quinta-feira, 25 de abril de 2019

A Conquista do Pão (1892), por: Piotr Kropotkin





A obra “A Conquista do Pão” (em francês: La Conquête du Pain; em inglês: The Conquest of Bread; em russo: Хлеб и воля) é um livro escrito pelo anarco-comunista russo Piotr Kropotkin. Originalmente, havia sido uma série de artigos escritos nos anos 1880 em francês para os jornais anarquistas Le Révolté e seu sucessor parisiense, La Révolte. Enquanto livro, foi publicado pela primeira vez no ano de 1892 em Paris com um prefácio de Élisée Reclus (que explicara que o título não se restringe ao “pão”, e sim engloba tudo que é necessário à qualidade de vida do homem).

Nessa obra, Kropotkin aponta os defeitos nos sistemas econômicos feudal e capitalista, e como ele acredita que estes sistemas acabam prosperando a partir da manutenção da pobreza e da escassez, apesar da abundância material obtida graças à tecnologia. Critica a manutenção de privilégios sociais, tendo como símbolo a riqueza. Ele propõe um sistema econômico mais descentralizado, baseado no apoio mútuo e na cooperação voluntária, afirmando que as tendências para esse tipo de organização já existem na Evolução e nas sociedades humanas(1). Ele também detalha quais seriam as formas de revolução e expropriação que não despertariam forças reacionárias. Nas palavras de Kropotkin, se trata de um estudo das necessidades da humanidade, e dos significados da economia que as satisfazem.

Nota (1): em “Ajuda Mútua: um fator de evolução”, Kropotkin desenvolve a tese de que todos os seres vivos oscilam, em seus processos evolucionários, entre competição e ajuda mútua. A primeira forma de relação geralmente está associada a uma situação de recursos escassos e a segunda, inversamente, a recursos abundantes (mas nem sempre essa condição determina o vetor competitivo ou cooperativo). Kropotkin criticava o “darwinismo social” (hegemônico em sua época) e a crença de que havia um instinto competitivo inato nas formas vivas como força motriz da evolução (a ideia de que “o mais forte sobrevive” era uma concepção reducionista da seleção natural para ele). Não só constatou modos de vida baseados na ajuda mútua (formas de cooperação), como estabeleceu uma hierarquia em relação aos “mais aptos” à sobrevivência, disse ele: “‘Quem são os mais aptos: aqueles que vivem em guerra ou aqueles que se apoiam mutuamente?’, vemos de imediato e sem sombra de dúvida que são estes últimos. Os que adquirem hábitos de ajuda mútua têm mais chances de sobreviver e atingem, em suas classes respectivas, o desenvolvimento mais elevado do intelecto e da organização corporal”.

Acesse esse link para obter a versão escaneada de: KROPOTKIN, Piotr. A conquista do pão. Rio de janeiro: Achiamé, 2011.



ÍNDICE

PREFÁCIO
A RIQUEZA
O BEM-ESTAR PARA TODOS
O COMUNISMO ANARQUISTA
A EXPROPRIAÇÃO
OS PRODUTOS
A HABITAÇÃO
O VESTUÁRIO
AS VIAS E OS MEIOS
AS NECESSIDADES DO LUXO
O TRABALHO AGRADÁVEL
A LIBERDADE DE ENTENDIMENTO
OBJEÇÕES
O SALARIADO COLETIVISTA
CONSUMO E PRODUÇÃO
DIVISÃO DO TRABALHO
A DESCENTRALIZAÇÃO DAS INDÚSTRIAS
A AGRICULTURA





PREFÁCIO



Kropotkin pediu-me para abrir este livro com algumas palavras minhas. Acedo à sua vontade, mas faço-o, todavia, com um certo constrangimento. E a razão é que, nada trazendo que contribua para robustecer os argumentos do autor, pode suceder até que as minhas palavras tirem força às suas. A amizade, porém, tudo perdoa. Enquanto os “republicanos” consideram um requinte de bom gosto prosternar-se aos pés o czar, eu sinto-me satisfeito e envaidecido por me aproximar daqueles homens dignos sobre quem o déspota, se pudesse, cevaria os seus ódios, mandando-os vergastar nas masmorras duma cidadela ou enforcar nos fossos de qualquer presídio. No convívio desses amigos esqueço momentaneamente a abjeção dos renegados que na mocidade enrouqueciam a gritar: Liberdade! Liberdade! E que hoje celebram, com tanto entusiasmo, as bodas da Marselhesa e do Boje Tsara Khrasi (hino nacional russo).

A última obra de Kropotkin, Palavras de um revoltado, é caracterizada por uma crítica ardente da sociedade burguesa, tão feroz como corrompida, e nela faz o autor um apelo às energias revolucionárias contra o Estado e contra o regime capitalista. A obra atual, sequência das Palavras, é mais calma e ponderada. Nela se dirige Kropotkin aos homens de boa vontade que desejam honestamente colaborar na transformação social e expõe-lhes, a grandes traços, as fases da história iminente que nos permitirão enfim constituir a família humana sobre as ruínas dos bancos e dos Estados.

O título da obra: - A Conquista do Pão deve, é claro, ser tomado num sentido mais amplo, porque “nem só de pão vive o homem”. Numa época em que os espíritos generosos e arrojados tentam transformar o seu ideal de justiça social em realidade objetiva, as nossas ambições não se limitam à conquista do pão, vinho e o sal. – Queremos conquistas tudo o que é necessário à vida humana e até mesmo a utilidade que forma o conforto da existência; queremos a faculdade de poder assegurar a todos os homens a plena satisfação das suas necessidades e dos seus gozos. Enquanto não fizermos esta primeira “conquista”, enquanto na terra “houver pobres”, é um gracejo de mau gosto, é uma ironia cruel dar o nome de “sociedade” a este conjunto de seres humanos que se odeiam e se despedaçam como feras encerradas numa arena.

Logo nos primeiros capítulos da sua obra o autor dá conta das riquezas imensas que a humanidade possui já, da prodigiosa maquinaria adquirida para o trabalho coletivo. Os produtos obtidos em cada ano seriam mais do que suficientes para abastecer de pão, amplamente, a humanidade inteira. E se o capital enorme de cidades e de casas, de terras cultiváveis e de fábricas, de vias de transporte e de escolas, se tornasse propriedade comum em vez de estar detido em propriedade privada, como seria fácil a conquista do bem estar para todos! As forças de que os homens dispõem seriam então aplicadas, não a trabalhos inúteis ou contraditórios, mas à produção de tudo o que é indispensável à vida, desde o alimento, a habitação e o vestuário, até ao conforto e à cultura das ciências e das artes.

Mas, a reivindicação de todos os bens usurpados à comunidade, isto é, a expropriação, só o comunismo anárquico a pode realizar. E para isso teremos que destruir o governo, rasgar as leis, repudiar a sua moral, desobedecer à autoridade e seguir os estímulos da nossa própria iniciativa, agregando-nos segundo as afinidades, os nossos interesses, o nosso ideal e a natureza dos trabalhos a realizar. Esta questão da expropriação, a mais importante do livro, é também uma das que o autor tratou mais detalhadamente, sobriamente e sem exaltação, é certo, mas com a segurança e a clareza que requer o estudo de uma revolução próxima, já agora inevitável. E só depois desta reviravolta do Estado é que os grupos de trabalhadores, emancipados do jugo dos usurpadores e parasitas, poderão dedicar-se às ocupações atraentes do trabalho livremente escolhido e proceder cientificamente à cultura do solo e à produção industrial, de permeio com as recreações do estudo e o prazer natural da vida.

As páginas do livro que tratam dos trabalhos agrícolas oferecem um interesse digno de especial menção porque recapitularam fatos que a prática verificou já e que fácil se torna aplicar por toda a parte e em grande escala, para proveito de todos e não, como até hoje, para enriquecimento de alguns.

Há quem fale em “fim de século” para verberar as aberrações e os caprichos da sociedade elegante; mas trata-se agora duma outra coisa muito diferente do fim de um século. Não é um éculo que se termina, é uma época, é uma era da história que acabam. É toda a antiga civilização que finda. O direito da força e o capricho da autoridade, a dura tradição judaica e a cruel jurisprudência romana não nos dominam mais. Uma nova fé arde nos nossos cérebros e desde que essa fé, - que é ao mesmo tempo a ciência, pulse no coração de todos aqueles que procuram a verdade, da esfera do ideal ela transitará para o mundo das realizações, em harmonia com a mais importante lei histórica segundo a qual a sociedade se modela sucessivamente sobre o seu ideal.

Como poderão os defensores desta ordem arcaica das coisas continuar a mantê-la como até aqui? Sem plano de combate, sem guia nem bandeira, defendem-se ao acaso, opondo à penetração dos inovadores as suas leis e as suas espingardas, a sua polícia brutal e a sua artilharia certeira. Nada disto, porém, é capaz de dar equilíbrio a um pensamento, e todo o antigo regime de favor e de compreensão, condenado a desaparecer inevitavelmente, estará reconduzido daqui a pouco, na vertigem da evolução social, a uma espécie de pré- história longínqua.

Evidentemente, a revolução que se prepara, por muito que influa no desenvolvimento da humanidade, não se diferenciará bruscamente das revoluções precedentes: a natureza não dá saltos. Mas pode dizer-se, por milhares de fenômenos e modificações profundas observadas, que a sociedade anárquica saiu há muito do estado embrionário. Pressentimo-la onde quer que o pensamento se liberte da letra do dogma, onde quer que o gênio do investigador despreze as velhas fórmulas, onde quer que a vontade se manifeste por atos independentes, finalmente onde quer que os homens sinceros, rebeldes a toda a disciplina imposta, se reúnam espontaneamente para se instruírem em comum e reconquistarem mutuamente e liberrimamente a sua quota parte na vida e na satisfação integral das suas necessidades. Tudo isto é a anarquia, inconsciente no fundo, talvez, mas, incontestavelmente, racionalizando-se cada vez mais. E como não há de ela triunfar por si o ideal que a acalenta e a vontade que a estimula, enquanto que os seus adversários, já desiludidos e sem fé, se lançam ao acaso do destino, gritando: “Fim do século! Fim do século!”.

A revolução que se anuncia tem que vir inevitavelmente, e o nosso amigo Kropotkin está no seu direito de historiador, considerando-a não só como uma coisa certa, mas já em plena laboração atual, ao expor as suas ideias sobre a reivindicação do bem coletivo devido ao trabalho de todos e fazendo apelo aos tímidos que não ignoram as injustiças que nos dominam, mas que não ousam revoltar-se abertamente contra uma sociedade de que se acham dependentes pelos múltiplos laços dos interesses e da tradição.

Bem sabem eles que a lei é iníqua e mentirosa, que os magistrados são defensores dos fortes e tiranos dos fracos, que a conduta regular da vida e a probidade do trabalho nem sempre são recompensadas pela certeza de ter um bocado de pão garantido, e que a imprudência cínica de agiota e a crueldade insensível do penhorista são melhores armas e de resultados mais eficazes para a “conquista do pão” do que todas as virtudes e a honestidade de caráter. Mas, em vez de harmonizarem os seus pensamentos e bons desejos com o natural estímulo do empreendimento, em vez de conformarem as suas ações no sentido claro da justiça, esses espíritos conscientes do mal, na sua maioria, refugiam-se numa quietude abstrata e cômoda para escapar dos perigos duma atitude franca. Tais são, por exemplo, os neo-religiosos que, não podendo já admitir a “fé absurda” de seus pais, se entregam a qualquer mistagogia mais original, sem dogmas precisos e se exaustam numa embrulhada de sentimentos confusos: uns espiritistas ou rosa-cruz, outros budistas ou taumaturgos. Pretendidos discípulos de Çakyamouni, mas sem estudarem a doutrina do mestre, esses cavalheiros melancólicos e essas damas vaporosas fingem deste modo procurar a paz no aniquilamento do nirvana.

Tranquilizem-se, porém, essas “belas-almas” que tão frequentemente apregoam o ideal. Como seres materiais que somos, temos, é certo, a fragilidade de pensar no alimento que tantas vezes nos falta não só a nos, mas a milhões de nossos irmãos, súbditos eslavos do czar e a tantos milhões de outros ainda; mas para lá do bem-estar e de todas as riquezas coletivas que nos pode proporcionar a laboração da terra, um mundo novo no qual poderemos amar-nos plenamente e satisfazer esta nobre paixão de ideal que os amantes etéreos do belo, enfastiados da vida material, dizem constituir a sede infinita das suas almas!

Quando não houver nem pobre nem rico, quando o famélico não olhar com inveja o repleto, a amizade desinteressada tornará melhores as relações dos homens e a religião da solidariedade, hoje asfixiada, substituir-se-á a esta religião vaga e fictícia que cria alucinadamente quiméricas personagens na vacuidade imponderável do céu.

A revolução que sentimos próxima irá ainda muito além do que ela nos promete. Regenerando as forças da vida, resgatar-nos-á das imperfeições com que nos macula o contato da autoridade e das preocupações de dinheiro que tanto amargura e envenena a nossa existência. Só então poderá cada um seguir o caminho que melhor se lhe afigurar: o trabalhador procurando a ocupação que mais lhe agrade, o investigador dedicando-se com o espírito livre aos seus problemas; o artista não prostituindo jamais o seu ideal de beleza pelo ganha pão quotidiano e de comum acordo, todos amigos, poderemos realizar as grandes coisas entrevistas pelos poetas.

E hão de ser lembrados então com amor, os nomes daqueles que, pela sua intensa e dedicada propaganda, - tantas vezes caminho para a prisão ou para o desterro – andaram preparando a sociedade nova. É neles que pensamos ao editar a Conquista do Pão.

O seu sofrimento dulcificar-se-á neste testemunho do pensamento comum voando através das grades dos cárceres e pelos países longínquos do exílio. E certamente o autor estará comigo neste oferecimento que faço da sua obra a todos os que sofrem pela nossa causa e sobretudo a um amigo muito querido cuja vida foi – toda ela – um longo combate pela justiça. Não quero por aqui o seu nome, mas lendo estas palavras, ele, o amigo querido, mais do que amigo – irmão, adivinhará quem é, escutando as palpitações do seu coração.

Elisée Reclus, 1892.


[Retirado da edição portuguesa de 1975: KROPOTKINE, Pedro. A Conquista do Pão. 3ª Ed. Guimarães Editores. Lisboa. 1975.]









A RIQUEZA




I




A humanidade andou bastante desde o tempo em que a pedra lascada lhe servia para fabricar a suas armas, para lutar desesperadamente pela existência. Esse período durou milhares e milhares de anos durante os quais o gênero humano acumulou tesouros incomensuráveis. Desbravou o solo, aterrou pântanos, devastou florestas, abriu estradas, edificou, construiu e raciocinou; arranjou utensílios complicados, arrancou à Natureza os seus arcanos, aprisionou o vapor. Hoje o homem civilizado já ao nascer encontra um capital imenso, acumulado pelos seus antepassados, com o qual, só com o trabalho, combinado com o alheio, obtém riquezas que deixam a perder de vista os sonhos orientais das Mil e uma Noites.

Parte do solo está pronto para colher o trabalho do lavrador inteligente e as sementes escolhidas, e enfeitar-se com colheitas deslumbrantes, mais do que o preciso para satisfazer todas as necessidades do homem, pelos meios conhecidos da agricultura.

