teria falta de produtores, que bem depressa triplicariam e decuplicariam a fecundidade do solo e dariam um novo avanço à indústria.
Eis no que convêm os nossos contraditores, “mas o perigo, dizem eles, virá dessa minoria de ociosos que não quererão trabalhar, apesar das excelentes condições que tornarão o trabalho agradável, ou que lhe não suscitam o espírito de continuação. Hoje a perspectiva da fome obriga os mais refratários a caminhar com os outros. Aquele que não chega à hora fixada é logo despedido. Mas basta uma ovelha sarnosa para contaminar um rebanho ou três ou quatro obreiros negligentes ou recalcitrantes para desencaminharem todos ou outros e introduzirem no atelier o espírito de revolta que torna o trabalho impossível, de sorte que no fim das contas não haverá remédio senão voltar a um sistema que force os cabeças a reentrar nas fileiras. Ora bem, o único sistema que permite exercer esta pressão sem atingir os sentimentos do trabalhador não será a remuneração conforme o trabalho executado? Pois que qualquer outro meio implicaria a intervenção contínua duma autoridade, que cedo repugnaria o homem livre.
Eis, segundo cremos, a objeção em toda a sua força, pretendendo justificar o Estado, a lei penal, o juiz e o carcereiro.
Poderíamos limitar-nos a responder o que tantas vezes temos repetido a propósito da autoridade em geral. “Para evitar um mal possível, recorreis a um meio que é por si mesmo um mal maior e que é a causa dos mesmos abusos a que vos quereis opor. Pois não esqueçais que é o salariado, - a impossibilidade de viver doutra maneira que não seja vender a sua força de trabalho, - que criou o sistema de capitalismo atual, cujos vícios começais a reconhecer.” O salariado nasceu da escravidão e da servidão (imposto pela força) de que não é uma modificação modernizada. Assim o argumento não tem mais valor do que os outros com que se pretende desculpar a propriedade e o Estado.
Entretanto vamos examinar esta objeção e ver o que ela poderia ter de justo. Primeiro, não é evidente que se uma sociedade no princípio do trabalho livre fosse realmente ameaçada pelos ociosos, poderia livrar-se sem se dar uma organização autoritária ou recorrer ao salariado.
Suponha-se um grupo dum certo número de voluntários, unindo-se em uma empresa qualquer, para o êxito da qual rivalizem de zelo, menos um dos associados que frequentemente falta ao seu posto; deverão por causa dele dissolver o grupo, nomear um presidente que imponha multas, ou como na Academia distribuir senhas de presença? É evidente que não farão nada disso, mas que um dia digam ao camarada que ameaça fazer periclitar a empresa: “Meu amigo, nós gostaríamos bem de trabalhar contigo, mas como faltas amiúde no teu posto, ou fazes negligentemente o teu serviço, devemos separar-nos. Vai procurar outros camaradas que se acomodem à tua negligência!”.
O mesmo se passa com a manutenção dum certo nível moral na sociedade. Pretende-se que isso é devido ao guarda campestre, ao juiz e ao policial; enquanto que na realidade ela mantém-se “apesar” do juiz, do policial e do guarda campestre. – “Muitas leis, muitos crimes”.
– Isto foi dito muito antes de nós.
Não é só nos ateliers industriais que as coisas se passam assim, pratica-se em toda a parte, diariamente, numa escala de que só os roedores de livros podem ainda duvidar.
Quando uma companhia de caminhos de ferro federada com outras companhias falta aos seus compromissos, quando chega atrasada com seus trens e deixa as mercadorias demoradas nas suas estações as outras companhias ameaçam resilir os contratos e isto de ordinário é suficiente.
Crê-se geralmente, ao menos, ensina-se – que o comércio não é fiel aos seus compromissos senão com medo dos tribunais; não é verdade. Nove vezes em dez, o comerciante que falta à sua palavra não é levado a juízo. Aliás onde o tráfico é mais ativo como Londres, só o fato de levar um devedor a defender-se bastará a imensa maioria dos negociantes para que deixem de ter negócios com aquele que os tiver feito confabular com o advogado.
Mas então por que não se faria numa sociedade baseada no trabalho voluntário o que fazem hoje entre companheiros de ateliers, comerciantes e companhias de caminhos de ferro?
Uma associação, por exemplo, que estipulasse com cada um dos seus membros o contrato seguinte: – “Nós estamos prontos a garantir-vos o gozo das nossas casas, armazéns, ruas, meios de transporte, escolas, museus etc., com a condição que dos vinte aos quarenta e cinco ou cinquenta anos consagreis quatro ou cinco horas diárias a um dos trabalhos reconhecidos necessários para viver. Escolhei vós mesmo, quando quiserdes os grupos de que quiserdes fazer parte, ou constituir um novo, contanto que se encarregue de produzir o necessário. E para o resto do vosso tempo, agrupai-vos com quem quiserdes no sentido duma recreação qualquer d’arte ou da ciência a vosso gosto.
“Mil e duzentas ou mil e quinhentas horas de trabalho por ano é tudo quanto se vos pede para vos garantir o que estes grupos produzem ou tem produzido. Mas se nenhum dos milhares de grupos da nossa federação, por qualquer motivo vos não querer receber, se sois absolutamente incapaz de produzir coisa útil, ou o não quereis fazer, então vivei como um isolado ou um doente. Se formos bastante ricos para vos não recusarmos o necessário, teremos muito prazer em vo-lo dar. Sois homem e tendes direito à vida, mas colocando-vos em condições especiais, é mais que provável que disso vos ressentireis nas vossas relações cotidianas com os outros cidadãos. Sereis considerado como um egresso da sociedade burguesa, a menos que reconhecendo-vos como um gênio senão apressem a dispensar-vos de todo o trabalho. E enfim, se isto não vos agrada, procurai por esse mundo outras condições. Ou arranjai aderentes e constituí outros grupos que se organizem sobre novos princípios. Nós preferimos os nossos”.
Eis o que se poderia fazer numa sociedade comunista, se os ociosos nela se tornassem assaz numerosos para ser preciso defender-se deles.
IV
Mas duvidamos muito que haja ocasião de temer esta eventualidade numa sociedade realmente baseada sobre a liberdade inteira do indivíduo.
Com efeito, apesar do prêmio à ociosidade oferecido pela posse individual do capital, o homem verdadeiramente preguiçoso é relativamente raro, uma vez que não seja um doente.
Diz-se muitas vezes entre os trabalhadores que os burgueses são mandriões. Há bastantes, com efeito mas estes são ainda a exceção. Por contrário em cada empresa industrial tem-se a certeza de encontrar um ou mais burgueses que trabalham muito. É verdade que o grande número dos burgueses aproveita a sua situação privilegiada para tomar a si os trabalhos menos penosos e que trabalha em condições higiênicas, de alimento, ar etc., que lhe permitem fazer o seu trabalho sem grande fadiga. Ora, são essas precisamente as condições que reclamamos para todos os trabalhadores sem exceção.
Também é preciso dizer que, graças à sua condição privilegiada, os ricos fazem muitas vezes trabalho absolutamente inútil ou mesmo prejudicial a sociedade. Imperadores, ministros, chefes de repartição, diretores de oficinas, comerciantes, banqueiros etc. sujeitam-se a fazer durante certas horas por dia, um trabalho que ele acham mais ou menos enfadonho, – preferindo todos as suas horas de folga a esta tarefa obrigatória. E se, em nove casos por dez, esta tarefa é funesta, eles nem por isso a acham menos fatigante. Mas é precisamente porque os burgueses empregam a maior energia em fazer o mal (cientemente ou não) e em defender a sua posição privilegiada, que venceram a nobreza campesina e continuam a dominar a massa popular. Se eles fossem ociosos há muito teriam desaparecido como os talões vermelhos.
Quanto à ociosidade da imensa maioria dos trabalhadores, só os economistas e os filantropos falam nisso. Falai a esse respeito a um industrial inteligente e ele vos dirá que se se metesse na cabeça dos trabalhadores serem mandriões, não haveria outra coisa a fazer senão fechar todas as oficinas; porque nenhuma medida de severidade, nenhum sistema de espionagem conseguiria nada. Era bom ver no último inverno o terror provocado nos industriais ingleses quando alguns agitadores começaram a pregar o co-canny, “má paga, mau trabalho”: cedam à força, não se ralem e estraguem o mais que puderem!
– “Desmoralizam o trabalhador, querem matar a indústria!” gritavam aqueles mesmos que antes trovejavam contra a imoralidade do obreiro e a má qualidade dos seus produtos.
Assim, quando se fala da ociosidade possível, é bom compreender que se trata duma minoria ínfima na sociedade. E antes de legislar contra esta minoria, não seria mais urgente conhecer-lhe a origem?
Quem observar com um olhar inteligente sabe que a criança reputada preguiçosa na escola, muitas vezes compreende mal o que lhe é mal-ensinado.
Muitas vezes também, o seu caso provêm de anemia cerebral, resultado da pobreza e duma educação anti-higiênica.
Rapaz preguiçoso para o latim e o grego, trabalharia como um negro se lhe iniciassem nas ciências, principalmente por intermédio do trabalho manual.
Uma mocinha tida como nula em matemática, torna-se a primeira matemática de sua classe se por acaso dá na mão de alguém que soube explicar-lhe o que ela não compreendia nos elementos de aritmética. E um obreiro, desmazelado na oficina, cava no seu jardim desde a aurora do nascer do sol, até de tarde ao anoitecer.
Os preguiçosos são criaturas levadas por uma via que não corresponde nem ao seu temperamento nem à sua capacidade.
Ao ler as biografias dos grandes homens, fica-se impressionado com o número de preguiçosos entre eles. Preguiçosos enquanto não acharam o seu caminho e laboriosos incansáveis mais tarde. Darwin, Stephenson e tantos outros eram deste número. O ocioso é um revoltado que não concebe porque há de ficar uma vida inteira a fazer a décima oitava parte dum alfinete ou a centésima parte de um relógio, ou amarrado a um banco para proporcionar prazer ao patrão, enquanto se sente muito menos besta do que este, e que não tem outra culpa senão ter nascido numa choça em lugar de vir ao mundo num palácio.
Outros descoroçoaram vendo que por mais que queiram não conseguem ser perfeitos no trabalho a que forem arrastados e não sabendo outro, aborreceram o trabalho em geral. Milhares de obreiros e artistas “manqués” estão neste caso.
Pelo contrário, aquele que, desde criança, aprende a tocar “bem” piano, manejar “bem” a polaina, o cinzel, o pincel ou a lima, sentindo que o que faz é “belo”, não abandonará nunca o piano, o cinzel ou a lima. Achará prazer no seu trabalho, que o não fatigará enquanto o não pratique em excesso.
Sob uma única denominação (preguiça) agrupam uma série de resultados devidos a diversas causas, cada uma das quais poderia tornar-se um manancial de bem, em vez de ser um mal para a sociedade. Aqui, como para a criminalidade, como para todas as questões concernentes às faculdades humanas, reuniram-se fatos que não tem entre si nada de comum. Diz-se preguiça ou crime, sem mesmo dar o trabalho de lhes analisar as causas. Empenham-se em os castigar, sem se perguntar se no próprio castigo se não contém um prêmio à “preguiça” ou ao “crime”.
Eis porque uma sociedade livre, vendo o número de ociosos aumentar no seu seio, pensaria, sem dúvida, em rebuscar as causas da sua preguiça para as extinguir, antes de recorrer aos castigos. Quando se trata, como já dissemos, dum simples caso de anemia cerebral: “Antes de carregar de ciência o cérebro da criança, daí-lhe primeiro sangue, fortificai e, para que não perca o seu tempo, levai-a ao campo ou a borda do mar. Aí ensinai-lhe ao ar livre, em não em livros, a geometria, medindo com ela as distâncias até aos rochedos próximos; ela aprenderá as ciências naturais colhendo as flores e pescando no mar; – a física, fabricando o barco em que há de ir pescar. – Mas por favor, não lhe enchais o cérebro de frases e de línguas mortas. Não façais do menor um preguiçoso”.
Um rapaz não tem hábito de ordem e de regularidade. Deixai que os rapazes lhos inculquem entre eles. Mais tarde o laboratório e a oficina, o trabalho num espaço apertado, com muitos utensílios a manejar, lhe darão o método. Não vedes que com os vossos métodos de ensino, elaborados por um ministro para oito milhões de alunos, que representam oito milhões de capacidades diferentes, não fazei mais do que impor um sistema bom para mediocridades, imaginado por uma média de medíocres. A nossa escola torna-se uma universidade da preguiça, como a vossa prisão é uma universidade do crime.
Dai ao obreiro que não pode adstringir-se a fabricar uma minúscula fração de qualquer artigo, que abafa junto duma pequena máquina de fazer buracos, que acaba por odiar, dai-lhe a possibilidade de cavar a terra, cortar árvores na floresta, correr no mar contra a tempestade, sulcar o espaço na locomotiva, mas não obrigueis a ficar toda a vida a vigiar uma pequena máquina de abrir buracos ou a fazer bicos de alfinetes!
O SALARIADO COLETIVISTA
I
Nos seus planos de reconstrução da sociedade, os coletivistas cometeram, na nossa opinião, um duplo erro. Falando em abolir o regime capitalista, quereriam manter, entretanto, duas instituições que fazem o fundo desse regime: o governo representativo e o salariado.
Pelo que toca o governo “chamado” representativo, já falamos muitas vezes. É-nos absolutamente incompreensível que homens inteligentes – e não faltam no partido coletivista – possam conservar-se partidários dos parlamentos nacionais ou municipais após todas as lições que a história nos tem dado a esse respeito, em França, na Inglaterra, na Alemanha, na Suíça ou nos Estados Unidos.
Enquanto de todos os lados vemos o regime parlamentar afundar-se e surgir de todos os lados a crítica “dos próprios princípios” do sistema – e já não só da sua aplicação, como é que socialistas revolucionários defendem esse sistema condenado a morrer?
Elaborado pela burguesia para fazer frente a realeza, consagrar ao mesmo tempo e consagrar o seu domínio sobre os trabalhadores, o sistema parlamentar é a forma por excelência do regime burguês. Pelo regime parlamentar a burguesia procurou simplesmente opor um dique à realeza, sem dar a liberdade ao povo. Mas à medida que o povo se torna mais consciente dos seus interesses, o sistema não pode mais funcionar. Os democratas de todos os países imaginam inutilmente diversos paliativos; falam de representação proporcional, de representação das minorias – outras utopias parlamentares. Esforçam-se, numa palavra, em busca do inencontrável. Mas é forçoso reconhecer que erram o caminho e a confiança num governo representativo desaparece.
Dá-se o mesmo com o salariado: porque depois de ter proclamado a abolição da propriedade privada e a posse em comum dos instrumentos de trabalho, como se pode reclamar, sob uma ou outra forma, a manutenção do salariado? É contudo o que fazem os coletivistas, recomendando os bônus de trabalho.
Compreende-se que os socialistas ingleses, desde o começo deste século, inventassem os bônus de trabalho. Eles procuravam simplesmente pôr o Capital e o Trabalho de acordo. Repudiavam toda a ideia de tocar violentamente na propriedade dos capitalistas.
Se mais tarde Proudhon retomou esta invenção, isto ainda se compreende. No seu sistema mutualista, ele procurava tornar o capital menos ofensivo, apesar da manutenção da propriedade individual, que detestava do fundo do coração, mas que julgava necessária como garantia do indivíduo contra o Estado.
Que economistas mais ou menos burgueses também admitiam os bônus de trabalho não admira mais. Eles querem salvar na próxima derrocada a propriedade individual das casas habitadas, do solo, das oficinas; em todo o caso a das casas habitadas e do capital necessário a produção manufatureira.
Contanto que o bônus de trabalho possa ser trocado por joias e carruagens, o proprietário da casa aceita-lo-á de boa vontade como paga do aluguel. E enquanto a casa de habitação, o campo e a oficina pertencem a proprietários isolados, forçoso será pagar-lhes de qualquer maneira para trabalhar nos seus campos ou nas suas oficinas e morar nas suas casas. Forçoso será igualmente pagar ao trabalhador em ouro, papel-moeda ou bônus cambiáveis contra toda a espécie de mercadorias.
Mas como se pode defender esta nova forma de salariado – o bônus de trabalho – se se admite que a casa, o campo, a oficina já não são propriedades particulares, antes pertencem à comuna ou à nação?
II
Examinemos mais de perto este sistema de retribuição do trabalho gabado pelos coletivistas franceses, alemães, ingleses e italianos.
Reduz-se pouco mais ou menos a isto: Toda a gente trabalha, nos campos, oficinas, escolas, hospitais etc. O dia de trabalho é regulado pelo Estado, ao qual pertence a terra, as oficinas, vias de comunicação etc. Cada dia de trabalho é pago com um bônus de trabalho. Com esse bônus o obreiro pode obter nos armazéns do Estado ou das diversas corporações toda a espécie de mercadorias. O bônus é divisível, de sorte que se pode comprar, por uma hora de trabalho, carne, por dez minutos, fósforos ou então meia hora de tabaco. Em lugar de dizer: quantos soldos são, dir-se-ia, depois da Revolução coletivista, cinco minutos de sabão.
A maior parte dos coletivistas, fiéis à distinção estabelecida pelos economistas burgueses (e por Marx) entre o trabalho “qualificado”, e o trabalho “simples”, dizem além disso que o trabalho qualificado ou profissional deverá ser pago umas tantas vezes mais do que o trabalho “simples”. Assim, uma hora de trabalho do médico será equivalente a duas ou três horas do trabalho da enfermeira ou a três horas do cavouqueiro. “O trabalho profissional ou qualificado será um múltiplo do trabalho simples”, diz o coletivista Groenlund, porque demanda uma aprendizagem mais ou menos longa.
Outros coletivistas, tais como os marxistas franceses, não fazem esta distinção. Proclamam a “igualdade dos salários”. O doutor, o mestre-escola e o professor, serão pagos (em bônus de trabalho) à mesma taxa que o cavouqueiro. Oito horas passadas dando a volta no hospital valerão tanto como oito horas passadas e, trabalhos de aterro ou desaterro, na mina ou na fábrica.
Alguns fazem uma concessão a mais: admitem que o trabalho desagradável ou malsão – tal como o dos esgotos – poderá ser pago por uma taxa mais elevada que o trabalho agradável. Uma hora de serviço nos esgotos, dizem eles, contar-se-á como duas horas de trabalho do professor.
Certos coletivistas admitem a retribuição em bloco, por corporações. Uma corporação diria: “Aqui estão cem toneladas de aço. Foram produzidas por cem trabalhadores e levaram dez dias. Trabalhávamos oito horas por dia, o que faz oito mil horas de trabalho por cem toneladas de aço; ou seja oito horas por tonelada”. Assim o Estado lhes pagaria oito mil bônus de trabalho de uma hora cada um, e estes oito mil bônus seriam repartidos entre os membros da oficina como bem lhes parecesse.
Doutra parte, cem mineiros levando vinte dias para extrair oito mil toneladas de carvão, o carvão valeria duas horas por tonelada e os dezesseis mil bônus duma hora cada um, recebidos pela corporação dos mineiros, seriam repartidos entre estes segundo as suas aplicações.
Se os mineiros protestassem e dissessem que a tonelada do aço não deve custar senão seis horas em vez de oito horas de trabalho; se o professor quisesse fazer pagar o seu duas vezes mais que a enfermeira, então interviria o Estado e regularia as diferenças.
Tal é em poucas palavras a organização que os coletivistas querem fazer surgir da Revolução social. Quanto ao regime político, seria o parlamentarismo, modificado pelo mandato imperativo e o “referendum”, isto é, o plebiscito pelo “sim” ou pelo “não”.
Digamos desde já que este sistema nos parece absolutamente irrealizável. Os coletivistas começaram por proclamar um princípio revolucionário – abolição da propriedade privada – e apenas proclamando, negam-no, mantendo uma organização da produção e do consumo, que nasceu da propriedade privada.
Eles proclamam um princípio, uma sociedade não se pode organizar sobre dois princípios absolutamente opostos, dois princípios que se contradizem continuamente. E a nação, ou a comuna, que adotasse uma tal organização, seria forçada, ou a voltar à propriedade privada ou a transformar-se imediatamente em sociedade comunista.
III
Dissemos que certos escritores coletivistas exigem que se estabeleça entre o trabalho “qualificado” ou profissional e o trabalho “simples”. Pretendem que a hora de trabalho do engenheiro, do arquiteto ou do médico deve ser contada como duas ou três horas do ferreiro, do pedreiro e da enfermeira. E a mesma distinção deve ser feita, dizem eles, entre toda espécie de ofício que exija uma aprendizagem mais ou menos longa e os simples jornaleiros.
Ora, estabelecer esta distinção é manter todas as desigualdades da sociedade atual. É traçar antecipadamente uma demarcação entre os trabalhadores e os que pretendem governá-los. É dividir a sociedade em duas classes bem distintas: aristocracia do saber, acima da plebe das mão calosas; uma votada ao serviço da outra; uma trabalhando com os seus próprios braços para sustentar e vestir os que aproveitam os seus vagares a fim de aprenderem a dominar os seus sustentadores.
É mais ainda, retomar um dos braços mais distintivos da sociedade atual e dar-lhe a sansão da Revolução social. É erigir em princípio um abuso que hoje se condena na velha sociedade que se afunda.
Sabemos o que nos vão responder. Citar-nos-ão os economistas burgueses e Marx com eles para demonstrar que a escala dos salários tem sua razão de ser, pois que “a força de trabalho” do engenheiro terá custado à sociedade mais do que “a força de trabalho” do cavador? Com efeito os economistas não procuraram provar-nos que se o engenheiro é pago vinte vezes mais que o cavador é porque as despesas “necessárias” para fazer um engenheiro são mais consideráveis que as necessárias para fazer um cavador? E Marx não pretendeu que a mesma distinção é igualmente lógica entre diversos ramos de trabalho manual?
Mas nós sabemos também no que devemos ficar a este respeito. Sabemos que se o engenheiro, o sábio e o doutor são hoje pagos dez ou cem vezes mais do que o trabalhador, se o tecelão ganha três vezes mais que o lavrador e dez vezes mais do que a operária duma fábrica de fósforos, não é em razão do seu “custo de produção”, é em razão dum monopólio de educação ou do monopólio da indústria. O engenheiro, o sábio, o doutor exploram um capital – o seu diploma – como o burguês explora uma oficina ou como o nobre explora os seus títulos de nascimento.
Quanto ao patrão que paga ao engenheiro vinte vezes mais que ao trabalhador, é em razão deste cálculo bem simples: se o engenheiro lhe pode economizar cem mil francos por ano, sobre a produção, ele paga-lhe vinte mil francos. E se um contramestre, - hábil em fazer suar os obreiros, - que lhe economiza dez mil francos na mão-de-obra, apressa-se a dar-lhe dois ou três mil francos por ano. Dá um milhar de francos a mais contando ganhar dez e é esta a essência do regime capitalista.
Não venham então falar-nos de “despesas de produção” que custa a força do trabalho, e dizer-nos que um estudante, que passou alegremente a juventude na universidade, tem “direito” a um salário dez vezes mais elevado que o filho do mineiro que se estiola na mina aos onze anos, ou que um tecelão tem “direito” a um salário três ou quatro vezes mais elevado que o agricultor. O tecelão aproveita simplesmente as vantagens em que a indústria vive na Europa em relação aos países que ainda não tem indústria.
Quererão fazer-nos crer, por exemplo, que o salário de trinta soldos que se paga à obreira parisiense, os seis soldos da camponesa do Auvergne, que perde a vista com as rendas, ou os quarenta soldos por dia do camponês representam as suas “despesas de produção”. Sabemos bem que há quem trabalhe muitas vezes ainda por menos, mas também sabemos que isso se faz unicamente porque, graças à nossa soberba organização, é preciso morrer de fome, faltando esses salários irrisórios.
Também não deixarão de nos dizer que a escala coletivista dos salários seria, entretanto, um progresso. – “Valerá mais, dirão ver certos obreiros receber uma soma duas ou três vezes superior à do comum, do que ministros embolsarem num dia o que um trabalhador não chega a ganhar num ano. Sempre seria um passo para a igualdade”.
Para nós seria um passo para trás. Introduzir numa sociedade nova a distinção entre o trabalho simples e o trabalho profissional, atingiria, já o dissemos, a fazer sancionar pela Revolução e erigir em princípio um fato brutal, que suportamos hoje, mas que não obstante achamos injusto. Seria imitar esses sonhadores de 4 de agosto de 1789, que proclamavam a abolição dos direitos feudais com frases de efeito, mas que no oito de agosto sancionavam os mesmos direitos, impondo aos camponeses contribuição para as resgatar aos senhores, que colocavam sob a salvaguarda da Revolução. Seria ainda imitar o governo russo, proclamando, por ocasião da emancipação dos servos, que a terra pertencia desde então aos senhores, enquanto que antes era um abuso dispor de terras que pertencessem exclusivamente aos servos.
Na sociedade atual, quando vemos um ministro pagar-se cem mil francos por ano, enquanto o trabalhador tem de contentar-se com mil, ou menos; quando vemos o contramestre pago duas, três vezes mais do que o obreiro e que, mesmo entre obreiros, há todas as gradações, desde os dez francos do obreiro e os seis soldos da mulher do povo, desaprovamos o salário elevado do ministro e ainda a diferença entre os dez francos do obreiro e os dez soldos da pobre mulher. E dizemos: “Abaixo os privilégios da educação, tal qual como os do nascimento!” Somos anarquistas precisamente porque esses privilégios nos revoltam.
Já nos revoltam nesta sociedade autoritária. Poderíamos então suportá-los numa sociedade que debutasse proclamando a Igualdade?
Aí está porque certos coletivistas, compreendendo a impossibilidade de manter a escala dos salários numa sociedade inspirada pelo sopro da Revolução, se apressam a proclamar que os salários serão iguais. Mas esbarram contra novas dificuldades, e a sua igualdade dos salários torna-se uma utopia tão irrealizável como a escala dos outros coletivistas.
Uma sociedade que se tenha apoderado de toda a riqueza social e que tenha em alta voz proclamado que todos tem o direito a essa riqueza – seja qual for a parte que tiverem tomado anteriormente em a criar, – será obrigado a abandonar toda a ideia de salariado, seja em moeda, seja em bônus de trabalho, qualquer que seja a forma que se apresente.
IV
“A cada um segundo as suas obras”, dizem os coletivistas ou, em outros termos, segundo a sua parte de serviço feita à sociedade. E este princípio é recomendado como devendo ser posto em prática desde que a Revolução tenha posto em comum os instrumentos de trabalho e tudo quanto é necessário à produção!
Ora bem, se a Revolução social tivesse a desgraça de proclamar este princípio, seria travar o desenvolvimento da humanidade; seria abandonar, sem o resolver, o imenso problema social que os séculos passados nos puseram nos braços.
Com efeito, numa sociedade como a nossa, onde vemos que quanto mais o homem trabalha menos ganha, este princípio pode parecer à primeira vista como uma aspiração para a justiça. Mas no fundo, não é senão a consagração das injustiças do passado. É por este princípio que o salariado começou, para ir dar nas desigualdades clamorosas, em todas as abominações da sociedade atual, porque, desde que se começou a avaliar em moeda, ou em toda a outra espécie de salário, os serviços prestados – do dia em que se disse que cada um não teria senão o que ele conseguisse fazer, que lhe pagassem pelas suas obras, toda a história da sociedade capitalista (com o auxílio do Estado) estava escrita previamente; estava encerrada em germe nesse princípio.
Devemos, pois, voltar ao ponto de partida e refazer de novo a mesma evolução? Os nossos teóricos assim o querem; mas felizmente é impossível: a Revolução, já o dissemos, será comunista; aliás, afogada em sangue, terá de recomeçar.
Os serviços prestados à sociedade, – seja em trabalhos na oficina, ou nos campos, ou mesmo serviços morais, “não podem” ser avaliados em unidades monetárias. Não pode haver medida exata do valor, do que se chamou impropriamente de valor de troca, nem do valor de utilidade em relação a produção. Se virmos dois indivíduos trabalhando, um e outro, durante anos, cinco horas por dia, para a comunidade, em diferentes trabalhos que lhes agradem igualmente, podemos dizer que, em suma, seus trabalhos são equivalentes. Mas o seu trabalho não se pode fracionar e dizer que o produto de cada dia, de cada hora ou de cada minuto de trabalho de um, vale o produto de cada hora ou de cada minuto do outro.