No solo virgem dos prados da América, cem homens, munidos de máquinas valentes, produzem em poucos meses o trigo necessário para o sustento de dez mil pessoas durante um ano inteiro. Quando o homem quer multiplicar o seu rendimento, prepara o solo, dá às plantações cuidados que lhes convém e obtém colheitas prodigiosas. E onde o selvagem tinha de ocupar cem quilômetros quadrados para sustentar a sua família, o civilizado cria com incomparavelmente menos trabalho e mais segurança, tudo quanto precisa para sustentar os seus na décima milésima parte desse espaço.

O clima já não é um obstáculo. Falta o sol? O homem substituiu-o pelo calor artificial, enquanto não faz também a luz para ativar a vegetação. Com vidro e condutores d’água quente, recolhe num espaço determinado dez vezes maior produção do que dantes.

Os prodígios efetuados na indústria ainda são mais frizantes. Com esses seres inteligentes – as máquinas modernas – fruto de três ou quatro gerações de inventores, na maior parte desconhecidos, - cem homens produzem com que vestir dez mil homens no espaço de dois anos. Nas minas de carvão bem organizadas, cem homens tiram cada ano com que aquecer dez mil famílias, sob um clima rigoroso. E viu-se já uma cidade maravilhosa surgir toda inteira em poucos meses no Campo de Marte, sem haver a menor interrupção nos trabalhos normais da nação francesa.

E se o trabalho dos nossos maiores não aproveita senão sobre tudo ao menor número, é todavia certo que a humanidade podia já permitir-se uma existência de riqueza e de luxo, só com os trabalhadores de ferro e de aço que possui.

Sim, sem dúvida, somos ricos, infinitamente mais ricos do que julgamos. Ricos pelo que já possuímos; ainda mais ricos pelo que podemos produzir com o material conhecido. Infinitamente mais ricos pelo que poderíamos retirar do solo, das manufaturas, da nossa ciência e do nosso saber técnico, se fossem aplicados a procurar o bem-estar de todos.



II




Nas sociedades civilizadas somos ricos. Como se explica então tanta miséria em redor de nós? Para que este trabalho pesado que embrutece as massas? Por que a falta de segurança do dia de amanhã? Tem-no dito e respeito a cada momento os socialistas com argumentos colhidos em todas as ciências. Porque tudo o que é necessário à produção: terra, minas, máquinas, estradas, educação, ciência foi açambarcado por alguns, durante a vasta história de pilhagem, êxodos, guerras, ignorância e opressão, que a humanidade viveu antes de aprender a dominar as forças naturais.

Porque, à sombra de pretendidos direitos ganhos no passado, usurpam hoje dois terços do trabalho humano, que entregam à mais insensata e escandalosa dissipação, porque não tendo as massas com que se manter um mês, nem mesmo oito dias, só permitem que o homem trabalhe, com a condição de lhes deixar tirar a parte do leão; porque não deixam produzir quanto é necessário aos outros, mas só o que oferece grandes lucros ao açambarcador.

Todo o socialismo consiste nisso!

Vejamos um país civilizado. Os bosques que o cobriam antes foram derrubados, os pântanos aterrados, o clima saneado: tornando-se habitável. O solo, que só dava ervas inúteis, está dando ricas messes. Os rochedos que sobrecarregavam os vales, estão cortados em planaltos onde cresce a vinha. Plantas selvagens, que davam um fruto amargo, intragável transforma-se por seleção em legumes suculentos e em árvores carregadas de frutos deliciosos.

Milhares de estradas sulcam a terra, atravessam as montanhas; a locomotiva silva nas gargantas dos Alpes, desde o Cáucaso até o Himalaia; os rios tornaram-se navegável; as costas cuidadosamente estudadas, são de fácil acesso; portos artificiais dão refugio aos navios contra o furor do oceano. Em todos os pontos onde se cruzam as estradas surgiram cidades, engrandeceram-se e no seu seio aparecem os tesouros da indústria, da arte, da ciência.

Gerações inteiras, nascidas e mortas na miséria, legaram esta imensa herança ao século XIX.

Em milhares de anos, milhões de homens trabalharam em desbastar os matos, dissecar os pântanos, abrir estradas, a margear os rios. Cada hectare do solo que se cultiva na Europa foi regado pelo suor de diversas raças; cada estrada tem uma história das fadigas do trabalho humano, dos sofrimentos do povo.

Cada légua de caminho de ferro, cada metro de túnel recebeu sua parte de sangue humano.

Nas minas podem-se contar os homens mortos na força da idade pelos grisus, desabamento ou inundação, e sabe-se quantas lagrimas, privações e misérias sem nome custou à família que vivia do magro salário do mineiro.

Escavai o solo de qualquer cidade e no subsolo encontrarei enterradas outras ruas, casas, teatros, edifícios públicos, tudo devido ao trabalho dos que nela viveram.

E mesmo agora, o valor de cada casa, fábrica ou armazém, é feito do trabalho acumulado de milhões de trabalhadores sepultados sob a terra.

Milhões de seres humanos trabalharam para criar esta civilização de que hoje nos glorificamos; outros milhões disseminados na superfície da terra trabalharam para a manter.

Mesmo o pensamento, mesmo a invenção são fatos coletivos nascidos do passado e do presente. Milhares de inventores mortos na miséria prepararam a invenção de cada uma dessas máquinas, em que o homem admira o seu gênio. Milhares de escritores, poetas e sábios, trabalharam na elaboração do saber, em criar a atmosfera do pensamento científico, sem a qual nenhuma das maravilhas do nosso século teria aparecido. Mas todos esses sábios, poetas e filósofos, já tinham sido suscitados pelo trabalho dos séculos anteriores; tinham sido mantidos física e moralmente, por legiões de trabalhadores e artistas de toda a espécie.

Os gênios de Séguin, de Meyer e de Grove fizeram mais para lançar a indústria em novas vias que todos os capitalistas do mundo, mas eles mesmos são tão filhos da industria como da ciência, não foi preciso que milhares de máquinas a vapor transformasse anualmente, à vista de todos, o calor em força dinâmica e esta força em som, luz e eletricidade; e se nós mesmos temos compreendido esta ideia e soubemos aplicá-las, é porque estávamos preparados pela experiência de cada dia.

Todas as máquinas têm a mesma história de noites em claro e de miséria, de desilusões e de alegrias; melhoramentos parciais achados por diversas legiões de obreiros desconhecidos que vinham acrescentar ao invento primitivo estes pequenos nadas, sem os quais a ideia mais fecunda fica estéril.

Cada descoberta, cada progresso, cada aumento da riqueza da humanidade tem o seu princípio no conjunto do trabalho manual e cerebral do passado e do presente.

Logo, com que direito poderia alguém apossar-se da menor parcela desse imenso patrimônio e dizer: “Isto é meu, não é vosso?”.



III




Mas tudo o que, na série das idades, permite aos homens produzir e aumentar a sua força de produção, foi açambarcado por alguns. Um dia contaremos como isso se passou.

Hoje o solo, que tira o seu valor precisamente das necessidades duma população, sempre em aumento, pertence às minorias, que podem impedir, e impedem o povo de cultivá-lo segundo as necessidades das várias gerações, e que não tiram o seu valor senão modernas. As minas que representam o labor de várias gerações, e que não tiram seu o seu valor senão das necessidades da indústria e da densidade da população, pertencem também a alguns, e estes diminuem a extração do carvão ou proíbem-na totalmente, se encontram melhor colocação para os seus capitais. Se os netos do inventor, que há cem anos construiu a máquina de rendas, se apresentassem hoje em uma manufatura de Bale ou de Notthingham e reclamassem seus direitos, gritar-lhe-iam: “Vão se embora, esta máquina não é sua”, – e fuzilá-los-iam, se quisessem tomar posse dela.

Se os filhos dos que morreram aos milhares, abrindo as vias e os túneis dos caminhos de ferro, se apresentassem esfarrapados e famintos a reclamar pão aos acionistas, encontrariam as baionetas e a metralha para os dispersar e pôr a salvo os direitos adquiridos.

Em virtude desta monstruosa organização, o filho do trabalhador, ao entrar na vida, não encontra nem um campo que possa cultivar, nem uma máquina que possa manejar, nem uma mina que possa explorar, sem ceder a um senhor uma boa parte do que produzir. Deve vender sua atividade em troca de uma pitança magra e incerta. Seu pai e seu avô trabalharam arroteando este campo, edificando essa oficina, aperfeiçoando as máquinas, trabalharam na medida das suas forças, mas ele ao vir ao mundo, é mais pobre que o último selvagem. Se lhe consentem que se aplique a cultura dum campo, é com a condição de ceder um quarto do produto ao dono e um quarto ao governo e aos intermediários. Se se entrega à indústria, permite-lhe que trabalhe, aliás nem sempre mas com a condição de não receber mais que um terço ou metade do produto, devendo o restante ficar com aquele que a lei reconhece como dono da máquina.

Gritamos contra o barão feudal que não consentia que ele mexesse na terra sem ele deixar metade da colheita; chamamos a isto época de barbaria, mas se as formas mudaram, as relações ficaram as mesmas; e o trabalhador aceita porque em parte nenhuma aceita condições melhores.

Resulta deste estado de coisas que toda a nossa produção é dirigida insensatamente. A empresa não se preocupa com as necessidades da sociedade, apenas procura aumentar os benefícios do empresário. Donde as flutuações contínuas da indústria, as crises em estado crônico, lançando por terra cada uma centena de milhares de trabalhadores.

Não podendo os operários comprar com os seus salários as riquezas que produziram, a indústria procura mercados fora do país, entre os açambarcadores das outras nações. O europeu nestas condições deve aumentar o número dos seus servos. Mas em toda parte encontra concorrentes, visto que todas as nações evoluem no mesmo sentido. E a guerra permanente deve rebentar a favor do direito de primazia nos mercados. Guerras pelas possessões no Oriente, guerras pelo império dos mares, guerra para impor direitos de entrada e ditar condições aos vizinhos; guerras contra os que se revoltam! Na Europa o canhão nunca esta calado, gerações inteiras são massacradas e os estados gastam em armamentos o terço das suas receitas – em bem se sabe o que são os impostos e o que custam ao pobre.

A educação é um privilégio. Pode-se lá falar em educação, quando o filho do obreiro é obrigado a descer à mina aos 13 anos e ajudar seu pai na fazenda? Falar de estudos ao trabalhador que volta a noite, quebrado por um dia inteiro de trabalho forçado! As sociedades dividem-se em dois campos contrários e nestas condições a liberdade torna-se uma palavra vã. O radical pede uma extensão maior das liberdades políticas, enquanto se apercebe que o sopro da liberdade rapidamente conduz ao levantamento dos proletários; e então recua, muda de opinião, e volta às leis de exceção e ao governo do sabre.

Uma legião de autoridades é necessária para manter os privilégios e este mesmo conjunto torna-se a origem de todo um sistema de delações, mentiras, ameaças e de corrupção.

Por outro lado este sistema atrasa o desenvolvimento dos sentimentos sociais. Compreende-se que sem retidão, sem o respeito de si mesmo, sem simpatia e sem auxílio mútuo, a espécie deve definhar como definham certas espécies animais, que vivem de rapina. Mas isto não convém as classes dirigentes, que inventaram para provar o contrário uma ciência absolutamente falsa.

Tem-se dito coisas muito bonitas sobre a necessidade de repartir o que se possui pelos que não tem nada. Mas se alguém se lembra de pôr este princípio em prática é logo advertido de que todos estes grandes sentimentos são bons nos livros de poesia, mas não na vida prática.

“Mentir é aviltar-se, rebaixar-se”, dizemos nós, e toda a existência civilizada torna-se uma colossal mentira. Hipocrisia e sofisma tornam-se a segunda natureza do homem civilizado. Mas uma sociedade não pode viver assim; precisa voltar à verdade ou desaparecer.

Assim o simples fato do açambarcamento estende suas consequências sobre o conjunto da vida social. As sociedades humanas são forçadas a voltar aos princípios fundamentais.

Sendo os meios de produção obra coletiva da humanidade, devem regressar a coletividade humana. A apropriação pessoal não é justa nem proveitosa. Tudo é de todos, visto que todos precisam de tudo, visto que todos tem trabalhado na medida das suas forças, e que é materialmente impossível determinar a parte que poderia pertencer a cada um na produção atual das riquezas.

Tudo é de todos! Eis um formidável instrumento que o século XIX criou: eis milhões de escravos de ferro, que nós chamamos máquinas, e que aplainam e serram; tecem e fiam para nós; que decompõem a matéria prima e formam as maravilhas na nossa época.

Ninguém tem direito de se apoderar duma só dessas máquinas e dizer: “É minha, quem quiser servir-se dela há de me pagar um tributo sobre cada um dos seus produtos”, tanto como o senhor da idade média não tinha direito de dizer ao cultivador: “Esta colina, este prado são meus e vós pagar-me-eis um tributo sobre os molhos de trigo que colherdes, sobre cada molho de feno que arrecadardes”.

Tudo é de todos e contanto que o homem e a mulher tragam a sua cota parte do trabalho, tem direito à sua cota parte de tudo quanto for produzido por todo mundo. E esta parte lhes dará o bem-estar.

Basta estas fórmulas ambíguas, tais como: “direito ao trabalho” ou “a cada um o direito integral do seu trabalho”. O que nós proclamamos é o – O DIREITO AO BEM-ESTAR – O BEM-ESTAR PARA TODOS.








O BEM-ESTAR PARA TODOS




I




O bem-estar para todos não é um sonho. É possível, realizável, depois do que os nossos maiores fizeram para fundar a nossa força de trabalho.

Sabemos com efeito que os produtores, que apenas constituem um terço dos habitantes dos países civilizados, já produzem o bastante para levar um certo bem-estar ao seio de cada família. Sabemos, por outro lado, que se todos os que hoje esbanjam o fruto do trabalho alheio fossem obrigados a empregar os seus ócios em trabalhos úteis a nossa riqueza cresceria em proporção múltipla dos braços produtores. E sabemos, finalmente, que contra a teoria do pontífice da ciência burguesa (contra Malthus) o homem aumenta a sua força de produção bem mais rapidamente do que a si mesmo se multiplica.

Quanto mais apertados estão os homens num território, mais rápido é o progresso das suas forças produtivas. Com efeito enquanto a população na Inglaterra só aumentou 62% desde 1844, a sua força de produção cresceu, pelo baixo, numa proporção dupla, ou seja, 130%. Em França, onde a população aumentou menos, o acréscimo é, entretanto muito rápido. Apesar da crise em que se debate a agricultura, a ingerência do Estado, o imposto de sangue, a finança e a indústria, a produção do trigo quadruplicou e a produção industrial mais do que duplicou no correr dos últimos oitenta anos. Nos Estados Unidos o progresso é ainda mais frisante: apesar da imigração, ou antes precisamente por causa deste acréscimo de trabalhadores, da Europa, os Estados Unidos decuplicaram a sua produção.

Mas estas cifras dão apenas uma ideia bem fraca do que poderia ser, em melhores condições, a nossa produção. Hoje, a medida que se desenvolve a capacidade de produção, o número dos ociosos e dos intermediários aumenta prodigiosamente. Tudo ao contrário do que se dizia antes entre socialistas, que o capital chegaria a concentrar-se num tão pequeno número de mãos que não haveria mais senão expropriar alguns milionários para entrar na posse das riquezas comuns, o número dos que vivem à custa do trabalho alheio é cada vez mais considerável.

Em França não há dez produtores diretos em trinta habitantes. Toda a riqueza agrícola do país é obra de menos de sete milhões de homens e nas duas grandes indústrias, - minas e tecidos, contam-se menos de dois milhões e meio de obreiros.