Pode-se dizer de “grosso modo” que o homem que, durante a sua vida, se privou de folga durante dez horas por dia, deu à sociedade mais do que aquele que só se privou cinco horas por dia ou que não se privou de nada. Mas não se pode pegar no que fez durante duas horas e dizer que este produto vale duas vezes mais do que o produto duma hora de trabalho doutro indivíduo e remunerá- lo em proporção. Seria desconhecer tudo o que há de complexo na indústria, na agricultura, na vida inteira da sociedade atual: seria ignorar a que ponto todo o trabalho do indivíduo é o resultado dos trabalhos anteriores e presentes da sociedade inteira. Seria julgar-se na idade da pedra, ao passo que vivemos na idade do aço.
Entrai numa mina de carvão e vede este homem, postado junto da imensa máquina que faz subir e descer a gaiola. Tem na mão a alavanca que faz parar e recuar a marcha da máquina; abaixa-a e a gaiola volta para trás num ápice; lança- a para cima, para baixo com uma rapidez vertiginosa. Todo atenção, segue com os olhos na parede um indicador que lhe mostra, numa pequena escala, em que ponto do poço se encontra a gaiola em cada instante da sua marcha e desde que o indicador atingiu um certo nível, suspende súbito o movimento da gaiola, nem um metro mais acima nem mais abaixo que a linha que se quer. E, acabados de descarregar os cestos cheios de carvão e postos de lado os cestos vazios, volta a alavanca e atira de novo a gaiola para o espaço.
Durante oito horas seguidas ele sustenta esta prodigiosa atenção. Se o seu cérebro se descuida um só momento, a gaiola vai esbarrar e quebrar as rodas, romper o cabo, esmagar os homens, suspender todo o trabalho da mina. Perca ele três segundos em cada golpe de alavanca e, - nas minas modernas aperfeiçoadas – a extração é reduzida de vinte a cinquenta toneladas por dia.
Todos os trabalhadores engajados na mina contribuem, na medida de suas forças, da sua energia, do seu saber, da sua inteligência e da sua habilidade, para extrair carvão. E nós podemos dizer que todos tem o direito de “viver”, de satisfazer as suas necessidades e ainda as suas fantasias, depois que o necessário esteja assegurado a todos. Mas como podemos avaliar as suas “obras”?
E depois o carvão que extraem é obra “sua”? Não é também obra daqueles homens que construíram o caminho de ferro que conduz à mina e as estadas que radiam todas as suas estações? Não é também obra dos que lavraram e semearam os campos, extraíram o ferro, cortaram as madeiras na floresta, fabricaram as máquinas que hão de queimar o carvão e assim sucessivamente?
Nenhuma distinção se pode fazer entre as obras de cada um. Medi-las pelos resultados leva-nos ao absurdo. Fracioná-las e medi-las por horas de trabalho leva-nos igualmente ao absurdo. Resta uma coisa: colocar as “precisões” acima das “obras” e reconhecer o direito à vida primeiro, depois ao bem-estar para todos os que tomarem uma certa parte na produção.
Mas tomai outro qualquer ramo da atividade humana, tomais o conjunto das manifestações da existência: Qual dentre nós pode reclamar uma retribuição mais forte para as suas obras? O médico, que descobriu a doença ou a enfermeira, que assegurou a cura pelos seus cuidados higiênicos? É o inventor da primeira máquina a vapor ou o rapaz que, um dia, cansado de puxar a corda que prendia a válvula para fazer passar o vapor debaixo do pistom, atou a corda a uma alavanca da máquina e foi brincar com os seus camaradas, sem suspeitar que tinha inventado o mecanismo essencial de toda a máquina moderna – a válvula automática?
É o inventor da locomotiva ou esse obreiro de Newcastle, que sugeriu substituir por travessas de madeira as pedras que outrora colocavam sob os trilhos e que faziam descarrilar os trens por falta de elasticidade? É o mecânico sobre a locomotiva? O homem que por sinais faz parar os trens? O agulheiro que lhes abre as linhas?
A quem devemos o cabo transatlântico? Seria ao engenheiro que teimava em afirmar que o cabo transmitiria os despachos enquanto os sábios eletricistas declaravam a coisa impossível? A Maury, o sábio que aconselhou abandonar os grossos cabos por outros delgados como uma cana? Ou ainda a esses voluntários vindos não se sabe donde, que passavam dia e noite sobre a ponte a examinar minuciosamente cada metro de cabo para tirarem os pregos que os acionistas das companhias marítimas faziam cravar bestialmente na camada isoladora do cabo, a fim de o inutilizar?
E num domínio ainda mais vasto, o verdadeiro domínio da vida humana com suas alegrias, suas dores e seus acidentes, – cada um de nós não lembra que lhe haja na sua vida prestado um serviço tão importante que se indignasse se lhe falassem de o avaliar em dinheiro? Esse serviço tanto podia ser uma palavra, uma simples palavra dita a tempo, como anos e anos de dedicação.
“As obras de cada um!” – Mas as sociedades humanas não viveram duas gerações seguidas, desapareceriam dentro de cinquenta anos se cada um não desse infinitamente mais que o que lhe pagarão em moeda, em bônus ou em recompensas cívicas. Seria a extinção da raça, se a mãe não gastasse a sua vida para conservar a dos filhos, se cada homem não desse alguma coisa sem nada esperar, se o homem não desse, justamente onde não tem recompensa a esperar.
Os coletivistas compreendem vagamente que uma sociedade não poderia existir se aceitasse o princípio: “A cada um segundo as suas obras”. Eles suspeitam que as “precisões” – não falamos de fantasias – do indivíduo não correspondem sempre às suas “obras”. Também De Paepe nos diz:
“Este princípio – eminentemente individualista – seria de resto ‘temperado’ pela intervenção social para a educação dos meninos e dos mancebos (incluindo a alimentação e a criação) e pela organização social da assistência aos enfermos e doentes, da reforma para os trabalhadores velhos, etc.”.
Suspeitam que o homem de quarenta anos, pai de três filhos, tem outras precisões que o jovem de vinte, que a mulher que dá de mamar a uma criança e passa noites em claro à sua cabeceira não pode fazer tantas “obras” como o homem que dormiu sossegadamente. Parecem compreender gastos à força de ter talvez trabalhado de mais para a sociedade, podem achar-se incapazes de fazer tantas “obras” como aqueles que tiverem passado as suas horas à boa vida e embolsando os seus bônus em situações privilegiadas de estatísticas do Estado.
E empenham-se em “temperar” o seu princípio.
“Sim, dizem eles, a sociedade sustentará e criará os seus filhos; assistirá aos velhos e enfermos! As ‘precisões’ darão a medida das despesas que a sociedade se imporá para temperar o princípio das obras”.
A caridade – o que? A caridade, sempre a caridade cristã, organizada desta vez pelo Estado.
Assim, pois, depois de ter negado o comunismo, depois de ter escarnecido à vontade a fórmula: “a cada um segundo as suas precisões”, eis que se apercebem também, os grandes economistas, que esqueceram alguma coisa – as precisões dos produtores – e apressam-se a reconhecê-lo. Só ao Estado compete apreciá-las; verificar se as precisões não são desproporcionadas às obras. O Estado dará a esmola. Daí a lei dos pobres e ao “workhouse” inglês não vai senão um passo.
Não vais senão um passo, porque mesmo esta sociedade madrasta contra quem a gente se revolta, viu-se também forçada a “temperar” o seu princípio de individualismo; teve também que fazer concessão num sentido comunista e também sob a forma de caridade.
Ela distribuiu jantares a um soldo para evitar saque das suas lojas, construir hospitais – muitas vezes péssimos, mas as vezes esplêndidos – para prevenir o estrago das doenças infecciosas e contagiosas. Ela também, depois de pagar somente as horas de trabalho, recolhe as crianças dos que ela reduziu à última das misérias. Ela também cuida das precisões – por caridade.
A miséria, dissemos nós noutra parte, foi a causa primária das riquezas. Porque, antes de acumular “os lucros” de que tanto gostam de conservar, ainda era preciso que houvesse miseráveis que consentissem em vender a sua força de trabalho para não morrerem de fome. É a miséria que faz os ricos. E se os seus progressos foram rápidos no curso da idade média, é porque as invasões e as guerras que seguiram a criação dos Estados e o enriquecimento pela exploração no Oriente quebraram os laços que outrora uniam as comunidades agrárias e urbanas e as levaram a proclamar, em lugar da solidariedade que praticavam antes, esse princípio de salariado, tão caro aos exploradores.
E é esse princípio que sairia da Revolução e a que ousaram chamar “Revolução Social” – nome tão caro aos famintos e aos oprimidos.
Mas não será assim, porque no dia em que as velhas instituições desabarem sob o machado dos proletários, hão de ouvir-se vozes gritando: “Pão, abrigo, bem-estar para todos!”.
E o povo dirá: “Comecemos por satisfazer a sede de vida, de alegria, de liberdade, que nunca saciamos. Depois iremos à obra: demolição dos velhos vestígios do regime burguês, do ‘deve e há de haver’, das suas instituições, do teu e do meu.
“Demolindo edificaremos”, como dizia Proudhon; “edificaremos em nome do Comunismo e da Anarquia”.
CONSUMO E PRODUÇÃO
I
Encarando a sociedade e sua organização política num ponto de vista que as escolas autoritárias, visto que partimos do indivíduo livre para chegar a uma sociedade livre, em lugar de começar pelo Estado para descer ao indivíduo, – seguimos o mesmo método para as questões econômicas. Estudamos as precisões do indivíduo e os meios a que recorre para as satisfazer, antes de discutir a produção, a troca, o imposto, o governo, etc.
A primeira vista a diferença pode parecer mínima. Mas de fato embrulha todas as noções de economia política oficial.
Abri qualquer obra dum economista.
Ele debuta pela “produção”, a análise dos meios hoje empregados para criar a riqueza, a divisão do trabalho, a manufatura, a obra da máquina, acumulação do capital. Desde Adam Smith até Marx, todos tem procedido desse modo. Só na segunda ou terceira parte da sua obra tratará do CONSUMO, isto é, da satisfação das precisões do indivíduo; e ainda limitando-se a explicar como as riquezas se repartirão entre os que se disputarem a sua posse.
Talvez se diga que é lógico: que antes de satisfazer precisões é preciso criar o que as pode satisfazer; que para consumo é preciso produzir. Mas antes de produzir qualquer coisa, não é necessário sentir-lhe a precisão? Caçar, criar o gado, cultivar a terra, fazer utensílios e mais tarde inventar e fazer máquinas não é tudo satisfação de necessidades? Não era pois o estudo das precisões que deveria governar a produção. Seria, pois, lógico começar por aí e ver em seguida como haver-se para suprir estas precisões pela produção.
É precisamente o que fazemos.
Mas desde que a encaramos debaixo deste ponto de vista a economia política muda completamente de aspecto. Deixa de ser uma simples descrição de fatos e torna-se uma ciência: pode-se definir, “o estudo das precisões da humanidade e dos meios de as satisfazer com a menor perda possível das forças humanas”. O seu verdadeiro nome seria “fisiologia da sociedade”. Constitui uma ciência paralela à fisiologia das plantas ou dos animais, que também é um estudo das precisões da planta e do animal e dos meios mais vantajosos de as satisfazer. Na série das ciências sociológicas a economia das sociedades humanas vem tomar o lugar ocupado na série das ciências biológicas pela fisiologia dos seres animados.
Nós dizemos: “Eis seres humanos reunidos em sociedade. Todos sentem a necessidade de habitar casas salubres. A cabana do selvagem não os satisfaz. Demandam um abrigo sólido, mais ou menos confortável. Trata-se de saber se, dada a produtividade do trabalho humano, poderá ter cada um sua casa, e o que impedirá de a ter?”.
E vemos logo que cada família na Europa poderia perfeitamente ter uma casa confortável, como se constroem na Inglaterra ou na Bélgica ou na cidade Pulman, ou mesmo um apartamento correspondente. Um certo número de dias de trabalho bastaria para dar a uma família de sete ou oito pessoas uma bonita casinha arejada, bem mobiliada e iluminada a gás.
Mas os nove décimos dos europeus nunca tiveram a reserva necessária em tempo e dinheiro para edificar ou mandar edificar a casa dos seus sonhos. E não terá casa e habitará uma “baiúca” enquanto as condições atuais não mudarem.
Nós procedemos, como se vê, inteiramente ao contrário dos economistas, que eternizam as pretendidas leis da produção e, fazendo a conta das casas que se edificam cada ano, demonstram pela estatística que as casas novas não chegam para satisfazer a todos os pedidos e por isso os nove décimos dos europeus devem morar em “baiúcas”.
Passemos à alimentação. Depois de enumerar os benefícios da divisão do trabalho, os economistas pretendem que esta divisão exige que uns se apliquem à agricultura e os outros à indústria manufatureira. Produzindo os agricultores tanto e os manufatores tanto fazendo-se a troca assim, analisam a venda, o benefício, o produto líquido ou lucro, o salário, o imposto, o banco e sucessivamente.
Mas tendo-os seguido até ali, não estamos mais adiantados, e se lhes perguntarmos: “Como é que tantos milhões de seres humanos carecem de pão, quando cada família poderia produzir trigo para alimentar dez, vinte e mesmo cem pessoas por ano?” E eles nos respondem recomeçando a mesma antífona: divisão do trabalho, salário, lucro, capital etc., chegando a esta conclusão que a produção é insuficiente para satisfazer todas as precisões; conclusão que, ainda que fosse verdadeira, de modo nenhum responde à pergunta: “Pode ou não pode o homem, trabalhando, produzir o pão de que precisa? E se não pode, que é que lho impede?”.
Há 350 milhões de europeus. Precisam cada ano tanto de pão, tanto de carne, de leite, ovos e manteiga. Precisam tantas casas, tantos vestuários. É o mínimo das suas precisões. Podem eles produzir tudo isto? Se podem, restar-lhes-á vagar para angariar o luxo, os objetos de arte, a ciência e de recreio – numa palavra tudo quanto não cabe na categoria do estrito necessário? Se a resposta é afirmativa, que é que os impede de ir por diante? Que se há de fazer para aplanar os obstáculos? É preciso tempo? Que o tomem! Mas não percamos de vista o objeto de toda a produção – a satisfação das precisões.
Se as precisões mais imperiosas do homem ficam insatisfeitas, que se há de fazer para aumentar a produtividade do trabalho? Mas não haverá outras causas? Não seria, entre outras, porque a produção tendo perdido de vista as “precisões” do homem, tomou uma direção absolutamente falsa e que a sua organização é viciosa? E visto que o constatamos, com efeito, procuremos o meio de reorganizar a produção, de modo que ela corresponda realmente a todas as precisões.
Eis a única maneira que nos parece justa de encarecer as coisas: a única que permitiria à economia política tornar-se uma ciência, – a ciência da fisiologia social.
Está-se vendo que o ponto de vista seria inteiramente mudado. Atrás do tear, que tece tantos metros de pano, atrás da máquina que fura tantas placas de aço e atrás do cofre forte onde se engolfam os dividendos, ver-se-ia o homem, artífice da produção, excluído quase sempre do banquete que preparou para outros. Também se comprometeria que as pretendidas leis de valor, da troca, etc., não são senão a expressão, muitas vezes falsa, – sendo falso o ponto de partida – de fatos tal qual se passam neste momento, mas que se poderiam passar, e passar-se-ão muito diferentemente, quando a produção for organizada de modo que atenda a todas as precisões da sociedade.
II
Não há um princípio de economia política que não mude totalmente de aspecto posto sob o nosso ponto de vista.
Ocupamo-nos, por exemplo, da superprodução. Eis uma palavra que soa cada dia aos nossos ouvidos. Há, com efeito, um só economista, acadêmico ou aspirante, que não tenha sustentado teses, provando que as crises econômicas resultam da superprodução: que num momento dado se produz mais algodões pintados, panos, relógios, do que é preciso! Não se tem acusado de “rapacidade” os capitalistas que teimam em produzir mais do que o consumo é possível!
Pois bem! Tal raciocínio demonstra-se falso logo que se aprofunde a questão. Ora bem, indicai-nos umas mercadorias, das que são de uso universal, de que se produza mais do que seria preciso. Examinais um a um todos os artigos expedidos pelos países de grande exportação e vereis que quase todos são produzidos em quantidades “insuficientes”, mesmo para os habitantes do país que exporta.
O que a Rússia exporta para a Europa não é um excedente de trigo. As mais fortes colheitas de trigo e de centeio da Rússia da Europa dão “exatamente” o preciso para a população e geralmente o camponês priva-se a si do necessário, quando vende o seu trigo e o seu centeio para pagar o imposto e a renda.
Não é um excedente de carvão que a Inglaterra envia aos quatro cantos do globo, visto que não lhe restam para o consumo doméstico interior senão setecentos e cinquenta quilos por ano e por habitante, e que milhões de ingleses se privam de fogo no inverno, ou não usam dele senão para cozer certos legumes. De fato (não falamos da quinquilharia de luxo) não há no país da grande exportação, a Inglaterra, senão uma única mercadoria de uso universal, o algodão estampado, cuja produção seja assaz considerável para “talvez” exceder as precisões. E quando se pensa nos farrapos que substituem os vestidos em um bom terço dos habitantes do Reino Unido, é-se levado a perguntar se os algodões exportados não daria com pequena diferença a conta das precisões reais da população.
Geralmente não é um excesso que se exporta, embora as primeiras exportações tivessem talvez tido essa origem. A fábula do sapateiro que andava descalço é verdadeira para as nações como aquela o era outrora para o artífice. Exporta-se o necessário pela razão de que só com o seu salário os trabalhadores não podem comprar o que lhes falta, pagando rendas, lucros, interesses do capitalista e do banqueiro. A superprodução, pois, não existe; é um palavrão inventado pelos teóricos da economia política.
Todos os economistas nos dizem que, se há uma “lei” econômica bem assente é esta: “O homem produz mais do que consome.” Depois de ter vivido dos produtos do seu trabalho, sempre lhe resta um excedente. Uma família de cultivadores produz com que sustentar várias famílias e assim por diante.
Para nós esta frase, tantas vezes repetida, é vazia de sentido. Se devesse significar que cada geração deixa alguma coisa às gerações futuras, seria exata. Com efeito um cultivador planta uma árvore que viverá trinta ou quarenta anos, um século, e da qual seus netos hão de colher ainda os frutos. Se desbravou um hectare de terra virgem, a herança das gerações futuras aumentou. A ponte, a estrada, o canal, a casa e os móveis são outras tantas riquezas legadas às gerações futuras.
Mas não é disso que se trata. Dizem que o cultivador produz mais trigo do que consome. “Poderiam dizer antes, que o Estado, tendo-lhe sempre levado uma boa parte dos seus produtos em forma de impostos, o padre em forma de dízimos, e o proprietário em forma de renda, criou-se uma classe de homens que antigamente consumiam o que produziam, salvo a parte reservada para o imprevisto ou das despesas representadas por árvores, estradas, etc., mas que hoje são obrigados a sustentar-se de castanhas ou de milho, beber água-pé, sendo o resto levado pelo Estado, o proprietário, o padre e o agiota.
Preferimos então dizer: “O cultivador consome menos do que produz, porque o obrigam a dormir na palha e a vender a pena; a contentar-se com a água-pé e vender o vinho, vender o trigo e comer centeio.
Notemos também que tomando por ponto de partida as precisões do indivíduo, chega-se necessariamente ao comunismo como uma organização que permite satisfazer as “precisões” do indivíduo da maneira mais completa e mais econômica. Ao passo que partindo da produção atual e visando somente o benefício ou o lucro, mas sem perguntar se a produção corresponde à satisfação das produções, chega-se necessariamente ao capitalismo, ou, quando muito, ao coletivismo – sendo um e outro formas de salariado.
O Comunismo, – isto é, uma vista sintética do consumo, da produção, da troca, e uma organização que corresponda a esta vista sintética – torna-se assim a consequência lógica desta compreensão das coisas, a única a nosso ver, que seja realmente científica.
Uma sociedade que satisfizer as precisões de todos, e que souber organizar a produção, deverá além disso fazer tábua rasa de certos preconceitos concernentes à indústria e, em primeiro lugar, da teoria tão gabada pelos economistas sob o nome de “divisão do trabalho”, que vamos abordar no capítulo seguinte.
DIVISÃO DO TRABALHO
I
A economia política sempre se limitou a constatar os fatos que via produzirem-se na sociedade e a justificarem-se no interesse da classe dominante. Ela age do mesmo modo quanto à divisão do trabalho, criada pela indústria; tendo-a achado vantajosa para os capitalistas, ela erigiu-a em princípio.
Olhai esse ferreiro de aldeia, dizia Adam Smith, pai da economia política moderna. Se ele nunca se habituou a fazer pregos, só com custo chegará a fazer dois ou três centos por dia, e ainda assim maus. Mas se esse mesmo ferreiro nunca fez senão pregos, dará facilmente até dois mil e trezentos no decurso de um dia. E Smith apressava-se a concluir: “Dividamos o trabalho, especializemos, especializemos sempre; tenhamos ferreiros que não saibam fazer senão cabeças ou pontas de pregos e assim produziremos mais. Enriqueceremos”.
Quanto a saber se o ferreiro que foi condenado a fazer cabeças de pregos toda a sua vida, não perderá todo o gosto pelo trabalho; se não ficará inteiramente à mercê do patrão com este ofício limitado; se não ficará sem trabalho quatro meses no ano, se o seu salário não baixará quando puderem facilmente substituí-lo por um aprendiz, Smith nem pensava quando exclamou: “Viva a divisão do trabalho! Eis a verdadeira mina de ouro para enriquecer a nação!”.
E todos gritavam com ele.
E mesmo quando um Sismondi, ou um J. B. Say perceberam mais tarde que a divisão do trabalho, em lugar de enriquecer a nação, não enriquecia senão os ricos, e que o trabalhador, reduzido a fazer toda a sua vida a décima oitava parte dum alfinete, se embrutecia e caia na miséria – que propunham os economistas oficiais? – Nada! – Não diziam que aplicando assim toda a vida a um único trabalho maquinal, o obreiro perdia a sua inteligência e o seu espírito inventivo e que, pelo contrário, a variedade das ocupações daria em resultado aumentar consideravelmente a produtividade da nação. É precisamente a questão que se vem hoje propor.
Além disso se unicamente os economistas pregassem a divisão do trabalho permanente e muitas vezes hereditário, deixa-los-íamos perorar à sua vontade. Mas as ideias professadas pelos doutores da ciência infiltram-se nos espíritos, percertendo-os, e à força de ouvir falar em divisão do trabalho, da renda, do crédito etc., como de problemas de longa data resolvidos, todo mundo (e o próprio trabalhador) acaba raciocinando como os economistas, por venerar os mesmos fetiches.
Assim vemos numerosos socialistas, aqueles mesmos que não recearam atacar os erros da ciência, respeitarem o princípio da divisão do trabalho. Que lhes fale da organização da sociedade durante a Revolução, e responderão que a divisão do trabalho deve ser mantida; que quem fazia bicos de alfinetes antes da Revolução. Trabalharão só cinco horas, mas fazendo bicos de alfinetes – seja. Mas vós não fareis senão bicos de alfinetes toda a vida, enquanto outros farão máquinas ou projetos de máquinas, permitindo fabricar milhares de alfinetes; e outros ainda se especializarão nas altas funções do trabalho literário, científico, artístico etc. Nascestes fazedor de bicos de alfinetes. Pasteur nasceu vacinador da raiva e a Revolução vos deixará uns e outros nos seus empregos respectivos.
Pois bem, é este princípio horrível, nocivo à sociedade e embrutecedor do indivíduo, fonte de toda uma série de males, que nos propomos agora discutir nas suas diversas manifestações.
São conhecidas as consequências da divisão do trabalho. Estamos evidentemente divididos em duas classes: duma parte produtores, que consomem muito pouco e são dispensados de pensar, porque é preciso trabalhar e que trabalham mal, porque seu cérebro se conserva inativo; e doutra parte os consumidores, que produzem pouco ou quase nada, tem o privilégio de pensar pelos outros e pensar mal, porque todo um mundo, o dos trabalhadores braçais, lhes é desconhecido. Os obreiros da terra não sabem nada da máquina, os que servem as máquinas ignoram tudo dos trabalhos do campo. O ideal da indústria moderna é a criança servindo uma máquina que não pode nem deve compreender e serventes que a multam – se a sua atenção falha um momento. Procura-se mesmo suprimir de todo o trabalhador agrícola. O ideal da agricultura industrial é um “faz tudo” alugado por três meses e conduzido a uma charrua a vapor ou uma máquina de debulhar. A divisão do trabalho é o homem etiquetado, estampilhado para toda a vida como atador de nós em uma manufatura, como vigia numa indústria, mas não tendo nenhuma ideia do conjunto da máquina, nem da indústria, perdendo por isso mesmo o gosto do trabalho e as capacidades de invenção que, nos debates da indústria moderna, tinham criado a ferramenta de que tanto gostamos de nos orgulhar.
O que se fez aos homens, queriam também fazê-lo às nações. A unidade dividir-se em oficinas nacionais, tendo cada uma sua especialidade. A Rússia, - ensinavam – era destinada pela natureza a cultivar o trigo; a Inglaterra a fazer algodões pintados; a Bélgica a fabricar panos enquanto a Suíça forma amas-secas e professoras. Em cada nação especializa-se ainda: Lyon faria as sedas, o Auvergne as rendas e Paris artigos de fantasia. Era, pretendiam os economistas, um campo ilimitado oferecido à produção ao mesmo tempo que ao consumo; uma era de trabalho e de imensa fortuna que se abria para o mundo.
Mas estas vastas esperanças desvaneciam-se à medida que o saber técnico se derrama no universo. Enquanto a Inglaterra era a única a fabricar os algodões estampados e a trabalhar os metais em grande; enquanto só Paris fazia brinquedos artísticos etc., tudo ia bem; podia-se pregar o que se chamava a divisão do trabalho, sem medo de ser desmentido.
Ora, eis que uma nova corrente arrasta as nações civilizadas a tentar nos seus países todas as indústrias, achando vantagem em fabricar o que antes recebiam dos outros países, e as próprias colônias tendem a livrar-se da sua metrópole. As descobertas da ciência universalizam os processos, é desde já inútil pagar no exterior, por um preço exorbitante, o que é tão fácil de produzir em sua casa.
Mas não é certo que esta revolução na indústria dá um golpe direto na teoria da divisão do trabalho que julgavam tão solidamente estabelecida?
A DESCENTRALIZAÇÃO DAS INDÚSTRIAS
I
Em consequência das guerras napoleônicas, a Inglaterra havia quase arruinado a grande indústria que nascia em França no fim do século passado. Ela ficava senhora dos mares e sem concorrentes sérios. Aproveitou-se disso para se constituir um monopólio industrial e, impondo as nações vizinhas os seus preços pelas mercadorias que só ela podia fabricar, acumulou riquezas sobre riquezas e soube tirar partido desta situação privilegiada e de todas as suas vantagens.
Mas tendo a Revolução burguesa do século passado abolido a servidão e criado em França um proletariado, a grande indústria, suspensa um momento no seu avanço, tomou novo voo, e desde a segunda metade do nosso século, a França deixou de ser tributária da Inglaterra pelos produtos manufaturados.
Hoje tornou-se também um país exportador. Vende ao estrangeiro mais de um “milhar” (mil milhões) e meio de produtos manufaturados e dois terços dessas mercadorias são tecidos. Calcula-se que perto de três milhões de franceses trabalham na exportação ou vivem do comércio exterior.
Assim a França não é mais tributária da Inglaterra. Por seu turno procurou monopolizar certos ramos do comércio exterior, tais como sedas e confecções; daí tem tirado imensos benefícios, mas está a ponto de perder para sempre este monopólio, como a Inglaterra está a ponto de perder para sempre o monopólio dos algodões e mesmo das fiações de algodão.