Ainda mais. Os detentores do capital reduzem constantemente a produção, não deixando produzir. Não falemos já dos tonéis d’ostras atiradas ao mar, para impedir que a ostra passe a ser alimento da plebe? e deixe de ser a guloseima da gente de teres; não falemos já dos milhares e milhares de objetos de luxo: estofos, alimentos etc. etc., tratados do mesmo modo que as ostras. Lembremos somente a maneira como se limita a produção das coisas necessárias a todos. Exércitos de mineiros desejam trabalhar para mandarem carvão aos que tremem de frio; mas a maior parte do tempo um ou dois terços são impedidos de trabalhar mais de três dias por semana para manter os altos preços. Milhares de tecelões não podem bater os seus teares enquanto as mulheres e os filhos só tem farrapos para se cobrirem e três quartas partes dos europeus não tem uma roupa que mereça esse nome.

Das centenas de altos fornos milhares de manufaturas ficam constantemente paradas e nas nações civilizadas há permanentemente uma população de dois milhões de indivíduos que não pedem senão trabalho.

Milhões de homens seriam felizes transformando os espaços incultos ou mal cultivados em campos cobertos de ricas searas. Um ano de trabalho inteligente bastaria para levar ao quíntuplo o produto de terras que hoje não dão mais de oito hectolitros de trigo por hectare; mas tem que estar ociosos, porque os donos da terra preferem entregar os seus capitais, roubados à comunidade, em especulações financeiras.

É a limitação direta da produção, mas há também a limitação indireta que consiste em gastar o trabalho humano em objetos absolutamente inúteis e destinados a favorecer a tola vaidade humana.

Nem se poderia avaliar em números a que ponto é reduzida a produtividade pelo esbanjamento das forças que poderiam servir para preparar e produzir o aparelho necessário a essa produção. Basta citar os milhões gastos pela Europa em armamentos, sem outro objeto mais que conquistar mercados para impor a lei econômica aos vizinhos e facilitar a exploração no interior; os milhões pagos por ano aos funcionários de toda a espécie; os milhões pagos aos juízes, às prisões, para propagar pela imprensa ideias nocivas, notícias falsas no interesse de um partido de um personagem político ou de uma campanha de especuladores.

Ainda mais; mais trabalho se despende ainda em pura perda, em manter a estrebaria, o canil, a criadagem do rico, aqui para corresponder aos caprichos das mundanas, ao luxo depravado da alta sociedade, ali, para impor um artigo de má qualidade. O que estraga deste modo bastaria para duplicar a produção útil ou para guarnecer manufaturas e oficinas que em pouco inundariam os armazéns de tudo o necessário para o abastecimento de tudo quanto carecem duas terças partes da nação.

Donde resulta que dos que se aplicam aos trabalhos produtivos uma quarta parte esta sem trabalho três a quatro meses cada ano.

Assim, se tomarmos em consideração por um lado a rapidez com que as nações civilizadas aumentam sua força produtiva e por outro lado os limites traçados a essa produção, conclui-se que seria necessária uma organização econômica que permitisse as nações civilizadas amontoar em poucos anos tantos produtos úteis que chegariam fartamente para toda a gente. Não, o bem-estar para todos não é um sonho... Não é um sonho desde que o homem inventou o motor que, com um pouco de ferro e uns quilos de carvão, lhe dá a força dum cavalo, capaz de pôr em movimento a máquina mais complicada.

Mas para que o bem-estar seja uma realidade é necessário que esse imenso capital: cidades, casas, campos, oficinas, vias de comunicação, deixe de ser considerado propriedade privada de que o açambarcador dispõe ao seu bel-prazer. É preciso que tudo isso, obtido com tanto trabalho, se torne propriedade comum. É preciso um EXPROPRIAÇÃO.



II




Expropriação, tal é, pois o problema que a história pôs diante de nós, homens do fim do século XIX. Regresso à comunidade de tudo o que servir para se obter o bem-estar.

Mas este problema não poderia ser resolvido por meio da legislação. Ninguém pensa nisso. Tanto o pobre como o rico compreendem que nem os governos atuais nem os futuros seriam capazes de lhe encontrar uma solução. Sente-se a necessidade duma revolução social e ricos e pobres não dissimulam que ela está próxima e que pode rebentar dum dia para o outro.

Donde virá? Como se anunciará? Ninguém sabe, é o incógnito; mas os que observam e refletem não se enganam. Trabalhadores e explorados, revolucionários e conservadores, pensadores e gente prática, todos sentem que está à porta.

Pois bem! Que faremos quando a revolução tiver rebentado?

Todos nós temos estudado tanto o lado dramático das revoluções e tão pouco a sua obra verdadeiramente revolucionária, que muitos dentre nós veem nestes grandes movimentos senão a “mise-en-scène”, a luta dos primeiros dias, as barricadas. Mas esta luta, a primeira escaramuça depressa acaba e é só depois da derrota dos antigos governos que começa a obra real da revolução.

Incapazes e impotentes, atacados por todos os lados, depressa são arrastados pelo sopro da insurreição. Em alguns dias a monarquia burguesa de 1848 não existia mais e quando um carro de praça conduzia Luís Felipe para fora de França já Paris se não importava com o ex-rei. Em algumas horas desaparecia o governo de Thiers a 18 de março de 1871 e deixava Paris senhora dos seus destinos. Todavia 1848 e 1871 não eram senão insurreições. Ante uma revolução popular os governos eclipsam-se com uma rapidez surpreendente. Começam por fugir, salvo o direito de conspirarem noutro lugar, tentando preparar um regresso possível.

Desaparecido o antigo governo, o exército, hesitando ante a onda do levantamento popular, deixa de obedecer aos seus chefes; estes, aliás, também se rasparam prudentemente. A tropa de braços cruzados, deixa correr o marfim, ou de coronha para o ar junta-se aos insurretos. A polícia, braços pendentes, não sabe já se deve carregar ou gritar: “Viva a Comuna!” e os guardas-civis metem-se em casa. Os burgueses ricos fazem as malas e escapam-se para lugar seguro. O povo fica. – Eis como se anuncia uma revolução.

Tudo isso é belo e sublime, mas ainda não é a revolução. Pelo contrário, agora é que vai começar a missão do revolucionário.

Haverá com certeza vinganças satisfeitas. Alguns Watrin e Tomás pagarão a sua impopularidade.

Mas isso será um acidente da luta e não da revolução.

Os socialistas governamentais, os radicais, os gênios ignorantes do jornalismo, os oradores de efeito burgueses ex-trabalhadores – correrão à casa municipal e aos ministérios tomar posse dos lugares abandonados, tomarão os galões de coração alegre, admirar-se-ão nos espelhos ministeriais, ensaiar-se-ão para dar ordens com um ar de gravidade à altura das circunstâncias. Precisam de um cinto vermelho, um quepe agaloado e um gesto magistral para se imporem ao ex-camarada de redação ou de atelier. Os outros enterrar-se-ão na papelada com a melhor vontade de perceberem alguma coisa. Redigirão leis, lançarão decretos com palavrões bombásticos, que ninguém pensará em executar, justamente por estar em revolução.

Tomarão os nomes de Governo Provisório, de Comitê de Salvação Pública, de Maire, de Comandante da Municipalidade, de Chefe de Segurança e que sei eu? Eleitos e aclamados reunir-se-ão em Parlamento ou em Conselhos da Comuna. Ali encontrar-se-ão homens pertencentes a dez, a vinte escolas diferentes, que não são “capelas” pessoas, como se diz muitas vezes, mas que correspondem a maneiras particulares de conceber a extensão e alcance, o dever da revolução. Partidários de todos os matizes, gente honesta confundindo-se com os ambiciosos: todos apresentando-se com idéias diametralmente opostas, fazendo alianças fictícias para constituir maiorias, disputando, tratando-se de reacionários, de autoridades, de bandalhos, discutindo asneiras, não publicando senão proclamações roncantes; tomando-se todos a sério, enquanto a verdadeira força do movimento está na RUA.

Tudo isto pode divertir os aficionados do teatro. Mas ainda não é a revolução. Nada está feito.

Entretanto o povo sofre. As oficinas não têm trabalho, os atelieres estão fechados; o comércio não vai. O trabalhador nem mesmo vence o salário-mínimo que ganhava antes; o preço dos gêneros aumenta.

Com esse devotamento heroico que sempre o caracterizou e que chega ao sublime por ocasião das grandes épocas, o povo pacienta. É ele quem exclama em oitocentos e quarenta e oito: “Nós pomos três meses de miséria ao serviço da República” enquanto os “representantes” e os senhores do novo governo até ao último, recebiam religiosamente os seus vencimentos! O povo sofre. Com a sua confiança pueril, com a bonomia da massa espera que em cima, na câmara, no Hotel de Ville, no Comitê de Salvação Pública se ocupem dele.

Mas lá em cima pensa-se em tudo, menos nos sofrimentos da multidão. Quando a fome corrói a França em 1793, comprometendo a revolução, quando o povo está reduzido à última miséria; enquanto os Campos Elísios são cortados por fáetons soberbos, em que mulheres exibem suas soberbas “toilettes” Robespiére insiste nos Jacobinos para fazer discutir a sua memória sobre a Constituição inglesa! Quando o trabalhador sofre em 1845 da suspensão geral da indústria, o governo provisório e a Câmara tagarelam sobre as pensões militares e o trabalho das prisões, sem perguntarem do que vive o povo nesta época de crise. E se é censurável a Comuna, que nasceu sob os canhões do Prussianos e não durou senão setenta dias, é de não ter compreendido que a revolução comunal não podia triunfar sem combatentes bem alimentados e que com 30 soldos por dia não se pode ao mesmo tempo pelejar nas fortalezas e alimentar uma família.

O povo sofre e pergunta: “Que fazer para sair deste caso?”



III




Ora pois; parece-nos que não há senão uma resposta a esta pergunta:

Reconhecer e proclamar bem alto que cada um, seja qual for o seu passado, seja qual for a sua força ou a sua fraqueza, suas aptidões ou a sua incapacidade, possui antes de tudo o “direito de viver”?; e que a sociedade deve repartir, entre todos, sem exceção, os meios de que dispõe. Reconhecê-lo, proclamá-lo e agir de conformidade!

Fazer de modo que desde o primeiro dia da Revolução o trabalhador saiba que se abre diante dele uma nova era: que desde agora ninguém será obrigado a dormir debaixo das pontes, ao lado dos palácios; a ficar em jejum enquanto houver que comer; tremer de frio ao lado dos armazéns de peles. Que tudo seja de todos na realidade, como em princípio e que enfim na história se produza uma revolução que cuide das “necessidades” do povo antes de lhe ensinar a lição dos seus “deveres”.

Isto não se pode fazer com decretos, mas unicamente tomando posse imediata, efetiva de tudo o que é necessário para assegurar a vida de todos. Tal é a única maneira verdadeiramente científica de proceder, a única que seja compreendida e desejada pela massa do povo.

Tomar posse, em nome do povo revoltado, dos depósitos de trigo, dos armazéns que regurgitam de vestuários, das casas habitáveis. Não esbanjar coisa alguma, organizar-se logo para preencher os claros, fazer face a todas as necessidades, satisfazer todas as precisões, produzir, não mais para dar benefícios a quem quer que seja, mas para fazer viver e desenvolver-se a sociedade.

Fora com essas fórmulas ambíguas como o “direito ao trabalho”, com que lograram o povo em 1848 e que ainda lográ-lo.

Tenhamos a coragem de reconhecer que o bem-estar, desde já possível, deve realizar-se a todo o custo.

Quando em 1848 os trabalhadores reclamavam o direito ao trabalho organizavam-se atelieres nacionais ou municipais, e mandavam-se os homens penar nesses atelieres à razão de quarenta soldos por dia! Quando pediam a organização do trabalho, respondiam-lhes: “Esperem, meus amigos, o governo vai se ocupar disso e por hoje aqui estão quarenta soldos. Descanse, rude trabalhador, que penou toda a sua vida”. E enquanto esperavam, apontavam-lhes os canhões. E um belo dia disseram-lhes: “Partam para colonizar a África, senão vamos metralhá-los”.

Muito outro será o resultado se os trabalhadores reivindicarem o “direito ao bem-estar”! Desse modo, proclamam o direito de se apoderarem de toda a riqueza social; de tomar as casas e instalar-se nelas conforme as necessidades da família; de tomar os víveres acumulados e de servir-se deles de modo a conhecer o bem-estar, depois de ter demasiadamente conhecido a fome. Proclamam o seu direito a todas as riquezas – fruto do labor das gerações passadas e presentes e usam delas de modo a conhecer o que são os altos gozos da arte e da ciência, demasiado tempo açambarcados pelos burgueses. E afirmando o seu direito ao bem-estar, declaram o seu direito de decidirem eles mesmos o que deve ser esse bem-estar.

O direito ao bem-estar é a possibilidade de viver como seres humanos e criar os filhos para os fazer membros iguais duma sociedade superior à nossa, enquanto o direito ao trabalho é o direito de ficar sempre escravo assalariado, “homem de pena” governado e explorado pelos burgueses de amanhã. O direito ao bem-estar é a revolução social; o direito ao trabalho é quando muito um degredo industrial.

É tempo do trabalhador proclamar o seu direito à herança comum e de tomar posse dela.










O COMUNISMO ANARQUISTA



I




Toda a sociedade que tiver rompido com a propriedade privada é obrigada, quanto a nós, a organizar-se em comunismo-anarquista. A anarquia conduz ao comunismo, assim como o comunismo leva à anarquia, sendo ambos a expressão da tendência das sociedades modernas para a procura da igualdade.

Houve um tempo em que uma família de camponeses podia considerar o trigo que fazia brotar e os vestidos de lã tecidos no lar como produtos do seu próprio trabalho. Mesmo então esta maneira de ver não era assaz correta. Havia estradas e pontes feitas em comum, pântanos dessecados por um trabalho coletivo, tapumes de sebes que todos conservavam. Um melhoramento nos teares ou na maneira de tingir os tecidos aproveitava a todos nessa época; uma família de camponeses não podia viver senão com a condição de achar apoio, em mil ocasiões na aldeia, na comuna.

Mas hoje, neste estado da indústria, em que tudo se entrelaça e se sustenta, em que cada ramo da produção se serve de todos os outros, a pretensão de dar origem individual aos produtos é insustentável. Se as indústrias têxteis ou a metalurgia atingiram uma estupenda perfeição nos países civilizados, devem-no ao desenvolvimento simultâneo de mil outras indústrias grandes e pequenas; à extensão da rede férrea, à navegação transatlântica, à destreza de milhões de trabalhadores, a um certo grau de cultura geral de toda a classe obreira, enfim, a trabalhos executados de um extremo ao outro do mundo.

Como querer avaliar a parte que cabe a cada um nas riquezas que todos ajudamos a acumular?

Colocando-nos neste ponto de vista geral, sintético, da produção, não podemos admitir com os coletivistas que uma remuneração proporcional às horas de trabalho fornecidas por cada um à produção das riquezas possa ser um ideal ou mesmo um passo à frente para esse ideal. Sem discutir aqui se realmente o valor de troca das mercadorias se mede na sociedade atual pela quantidade de trabalho necessário para as produzir, basta dizer, salvo voltar mais tarde ao objeto, que o ideal coletivista nos parece irrealizável numa sociedade que considerasse os instrumentos de produção como um patrimônio comum. Baseada neste princípio, ela ver-se-ia forçada a abandonar desde logo toda a forma de salariado.