Caminhando para o Oriente, a indústria parou na Alemanha. Há trinta anos a Alemanha era tributária da Inglaterra e da França pela maior parte dos produtos da grande indústria. Já não é assim nos nossos dias. No correr dos últimos vinte e cinco anos e sobre tudo depois da guerra, a Alemanha reformou completamente a sua indústria. As novas oficinas estão aparelhadas com as melhores máquinas: as mais recentes criações da arte industrial em Manchester para os algodões, ou em Lyon para as sedas, são realizadas nas novas oficinas alemãs. Se foram precisas duas ou três gerações de trabalhadores para descobrir a máquina moderna em Lyon ou em Manchester, a Alemanha toma-a toda aperfeiçoada. As escolas técnicas apropriadas às necessidades da indústria, fornecem às manufaturas um exército de obreiros inteligentes, de engenheiros práticos , sabendo trabalhar com as mãos e com o cérebro.
A indústria alemã começa no ponto preciso a que Manchester e Lyon chegaram no fim de cinqüenta anos de esforços, ensaios e tentativas.
Em resultado: a Alemanha diminui de ano para ano as suas importações da França e da Inglaterra. É já sua rival nas exportações para a Ásia e África; mais do que isso: nos próprios mercados de Londres e Paris. Gente de vistas curtas pode gritar contra o tratado de Frankfurt; pode explicar a concorrência alemã por pequenas tarifas de caminhos de ferro. Pode dizer que o alemão trabalha “de graça” descurando os grandes fatos históricos. Mas não é menos certo que a grande indústria, – outrora privilegiada da Inglaterra e da França – deu um passo para o Oriente. Achou na Alemanha um país novo, cheio de forças, e uma burguesia inteligente, ávida de enriquecer por sua vez, pelo comércio estrangeiro.
Na época da abolição da escravidão em 1861, a Rússia quase não tinha indústria. Tudo que precisava de máquinas, de trilhos de locomotivas, de tecidos de luxo, vinha-lhe do Ocidente. Vinte anos mais tarde já possuía 85.000 manufaturas e as mercadorias saídas destas manufaturas quadruplicavam de valor.
As velhas ferramentas foram inteiramente substituídas. Quase todo o aço hoje empregado, três quartas partes do ferro, dois terços do carvão, todos os trilhos, todos os vagões, quase todos os barcos a vapor, são feitos na Rússia. De país destinado, – no dizer dos economistas – a ficar agrícola, a Rússia fez-se um país manufatureiro. Não pede quase nada à Inglaterra e muito pouco à Alemanha.
Os economistas fazem as alfândegas responsáveis por estes fatos, mas os produtos manufaturados na Rússia vendem-se pelos mesmos preços que em Londres. Como o capital não conhece pátria, os capitalistas alemães e ingleses, seguidos de contramestres das suas nações implantaram na Rússia e na Polônia manufaturas que rivalizam com as melhores manufaturas inglesas pela excelência dos produtos. Que abolissem amanhã as alfândegas e as manufaturas só teriam a ganhar. Neste mesmo momento os engenheiros britânicos tratam de dar o golpe de misericórdia às importações de panos e de lãs do Ocidente: montam no sul da Rússia imensas manufaturas de lãs, guarnecidas de máquinas das mais aperfeiçoadas de Bradford, e daqui a dez anos a Rússia não importará senão algumas peças de panos ingleses e de lãs francesas – como amostras.
A grande indústria não caminha só para o Oriente: estende-se também às penínsulas do sul. A exposição de Turim já mostrou em 1884 os progressos da indústria italiana e – não nos equivocamos: o ódio entre as duas burguesias, francesa e italiana, não tem outra origem senão a sua rivalidade industrial. A Itália emancipa-se da tutela francesa; faz concorrência aos mercados franceses na bacia mediterrânea e no Oriente. É por isso e não por outra coisa, que o sangue a de correr um dia na fronteira italiana, - a menos que a Revolução não poupe esse sangue precioso.
Podíamos também mencionar os rápidos progressos da Espanha no caminho da grande indústria, mas tomemos antes o Brasil. Não o tinham os economistas condenado a cultivar para sempre o algodão, a exportá-lo em bruto e receber em retorno os tecidos importados da Europa? Efetivamente, há vinte anos o Brasil tinha apenas nove miseráveis pequenas manufaturas de algodão com 385 fusos. Hoje há quarenta e seis, cinco das quais possuem 40.000 fusos e lançam no mercado trinta milhões de metros de algodão estampado cada ano.
Não há até no México quem não se metia a fabricar tecidos de algodão em lugar de importar da Europa. E quanto aos Estados Unidos eles se emanciparam da tutela da Europa. Aí a grande indústria desenvolveu-se triunfalmente.
Mas é a Índia que devia dar o desmentido mais brilhante aos partidários da especialização das indústrias nacionais.
É conhecida a teoria: As grandes nações europeias precisam de colônias. Estas colônias mandarão à metrópole produtos brutos: a fibra de algodão, lã em velo, espécies etc. E a Europa lhes devolverá esses produtos manufaturados.
Tal era a teoria, tal foi durante muito tempo a prática. Ganharam-se fortunas em Londres e em Manchester ao mesmo tempo que se arruinavam as Índias. Ide só ao museu indiano em Londres, e aí vereis riquezas inauditas, insensatas, amontoadas em Calcutá e Bombaim pelos negociantes ingleses.
Mas outros negociantes, e outros capitalistas, igualmente ingleses, conceberam a ideia muito natural que seria mais hábil explorar diretamente os habitantes da Índia e fabricar os algodões mesmo nas Índias em lugar de os importar da Inglaterra.
Primeiro foi uma série de fracassos. Os tecelões índios, –artistas no seu tear, não podiam afazer-se ao regime da oficina. As máquinas mandadas de Liverpool eram más; era preciso também ter em conta o clima, adaptar-se a novas condições, hoje todas preenchidas, e a Índia inglesa torna-se uma rival cada vez mais ameaçadora das manufaturas da metrópole.
Hoje possui 80 manufaturas de algodão, que empregam cerca de 50.000 trabalhadores e em 1885 tinham manufaturado mais de 1.450.000 toneladas métricas de algodões pintados. Exportam anualmente para a China, Índias holandesas e África – perto de 100 milhões de francos – desses mesmos algodões brancos que se dizia serem a especialidade da Inglaterra. E enquanto os trabalhadores ingleses estão sem trabalho e caem na miséria, as mulheres indianas, pagas à razão de 60 centímetros por dia, fabricam na máquina os algodões vendidos nos portos do extremo Oriente.
Resumindo: não está longe o dia – e os manufatores inteligentes não o dissimularam, em que não se saiba o que se há de fazer dos “braços” que na Inglaterra se ocupavam em tecer algodões para exportar. Ainda mais: sabe-se que daqui a dez anos a Índia não comprará uma única tonelada de ferro à Inglaterra. Já se venceram as primeiras dificuldades para empregar a hulha e o ferro da Índia e oficinas, rivais das fábricas inglesas, já se levantam nas costas do Oceano Índico.
As colônias, fazendo concorrência à metrópole, “por seus produtos manufaturados”, eis o fenômeno determinante da economia do século XIX.
E por que não a fariam? Que lhes falta? – O capital? Mas o capital vai a toda parte onde se encontram miseráveis a explorar. – O saber? Mas o saber não conhece as barreiras nacionais. – Os conhecimentos técnicos do obreiro? – Mas o obreiro hindu seria inferior a esses 92.000 rapazes e raparigas de menos de quinze anos, que trabalham neste momento nas manufaturas têxteis da Inglaterra?
II
Tendo lançado um golpe de vista sobre as indústrias nacionais, seria muito interessante repetir a mesma revista sobre as indústrias especiais.
Tomemos como exemplo – a seda; produto eminentemente francês na primeira metade deste século. Sabe-se como Lyon se tornou o centro da indústria das sedas, colhidas primeiro no sul, mas que pouco a pouco se pediram à Itália, à Espanha, à Áustria, ao Cáucaso, ao Japão, para as meter em obra. Em cinco milhões de quilos de sedas cruas transformadas em tecido na região lyonesa em 1875, só havia 400.000 quilos de seda francesa. Mas como Lyon trabalhava com sedas de importação, por que não fariam o mesmo a Suíça, a Alemanha, a Rússia? A tecelagem da seda desenvolveu-se pouco a pouco nas aldeias do Zurichois. Bale tornou-se um grande centro para os tecidos. A administração do Cáucaso convidou mulheres de Marselha e obreiros de Lyon para que fossem ensinar às georgianas a cultura aperfeiçoada do bicho da seda e aos camponeses do Cáucaso a arte de transformar a seda em estofos. A Áustria imitou-os. A Alemanha montou, com o auxílio dos operários lyoneses, imensos ateliers de sedas. Os Estados Unidos fizeram o mesmo em Paterson…
E hoje a indústria das sedas já não é a indústria francesa. Fazem-se tecidos de seda em Alemanha, em Áustria, nos Estados Unidos, em Inglaterra e em Portugal. Os camponeses do Cáucaso tecem no inverno lenços de seda por um preço que deixaria sem pão os tecelões de Lyon. A Itália manda sedas para França e Lyon, que exportava em 1870-74 cerca de 460 milhões, não exporta mais que 233 milhões. Dentro em pouco, não mandará para o estrangeiro senão os tecidos superiores ou algumas novidades, - para servirem de modelos aos alemães, aos russos e aos japoneses.
O mesmo se dá com todas as indústrias. A Bélgica já não tem o monopólio dos panos: fazem-se na Alemanha, na Rússia, na Áustria, nos Estados Unidos. A Suíça e o Jura Frances já não tem mais o monopólio dá relojoaria: fazem-se relógios em toda parte. A Escócia já não refina açúcar para a Rússia; em Inglaterra importa-se açúcar russo; a Itália, sem ter ferro nem hulha, forja os seus couraçados e faz as máquinas dos seus barcos a vapor; a indústria química já não é monopólio da Inglaterra; faz-se ácido sulfúrico e soda por toda parte. As máquinas de todos os gêneros fabricadas nos arredores de Zurich, faziam-se notar na última exposição universal; a Suíça, que não tem hulha nem ferro, - apenas excelentes escolas técnicas – faz as máquinas melhor e mais barato que a Inglaterra: eis o que resta da teoria das trocas.
Assim a tendência para a indústria – como para tudo o mais – está na descentralização.
Cada nação acha vantagem em combinar entre si a agricultura com a maior variedade possível de oficinas e de manufaturas. A especialização que os economistas nos têm falado era boa para enriquecer alguns capitalistas, mas não tem nenhuma razão de ser, e há, pelo contrário, toda a vantagem em que cada país, cada bacia geográfica posso cultivar seu trigo e os seus legumes e fabricar em sua casa todos os produtos manufaturados que consome. Esta diversidade é o melhor penhor do desenvolvimento completo da produção pelo concurso mútuo e de cada um dos elementos do progresso: enquanto a especialização é a suspensão do progresso.
A agricultura não pode prosperar senão ao lado das oficinas. E desde que uma única oficina faz a sua aparição, uma variedade infinita doutras oficinas de toda a espécie deve surgir em volta dela, a fim de que, suportando-se mutuamente, estimulando-se umas às outras por suas invenções, se acrescentem juntas.
III
É, na verdade, insensato exportar o trigo e importar farinhas, exportar lã e importar pano, exportar ferro e importar máquinas, não só porque os transportes ocasionam despesas inúteis, mas principalmente porque um país que não tem indústria desenvolvida fica por força atrasado em agricultura; porque um país que não tem grandes oficinas para trabalhar o aço, está também atrasado em todas as indústrias; porque, enfim, numerosas capacidades industriais e técnicas ficam sem emprego.
Tudo se liga hoje no mundo da produção. A cultura da terra não é mais possível sem máquinas, sem possantes regas, sem caminhos de ferro, sem manufaturas de adubo. E para ter estas máquinas apropriadas às condições locais, estes caminhos de ferro, estes engenhos de irrigação etc. etc. – é necessário que se desenvolva um certo espírito inventivo, uma certa habilidade técnica que nem podem ver a luz enquanto a enxada ou o arado forem os únicos instrumentos de cultura.
Imaginemos agora uma cidade, um território vasto ou exíguo – pouco importa – dando os seus primeiros passos no caminho da Revolução Social.
“Nada será mudado” – tem-nos dito algumas vezes – “Os ateliers serão expropriados, as oficinas serão declaradas propriedade nacional ou comunal – e cada um voltará ao seu trabalho habitual. A Revolução estará feita”.
Pois bem, não! A Revolução social não se fará com essa simplicidade.
Já o dissemos: Que amanhã a Revolução rebente em Paris, em Lyon ou em outra qualquer cidade; que amanhã ponham a mão, em Paris, ou não importa onde, sobre as oficinas, as casas ou o banco – toda a produção atual deverá mudar de aspecto por este simples fato.
O comércio internacional ficará suspenso, assim como as entradas de trigo estrangeiro; a circulação das mercadorias, dos víveres ficará paralisada. E a cidade ou o território revoltado deverão, para se suprirem, reorganizar completamente toda a produção. Se fracassam, é a morte. Se vencem, é a revolução no conjunto da vida econômica do país.
Diminuída a entrada de víveres, tendo o consumo aumentado, três milhões de franceses trabalhando para a exportação, obrigados a inação, mil coisas que hoje se recebem dos países distantes ou vizinhos, não entrando mais, a indústria de luxo suspensa temporariamente, que farão os habitantes para terem que comer durante seis meses?
É evidente que a grande massa pedirá ao solo o seu sustento desde que os armazéns estejam esgotados. Será preciso cultivar as terras, combinar mesmo em Paris e arredores a produção agrícola com a produção industrial, abandonar as mil pequenas ocupações de luxo, para cuidar do mais preciso – o pão.
Os cidadãos terão que se fazer agricultores. Não à maneira do camponês que se derreia na charrua para colher apenas o seu sustento anual, mas seguindo os princípios da cultura intensiva, de horta, aplicada em vastas proporções por meio das melhores máquinas que o homem inventou, que ele pode inventar. Cultivar-se-á, mas não como a besta de carga de Contal – reorganizar-se-á, não em dez anos, mas imediatamente, no meio das lutas revolucionárias, sob pena de sucumbir diante do inimigo.
É preciso fazê-lo como seres inteligentes, recorrendo ao “saber” organizando-se e, bandos risonhos para um trabalho agradável, como os que resolviam, há cem anos, o campo de Marte, para a festa da federação: trabalho cheio de gozos, quando se não prolonga desmensuradamente.
Cultivar-se-á, mas ter-se-á também de produzir mil coisas que estamos habituados a pedir ao estrangeiro. E não esqueçamos que para os habitantes do território revoltado – estrangeiros serão todos os que não tiverem seguido na Revolução.
Em 1793, em 1871, para Paris revoltado, o estrangeiro era já a província, mesmo às portas da capital. O açambarcador de Croyes fazia fome aos “sem calções” de Paris tão bem ou melhor ainda que as hordas alemãs trazidas ao solo francês pelos conspiradores de Versalhes. Será preciso passar sem esses estrangeiros. E há de se passar. A França inventou o açúcar de beterraba quando o açúcar de cana veio faltar em conseqüência do bloqueio continental. Paris achou o salitre nas suas adegas quando o salitre não chegava doutra parte. Seríamos agora inferiores aos nossos avós, que apenas balbuciavam as primeiras palavras da ciência?
É que uma Revolução é a aurora duma ciência nova; é mais uma revolução nos espíritos que nas instituições. E falam-nos em voltar ao atelier, como se se tratasse de voltar para casa depois dum passeio na floresta de Fontainebleau!
A Revolução reorganizará radicalmente toda a vida econômica, no atelier, no estaleiro e na oficina. Que Paris em Revolução social se ache só um ou dois anos isolado do mundo inteiro pelos partidários da ordem burguesa! E esses milhões de inteligências que a grande oficina ainda felizmente não embruteceu, esta cidade dos pequenos ofícios que estimulam o cérebro do homem sem nada pedir ao universo, senão a força motriz do sol que o alumia, do vento que leva as nossas impurezas e dar todo o seu esforço ao trabalho no solo que pisamos.
Ver-se-á que amontoado sobre um ponto do globo esta imensa variedade de trabalhos que se completam mutuamente e o espírito vivificante duma revolução, podem fazer por alimentar, vestir, alojar e encher de todo o luxo possível dois milhões de seres inteligentes.
Para isto não é preciso fazer romance. O que já se sabe, o que já foi experimentado e reconhecido como prático, bastaria para executar, com a condição de se fecundado, vivificado pelo sopro audacioso da Revolução, pelo levantamento espontâneo das massas.
A AGRICULTURA
I
Lançou-se muitas vezes em rosto à economia política o tirar todas as suas deduções deste princípio certamente falso, que o único móvel capaz de impelir o homem a aumentar a sua força de produção é o interesse pessoal estritamente compreendido.
O reproche é perfeitamente justo: tão justo que as épocas das grandes descobertas industriais e dos grandes progressos na indústria são precisamente aquelas em que se sonhava a felicidade de todos, em que se preocupavam menos com o enriquecimento pessoal. Os grandes investigadores e os grandes inventores pensavam sobretudo na emancipação da humanidade; e se os Watt, os Stephenson, os Jacquard só tinham podido prever a que estado de miséria as suas noites brancas levariam o trabalhador, teriam provavelmente queimado os seus apontamentos e quebrado os seus modelos.
Um outro princípio que tem lugar na economia política é igualmente falso. É a admissão tácita, comum a quase todos os economistas, que se muitas vezes há superprodução em certos ramos, uma sociedade, contudo, nunca terá bastantes produtos para satisfazer as precisões de todos; e que, por consequência, nunca chegará um momento em que ninguém seja obrigado a vender a sua força de trabalho em troca dum salário. Esta admissão tácita encontra-se na base de todas as teorias, de todas as pretendidas “leis” ensinadas pelos economistas.
Entretanto é certo que desde que a uma aglomeração civilizada qualquer se perguntasse quais são as precisões de todos os meios de as satisfazer, perceberia que já possui na indústria como na agricultura, com que promover largamente a todas as precisões, contanto que se saiba aplicar esses meios à satisfação das precisões reais.
Que isto é verdade pela indústria ninguém pode contestar. Basta estudar nos grandes estabelecimentos industriais os processos já em vigor para extrair o carvão e os minerais, obter o aço e dar-lhe forma, fabricar o que serve para o vestuário etc., para perceber que no que respeita aos produtos das nossas manufaturas, as nossas fábricas, as nossas minas nenhuma dúvida é possível. Já poderíamos quadruplicar a nossa produção e fazer ainda economia sobre o trabalho.
Mas nós vamos mais longe. Afirmamos que a agricultura está no mesmo caso da indústria: o lavrador, como o manufator “possui” já os meios de quadruplicar se não decuplicar a sua produção e poderá fazê-lo desde que sinta precisão disso e proceda à organização societária do trabalho em lugar da organização capitalista.
Cada vez que se fala de agricultura, imagina-se logo o camponês curvado sobre a charruta, atirando ao azar no solo um trigo mal escolhido e esperando com angústia o que a estação boa ou má lhe renderá. Vê-se uma família trabalhando desde pela manhã até a noite, sem ter por única recompensa mais que um grabato, pão seco e uma bebida amarga. Vê-se, numa palavra, a besta selvagem de La Bruniere.
E para este homem, submetido à miséria, fala-se quanto muito de aliviar o imposto e a renda.
Mas ninguém ousa imaginar um lavrador, endireitando-se por fim, tendo folgas e produzindo em poucas horas diárias com que sustentar não só a família, mas cem homens pelo menos.
No mais forte dos seus sonhos do futuro os socialistas não ousam ir além da grande cultura americana que, no fundo, não passa da infâmia da arte.
O agricultor de hoje tem ideias mais largas, concepções bem mais grandiosas. Não pede senão uma fração de are para fazer crescer toda a alimentação vegetal, duma família; para sustentar vinte e cinco animais cornígeros não precisa senão o espaço que outrora era preciso para um só; quer chegar a “fazer” o solo; a desafiar as estações e o clima; a aquecer o ar e a terra em roda da planta nova; a produzir, uma palavra, em um hectare o que outrora não se recolhia em cinquenta hectares, e isto sem se fatigar muito; reduzindo muito a soma do trabalho anterior. Pretende que se poderá produzir amplamente com que sustentar toda a gente, não dando à cultura dos campos senão justamente o que cada um pode dar com prazer e alegria.
Eis a tendência atual da agricultura.
Enquanto os sábios, guiados por Liebig, criador da teoria química da agricultura, erravam muitas vezes o caminho na sua presunção de teóricos, alguns cultivadores iletrados abriram à humanidade uma nova via de prosperidade. Hortelões de Paris, de Troyes, de Rouen, jardineiros ingleses, fazendeiros flamengos, cultivadores de Jersey, de Guernesey abriram-nos tão largos horizontes que a vista hesita em os abraçar.
Enquanto uma família de camponeses devia ter, pelo menos, sete ou oito hectares para viver dos produtos do solo, – e é sabido como já vivem os camponeses – já se não pode mesmo dizer qual é a extensão mínima do terreno necessário para dar a uma família tudo o que se pode tirar da terra – o necessário e o luxo – cultivando-a segundo os processos da cultura intensiva. Cada dia encurta esse limite. E se nos perguntam qual é o número de pessoas que podem viver ricamente no espaço duma légua quadrada, sem nada importar dos produtos agrícolas do exterior, ser-nos-á difícil responder a essa pergunta. Esse número aumenta rapidamente em proporção dos progressos da agricultura.
Há dez anos podia-se já afirmar que uma população de cem milhões viveria muito bem dos produtos do solo francês sem nada importar. Mas hoje diremos que cultivando a terra, “como já se cultiva em muitos lugares, mesmo em terrenos pobres”, cem milhões de habitantes nos cinquenta milhões de hectares do solo francês seria ainda uma muito fraca proporção do que o solo poderia sustentar.
Em todo o caso, - como vamos ver – pode-se considerar como “absolutamente demonstrado” que se Paris e os dois departamentos do Sena e do Sena-e-Oise se organizassem amanhã em comuna anarquista, na qual todos trabalhassem com os seus braços e se o universo inteiro recusasse enviar-lhe um só grão de trigo, um único cesto de frutas e só lhe deixasse o território dos dois departamentos, - estes produziriam não só o trigo, a carne e os legumes necessários, mas todos os frutos de luxo em quantidade suficiente para a população urbana e rural.
E afirmamos, ainda, que a despesa total de trabalho humano seria muito “menor” que a despesa atual empregada em sustentar esta população com trigo colhido no Auvergne ou na Rússia, legumes produzidos pela grande cultura um pouco em toda a parte e frutos amadurecidos no Meio-dia.
Não Cremos que seja preciso suprimir todas as trocas, mas queremos salientar que a teoria das trocas, como se professa hoje, é singularmente exagerada.
II
Ser-nos-ia impossível citar aqui a marcha dos fatos sobre que baseamos as nossas asserções. E somos forçados a enviar os nossos leitores, para mais amplos esclarecimentos, para os artigos que publicamos em inglês. Sobretudo convidamos muito seriamente aqueles a quem a questão interessa, a lerem algumas excelentes obras publicadas em França tais como: A cultura da horta, por M. Ponce, Paris 1869, - Le Potager Gressent, Paris 1885, – Fisiologia e cultura do trigo, por Rissler, Paris 1886, - etc.
Quanto aos habitantes das grandes cidades, que não tem uma idéia real do que pode ser a agricultura – que conversem com os hortelãos e verão abrir-se um mundo novo a seus olhos. Assim poderão entrever o que será a agricultura no século XX. Compreenderão de que força estará armada a Revolução social quando, se souber o segredo de tirar da terra tudo quanto se lhe pedir.
Alguns fatos bastarão para demonstrar que as nossas afirmações não são, de modo nenhum, exageradas; queremos só fazê-las preceder duma observação geral.
Sabe-se em que miseráveis condições se encontra a agricultura na Europa. Se o cultivador da terra não é roubado pelo proprietário agrícola, sê-lo-á pelo Estado. Se o Estado o tributa modestamente o agiota, que o escraviza com letras à ordem, fez dele em breve um simples locatário do solo, que pertence realmente a uma companhia financeira. Assim o proprietário, o Estado e o banqueiro roubam o cultivador, pela renda, o imposto e os juros. Em França o cultivador paga ao Estado 44% do produto bruto.
Há mais: a parte do proprietário e a do Estado crescem sempre. Apenas, por prodígios de canseira, de invenção ou de iniciativa obtém colheitas mais fortes, e o tributo que deverá ao proprietário, ao Estado ou ao banqueiro, aumentará em proporção. Se dobra o número de hectares recolhidos num hectare, a renda dobrará e por conseguinte os impostos, que o Estado se apressará a elevar ainda, se os preços sobem. E assim sucessivamente. Em resumo, em toda parte o cultivador do solo trabalha 12 a 16 horas por dia, por toda parte os três inimigos lhe levam tudo o que ele poderia por de parte. Eis porque a agricultura fica estacionária. Só por efeito de uma rixa entre os três vampiros, por um esforço de inteligência ou por acréscimo de trabalho é que ele conseguirá dar um passo para a frente.
Cada máquina, cada enxada, cada tonel de adubo químico é vendido por três ou quatro vezes o que custa. Não esqueçamos também o intermediário, que tira a parte do leão sobre os produtos do solo.
Aí está por que, durante todo este século de invenções e de progresso, a agricultura só se aperfeiçoa em espaços muito restritos, ocasionalmente e por sobressaltos.
Felizmente sempre tem havido pequenos terrenos encravados, esquecidos durante algum tempo pelos abutres, e onde aprendemos o que a agricultura intensiva pode dar à humanidade. Citemos alguns exemplos.
Nos prados da América (que aliás não dão senão magras colheitas de 7 a 12 hectolitros por hectare e ainda com secas periódicas prejudicando muitas vezes as colheitas) quinhentos homens, trabalhando só oito meses no ano, produzem o sustento anual de 50.000 pessoas. O resultado obtém-se aqui por uma forte economia de trabalho. Sobre esses largos plainos, que a visão não chega a abraçar, a lavra, a colheita, a debulha estão organizadas quase militarmente, nada de idas e vindas inúteis, nada de perdas de tempo. Tudo é feito com a exatidão duma parada.
É a grande cultura, a cultura extensiva, aquela que toma o terreno, tal como sai das mãos da natureza sem procurar melhorá-lo. Quando ele tiver dado tudo o que pode, abandoná-lo-ão, procurarão mais além um solo virgem para o esgotar por seu turno.
Mas também lá há a cultura intensiva a que as máquinas vêm e sempre virão em auxílio: visa sobretudo a cultivar “bem” um espaço limitado, estrumá-lo, emendá-lo concentrar o trabalho e obter o maior rendimento possível. Este gênero de cultura aumenta todos os anos, e, enquanto se contentam com uma colheita média de 10 a 12 hectolitros na grande cultura do Meio-dia, nas terras férteis do Oeste americano colhem-se regularmente 36, mesmo até 50 e algumas vezes 56 hectolitros no Norte da França.
E enquanto mais intensidade se dá à cultura, menos trabalho se despende para obter o hectolitro de pão. A máquina substitui o homem para os trabalhos preparatórios e faz-se, uma vez por todas, tal melhoria do solo, como drenagem e limpeza das pedras, que permite no futuro duplicar as colheitas. Algumas vezes uma lavra profunda permite obter dum solo medíocre excelentes colheitas de ano para ano sem nunca adubar. Assim fizeram durante vinte anos em Rothamstead, perto de Londres.
Não façamos romance agrícola. Fiquemos nesta colheita de 40 hectolitros, que não demanda um solo excepcional, mas simplesmente uma cultura racional, e vejamos o que significa.
Os 3.600.000 indivíduos que habitam os dois departamentos do Sena-e-Oise consomem por ano, para seu alimento, um pouco menos de 8 milhões de hectolitros de cereais, de trigo principalmente. Na nossa hipótese precisariam, pois, cultivar, para obter esta colheita, 200.000 hectares sobre os 610.000 que possuem.
É evidente que os não cultivarão à enxada. Isso levaria muito tempo (240 dias de 5 horas por hectare). Beneficiaria talvez o solo uma vez por todas: drenariam o que deve ser drenado; aplainariam o que deve aplainar; espiariam o solo, – embora se gastasse nesse trabalho preparativo cinco milhões de dias de 5 horas – ou média de 25 dias por hectare.