Estamos persuadidos que o individualismo mitigado pelo sistema coletivista não poderia existir ao lado do comunismo parcial da posse por todos do solo e dos instrumentos de trabalho. Uma nova forma de posse requer uma nova forma de retribuição. Uma nova forma de produção não poderia manter a antiga forma de consumo, como não poderia acomodar-se às antigas formas de organização política.

O salariado nasceu da apropriação pessoal do solo e dos instrumentos de produção por alguns. Era a condição necessária para o desenvolvimento da produção capitalista: morrerá com ela, mesmo que se quisesse disfarçá-la sob a forma de “bondes de trabalho”. A posse comum dos instrumentos de trabalho trará necessariamente o gozo em comum dos frutos do labor comum.

Sustentamos além disso que o comunismo não só é desejável, mas que as sociedades atuais fundadas sobre o individualismo são mesmo “continuamente forçadas a marchar para o comunismo”.

Com efeito, a par desta corrente individualista, vemos em toda a história moderna a tendência duma parte a conservar o que resta do comunismo parcial da antiguidade e doutra parte a restabelecer o princípio comunista em mil manifestações da vida.

Desde que as comunas dos X, XI e XII séculos conseguiram emancipar-se do senhor, laico ou religioso, deram imediatamente grande extensão ao trabalho comum e ao consumo em comum.

A cidade (já não os particulares) afretava navios e expedia as suas caravanas para o comércio distante, cujo benefício revertia a todos, não aos indivíduos. Também comprava as provisões para os habitantes. Os rastros ou vestígios destas instituições mantiveram-se até ao século XIX e os povos nas suas legendas conservaram-lhes piedosamente a lembrança.

Tudo isso desapareceu, mas a comuna rural ainda luta para manter os últimos vestígios desse comunismo e consegue-o, enquanto o estado não vier atirar a sua espada sobre a balança.

Ao mesmo tempo, novas organizações baseadas no mesmo princípio: “a cada um conforme as suas necessidades”, surgem sob mil aspectos diversos: porque sem uma certa dose de comunismo as sociedades atuais não poderiam viver. Apesar do tom estreitamente egoísta dado ao espírito pela produção mercante, a tendência comunista revela-se a cada instante e penetra nas nossas relações sob todas as formas.

A ponte, cuja passagem dantes era paga, tornou-se monumento público. A estrada calçada, que antes se pagava a tanto por légua já não existe senão no Oriente. Os museus, as bibliotecas livres, as escolas gratuitas, as refeições comuns das crianças; os parques e jardins abertos a todos, as ruas calçadas e iluminadas, livres para todo o mundo, a água distribuída a domicílio com a tendência geral de não olhar à quantidade consumida; - tantas instituições fundadas no princípio: “Tomais o que precisardes”.

Os “tramwais” e as estradas de ferro introduzem já a assinatura mensal ou anual, sem ter em conta o número de viagens, e recentemente uma nação inteira, a Hungria, introduziu na sua rede de caminhos de ferro o bilhete por zonas, que permite percorrer quinhentos ou mil quilômetros pelo mesmo preço. Em todas estas inovações e mil outras a tendência é para não medir o consumo. Eis os fenômenos que se mostram até nas nossas sociedades individualistas.

A tendência, posto ainda tão fraca é de pôr as precisões do individuo acima da avaliação dos serviços que prestou ou que prestará um dia à sociedade. Chega-se a considerar a sociedade como um todo, de que cada parte está tão intimamente ligada às outras, que o serviço prestado a certo indivíduo é um serviço prestado a todos.

Quando ides a uma biblioteca pública, o bibliotecário não vos pergunta quais os serviços que prestastes à sociedade, para vos dar o volume ou os 50 volumes que lhes pedes e ainda vos ajuda, senão sabeis procurá-los no catálogo. Mediante uma espórtula de entradas uniforme, e muitas vezes o que se pede é uma contribuição em trabalho, que se refere, a sociedade científica abre os seus museus, os seus jardins, a sua biblioteca, as suas festas anuais a cada um dos seus membros, seja ele um Darwin ou simples amador.

Em Petersburgo, se estudais uma invenção, ides a um atelier especial, onde vos dão um lugar, ferramentas de marceneiro, um torno mecânico, todos os utensílios necessários, todos os instrumentos de precisão, contanto que o saibas manejar, e vos deixam trabalhar tanto quanto vos aprouver. Aí estão os instrumentos, interessai amigos na vossa idéia, associai-vos com outros camaradas de diversos ofícios se não preferis trabalhar só, inventai a máquina de aviação ou não inventeis nada, isso é lá convosco. Os marinheiros de um barco de salvamento não pedem os seus títulos aos tripulantes dum navio que se afunda; lançam a embarcação, arriscam a vida nas ondas furibundas, morrendo às vezes, para salvarem homens que nem conhecem. E para que era preciso conhecê-los?

Precisam dos nossos serviços, há aí seres humanos – é quanto basta, está estabelecido o seu direito – Salvemo-los.

Eis a tendência eminentemente comunista que se mostra em toda parte sob todos os aspectos possíveis – mesmo no seio das nossas sociedades que pregam o individualismo.

Submetida uma cidade a um cerco, o primeiro cuidado dos cercados é que as primeiras provisões a fazer são as dos velhos e das crianças, sem se indaga dos serviços que prestaram ou prestarão à sociedade.

A tendência existe. Acentua-se desde que as precisões mais imperiosas de cada um estão satisfeitas, à medida que a força produtriz da humanidade aumenta.

Como pois duvidar que um dia em que os instrumentos de produção fossem devolvidos a todos, em que a tarefa se fizessem em comum e o trabalho, recobrando então o lugar da honra na sociedade produzisse mais que o necessário para todos – como duvidar que esta tendência (já tão poderosa) alarga-se a esfera de ação até tornar-se mesmo o princípio da vida social?

Segundo estes indícios, somos de opinião que a nossa primeira obrigação, quando a revolução tiver quebrado a força que sustenta o sistema atual, será realizar imediatamente o comunismo: comunismo anarquista, sem governo – o dos homens livres. È a síntese dos dois fins visados pela humanidade econômica e a liberdade política.

Sabemos que nenhum povo esta por enquanto moralmente preparado para proclamar a anarquia e viver nela, tendo o cidadão as necessárias virtudes para viver dentro do seu direito, sem violar os direitos alheios. Essas virtudes hão de o povo adquiri-las mediante o ensino e o exemplo dos homens superiores que tem a peito o advento do anarquismo, isto é, da liberdade absoluta, tendo só a restringi-la a liberdade dos outros. Nem se diga que o anarquismo trará a liberdade do crime. O criminoso convicto não ficara impune: numa sociedade anárquica, o povo reunido constituirá um tribunal de única instância que julgará sem recurso e executará ele mesmo as suas sentenças.

Vê-se na história que, cada vez que o desenvolvimento das sociedades europeias o permitia, elas sacudiam o juízo da autoridade e esboçavam um sistema baseado na liberdade individual; e sempre que os governos foram abalados em resultado de revoltas, foram épocas de súbito progresso econômico e intelectual.

Umas vezes é a libertação das comunas, cujos monumentos não foram depois excedidos, outras vezes é a sublevação dos camponeses quem faz a “Reforma” e põe em perigo o papado; outras vezes é a sociedade, livre, um movimento que criavam do outro lado do Atlântico, os descontentamentos vindos da velha Europa.

E se observarmos o presente desenvolvimento das nações civilizadas, aí vemos sem risco de nos enganarmos, um movimento cada vez mais acentuado para limitar a esfera de ação do governo e deixar mais liberdade ao individuo.

Depois de haver tentado longamente e sem resultado resolver este problema insolúvel, qual o de se dar um governo que possa obrigar o indivíduo à obediência, sem deixar ele mesmo de obedecer à sociedade, a humanidade tenta livrar-se de toda a espécie de governo e satisfazer suas necessidades de organização pelo livre entendimento entre indivíduos e grupos que visam o mesmo fim.

Tudo o que antes era considerado como função do governo é-lhe hoje disputado: tudo se arranja melhor e mais facilmente sem a sua intervenção. Estudando os progressos feitos nesta direção, somos levados a concluir que a humanidade tende a reduzir a zero a ação dos governos, isto é, a abolir o Estado.

Já podemos entrever um mundo onde o indivíduo, não mais ligado por leis, só terá hábitos sociais, resultado da necessidade de procurar o apoio, a cooperação e a simpatia dos vizinhos.

De certo uma sociedade sem Estado suscitará tantas objeções como a economia política sem capital privado. Todos nós fomos educados desde as tradições romanas e as ciências professadas nas universidades, a crer no governo e no Estado-Providência.

Para manter esse prejuízo elaboraram-se sistemas de filosofia; teorias da lei são redigidas com o mesmo fim. Toda a política se baseia neste princípio e cada político, de qualquer divisa, vem sempre dizer ao povo? “Dai-me o poder, eu quero e posso libertar-vos das misérias que vos oprimem”.

Abri um livro de sociologia, de jurisprudência, achareis sempre o governo tomando um lugar tão grande que chegamos a crer que não há nada fora do governo e dos homens de Estado.

A imprensa canta no mesmo tom. Consagram-se colunas inteiras aos debates parlamentares, às intrigas dos políticos, deixando espaço quase nulo para assuntos econômicos e os casos do dia.

Entretanto, desde que se passa da matéria impressa à própria vida, fica-se espantado da parte infinitesimal, que o governo aí representa. Já Balzac havia notado os milhares de seres que passam a vida sem nada saberem do Estado, senão os pesados impostos que lhes fazem pagar. Fazem-se milhões de transações cada dia, entre as quais as do comércio, de tal maneira que nem o governo poderia ser invocado quando uma das partes tivesse vontade de faltar ao seu compromisso. Qualquer comerciante vos poderá dizer que as trocas operadas cada dia entre comerciantes seriam de uma inutilidade absoluta se não tivesse por base a confiança mútua, o hábito de cumprir a palavra e o desejo de não perder o crédito.

Outro fato ainda se faz notar melhor em favor das nossas ideias: é o acréscimo contínuo no campo das empresas, devidas à iniciativa particular, e o desenvolvimento prodigioso dos agrupamentos livres são um resultado tão necessário do acréscimo contínuo das precisões do homem civilizado e substituem tão vantajosamente a intervenção do governo, que devemos reconhecer nelas um fator cada vez mais importante na vida das sociedades.

A história dos últimos 50 anos fornece a prova viva da impotência do governo representativo para se desempenhar das funções com que o quiseram sobrecarregar. Um dia há de citar-se o século XIX como a época do fracasso do parlamentarismo. Mas esta impotência torna-se tão evidente para todos, as faltas do parlamentarismo e os vícios fundamentais do parlamentarismo são tão evidentes que os poucos pensadores que lhe tem feito a crítica (J. S. Mill, Levardays) tem-se contentado com traduzir o descontentamento dos povos. Com efeito, não se concebe que é absurdo nomear alguns homens e dizer-lhes: “Fazei-nos leis sobre todas as manifestações da nossa vida, mesmo que algum de vós as ignore?”.

A união postal internacional, as uniões de caminhos de ferro, as sociedades sábias dão-nos o exemplo de soluções achadas pelo livre entendimento em vez e lugar da lei.

Hoje, quando grupos espalhados em todo o globo querem chegar a organizar-se para qualquer fim, não nomeiam um parlamento internacional de deputados “bons à tout faire”, dizendo-lhes: “Votem-nos leis, nós obedeceremos”. Enviam-se delegados conhecedores da questão especial a tratar e diz-se lhes: “Tratai de entrar em acordo sobre tal questão e volta, - não com uma lei no bolso, mas com uma proposta de acordo que aceitaremos ou rejeitaremos”.

É assim que deverá agir uma sociedade livre. Para fazer a expropriação será absolutamente impossível organizar-se sobre o princípio da representação parlamentar.

Uma sociedade livre, reentrando na posse da herança comum, deverá buscar no livre agrupamento e na livre federação dos grupos uma organização nova, que convenha à fase econômica nova da história. A cada fase econômica corresponde a sua fase política e será impossível tocar na propriedade sem olhar ao mesmo tempo um novo modo de vida político.







A EXPROPRIAÇÃO




I



Contam que em 1848, Rothschild, vendo-se ameaçado na sua fortuna pela Revolução, inventou esta farsa: “Quero admitir que a minha fortuna fosse adquirida à custa dos outros, mas dividida por tantos milhões de europeus cabia um escudo a cada um. Pois bem, obrigo-me a restituir a cada um o seu escudo, logo que mo reclame”.

Dito isto e publicado, o nosso milionário passeava tranquilamente nas ruas de Frankfurt. Três ou quatro transeuntes pediram-lhe o seu escudo e ele desembolsou-o com um sorriso sardônico. A família do milionário está ainda de posse dos seus tesouros.

É pouco mais ou menos assim que raciocinam as fortes cabeças da burguesia, quando nos dizem: “Ah! A expropriação? Estou de acordo. Tirai a todos os seus paletós, ponham-nos num monte e cada um vá tirar um, embora tenha de se bater pelo melhor!”.

É uma brincadeira de mau gosto. O que queremos não é amontoar os paletós para depois distribuir, embora os que tiritam de frio sempre tivessem alguma vantagem. Também não é repartir os escudos de Rothschild. É organizar-nos de modo que a cada ser humano que vem ao mundo seja assegurado, em primeiro lugar aprender um trabalho produtivo e se habituar a ele; depois, de poder fazer esse trabalho sem patrão e sem pagar açambarcadores da terra e das máquinas a parte do leão sobre tudo o que produzir.

Quanto às riquezas dos Rothschilds e dos Vanderbilts, elas nos servirão para organizar melhor a nossa produção em comum.

No dia em que o trabalhador do campo puder lavrar a terra sem pagar metade do que produz; em que as máquinas necessárias para preparar a terra para as grandes colheitas estiverem com profusão à disposição dos cultivadores, o obreiro de oficina produzir para a comunidade e não para o monopólio, os trabalhadores não andarão esfarrapados e não haverá mais Rothschilds e quejandos. Ninguém terá de vender o seu trabalho por um salário que represente só uma parte do que produziu.

Dirão: “Mas virão Rothschilds de fora. Podereis impedir que venha estabelecer-se entre vós um indivíduo que juntou milhões na China, que se rodeie de trabalhadores assalariados, que os explore e enriqueça à sua custa? Fareis a revolução em toda a terra ao mesmo tempo? Ou estabelecereis alfândegas nas fronteiras para revistar os que chegam e apreender o ouro que trouxerem? – Guardas anarquistas fazendo fogo sobre quem passa há de ser divertido”.

Há aí em erro grosseiro. Ninguém jamais quis saber donde vêm as fortunas dos ricos. Um pouco de reflexão basta para mostrar que a origem dessas fortunas é a miséria dos pobres.

Onde não houver miseráveis, não haverá mais ricos para os explorarem. É na idade media que as grandes fortunas começam a surgir.

Um barão feudal faz mão baixa num fértil vale. Mas enquanto esta campina não está povoada, o barão não é nada rico. A terra não lhe rende nada, é o mesmo que possuir bens na lua. Que vai fazer o barão para se enriquecer? Procurará camponeses.

Entretanto se cada agricultor tivesse um cantinho de terra livre de todo o encargo, os utensílios e o gado necessário para a lavoura, quem desbravaria as terras do barão? Cada um ficaria em sua casa. Mas existem populações inteiras de miseráveis. Uns foram arruinados pelas guerras, secas, pestes; não tem cavalo nem charrua (o ferro na idade media era caro, mais caro ainda o cavalo de lavoura).