Em seguida lavrar-se-ia à máquina de arrotear a vapor, o que faria 4 dias por hectare e dar-se-iam mais quatro dias por hectare para lavrar à charrua dupla. Não se atirava a semente aos quatro ventos, mas em linha. E com tudo isto ainda se não teriam gasto 25 dias de 5 horas por hectare, sendo o trabalho feito em boas condições. Mas durante três ou quatro anos se derem 10 milhões de das a uma boa cultura, poder-se-á mais tarde ter colheitas de 40 e de 50 hectolitros, não gastando já senão a metade do tempo.
Logo apenas se terão gasto 15 milhões de dias para dar o pão a esta população de 3.600.000 habitantes. E todos os trabalhos seriam tais que cada um os poderia fazer sem precisar músculos de aço e mesmo sem ter jamais trabalhado na terra. A iniciativa e a distribuição geral dos trabalhos viriam daqueles que sabem o que a terra requer. Quanto ao trabalho em si, não há parisiense homem ou mulher, tão fraco, que não seja capaz, depois de algumas horas de aprendizagem, de vigiar as máquinas, ou de contribuir, cada um da sua parte, para o trabalho agrário.
Ora bem, quando se pensa, que no caos atual que há, sem contar os ladrões de alta-roda, perto de cem mil homens que jazem sem trabalho em seus diversos ofícios; vê-se que a força “perdida” na nossa atual organização bastaria sozinha para dar (por uma cultura racional) o pão necessário aos 3 ou 4 milhões de habitantes dos dois departamentos.
Ainda não contamos com esse trigo obtido (em três anos por Mr. Hallett) de que um só grão transplantado produziu um tufo, contendo mais de 10.000 sementes. Não temos, pelo contrário, citado senão o que fazem numerosos fazendeiros em França, na Inglaterra e na Bélgica – e o que se podia fazer desde amanhã com a experiência e o saber adquiridos pela prática.
Mas sem a Revolução isso não se fará nem amanhã nem depois, porque os detentores do capital e do solo não tem nisso interesse algum e porque os camponeses que com isso beneficiariam não tem nem saber nem dinheiro, nem tempo para dar os primeiros passos.
A sociedade atual ainda lá não chegou. Não proclamem os parisienses a Comuna anarquista e eles aí virão forçadamente, porque não farão a asneira de continuar a fazer bijuterias de luxo e não se exporão a ficar sem pão.
Demais o trabalho agrícola ajudado por máquinas tornar-se-ia bem depressa a mais atraente e a mais alegre de todas as ocupações.
Já basta de ourivesaria, de fatos para bonecas! Iria cada um retemperar-se no trabalho dos campos, procurar nele o vigor, e alegria de viver.
III
Os ingleses que comem muita carne, consomem uma quantidade média, um pouco menos de 100 quilos anuais por pessoa adulta: supondo que todas as carnes consumidas sejam de boi, isso faz um pouco menos dum terço de boi. Um boi por ano para cinco pessoas (incluindo as crianças) já é uma ração suficiente. Para três milhões e meio de habitantes daria um consumo anual de 700.000 cabeças de gado.
Ora com o atual sistema de pastagem é preciso ter, pelo menos, dois milhões de hectares para sustentar 660.000 cabeças de gado. Entretanto, comprados modestamente, regados por água corrente (como recentemente se criou em milhares de hectares no Sudoeste da França) 500.000 hectares já são suficientes. E quando se recorre ao milho, e se faz a ensilagem como os árabes, obtém-se toda a forragem necessária sobre uma superfície de 88.000 hectares.
Nos arredores de Milão, onde se aproveitam as águas de esgoto para irrigar os prados, obtém-se sobre uma superfície de 9.000 hectares irrigados o sustento de 4 a 6 conígeros por hectare e em alguns pedaços favorecidos tem-se recolhido até 45 toneladas de feno seco, por hectare, o que dá a alimentação anual de 9 vacas de leite.
Na ilha de Guernasey, sobre um total de 4.000 hectares, perto da metade (1.900 hectares) estão cobertos de cereais e legumes e 2.100 somente ficam para os prados; sobre 2.100 hectares sustentam 1.480 cavalos, 7.260 cabeças de gado, 900 carneiros e 4.200 porcos, o que faz mais de 3 cabeças de gado por hectare, sem contar os cavalos, os carneiros e os porcos. Inútil acrescentar que a fertilidade do solo está feita pelos adicionamentos de algas marinhas e adubos químicos.
Voltando aos nossos três milhões e meio de habitantes da aglomeração de Paris, vê-se que a superfície necessária à criação do gado desce de dois milhões de hectares a 88.000. Pois bem, não paremos nos números mais baixos, tomemos os da cultura intensiva ordinária; acrescentemos fartamente o terreno necessário para o gado miúdo que deve substituir uma parte dos cornígeros, e demos 160.000 hectares, à criação do gado – 200.000, se querem, sobre os 410.000 hectares que nos ficam, depois de haver provido ao pão necessário à população.
Sejamos generosos e ponhamos cinco milhões de dias de trabalho, metade dos quais para benfeitorias permanentes, e teremos o pão e a carne garantidos, não contando com toda a carne suplementar que se pode obter em forma de aves, porcos engordados, coelhos etc., sem contar que uma nação provida de legumes excelentes e de frutas, gastará muito menos carne que os ingleses que suprem com o alimento animal a pobreza do seu “menu” vegetal. Uma população de três milhões e meio deve ter pelo menos 1.900.000 homens adultos aptos para trabalhar, e outras tantas mulheres. Assim para garantir o pão e a carne a todos, não seriam preciosos mais de 17 dias de trabalho por ano, somente para os homens. Ponde mais três milhões de dias para arranjar leite. Dobrai tudo e o total não chega a 25 dias de cinco horas – simples negócio de se recriar um pouco nos campos: pão, carne e leite, estes três produtos que depois da habitação formam a preocupação principal, cotidiana, dos nove décimos da humanidade.
No dia em que Paris compreender que saber o que se come e como se produz é uma questão de interesse público, quando toda a gente tiver compreendido que esta questão é muito importante, infinitamente mais importante que os debates do parlamento e do conselho municipal, nesse dia a Revolução estará feita. Paris tomará as terras dos dois departamentos e cultiva-las-á. E então, depois de ter dado, toda a vida, um terço da sua existência para “comprar” um alimento insuficiente e mau, o parisiense o produzirá ele mesmo, debaixo dos seus muros, no recinto das fortificações (se ainda existirem) em algumas horas dum trabalho são e atraente.
Agora falemos das frutas e dos legumes. Saiamos de Paris e vamos visitar um desses estabelecimentos da cultura hortícola, a alguns quilômetros das academias, prodigiosos ignorados pelos sábios economistas. Paremos, por exemplo, em casa de M. Ponce, autor duma obra sobre a cultura das hortas, que não faz segredos do que a terra lhe rende e que a conta a toda gente.
M. Ponce, e sobretudo os seus obreiros, trabalham como negros. São oito a cultivar um pouco mais dum hectare (onze décimos). Trabalham sem dúvida doze e quinze horas por dia, isto é, três vezes mais. Fossem eles vinte e quatro e não seriam demais M. Ponce vai certamente responder-nos que, visto pagar a soma assustadora de 2.500 francos por ano de renda e impostos e 2.500 francos pelo adubo comprado nas casernas, é forçoso fazer exploração. “Explorado, exploro por minha vez”, seria a sua resposta. A sua instalação custou-lhe também 30.000 francos, certamente mais de metade aos barões “farnientes” da indústria. Em suma a sua instalação não representa mais de 3.000 dias de trabalho e provavelmente muito menos.
Agora vejamos as suas colheitas: 10.000 quilos de cenouras, 10.000 quilos de cebolas, rabanetes e outros pequenos legumes, 6.000 pés de couves, 3.000 couves-flores, 5.000 cestos de tomates, 5.000 dúzias de frutos escolhidos, 154.000 saladas, enfim um total de 125.000 quilos de legumes e frutas sobre um hectare e um décimo – sobre 110 metros de comprido e 100 de largo. O que faz mais de 110 toneladas de legumes por hectare.
Mas um homem não come mais de 300 quilos de legumes e de frutos por ano e o hectare do hortelão dá bastantes legumes e frutos para servir ricamente a mesa de 350 adultos todo o ano.
Assim, 24 pessoas, empregando-se todo o ano a cultivar um hectare de terra, mas não lhe dando mais que cinco horas por dia produziria frutos e legumes para 350 adultos, o que equivale pelo menos a 500 indivíduos.
Uma produção igual não é exceção. Faz-se dentro de Paris numa superfície de 900 hectares, por 5.000 hortelãos. Unicamente estes hortelãos estão reduzidos ao estado de bestas de carga para pagar “uma renda média de 2.000 francos por hectare”.
Mas estes fatos, que todos podem verificar, não provam que 7.000 hectares(sobre os 210.000 que nos restam) bastariam para dar todos os legumes possíveis, assim como uma boa provisão de frutos aos três milhões e meio de habitantes de nossos dois departamentos?
Quanto à quantidade de trabalho necessário para produzir esses frutos e esses legumes, ela atingiria a cifra de 50 milhões de dias de 5 horas (meio cento de dias por cada masculino adulto) se tomássemos por medida o trabalho dos horticultores. Mas já vamos ver esta quantidade reduzir-se, se recorremos aos processos já em voga em Jersey e em Guernesey. Lembramos somente que hortelão não é forçado a trabalhar tanto senão porque produz principalmente novidades, cujo preço elevado serve para pagar rendas babulosas, e que mesmo os seus processos reclamam mais trabalho do que é preciso na realidade. Não tendo os meios de fazer fortes despesas para sua instalação, obrigado a pagar muito caro o vidro, a madeira, o ferro e a hulha, pediu ao estrume o calor artificial, que se pode obter com menor despesa pela hulha e pela estufa.
IV
Os horticultores, dizíamos, são obrigados a reduzir-se ao estado de máquinas e a renunciar a todas as alegrias da vida para obterem suas colheitas fabulosas. Mas estes rudes cavadores têm rendido à humanidade um imenso serviço, ensinando-nos “que se faz” o solo.
Fazem-no, eles, com camadas de estrume que já serviram para dar às plantas novas e às novidades o calor necessário. Fazem o solo em tão grandes quantidades que cada ano são forçados a removê-lo em parte. Sem isso os seus jardins subiriam cada ano de 2 a 3 centímetros. Fazem-no tanto que (é Barral no “Dicionário de Agricultura”, no artigo “Hortelãos” que no-lo ensina), nos contratos recentes, o hortelão estipula que “levará o seu solo consigo”, quando abandonar a parcela que cultiva. O solo levado em carroças, com os móveis e o resto – eis a resposta que os cultivadores práticos deram às lucubrações dum Ricardo, que representava a renda como um meio de igualizar as vantagens naturais do solo. “O solo vale o que vale o homem”, tal é a divisa dos jardineiros.
E entretanto os hortelãos parisienses e rouenenses fatigam-se três vezes mais que os seus irmão de Guernesey e de Inglaterra para obter os mesmos resultados.
Toda cultura hortícola é baseada nestes dois princípios:
1º Semear em canteiro, criar as plantas novas num solo rico, num espaço limitado, onde se possam tratar e transplantar mais tarde quando tiverem bem desenvolvida a “cabeleira” das raízes. Fazer numa palavra o que se faz com os animais: tratá-los na sua infância.
2º Para amadurecer as colheitas cedo, aquecer o solo e o ar, cobrindo as plantas com caixilhos ou campânulas e produzindo na terra um forte calor pela fermentação do estrume.
Transplantação e temperatura mais elevada que a do ar, eis a essência da cultura hortícola, uma vez que o solo foi feito artificialmente.
Como já vimos, a primeira destas duas condições está posta em prática e demanda só alguns aperfeiçoamentos de detalhe. E para realizar a segunda trata- se de aquecer o ar e a terra, substituindo o estrume por água quente circulando tubos fundidos, seja no solo, seja em caixilhos ou no interior de estufas quentes.
É o que já se faz. O horticultor parisiense pede já ao “Thermo-syphão” o calor que antes pedia ao estrume. E o jardineiro inglês constrói a estufa quente.
Outrora a estufa era o luxo do rico. Reservava-se às plantas exóticas ou de ornato, mas hoje vulgariza-se. Hectares inteiros estão cobertos de vidro nas ilhas de Jersey e de Guernesey, sem contar os milhares de pequenas estufas que se veem em Guernesey em cada fazenda, em cada jardim. Nos arredores de Londres, começa-se a cobrir de vidro campos inteiros e milhares de pequenas estufas se instalam cada ano nos subúrbios.
Fazem-se de todas as qualidades desde as estufas de paredes de granito até ao modesto abrigo em tábuas de abeto e cobertura de vidro, que apesar de todas as sanguessugas capitalistas, não custa mais de quatro a cinco francos o metro quadrado. Aquecem-se, ou não se aquecem absolutamente nada (basta o abrigo, se não se trata de obter novidades); e fazem-se brotar – não uvas nem flores tropicais, mas batatas, cenouras, ervilhas e feijão-branco.
Assim emancipamo-nos do clima; dispensamo-nos do trabalho laborioso de envolver as plantas novas em camadas preservadoras; não se compram mais exorbitâncias de estrume, cujos preços sobem em proporção da procura; e em parte suprime-se o trabalho humano: sete ou oito horas bastam para cultivar um hectare coberto de vidro e para obter resultados iguais aos de M. Ponce. Em Jersey, sete homens trabalhando menos de 60 horas por semana, obtém, sobre espaços infinitesimais, colheitas que antes demandavam hectares de terreno.
Poderiam dar-se sobre este objeto detalhes interessantes. Limitemo-nos a um único exemplo. Em Jersey, 34 homens de ganhar e um jardineiro, cultivando um pouco mais de 4 hectares envidraçados (ponhamos 70 homens que não dessem mais de 5 horas por dia) obtém de ano para ano as colheitas seguintes:
25.000 quilos de uvas cortadas desde o 1° de maio, 80.000 quilos de tomates, 30.000 quilos de batatas em abril, 6.000 quilos de ervilhas e 2.000 quilos de feijão-branco cortados em maio – sejam 143.000 quilos de frutos e de legumes, sem contar uma segunda colheita, muito forte, de certas estufas, em uma imensa estufa de recreio, nem as colheitas de toda sorte de pequenas culturas em pleno chão entre as estufas.
Cento e quarenta e três toneladas de frutos e novidades! Com que sustentar largamente mais de 1.500 pessoas durante o ano inteiro. E isto não demanda mais de 21.000 dias de trabalho – sejam 210, “horas por ano”, para a metade somente de mil dos adultos.
Juntai-lhe a extração de 1.000 toneladas pouco mais ou menos de carvão (é o que se queima por ano nestas estufas, para aquecer 4 hectares) e sendo a Inglaterra a extração média de 3 toneladas por dia de dez horas e por obreiro, faz um trabalho suplementar de seis a sete horas por ano para cada um dos 500 adultos.
Soma total, se só metade dos adultos desse um quinquagésimo de meio dia por ano à cultura dos frutos e dos legumes “fora da estação”, todos poderiam comer todo o ano frutas e legumes de luxo à saciedade, ainda que não os obtivessem senão em estufa. E teriam ao mesmo tempo, como segunda colheita nas mesmas estufas a maior parte dos legumes ordinários que nos estabelecimentos como o de M. Ponce exigem, como vimos, cinqüenta dias de trabalho.
Acabamos de ver a cultura do luxo Mas já dissemos que a tendência atual é de fazer da estufa uma simples horta envidraçada. E quando se aplica a este uso, obtém-se com abrigos de vidro extremamente simples, aquecidos ligeiramente durante três meses, colheitas fabulosas de legumes: por exemplo 450 hectares de batatas por hectare, como primeira colheita no fim de abril. Depois disso, tendo beneficiado a terra, far-se-ia rotar novas colheitas, de maio a fim de outubro, numa temperatura quase tropical devido ao abrigo de vidro.
Hoje para obter 450 hectares de batatas é preciso lavrar cada ano uma superfície de 20 hectares, ou mais, plantar e mais tarde sachar as plantas, arrancar as ervas más com um sacho, e sucessivamente.
O que já se tem dito não será bastante para dar uma ideia do que o homem pode obter do solo, tratando-o com inteligência?
V
Em todos os nossos raciocínios temos contado com os precedentes admitidos e já parte postos em prática. A cultura intensiva dos campos, os plainos regados pelas águas de esgoto, a horticultura de legumes, enfim a horta envidraçada, são realidades. Como Leonce de Lavergne havia previsto, há trinta anos, a tendência da agricultura moderna é para reduzir quanto possível o espaço cultivado, criar o solo e o clima, concentrar o trabalho e reunir todas as condições necessárias à vida das plantas.
Esta tendência nasceu do desejo de realizar fortes somas de dinheiro sobre a venda das “novidades”. Mas depois que os processos de cultura intensiva se inventaram, generalizaram-se e estendem-se aos legumes mais comuns, porque permitem procurar “mais” produtos com “menos” trabalho e mais segurança.
Com efeito, depois de estudar os abrigos de vidro mais simples de Guernesey, afirmamos que feitas todas as contas, gasta-se “muito menos” trabalho para obter debaixo de vidro, em abril, batatas, do que se gasta para ter a sua colheita três meses mais tarde, ao ar livre, cavando um espaço cinco vezes maior, regando-o e mondando as ervas daninhas. É como com a ferramenta e à máquina. Economiza-se sobre o trabalho, empregando uma ferramenta ou uma máquina aperfeiçoada, mesmo fazendo uma despesa adiantada para as comprar.
Faltam-nos ainda algarismos completos relativos à cultura dos legumes comuns debaixo de vidro. Esta cultura é de origem recente e só se faz em pequenos espaços. Mas temos algarismos relativos à cultura, já com uns trinta anos de idade, dum objeto de luxo, a uva, e estes algarismos são concludentes.
No Norte da Inglaterra na fronteira da Escócia, onde o carvão custa apenas 4 francos a tonelada à boca do poço, ocupam-se há muito tempo da cultura da uva em estufa. Há 30 anos, estas uvas maduras em janeiro, vendia-se o cultivador, a razão de vinte e cinco francos a libra e revendiam-se a 50 francos para a mesa de Napoleão III. Hoje o mesmo produtor não as vende a mais de 3 francos a libra. É ele mesmo que no-lo diz num artigo recente dum jornal de hoticultura. É que os concorrentes mandam toneladas e toneladas de uvas a Londres e a Paris. Graças à barateza do carvão e uma cultura inteligente, a uva no inverso cresce no Norte e faz a sua viagem, em sentido contrário, dos produtos ordinários, para o Sul. Em maio, as uvas inglesas e as de Jersey são vendidas a dois francos a libra pelos jardineiros, e ainda esse preço só se mantém pela fraqueza da concorrência.
Em outubro as uvas cultivadas em imensas quantidades nos arredores de Londres – sempre debaixo de vidro, mas um pouco de aquecimento artificial – vendem-se à libra pelo mesmo preço que as compras nas vinhas da Suíça, ou do Reno, isto é, por alguns soldos. É ainda muito caro por motivo da renda excessiva do solo, custo de instalação e aquecimento, sobre os quais o jardineiro paga um tributo formidável ao industrial e ao intermediário. Isto explicado, pode-se dizer que não custa “quase nada” ter no outono uvas deliciosas na latitude e no clima brumoso de Londres. Num dos seus arrabaldes por exemplo, um mau abrigo de vidro e estuque, arrimado a nossa casinha, com três metros de comprido e dois de largo, dá-nos em outubro, nos últimos três anos, perto de 50 libras de uvas dum gosto superior.
Isto pode parecer paradoxal à primeira vista, porque geralmente pensa-se que a vinha cresce espontaneamente no sul da Europa e que o trabalho do vinhateiro não custa nada. Mas os jardineiros e os agricultores, longe de nos desmentir, confirmam as nossas asserções. “A cultura mais avançada na Inglaterra é a cultura da vinha”, diz um jardineiro prático, o redator do “Jornal da Horticultura” inglês. Além disso, os preços, como se sabe, são eloquentes.
Traduzindo estes fatos em linguagem comunista, podemos afirmar que o homem ou a mulher que roubar as suas folgas “uma vintena de horas por ano”, para dar alguns cuidados, muito agradáveis no fundo, a duas ou três capas de vinha, plantadas debaixo de vidro, sob qualquer clima da Europa, recolherá tantas uvas quantas pode comer com a sua família e entre amigos. E isto aplica-se não só aos produtos da vinha, mas dos de todas as árvores frutíferas aclimatadas.
Uma comuna que praticar em grande os processos, da pequena cultura, terá todos os legumes possíveis, sem empregar nisso algumas dezenas de horas por ano e por habitante.
São fatos que se podem verificar desde amanhã. Bastaria que um grupo de trabalhadores suspendesse durante alguns meses a produção de certos objetos de luxo e desse o seu trabalho a transformação de cem hectares da planície de Gennevilliers em uma série de jardins-hortas, cada um com sua dependência de abrigos de vidros aquecidos para o abrigo dos viveiros e das plantas novas; que depois cobrisse cinqüenta hectares com estufas econômicas, para a obtenção dos frutos deixando evidentemente o cuidado dos detalhes de organização a jardineiros e a horticultores experimentados.
Baseando-se sobre a média de Jersey, que necessita o trabalho de 7 de a 8 homens por hectare debaixo de vidro – o que menos de 24.000 horas de trabalho por ano – o custeio destes 150 hectares reclamaria cada ano cerca de 3.600.000 horas de trabalho. Cem jardineiros competentes poderiam dar a este trabalho cinco horas por dia, e o resto seria feito muito simplesmente por pessoas que, não sendo jardineiros de profissão, soubessem manejar o sacho, o ancinho, a agulheta ou vigiar uma plantação.
Mas este trabalho daria, pelo baixo – já o dissemos num capítulo anterior – todo o necessário e o luxo possível, tratando de frutos e legumes para 75.000 ou 100.000 pessoas pelo menos. Admita-se que haja neste número 36.00 adultos desejosos de trabalhar na horta. Cada uma teria, pois, de consagrar cem horas anuais repartidas por todo o ano. Estas horas de trabalho volviam-se horas de recreio, passadas entre amigos, com as crianças, em soberbos jardins, mais belos talvez que os da legendária Semíramis.
Eis o orçamento do trabalho a suportar para poder comer à saciedade frutos de que hoje nos privamos, e para ter em abundância todos os legumes que a mãe de família arraçoa tão escrupulosamente quando precisa contar os soldos com que enriquecerá o rendeiro e o vampiro proprietário.
Ah, se a humanidade tivesse só a consciência do que pode e se esta consciência lhe desse só a força de querer!
Se ela soubesse que “a covardia do espírito” é o escolho em que todas as revoluções têm fracassado até este dia!
VI
Entrevem-se facilmente os horizontes novos abertos à próxima Revolução Social.
Cada vez que falamos da Revolução o trabalhador sério, que viu crianças sem alimento, franze as sobrancelhas e repete-nos obstinadamente: “E o pão? Não nos faltará se toda a gente como até se fartar? E se o campo, ignorante, trabalhando pela reação, nega o pão à cidade, como fizeram os bandos negros em 1793, que se fará?”
Pois então o campo que experimente só! As grandes cidades passarão sem o campo.
Em que se empregarão com efeito essas centenas de milhares de trabalhadores que se asfixiam hoje nos pequenos ateliers e nas manufaturas, do dia em que retomarem a sua liberdade? Continuarão, depois da Revolução como antes, a encerrar-se nas oficinas? Continuarão a fazer brinquedos de luxo para exportação, quando virem talvez o trigo acabar-se, a carne rarear, os legumes desaparecerem sem virem outros?
Não evidentemente! Sairão da cidade e irão para os campos! Ajudados pela máquina que permitirá aos mais fracos dentre nós ser alguém, levarão a revolução à cultura dum passado escravizado, como a terão levado às instituições e às ideias.
Aqui, centenas de hectares cobrir-se-ão de vidro, e o homem e a mulher dos dedos delicados cuidarão das plantas novas. Além, outras centenas de hectômetros serão lavradas com o enxadão a vapor, temperadas por adubos ou dotadas dum solo artificial obtido pela pulverização da rocha. As legiões alegres de lavradores de ocasião cobrirão esses hectares de searas, guiados em seu trabalho e suas experiências; em parte pelos que conhecem a agricultura, mas sobre tudo pelo espírito, grande e prático, dum povo que acorda dum prolongado sono e a quem esclarece e ilumina este farol luminoso – a felicidade de todos.
E em dois ou três meses, as colheitas temporãs virão aliviar as precisões mais urgentes e prover ao sustento dum povo que, no fim de tantos séculos de espera, poderá enfim saciar a fome e comer até se fartar.
Entretanto o gênio popular, o gênio dum povo que se revolta e conhece as suas precisões, trabalhará em experimentar os novos meios de cultura que já se pressentem no horizonte e que só pedem o batismo da experiência para se generalizarem. Experimentar-se-á a luz, – esse agente desconhecido da cultura, que faz amadurecer a cevada em 45 dias na latitude de Yakoutsk – concentrada ou artificial, a luz rivalizará com o calor para apressar o crescimento das plantas. Um Mouchot do futuro inventará a máquina que deve guiar os raios de sol e fazê-los trabalhar, sem ser preciso ir procurar nas profundezas da terra o calor solar armazenado na hulha. Experimentar-se-á a rega do solo com culturas de microrganismos – ideia racional nascida de ontem, que permitirá dar ao solo as pequenas células vivas tão necessárias às plantas, já para alimentar as radículas, já para decompor e tornar assimiláveis as partes constitutivas do solo.
Com os processos de cultura já em uso, aplicados em grande, saídos desde hoje vitoriosos da luta contra a concorrência mercante, podemos dar-nos o bem-estar e o luxo, em troca um trabalho agradável. O futuro próximo mostrará o que há de prático nas futuras conquistas que fazem entrever as recentes descobertas científicas.
Limitemo-nos por agora a inaugurar a nova estrada que consiste no estudo das precisões e nos meios de as satisfazer.
A única coisa que poderá faltar à Revolução é audácia e iniciativa.
Embrutecidos pelas nossas instituições na escola, escravizados ao passado na idade madura e até ao túmulo, quase não ousamos pensar. Trata-se duma ideia nova? Antes de formarmos uma opinião, consultaremos alfarrábios velhos de cem anos, para sabermos o que os antigos mestres pensavam sobre o assunto.
Se a ousadia do pensamento e a iniciativa não faltam à Revolução, serão os víveres que lhe faltarão.
De todas as grandes jornadas da grande Revolução, a mais bela, a maior, que ficará para sempre gravada nos espíritos, foi aquela, em que os federados, acudindo de todas as partes, trabalharam a terra do Campo de Marte para preparar a festa.
Nesse dia a França foi UMA; animada do espírito novo, entreviu o futuro que se abria ante ela no trabalho em comum da terra.
E será ainda pelo trabalho em comum da terra que as sociedades libertarias acharão de novo a sua unidade e apagarão os ódios, e as opressões que as haviam dividido.
Podendo desde já conceber a solidariedade, esse poder imenso que centuplica a energia e as forças criadoras do homem, a sociedade nova marchará à conquista do futuro com todo o vigor da mocidade.
Cessando de produzir para compradores desconhecidos, e procurando no próprio seio precisões e gostos a satisfazer a sociedade assegurará largamente a vida e o bem-estar a cada um dos seus membros, ao mesmo tempo que a satisfação moral que dá o trabalho livremente escolhido e livremente executado e a alegria de poder viver sem esbarrar na vida dos outros. Inspirados numa nova audácia alimentada pelo sentimento de solidariedade, todos marcharão juntos à conquista dos altos gozos do saber e da criação artística.
Uma sociedade assim inspirada, não terá a temer nem dissensões no interior nem inimigos no exterior. Ás coalizões do passado oporá o seu amor pela ordem nova, a iniciativa audaciosa de cada um e de todos, a sua força tornada hercúlea pelo despertar do seu gênio.
Diante desta força irresistível os “reis conjurados” nada poderão. Terão só que inclinar-se diante dela, jungir-se ao carro da humanidade, rodando para os horizontes novos entreabertos pela Revolução social.
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