Todos os miseráveis buscam melhores condições. Um dia veem na estrada, no limite das terras do barão, um poste indicando por sinais compreensíveis que o lavrador que vier estabelecer-se nessas terras receberá terra, instrumentos e materiais para edificar sua cabana, semear o seu campo sem pagar nada durante um certo número de anos. Este número de anos é marcado com cruzes no poste – e o camponês sabe o que significa as cruzes. Então os miseráveis afluem às terras do barão, abrem estradas, dessecam pântanos, criam aldeias. Em nove anos o barão impõe-lhes uma renda, paga-se dos adiantamentos cinco anos mais tarde, o lavrador aceita estas novas condições, porque noutra parte não as acharia melhores. E pouco a pouco, com a ajuda da lei feita pelos senhores, a miséria do camponês torna-se a nascente riqueza do patrão.

Passava-se isto na idade media e passa-se ainda hoje. O camponês tem de pagar mil francos ao senhor Visconde que quiser vender-lhe uma geira, ou pagar uma renda onerosa que lhe leva o terço do que produz. Ele não tem nada e é forçoso que aceite todas as condições, contanto que possa viver cultivando o solo. Em pleno século XIX como na idade média, é anda a pobreza do camponês que faz a riqueza dos proprietários de terras.



II




O proprietário da terra enriquece-se com a miséria dos camponeses. O mesmo acontece com o empresário industrial.

Vemos um burguês que duma maneira ou doutra possui um pecúlio de quinhentos mil francos. Pode certamente despender o seu dinheiro à razão de cinquenta mil francos por ano – muito pouco enfim com o luxo fantasista, insensato que vemos em nossos dias. Mas assim, no fim de dez anos não tem nada. Assim, como homem “patético” ele prefere guardar intacta a sua fortuna e arranjar ainda por cima um pequeno rendimento anual.

É muito simples na nossa sociedade, porque as cidades regurgitam de trabalhadores que não têm de que viver um mês, nem ainda quinze dias. O burguês monta uma oficina: os banqueiros ainda lhe emprestam quinhentos mil francos, sobre tudo se tem a reputação de esperto; e com o seu milhão poderá fazer trabalhar quinhentos operários.

Se nos arredores não houvesse senão homens e mulheres com a existência garantida, quem trabalharia com o burguês? Ninguém consentiria em lhe fabricar por três francos diários mercadorias que valiam cinco ou mesmo dez francos. Ainda a oficina não está acabada e já os trabalhadores acodem para tomar lugar. Precisa cem e vieram mil. E o patrão se não é um imbecil, embolsará por ano mil francos de cada trabalhador.

Assim o patrão arranja um bonito rendimento e se a indústria é lucrativa, sua oficina engrandece pouco a pouco e aumentará as suas rendas aumentando o número de operários que explora.

Nove décimos das fortunas colossais dos Estados Unidos são devidos a alguma grande falcatrua feita com o concurso do Estado. Na Europa acontece outro tanto e não há duas maneiras de se fazer milionário.

Falta ainda falar das pequenas fortunas atribuídas pelos economistas à economia, enquanto a economia por si só não rende nada, enquanto os saldos poupados não se aplicam a explorar os mortos de fome.

Vejamos um sapateiro. O seu trabalho é bem pago, tem uma boa clientela e à força de privações chegou a pôr de parte dois francos por dia, cinquenta francos por mês. Admitamos que nunca esteja doente e que enche o estômago, apesar da sua gana de economizar; que não se casa ou não tem filhos, que não morra tísico.

Ora pois, chegando aos cinquenta anos não pôs de parte nem quinze mil francos e chegando à velhice, não terá com que viver se não puder trabalhar. De certo não é assim que se arranjam fortunas.

Mas vejamos outro sapateiro.

Assim que tiver posto uns soldos de parte, leva-os cuidadosamente à caixa econômica e esta empresta-os ao burguês que vai montar uma exploração de pés descalços. Depois toma um aprendiz filho dum miserável, que se julgará muito feliz se no fim de cinco anos o filho sabe o ofício e chega a ganhar a sua vida. O aprendiz dará lucro ao sapateiro e se este tem clientela, breve tomará outro aprendiz e depois ainda outro. Mais tarde terá três obreiros – miseráveis, felizes, ganhando três francos diários por um trabalho que vale pelo menos seis. Se tem sorte, ou antes se é esperto, em breve esse pessoal render-lhe-á vinte francos por dia, além do seu próprio trabalho, e poderá deixar à família um pequeno pecúlio.

O comércio “parece” fazer exceção à regra. Dirão: “um sujeito compra chá na China, importa-o em França e ganha trinta por cento: não explorou ninguém”.

Entretanto o caso é análogo.

Se o homem tivesse transportado o chá às costas, então sim! Era precisamente assim que se comerciava na idade média, mas nunca se chegava às surpreendentes fortunas de hoje. Agora o método é mais simples. O negociante que possui capital não precisa sair do seu escritório para enriquecer. Telegrafa a um comissionista uma ordem de comprar cem toneladas de chá, freta um navio e em poucas semanas têm o carregamento em casa. Não corre os riscos do transporte porque o chá e o navio estão seguros e se despendeu cem mil francos, recolherá cento e trinta mil.

Como achou homens que se decidiram a ir a China e voltar, suportar fadigas, arriscar a vida por um magro salário? Como achou nas docas carregadores e descarregadores, pagando-lhes justamente o preciso para não morrerem de fome enquanto trabalhavam? Porque são miseráveis. Ide a um porto de mar, visitai os cafés da praia, observai esses homens que se batem às portas das docas, que assediam desde madrugada para serem admitidos a trabalhar nos navios. Vede esses marinheiros, felizes de serem contratados para uma viagem longínqua depois de esperarem semanas e meses; passaram toda a vida de uns navios para outros até perecerem um dia nas ondas.

Entrai nos seus tugúrios, considerai essas mulheres e essas crianças esfarrapadas, que vivem não se sabe como, esperando o pai e tereis a resposta.

Digamos, portanto, o que é a expropriação. A expropriação deve recair sobre tudo o que permite, seja a quem for – banqueiro, industrial ou cultivador, - apropriar-se do trabalho alheio. A fórmula é simples e compreensível.

Não queremos despojar ninguém do seu paletó; mas queremos restituir aos trabalhadores “tudo” o que permite a quem quer que seja que os explore, e faremos todos os esforços para que, não faltando nada a ninguém, não haja “um único homem” que seja “forçado” a vender os seus braços – ele e seus filhos.



III




Dizem-nos muitas vezes os nossos amigos a propósito da ideia anarquista: “Cuidado não ir demasiado longe! A humanidade não se modifica num dia, não é bom ir muito depressa em projetos de expropriação e de anarquia, ou arriscareis não fazer nada de durável.” Pois bem, o que nós tememos, pelo contrário, é uma expropriação numa escala muito pequena para ser duradoura; que o impulso revolucionário pare a meio caminho; que se esgote em meias medidas que não contentariam ninguém e que, ainda que produzindo um abalo extraordinário, na sociedade e uma suspensão das suas funções, não fossem, entretanto, viáveis, semeassem o descontentamento geral e trouxessem fatalmente o triunfo da reação.

Há com efeito nas nossas sociedades relações estabelecidas que é impossível modificar, tocando-lhes só em parte. As diversas engrenagens da nossa organização econômica estão tão intimamente ligadas entre si, que se não pode modificar uma sem modificar o conjunto; isto se perceberá desde que queiramos expropriar seja o que for.

Suponhamos que numa região qualquer se faça uma expropriação limitada, limitando-se por exemplo a expropriar os grandes senhores de terras, sem tocar nas oficinas, como queria há pouco Henry Georges; que em tal cidade se expropriem as casas sem pôr os gêneros em comum; ou que em certa região industrial se expropriem as fábricas sem tocar as grandes propriedades em terras: O resultado será em todos os casos o mesmo, abalo imenso da vida econômica, sem meios de organizar essa vida econômica em bases novas. Paragem da indústria e das permutas, sem regresso aos princípios de justiça, impossibilidade para a sociedade de reconstruir um todo harmônico.

Se o agricultor se liberta do grande proprietário de terras sem que a indústria se liberte do capitalista industrial, do comerciante e do banqueiro, não há nada feito. O cultivador sofre não só por ter de pagar rendas ao dono do solo, mas padece do conjunto das condições atuais: padece do imposto que paga ao industrial, que lhe leva três francos por uma enxada que não vale, mais de quinze soldos; das taxas que lhe leva o Estado, que não dispensa um exército de funcionários; das despesas de conservação do exército que mantém o Estado. O agricultor sofre com a despopulação dos campos, cuja a mocidade é arrastada para as manufaturas das grandes cidades seja pelo engodo de salários maiores, pagos temporariamente pelos produtores de objetos de luxo, seja pelo atrativo duma vida mais movimentada, sofre ainda pela proteção artificial da indústria, da exploração mercante dos países vizinhos, da agiotagem etc. E quando mesmo a expropriação permitisse a todos cultivarem a terra e fazê-la valer sem pagar rendas a ninguém a agricultura – mesmo quando tivesse um momento de bem-estar, o que ainda não está provado, recairia bem cedo no marasmo em que se encontra hoje.

O mesmo com a indústria. Entregai amanhã as indústrias aos trabalhadores, fazei o que se fez com um certo número de camponeses que se fizeram proprietários da terra. Suprimi o patrão mas deixai a terra ao senhor, o dinheiro ao banqueiro, a Bolsa ao comerciante, conservai na sociedade a massa de ociosos que vivem do trabalho do obreiro, conservai os mil intermediários, o Estado com seus inumeráveis funcionários, - a indústria não marchará. Não achando mais compradores na massa dos camponeses que ficaram pobres, não possuindo a matéria-prima e não podendo exportar os seus produtos, em parte por causa da suspensão do comércio e sobretudo por efeito da descentralização das indústrias, só poderá vegetar, abandonando os obreiros no meio da rua; e esses batalhões de famintos estarão prontos a submeter-se ao primeiro intrigante que lhe aparecer, ou mesmo a voltar ao antigo regime, contanto que se lhes garanta a mão-de-obra.

Ou, por fim expropriai os donos da terra e entregai as fábricas aos trabalhadores, mas sem tocar nas nuvens de intermediários que especulam sobre as farinhas e os trigos, as carnes e as especiarias nos grandes centros, ao mesmo tempo que escoam os produtos das nossas manufaturas. Pois bem, logo que o escândalo parar e os produtos não circularem, logo que Paris não tiver pão e Lyon não tiver compradores para as suas sedas, a reação voltará terrível marchando sobre os cadáveres, passeando as metralhadoras nas cidades e nos campos, fazendo orgias de execuções e de deportações, como fez em 1815, em 1848 e 1871.

Tudo é solidário nas nossas sociedades e é impossível reformar o que quer que seja sem derrubar o conjunto.

No dia em que se tocar na propriedade particular sob uma das formas – agrícola ou industrial, tem de se tocar em todas as outras. Assim o exigirá o sucesso da Revolução. Além disso, a expropriação não poderia ser senão geral; uma expropriação parcial não se compreenderia.

Alguns socialistas têm procurado estabelecer uma distinção. “Exproprie-se o solo, o subsolo, a oficina, a manufatura, isso queremos nós”, dizem eles. São instrumentos de produção e seria justo ver ai uma propriedade pública. Mas há, além disso, os objetos de consumo: o alimento, o vestuário, a habitação, que se devem considerar propriedade particular.

O bom senso popular deu razão a esta distinção sutil. Com efeito nós não somos selvagens para vivermos no bosque sob um abrigo de ramos; o europeu que trabalha precisa dum quarto, duma casa, duma cama e de louça.

A cama, o quarto, a casa, são lugares de ócio para aquele que nada produz. Mas para um trabalhador, uma câmara aquecida e com luz é tanto um instrumento de produção como a máquina e a ferramenta. É o lugar de reparação de seus músculos e de seus nervos, que amanhã se gastarão no trabalho. O descanso do produtor é a limpeza da máquina.

Os pretendidos economistas nunca se lembraram de dizer que o carvão, que se queima numa máquina, não deva ser contado entre os objetos tão necessários à produção como matéria prima. Como é pois que o alimento, sem o qual a máquina humana não poderia dar nenhum esforço, poderá ser excluído dos objetos indispensáveis ao produtor?

A refeição copiosa e superior do rico é bem um dispêndio de luxo. Mas a refeição do produtor é um dos objetos indispensáveis à produção, pela mesma razão que o carvão queimado pela máquina a vapor.

O mesmo é com o vestuário porque se os economistas que fazem tal distinção entre objetos de produção e objetos de consumo, andassem de tanga como os selvagens da Nova-Guiné, então compreenderíamos essas reservas. Mas indivíduos que não podem escrever uma linha sem terem uma camisa sobre o tronco, estão em mau terreno para fazerem uma tamanha distinção entre a sua pena e a sua camisa. E se os vestidos ostentados das suas senhoras são bem objetos de luxo, há todavia uma certa quantidade de tecido, algodão ou lã, que o produtor não pode dispensar para produzir.

Queira ou não, é assim que o povo entende a revolução. Quando tiver varrido os governos, ele buscará, antes de tudo, garantir-se um alojamento saudável, uma alimentação suficiente e vestuário sem pagar impostos.

E terá razão. O seu modo de agir será infinitamente mais conforme com a “ciência” que o dos economistas, que fazem tanta distinção entre os instrumentos de produção e os artigos de consumo. Compreenderá que é precisamente aí que a Revolução deve começar e lançará os fundamentos da verdadeira ciência econômica, que possa reclamar o título de ciência e que se poderia intitular: “estudo das necessidades da humanidade e dos meios econômicos de as satisfazer”.







OS PRODUTOS


I






Se a próxima revolução deve ser uma revolução social, há de distinguir-se das sublevações precedentes, não só pelo seu objeto, mas ainda pelos seus processos. Um objeto novo requer processos novos.



Os três grandes movimentos populares que vimos em França desde um século diferem entre si a muitos respeitos, mas tem todos um traço comum.



O povo bate-se para derrubar o antigo regime. Depois de dar o golpe decisivo, reentra na sombra. Constitui-se um governo de homens mais ou menos honestos e é por ele o que se encarrega de organizar: em 1793, a república, em 1848, o trabalho, em 1871, a Comuna.



Saturado de ideias jacobinas, este governo ocupa-se, antes de tudo, de questões políticas, reorganização da máquina do poder, limpeza da administração, separação da Igreja, e do Estado, liberdades cívicas e assim por diante.



É certo que os clubes obreiros vigiam os novos governantes. Impõem muitas vezes as suas ideias. Mas, mesmo nesses clubes ou os oradores sejam burgueses ou sejam trabalhadores, a ideia burguesa é sempre a que domina. Fala-se muito de questões do pão. Emitiram-se nessas épocas grandes ideias, ideias que agitaram o mundo, pronunciaram-se palavras que ainda fazem bater os nossos corações a um século de distância.



Mas nos arrabaldes faltava o pão!



Desde que a revolução rebentava o trabalho faltava inevitavelmente. A circulação dos produtos parava, os capitais sumiam-se. Nessas épocas o patrão não tinha absolutamente nada a temer. A penúria anunciava-se.

A miséria fazia a sua aparição – uma miséria como outra se não tinha visto no antigo regime. “São os Girondinos que nos matam à fome”, diziam nos arrabaldes em 1793. E guilhotinavam os Girondinos. Davam-se plenos poderes a Montagne, na Comuna de Paris. Em Lyon, Fouché e Collot d’Herbois, iam criando os celeiros de abundância; mas para os encher apenas dispunha de somas ínfimas. As municipalidades cansavam-se para arranjar trigo – enforcavam os padeiros que açambarcavam as farinhas – e o pão faltava sempre.

Então queixaram-se dos conspiradores realistas. Guilhotinavam doze a quinze por dia. Mas tivessem eles guilhotinado cem duques e viscondes cada vinte e quatro horas que nada teria mudado.

A miséria crescia, pois que era preciso sempre receber um salário para viver – e o salário não aparecia. Que podiam fazer mil cadáveres a mais ou a menos?

Agora o povo começava a cansar-se. – “A vossa Revolução vai bem”, soprava o reacionário ao ouvido do trabalhador. “Nunca vocês foram tão miseráveis!” E pouco a pouco, o rico tranquilizava-se; saía do seu esconderijo, afronta os trabalhadores com o seu luxo principesco, envolvia-se em perfumarias e dizia aos trabalhadores: “Vamos lá, basta de asneiras! Que ganharam vocês com a Revolução? Já é tempo de acabar com isso!”.

E o revolucionário, acabrunhado, metia-se na sua choça e deixava correr o marfim. E então a redução pavoneava-se altiva. Morta a Revolução, espezinhava-se-lhe o cadáver. Derramavam-se ondas de sangue, abatiam-se cabeças, povoavam-se as prisões e as orgias da alta súcia retomavam o seu ouro.

Pão! A Revolução precisa de pão! Que outros se ocupem a lançar circulares em períodos brilhantes; que tomem tantos galões quantos suas espáduas possam levar; que outros enfim alanzoem sobre as liberdades políticas. A nossa tarefa será fazer que desde os primeiros dias da Revolução e enquanto durar não falte pão nem a um homem, no território insurrecto, nem haja uma mulher que seja obrigada a esperar à porta da padaria para levar o bolo de farelos que lhe quiserem atirar por esmola; nem uma única criança que careça do necessário à sua fraca constituição.

A ideia burguesa tem sido perorar sobre os grandes princípios, ou antes saber as grandes mentiras; a ideia popular será garantir o pão a todos.

Temos a audácia de afirmar que cada um deve e pode comer quanto lhe apeteça e que é pelo pão para todos que a Revolução deve vencer.


II



Somos utopistas, é sabido. Tão utopistas na verdade que levamos a utopia até crer que a Revolução deverá e poderá garantir a todos alojamento, vestuário e pão, o que muito desagrada aos burgueses, porque sabem perfeitamente que um que comer até satisfazer-se, será muito custoso de dominar. Portanto é preciso assegurar o pão ao povo revoltado e que a questão do pão prefira a todas.

Se ela se resolver no interesse do povo, a revolução irá em bom caminho, porquanto, para resolver a questão dos gêneros é preciso aceitar um princípio de igualdade que se imporá com exclusão de todas as outras soluções.

É certo que a próxima revolução – igual nisto à de 1848, - rebentará no meio duma formidável crise industrial. Há já uma dúzia de anos que estamos em plena efervescência e a situação só pode agravar-se. Tudo para isso contribui: a concorrência de nações novas, que entram na liça pela conquista dos velhos mercados, as guerras, os impostos sempre crescentes, as dívidas dos Estados, a insegurança do dia de amanhã, as grandes empresas longínquas.

Neste momento há na França milhões de trabalhadores sem trabalho. Pior será ainda quando a revolução tiver rebentado e se tiver propagado como o fogo posto a um rastilho de pólvora. O número de obreiros sem trabalho dobrará quando as barricadas se tiverem levantado na Europa ou nos Estados Unidos. Que se vai fazer para assegurar o pão a essas pessoas?

Não sabemos se a gente que se diz prática viu esta questão em toda a sua crueza. O que sabemos é que querem manter o salariado e vemos preconizar os trabalhos públicos para dar pão aos desocupados.

Porque se abriam atelieres nacionais em 1789 e em 1793; porque se recorreu a igual meio em 1848; porque Napoleão III conseguiu, durante dezoito anos, conter o proletariado parisiense dando-lhe trabalhos – que valem hoje em Paris a sua dívida de dois mil milhões e o seu imposto municipal de 90 francos por cabeça; porque este excelente movimento de “matar a fera” se aplicava em Roma e mesmo no Egito, há quatro mil anos; porque enfim déspotas, reis e imperadores souberam sempre atirar um pedaço de pão ao povo para terem tempo de empunhar o chicote, - é natural que a “gente prática” preconize esse método de perpetuar o salariado. Para que quebrar a cabeça quando se dispõe de um método experimentado pelos Faraós do Egito?

Ora bem: se a Revolução tivesse a desgraça de entrar por esse caminho, estava perdida.

A revolução na Europa é a suspensão imediata de metade, pelo menos, das oficinas e manufaturas. São milhões de trabalhadores com suas famílias atiradas à margem.

É a esta situação verdadeiramente terrível que se procuraria obstar por meio de atelieres nacionais, ou seja, de novas indústrias criadas de improviso para empregar os desocupados.

É evidente, como já disse Proudhon, que o menor atentado à propriedade trará a desorganização completa sobre o regime baseado na empresa particular e no salariado. A própria sociedade será obrigada a lançar mão da produção no seu conjunto e de reorganizar segundo as “necessidades do conjunto da população”. Mas como esta reorganização se não faz num dia nem num mês, como demandará um certo período de adaptação, durante o qual milhões de homens ficarão privados dos meios de subsistência que se há de fazer?

Em tais circunstâncias não há senão uma solução verdadeiramente prática. É reconhecer a imensidade da tarefa que se impõe, em lugar de tentar restaurar uma situação que se tornou impossível, proceder à reorganização da produção segundo os novos princípios.

Será pois necessário, quanto a nós, que o povo se aposse imediatamente de todos os gêneros que se encontrarem nas comunas insurgidas, inventariá-los e fazer de todo modo que, sem os esbanjar, todos se aproveitem dos produtos acumulados para atravessar o período da crise. E entretanto entender-se com os obreiros de fábricas, oferecendo-lhes as matérias-primas que lhe faltarem, garantindo-lhes a existência durante alguns meses a fim de produzirem o que faltar ao cultivador.

Enfim, fazer valer as terras improdutivas que não faltam, e melhorar outras, que não dão nem um quarto, nem mesmo um décimo do que produziriam submetidos à cultura intensiva agrícola ou jardineira. É a solução prática que podemos entrever e que, quer queiram quer não, se há de impor pela força das coisas.


III




A feição predominante, distintiva do presente sistema capitalista é o salariado.

Um homem ou um grupo, possuindo o capital necessário, monta uma empresa industrial; encarrega-se de alimentar a manufatura ou oficina de matéria- prima, de organizar a produção, de vender os produtos manufaturados, de pagar aos obreiros um salário fixo; enfim, embolsa o excedente valor ou os lucros a pretexto de se indenizar da gerência, do risco que correu, das flutuações de preço que a mercadoria sofreu no mercado.

Eis todo o sistema do “salariado”. Para salvar este sistema, os detentores atuais do capital estariam prontos a fazer certas concessões: repetir, por exemplo, uma parte dos lucros com os trabalhadores, ou então estabelecer uma escala de salários, que os faça elevar quando o lucro sobe: em suma, consentiriam em certos sacrifícios, contanto que conservassem o direito de gerir a indústria e de guardar os benefícios.

O coletivismo, como se sabe, faz a este regime importantes modificações, sem deixar de manter o salariado. Unicamente substitui o padrão pelo Estado, isto é, pelo governo representativo nacional ou comunal. São os representantes da nação ou da comuna e seus delegados seus funcionários, que se tornam gerentes da indústria. São também eles que se reservam o direito de empregar, no interesse de todos, os lucros da produção. Por outra, estabelece-se uma distinção muito sutil, mas prenhe de consequências entre o trabalho do operário e o do homem que fez uma aprendizagem prévia: o trabalho do operário, aos olhos do coletivista, não é mais que um trabalho “simples”, enquanto o artífice, o engenheiro, o sábio, etc. fazem o que Marx chama um trabalho “composto” e tem direito a um salário mais elevado. Mas operários e engenheiros, tecelões e sábios são salariados do Estado - “todos funcionários”, diziam ultimamente para dourar a pílula.

Pois bem, o maior serviço que a próxima Revolução poderá fazer à humanidade será criar uma situação em que todo o salariado será impossível, inaplicável e em que se imporá, como única solução aceitável, o comunismo – negação do salariado.

Uma revolução política pode-se fazer sem que a indústria seja atacada, mas uma revolução em que o povo puser a mão sobre a propriedade trará inevitavelmente uma súbita suspensão de trocas e de produção. Os milhões do Estado não chegariam para salariar os milhões de desocupados.

Não será demasiado insistir neste ponto; a reorganização da indústria sobre bases novas (e logo demonstraremos a imensidade deste problema) não se fará em poucos dias e o proletário não poderá gastar anos de miséria ao serviço dos teóricos do salariado. Para atravessar o período de embaraço ele reclamará o que sempre em igual ocorrência reclamou: porem-se os gêneros em comum, arraçoamento.

Se a pressão do povo não for suficiente, fuzilá-o-ão. Para que o coletivismo possa tentar a experiência, precisará antes de tudo “ordem”, disciplina, obediência. E como os capitalistas cedo perceberão que fazer fuzilar o povo pelos que se intitulam revolucionários é o melhor meio de desgostar da revolução, prestarão certamente o seu apoio aos defensores da “ordem”, mesmo coletivistas. Aí verão um meio de mais tarde os esmagar por seu turno.

Se a “ordem” se restabelece por este modo, as consequências são fáceis de prever. Não se limitarão a fuzilar os “rapinantes”. Deverão buscar os autores da “desordem”, restabelecer os tribunais, a guilhotina: e os revolucionários mais ardentes subirão ao cadafalso. Será uma “reprise” de 1793.

Se “a ordem se restabelecer”, dizemos nós, os coletivistas guilhotinarão os anarquistas, os possibilistas guilhotinarão os coletivistas e eles mesmos serão guilhotinados pelos reacionários. A revolução terá de recomeçar.

Mas tudo leva a crer que o impulso do povo será bastante forte e que, quando a Revolução se fizer, a ideia do Comunismo-anarquista terá ganho terreno. Não é uma ideia inventada, é o povo mesmo que no-la assopra e o número dos comunistas aumentará à medida que se tornar mais evidente a impossibilidade de qualquer outra solução.

E se o impulso for bastante forte, os negócios tomarão outro aspecto. Em vez de saquear algumas padarias, certo de jejuar no dia seguinte, o povo das cidades insurretas, os insurrectos tomarão posse dos celeiros de trigo, dos matadouros, dos armazéns de comestíveis – em suma de todos os gêneros disponíveis. Cidadãos e cidadãs de boa vontade entregar-se-ão logo a inventariar o que se acha em cada armazém, em cada celeiro de abundância. Em vinte e quatro horas a Comuna revoltada saberá o que Paris ainda hoje não sabe, apesar dos seus Comités de estatística, e o que nunca soube durante o cerco – quantas provisões encerra. Em duas vezes vinte e quatro horas ter-se-á tirado em milhões de exemplares quadros exatos de todos os gêneros, lugares onde estão armazenados e os meios de os distribuir. Em cada grupo de casas, em cada rua, em cada bairro ter-se-ão organizado grupos de voluntários – os Voluntários dos Gêneros, que saberão entender-se e conservar-se ao corrente dos seus trabalhos. Que as baionetas não venham interpor-se: que os teóricos pretendidos científicos não venham embrulhar ou antes, que embrulhem quanto queiram contanto que não tenham direito de comandar! E com este com este admirável espírito de organização espontânea que a nação francesa possui em tão alto grau em todas as suas camadas sociais, surgirá, mesmo em plena efervescência revolucionária, um imenso serviço livremente constituído para fornecer os gêneros indispensáveis a cada um.


IV



O povo das grandes cidades será assim levado pela própria força das coisas, a apoderar-se de todos os gêneros, procedendo do simples ao composto, para satisfazer as precisões de todos os habitantes. Mas em que bases poderia fazer-se a organização para gozar os gêneros em comum? É uma pergunta que surge naturalmente.

Pois bem, não há duas maneiras diferentes para o fazer com equidade: há uma só, uma só que corresponda aos sentimentos de justiça e que seja realmente prática. É o sistema já adotado pelas comunas agrárias na Europa.

Tome-se uma comuna de camponeses não importa onde, possuindo, por exemplo, uma mata. Ora, enquanto não falta, cada um tem o direito de gastar “tanta quanto queira”, sem outra fiscalização, além da opinião pública dos seus vizinhos. Quanto à madeira grossa, que nunca é demais, recorre-se à distribuição por meio de rações.

O mesmo quanto aos prados comunais. Enquanto há que chegue para a comuna, ninguém quer saber o que comeram as vacas de cada família nem o número de vacas que pastaram. Não se recorre à partilha ou arraçoamento senão quando os prados são insuficientes. Este sistema pratica-se em toda a Suíça, em muitas comunas da França, na Alemanha, etc.

Se fordes aos países da Europa oriental, onde a madeira grossa se encontra à discrição e onde o terreno não falta, vereis os camponeses cortarem árvores nos bosques segundo as suas precisões, cultivar tanta terra como desejam, sem pensarem em arraçoar a madeira ou em dividir a terra em quinhões. Numa palavra: Tomar a esmo o que se possui em abundância; arraçoamento do que tiver de ser partilhado!

Será preciso entrar em detalhes, fazer tabelas sobre a maneira de fazer funcionar o arraçoamento? Provar que seria infinitamente mais justo do que tudo o que hoje existe? Com essas tabelas e esses detalhes não chegaríamos a convencer os burgueses e os trabalhadores aburguesados, que consideram o povo como um agregado de selvagens, perdendo o ânimo se o governo cessa de funcionar. Mas é preciso nunca ter visto o povo deliberar para crer que, se fosse senhor, ele não o fizesse conforme os mais puros sentimentos de justiça e de equidade.

Ide dizer na mesma reunião, pregai nos quatro cantos duma praça que o alimento mais delicado deve ser reservado para os fracos, para os doentes em primeiro lugar. Dizei que se houvesse dez perdizes em Paris e só uma caixa de Málaga, tudo isso devia ser levado aos quartos dos convalescentes; dizei-o…

Dizei que a criança vem logo após o doente, para ela o leite das vacas e das cabras. Á criança e ao velho o último bocado de carne e ao homem robusto o pão seco, se não há melhor. Dizei isso e vereis como todos vos aplaudem.

Os teóricos, para quem o uniforme e a marmita do soldado são a última palavra da civilização, exigirão sem dúvida que se introduza desde logo a cozinha nacional e a sopa com lentilhas. Invocarão a vantagem de economizar o combustível e os gêneros, estabelecendo cozinhas imensas onde todos viriam buscar a sua ração de caldo, de pão e de legumes.

Não contestamos essas vantagens. Sabemos que a humanidade realizou economias em combustível e em trabalho, renunciando primeiro ao moinho a braço e depois ao forno onde outrora cada um cozia o seu pão. Seria mais econômico fazer o caldo para cem famílias duma vez em lugar de acender cem fornalhas separadas. Sabemos que há mil modos de preparar batatas, mas que cozidas numa panela só para cem famílias não seriam piores.

Compreendemos finalmente que a variedade da cozinha consiste principalmente no caráter individual, do modo de temperar de cada dona de casa; a cozedura em comum dum quintal de batatas impede as donas de casa de as temperar cada uma a seu gosto. E sabemos que com o caldo gordo se podem fazer cem sopas diferentes para satisfazer cem gostos diversos.

Mas afirmamos que ninguém tem o direito de obrigar a dona de casa a tomar no armazém comunal batatas já cozidas, se prefere cozê-las ela mesma na sua marmita e no “seu” fogo.

Hão de surgir, de certo, grandes cozinhas em lugar dos restaurantes onde hoje envenenam a gente. E desde que a cozinha comum deixe de ser um lugar de fraude, de falsificação e de envenenamento, virá o hábito de ir a essas casas para trazer prontas as partes fundamentais da refeição. Mas fazer disso uma lei seria repugnante.

Quem terá direito aos gêneros da Comuna? Responda cada cidade por si, e estamos persuadidos que todas as respostas serão ditas pelo sentimento da justiça. Enquanto os trabalhos não estiverem organizados e se estiver num período de efervescência, e for impossível discernir entre o vagabundo ocioso e o sem trabalho involuntário, os gêneros disponíveis devem ser para todos sem exceção. Os que tiverem resistido com armas, na mão à vitória popular ou conspirado contra ela, terão o cuidado eles mesmos de livrar da sua presença o território insurgido. Mas parece-nos que o povo, sempre magnânimo e inimigo de represálias, repartirá o pão com todos os que tiverem permanecido no seu seio, ou sejam expropriantes ou expropriados. Inspirando-se nesta ideia, a Revolução nada terá perdido; e quando o trabalho tiver continuado, ver-se-ão os combatentes da véspera encontrarem-se no mesmo atelier.

Mas os víveres faltarão no fim dum mês”, exclamam já os críticos.

Tanto melhor, respondemos nós, isso provará que pela primeira vez na vida o proletário terá comido à sua vontade. Quanto aos meios de substituir o que tiver sido consumido, é precisamente a questão que vamos abordar.


V



Com efeito, por que meios pode prover à sua subsistência uma cidade em plena revolução social?

Responderemos a esta pergunta; mas evidentemente os processos a que se recorrer dependerão do caráter da revolução nas províncias, como dentro das nações vizinhas. Se toda a nação, ou ainda melhor toda a Europa, pudesse fazer a revolução social duma vez só, e lançar-se em pleno comunismo, agir-se-ia em consequência. Mas se na Europa somente algumas comunas fazem o ensaio do comunismo, será preciso escolher outros processos. Tal situação, tais meios.

Eis-nos pois levados, antes de ir mais longe, a lançar um golpe de vista sobre a Europa e, sem pretender ser profeta, devemos ver qual seria a marcha da Revolução, ao menos nos seus traços essenciais.

É certo muito a desejar que toda a Europa se subleve ao mesmo tempo, que por toda a parte se exproprie e que por toda a parte se inspirem nos princípios comunistas. Um tal levantamento facilitaria singularmente a tarefa do nosso século.

Mas tudo leva a crer que assim não sucederá. Que a revolução abrace a Europa, não duvidamos. Se uma das quatro grandes capitais do continente – Paris, Viena, Bruxelas ou Berlim – se levanta e derruba o seu governo, é quase certo que as três outras farão o mesmo com intervalo de algumas semanas. É também muito provável que nas penínsulas e mesmo em Londres e Petersburgo a revolução não se fará esperar. Mas o caráter será o mesmo em toda a parte? - Pode-se duvidar.

É mais que provável que haverá por toda a parte atos de expropriação em maior ou menor escala e esses atos praticados por uma grande nação europeia exercerão a sua influência em toas as outras. Mas os inícios da revolução oferecerão grandes diferenças locais e o seu desenvolvimento não será sempre idêntico nos diversos países.

Quanto a tomas em todas as nações europeias um caráter francamente socialista, principalmente no começo, é também duvidoso. Lembremo-nos que a Alemanha está ainda em pleno império unitário e que os seus partidos avançados sonham com a república de 1848 e com “a organização do trabalho” de Louis Blanc, e o povo francês quer pelo menos a Comuna livre, se não poder ser a Comuna comunista.

Sem ligar a estas previsões mais importância do que elas merecem, podemos delas concluir que: A Revolução tomará um caráter diferente nas diversas nações da Europa; o nível atingido relativamente à socialização dos produtos não será o mesmo.

Segue-se daí que as nações mais avançadas devem medir seus passos pelas nações atrasadas, como algumas vezes se disse? Esperar que a revolução comunista tenha amadurecido em todas as nações civilizadas? Não evidentemente! Se o quisessem, seria além disso impossível: a história não espera pelos retardatários.

Por outro lado não acreditamos que num só e mesmo país a revolução se faça com a unanimidade sonhada por alguns socialistas. É provável que se uma das cinco ou seis grandes cidades de França – Paris, Lyon, Marselha, Tille, St. Etienne, Bordeaux – proclama a Comuna, as outras seguirão o seu exemplo e que o mesmo farão as outras cidades menos populosas, como provavelmente várias bacias mineiras e diversos centros industriais, não tardarão a licenciar os seus patrões e constituir-se em agrupamentos livres.


VI



Mas voltemos à nossa cidade de revolta e vejamos em que condições deverá prover à sua sustentação.

Onde tomar os gêneros necessários, se a nação inteira ainda não aceitou o comunismo? Tal é a questão que está posta.

Tomemos uma grande cidade francesa, a capital, se quiserem. Paris consome por ano milhões de quintais de cereais, 350.000 bois e vacas, 200.000 bezerros, 300.000 porcos e mais de dois milhões de carneiros, sem contar os animais abatidos particularmente. Precisa mais oito milhões de quilos de manteiga e 172 milhões de ovos e tudo mais nas mesmas proporções.

As farinhas e os cereais chegam da Rússia, da Hungria, da Itália, do Egito, das Índias e dos Estados Unidos. O gado é trazido da Alemanha, Itália e da Espanha. Quanto à especiaria, não há um país no mundo que não dê a sua contribuição. Vejamos primeiro como se poderiam arranjar para suprir Paris, ou qualquer grande cidade, produtos que se cultivam nos campos franceses e que os agricultores franceses nada demandam melhor do que entregá-los ao consumo.

Para os autoritários a questão não apresenta dificuldade. Começariam por implantar um governo fortemente centralizado, armado com todos os órgãos de coação: polícia, tropas, guilhotina. Esse governo mandaria fazer a estatística de tudo o que se colhe em França; dividiria o país num certo número de zonas de alimentação e “ordenaria” que certos gêneros, em tal quantidade, fossem transportados a tal lugar, entregues tal dia, em tal estação, recebidos tal dia por tal funcionário, armazenados em tal armazém e assim sucessivamente.

Ora bem, nós afirmamos com plena convicção que não só uma tal solução não seria para desejar; mas que por outro lado nunca poderia ser posta em prática. É pura utopia.

Pode-se fantasiar um tal estado de coisas com a pena na mão; mas na prática torna-se materialmente impossível; seria preciso não contar com o espírito de independência da humanidade. Seria a insurreição geral: três ou quatro Vendeas em lugar duma, a guerra das aldeias contra as cidades, a França inteira insurgida contra a cidade que ousasse impor esse regime.

Basta de utopias jacobinas!

Vejamos se se pode organizar a Revolução doutro modo.

Em 1793 o “Campo” reduziu as grandes cidades à fome e matou a revolução. Entretanto está provado que a produção dos cereais em França não tinha diminuído em 1792-93; até tudo leva a crer que tinha aumentado. Mas, depois de tomar posse de boa parte das terras senhoriais, depois de terem feito a colheita nessas terras, os burgueses lavradores não quiseram vender o trigo por vale. Guardaram-no à espera da alta dos preços ou da moeda de ouro. E nem as medidas mais rigorosas dos convencionais para “forçar” os açambarcadores a venderem o trigo nem às execuções venceram a “greve”. Entretanto sabe-se que os comissários da Convenção não se ensaiavam para guilhotinar os açambarcadores, nem o povo para os pendurar nos lampiões; entretanto o trigo ficava nos armazéns e o povo das cidades passava fome.

Mas que ofereciam aos cultivadores dos campos em troca de seus rudes trabalhos? “Assinados!” Farrapos de papel, cujo valor caía todos os dias, bilhetes levando quinhentas libras em caracteres impressos, mas sem valor real. Com um bilhete de mil libras já se não comprava um par de botas; e o camponês – compreende-se – não tinha vontade nenhuma de trocar um ano de trabalho por um bocado de papel com que não podia comprar nem uma blusa.

E enquanto oferecem ao trabalhador da terra um pedaço de papel sem valor – ou se chame “assinado” ou “bond” de trabalho – será a mesma coisa. Os gêneros ficarão no campo: a cidade não os terá, ainda que recorram de novo a guilhotina ou ao afogamento.

O que é preciso oferecer ao camponês não é papel, mas a mercadoria que lhe é imediatamente precisa. É a máquina de que ele se priva agora com desgosto; é o vestuário para se garantir das intempéries; é a lâmpada e o petróleo, que substituem a candeia; a enxada, o ancinho, a charrua; é enfim tudo o que o camponês não pode comprar em vista do seu elevado preço.

Que a cidade fabrique todas essas coisas; em lugar de bugigangas e bijuterias para as mulheres, em vez de esperar que os ingleses no-las mandem em troca de nossos vinhos.

Que a cidade mande às aldeias, em vez de comissários portadores de decretos intimando os lavradores a entregarem os seus produtos, amigos e irmãos, oferecendo-lhes os produtos manufaturados que precisarem e que existirem nos seus armazéns. E então o camponês guardando o que precisa para si, enviará o remanescente aos trabalhadores da cidade, em quem verá “pela primeira vez na história”, irmãos e não exploradores.

Talvez nos digam que isso exige uma transformação completa da indústria. Certamente sim para certos ramos, mas há mil outros que se poderão modificar rapidamente de modo a fornecer aos camponeses o vestuário, o relógio, o mobiliário, os utensílios e as máquinas simples que a cidade lhes pagar tão caro neste momento.

Tecelões, alfaiates, sapateiros, quinquilheiros, marceneiros e muitos outros não acharão dificuldade em deixar a produção de luxo pelo trabalho de utilidade, uma vez convencidos da utilidade desta transformação como um ato de justiça.


VII



Dissemos que todas as grandes cidades compram pão, farinha, carne, não só nos departamentos, mais ainda no exterior. O estrangeiro manda a Paris as especiarias, o peixe e os comestíveis de luxo, quantidades consideráveis de trigo e de carne.

Mas em revolução não se deve contar com o estrangeiro ou contar o menos possível. Se o trigo russo, o arroz da Itália ou das Índias e as vinhas da Espanha ou da Hungria afluem hoje aos mercados da Europa ocidental, não é porque os países expedidores os possuíam em demasia ou que esses produtos aí se criem espontâneos como a chicória nos prados. Na Rússia por exemplo o camponês trabalha até 16 horas por dia e jejua de três a seis meses por ano para exportar o trigo, com que paga ao senhor e ao Estado. Hoje a polícia aparece nas aldeias russas logo que a colheita está feita e vende a última vaca, o último cavalo do agricultor por dívidas atrasadas de impostos e de rendas dos senhores, quando o camponês não se resolve às boas, vendendo o trigo aos exportadores. Assim guarda simplesmente trigo para nove meses, a fim de não ver sua vaca vendida por quinze francos. Para viver até a colheita próxima, três meses quando o ano é bom, seis quando é mau, mistura à sua farinha diversas porcarias, enquanto em Londres saboreiam os biscoitos feitos com a sua farinha.

Mas chegando a revolução, o cultivador russo guardará o pão para si e seus filhos. Os camponeses húngaros e italianos farão o mesmo. O hindu aproveitará os bons exemplos e os trabalhadores de “Bonanza-farms” na América, a menos que esses domínios não estejam já desorganizados pela crise. Portanto será conveniente não contar mais com as entradas de trigo e de milho vindos do exterior.

Sendo toda a nossa civilização burguesa baseada na exploração das raças inferiores, o primeiro benefício da revolução será já ameaçar esta “civilização”, permitindo às raças chamadas inferiores emanciparem-se. Mas este imenso benefício traduzir-se-á por uma diminuição certa e considerável da entrada dos gêneros que afluem às grandes cidades do Ocidente.

Quanto ao interior é mais difícil prevenir a marcha dos negócios. Por um lado o cultivador aproveitará a Revolução para endireitar as costas curvadas sobre a terra. Em lugar de quatorze a dezesseis horas que agora trabalha, terá motivo para não trabalhar senão metade, o que poderá ter como consequência a diminuição da produção dos gêneros principais, trigo e carne.

Mas por outro lado haverá aumento de produção desde que o cultivador deixe de ser obrigado a trabalhar para sustentar os ociosos. Novos tratos de terreno serão desbravados; máquinas mais perfeitas serão empregadas. “Nunca o trabalho foi tão vigoroso como em 1792” quando os trabalhadores retomaram a terra, tão longamente desejada, aos seus senhores – diz Michelet falando da grande Revolução.

Dentro em pouco a cultura intensiva se tornará acessível a todos os trabalhadores, quando a máquina aperfeiçoada e os adubos químicos e outros forem postos ao alcance da comunidade. Mas tudo leva a crer que no começo poderá haver diminuição na produção agrícola em França, assim como noutros lugares.

Em todo caso, o mais acertado seria contar com uma diminuição de entradas, tanto do interior quanto de exterior.

Como suprir esse vácuo?

Por Deus! Tratar cada um de o preencher por si mesmo. Não vale procurar meio dia às 14 horas, quando a solução é simples.

Cumpre que as grandes cidades cultivem a terra, tal qual como fazem os campos; cumpre voltar ao que a biologia chamaria “integração das funções”.

Depois de ter dividido o trabalho, é preciso integrar”: é a marcha seguida em toda a natureza.

Além disso, filosofia à parte – a isso seremos levados pela força das coisas. Que Paris compreenda que ao cabo de oito meses vai encontrar-se sem trigo – e Paris o cultivará.

Terra? Isso não falta. É principalmente em torno das grandes cidades – e sobretudo de Paris, que se agrupam os parques e gramados dos senhores, os milhões de hectares, que não esperam senão o trabalho inteligente do lavrador para rodear Paris de plainos férteis produtivos de diversos modos que as charnecas cobertas de húmus, mas queimadas pelo sol, do meio dia da Rússia.

Braços? Mas em que quereis que se ocupem os dois milhões de parisienses, homens e mulheres, quando não tiverem que vestir e divertir os príncipes russos, os boyardos romanos e as damas da finança de Berlim.

Tendo todos os aperfeiçoamentos modernos, tendo o espírito organizador do povo de Paris, a sua alegria de corações, a sua boa disposição, a agricultura da Comuna anarquista de Paris será muito diversa da dos cavadores da Ardenne.

A terra amadurecida e enriquecida só espera os cuidados inteligentes do homem, e mais ainda da mulher, para se vestir de plantas bem cuidadas, que se renovam três, quatro vezes por ano. Homens, mulheres e crianças sentir-se-iam felizes de se aplicarem a esse trabalho dos campos, que deixará de ser um trabalho forçado, para se tornar um prazer, uma festa, uma renovação do ser humano.

Não há terras estéreis. A terra vale o que vale o homem”. Eis a última palavra do agricultor moderno: é só pedir-lho inteligentemente.







A HABITAÇÃO



I



Há um fato certo: nas grandes cidades de França e em muitas das pequenas os trabalhadores vão chegando pouco a pouco à conclusão que as casas habitadas não são, de modo nenhum, propriedade daqueles que o Estado reconhece como seus proprietários.

É uma evolução que se completa nos espíritos e já ninguém fará o povo crer que o direito de propriedade sobre as casas seja justo.

A casa não foi construída pelo proprietário; foi construída, decorada, atapetada por centenas de trabalhadores que a fome atirou aos andaimes, que a necessidade obrigou a aceitar um trabalho cerceado.

O dinheiro despendido pelo pretendido proprietário não era um produto do seu próprio trabalho. Tinha-o acumulado, como todas as riquezas, pagando aos trabalhadores dois terços ou só metade do que lhes era devido.

Enfim, e é aqui sobretudo que a enormidade salta aos olhos. – A casa deve o seu valor atual ao proveito que o proprietário poder tirar dela. Ora, esse proveito será devido à circunstância que a propriedade está edificada numa cidade calçada, iluminada a gás, sem comunicação regular com outras cidades e reunindo no seu seio estabelecimentos de indústria, de comércio, de ciência, de arte; que está cidade é ornada de pontes, de cais, de monumentos de arquitetura, oferecendo aos habitantes mil confortos e mil agrados desconhecidos nas aldeias; que vinte, trinta gerações tem trabalhado para a tornar habitável, saneá-la e embelezá-la.

O valor duma casa em certos bairros de Paris é um milhão, não que nas suas paredes tenha um milhão de trabalho, mas porque está em Paris; porque desde séculos, os obreiros, os artistas, os pensadores, os sábios e os literatos têm contribuído para fazer Paris o que ela é hoje: um centro industrial, comercial, político, artístico e científico: porque tem um passado; porque as suas ruas são conhecidas graças à literatura, na província como no estrangeiro; porque é produto dum trabalho de dezoito séculos, de cinquenta gerações, de toda a nação francesa.

Quem, pois, tem o direito de se apropriar da mais ínfima parcela desse terreno ou da última das construções, sem cometer uma clamorosa injustiça?

Quem tem o direito de vender, seja a quem for, a menor parcela do patrimônio comum?

Sobre isso, dizemos nós, estabeleceu-se o acordo entre os trabalhadores. A ideia do alojamento gratuito bem se manifestou durante o cerco de Paris, quando se pedia a restituição pura e simples dos vencimentos reclamados pelos proprietários. Manifestou-se também durante a Comuna de 1871, quando Paris obreiro esperava do Conselho da Comuna uma decisão viril sobre a abolição dos aluguéis. Será ainda a primeira preocupação do pobre quando a Revolução tiver rebentado.

Com revolução ou sem ela o trabalhador precisa de um abrigo, dum alojamento, mas mesmo mau, mesmo insalubre, há sempre um proprietário que pode expulsar-vos de lá. É verdade que em revolução ele não achará oficial de justiça para vos pôr os trastes na rua, mas quem sabe se amanhã o novo governo, por mais revolucionário que pretenda ser, não reconstituirá a força e não lançará contra vós a pressão judicial! Já se viu a Comuna adiando os vencimentos até 1 de abril somente! Depois disso seria preciso pagar, mesmo estando Paris silenciosa com a indústria parada e o revolucionário sem outro recurso além dos seus trinta soldos!

Entretanto é preciso que o trabalhador saiba que não pagando ao proprietário não aproveita só duma desorganização do poder, mas que a gratuidade do alojamento está reconhecida em princípios e sancionada, por assim dizer, pelo consenso popular que é um direto altamente proclamado pelo povo.

Ora bem, iremos nós esperar que esta medida correspondendo tão bem ao sentimento de justiça de todo homem honesto, será adotada pelos socialistas que se acharem misturados com os burgueses, num governo provisório? Esperaríamos muito tempo, até à volta da reação! Eis porque os revolucionários sinceros trabalharão com o povo para que a expropriação das casas se torne um fato consumado.

No dia em que a expropriação das casas estiver feita, o explorado e o trabalhador compreenderão que novos tempos são chegados, que não estarão mais, de espinha curvada, diante dos ricos e poderosos, que a igualdade se afirmou à grande luz, que a Revolução é um fato consumado e não um lance de teatro como já demasiado se tem visto.


II



Se a ideia da expropriação se tornar popular, a sua execução não esbarrará de modo algum nos obstáculos invencíveis com que gostam de nos ameaçar.

É certo que os senhores agaloados que tiverem ocupado as cadeiras vagas dos ministérios e do Hotel de Ville não deixarão de acumular obstáculos. Falarão de conceder indenização aos proprietários, de formar estatísticas, de elaborar longos relatórios, - tão longos que poderiam durar até ao momento em que o povo, esmagado pela miséria do desemprego, não vendo vir nada e perdendo a fé na Revolução, deixaria o campo livre aos reacionários e acabaria por se tornar a expropriação burocrática odiosa a todo o mundo.

Há aí, com efeito, um escolho sobre o qual tudo poderia afundar-se. Mas se o povo não der ouvido aos falsos argumentos com que procurarem iludi-lo; se compreender que vida nova requer processos novos, e se ele mesmo tomar a tarefa, nas suas mãos, então a expropriação poderá fazer-se sem grandes dificuldades.

Mas como? Como poderá fazer-se?”, perguntar-nos-ão. Vamos dizê-lo, mas com uma reserva. Repugna-nos traçar nos seus menores detalhes planos de expropriação. Sabemos antecipadamente que tudo o que um homem ou um grupo podem sugerir hoje, será excedido pela vida humana.

Assim, esboçando o método segundo o qual a expropriação e a repartição das riquezas expropriadas “poderia” fazer-se sem a intervenção do governo, não queremos senão responder aos que declaram a coisa impossível. Mas queremos lembrar que de nenhum modo pretendemos preconizar tal ou tal maneira de se organizar. O que somente nos importa é demonstrar que a expropriação “pode” fazer-se pela iniciativa popular e “não pode” fazer-se doutro modo.

É de prever que desde os primeiros atos de a expropriação surgirão no bairro, na rua ou agregado de casas, grupos de cidadãos de boa vontade, que virão oferecer os seus serviços, para se informarem do número de apartamentos vazios, dos apartamentos atulhados de famílias numerosas, dos alojamentos insalubres e das casas que, demasiado espaçosas para os seus ocupantes, poderiam ser ocupadas por aqueles que não tem ar nas suas mansardas. Em alguns dias esses voluntários espalharão pela rua, pelo bairro, listas completas de todos os apartamentos, salubres e insalubres, estreitos e largos, alojamentos infectos e moradas suntuosas.

Comunicarão livremente entre si e as suas listas e em poucos dias terão estatísticas completas. A estatística mentirosa pode-se fabricar em repartições, a estatística verdadeira, exata, não pode vir senão do indivíduo, subindo do simples ao composto.

Então, sem esperar coisa alguma de ninguém, esses cidadãos irão provavelmente encontrar os seus camaradas que habitam espeluncas e lhes dirão mui simplesmente: “Desta vez, camaradas, é a revolução a valer. Venham esta tarde a tal sítio. Todo o bairro lá estará, repartiremos os apartamentos de cinco divisões que estão devolutos. E logo que estiverdes ‘em casa’, será negócio feito. O povo armado responderá a quem quiser desolar-nos”.

Dirão: “Mas todos hão de querer um apartamento de vinte divisões!”.

Pois bem, não, não é verdade! O povo nunca quis abraçar o céu com as mãos ambas. Pelo contrário, cada vez que vemos iguais tendo uma injustiça a reparar, somos levados a admirar o bom senso e a justiça que animam a coletividade. Viu-se alguma vez reclamar o impossível? Alguém viu o povo de Paris brigar quando ia buscar a sua ração de pão ou de lenha durante os dois cercos?

Há certamente bastantes instintos egoístas nos indivíduos isolados das nossas sociedades, bem o sabemos, mas também sabemos que o melhor meio de despertar e de alimentar esses instintos seria confiar a questão dos alojamentos a uma repartição qualquer. A menor desigualdade faria soltar altos gritos; a menor vantagem dada a alguém faria protestos veementes.

Mas quando o próprio povo reunido por bairros, quarteirões e ruas se encarregue de acomodar os habitantes das choças nos apartamentos demasiado espaçosos dos burgueses, os pequenos inconvenientes, as pequenas desigualdades serão ligeiramente compensadas. Apesar de tudo haverá provavelmente injustiças impossíveis de evitar. Há indivíduos nas nossas sociedades que nenhum grande acontecimento fará sair da sua rotina egoísta. Mas a questão não é de saber se haverá injustiças ou não, mas sim de saber como se poderá limitar o seu número. Pois bem, toda a história, toda a experiência da humanidade, assim como a psicologia das sociedades atestam que o meio mais equitativo é entregar a questão aos interessados.


III



Além disso, não se trataria de modo algum de fazer uma partilha absolutamente igual dos alojamentos, mas os inconvenientes que certas famílias teriam ainda de suportar seriam facilmente reparados numa sociedade em via de expropriação.

Contanto que os pedreiros, os canteiros – de “edificação” em uma palavra – saibam que tem a sua existência assegurada, eles não pedirão mais do que retomar por algumas horas por dia o trabalho a que estão habituados. Eles aceitarão doutro modo os grandes apartamentos que exigiriam um estado-maior de criados. E dentro de alguns meses, terão surgido casas mais salubres do que as atuais. A Comuna anarquista poderá dizer: “Esperem com paciência, camaradas. Palácios salubres, confortáveis e belos, superiores aos que eram edificados pelos capitalistas vão levantar-se sobre o solo da cidade livre e serão de quem precisar mais deles”.

A expropriação das casas traz consigo, em germe, toda a revolução social. De como se fizer dependerá o caráter dos acontecimentos. Ou abrimos um caminho ao comunismo anarquista ou ficaremos a patinar na lama do individualismo autoritário.

É fácil prever as objeções que nos vão fazer: “Não é infame, exclamarão, que os parisienses se apoderem para si das belas casas e deixarem as cabanas aos camponeses?” Esses partidários acérrimos da justiça esquecem a clamorosa desigualdade de que se fazem defensores. Esquecem que mesmo em Paris o trabalhador sufoca numa pocilga com sua mulher e filhos, enquanto da sua janela está a ver o palácio do rico. Esquecem que as gerações inteiras morrem em bairros entupidos, sem ar nem sol.

Não nos demoremos nessas reclamações interesseiras. Sabemos que a desigualdade que realmente existe ainda entre Paris e a aldeia é daquelas que diminuem todos os dias; a aldeia não deixará de ter alojamentos mais salubres que os de hoje, quando o camponês tiver deixado de ser besta de carga do fazendeiro, do fabricante, do usuário e do Estado.

As objeções que se dizem práticas também não são mais fortes.

Dizem-nos “aí está um pobre-diabo, que à força de privações chegou a comprar uma casa bastante grande para alojar a sua família. Aí ele é tão feliz! Também o atirais à rua?”.

De certo que não! Se a sua casa chega apenas para alojar a sua família, que a habite, por Deus! Que cultivem o jardim debaixo das suas janelas! Os nossos rapazes, se for preciso, até lhe darão uma ajuda. Mas se tem na sua casa um apartamento que aluga a um terceiro, o povo irá ter com esse terceiro e dir-lhe-á “Sabe, camarada, que não deve mais nada ao velho? Deixe-se estar no seu apartamento e não pague mais nada, desde agora não tenha medo do oficial de justiça, é Social!”.

E se o proprietário ocupa só por si vinte quartos e há no bairro uma mãe com cinco filhos, alojados num quarto só, então o povo irá ver se dos vinte quartos não há alguns que, mediante algumas reparações, poderiam fazer um bom alojamentozinho para essa mãe de cinco filhos. Não será isto mais justo do que deixar a mãe e os cinco pequenos jazer no cubículo e o senhor a engordar no castelo? Demais o senhor acostumar-se-á bem depressa a isso; quando lhe faltarem as criadas para arrumarem os vinte quartos, sua burguesia ficará encantada por se desembaraçar do seu apartamento.

Mas será uma desordem completa”, vão exclamar os defensores da “ordem”. “Serão mudanças que não terão fim! Seria melhor por toda a gente na rua e tirar os apartamentos à sorte!”.

Pois bem, estamos convencidos que se nenhuma espécie de governo se metesse nisso e toda a transformação fosse confiada às mãos dos grupos surgidos espontaneamente para este serviço, as mudanças seriam menos numerosas do que as que se fazem em um ano em consequência da rapacidade dos proprietários.

Há em todas as cidades consideráveis tão grande número de apartamentos vagos que quase chegariam para alojar a maior parte dos habitantes dos cubículos. Quanto aos palácios e aos apartamentos suntuosos, muitas famílias obreiras nem mesmo os quereriam: não se podem aproveitar senão com uma numerosa criadagem. Assim os seus ocupantes ver-se-iam, em breve, obrigados a procurar habitações menos luxuosas, ou as senhoras banqueiras teriam elas mesmas de fazer a comida.

Assim, pouco a pouco, sem desordem nem espalhafato, a população se repartiria amigavelmente nos alojamentos existentes.

Demais toda a revolução implica um certo desarranjo da vida cotidiana e os que esperam atravessar uma grande crise sem que sua burguesia seja estorvada nas suas comodidades, arriscam-se a um desapontamento. Pode-se mudar de governo sem que jamais ao bom burguês falte a hora do seu jantar, mas não se reparam assim os crimes duma sociedade contra os que a sustentam.

O povo pode cometer erros sobre erros, quando se trata de escolher os seus representantes, mas tratando-se de organizar o que ele conhece e lhe toca diretamente, faz melhor serviço que todas as secretarias possíveis.







O VESTUÁRIO



I



Se as casas são consideradas como patrimônio comum da cidade e se se procede ao arraçoamento dos gêneros, se é obrigado a dar um passo mais além. Temos necessariamente de considerar a questão do vestuário; e a única solução possível será ainda tomar posse, em nome do povo, de todo os armazéns de roupas e de abrir as suas portas a todos, a fim de cada um tomar o que lhe é preciso. Por em comum os vestuários e o direito para cada um adquirir nos armazéns comuns o que precisam ou pedi-lo aos atelieres de confecção é uma solução que se impõe, desde que o princípio comunista houver sido aplicado às casas e aos produtos.

É claro que não despojaremos todos os cidadãos dos seus paletós, de pôr todas as roupas num monte para as atirar à sorte, como dizem os nossos críticos. Cada um guardará o seu paletó se tem um e mesmo que tenha dez, é muito provável que ninguém pretenda tirar-lhos. Preferirão um fato novo aqueles que o burguês terá já ostentado no seu corpo e há de haver bastantes roupas novas para não requisitar os velhos guarda-roupas.

Se fizermos a estatística dos vestuários acumulados nos armazéns das grandes cidades, veremos provavelmente que em Paris, Lyon, Bordeaux, e Marselha se encontram bastantes para que a Comuna possa oferecer um vestuário a cada cidadão e a cada cidadã. Além disso, se todo o mundo deixasse de os achar a seu gosto, os atelieres comunais depressa preencheriam as lacunas. Sabe-se com que rapidez trabalham hoje os nossos atelieres de confecção providos de máquinas aperfeiçoadas e organizadas para produzirem em larga escala.

– “Mas todo o mundo há de querer uma pelica em zibelina e cada mulher pedirá um vestido de veludo!” exclamarão os nossos adversários.

Francamente não acreditamos.

Nem todo mundo prefere o veludo ou sonha numa pelica de zibelina. Se hoje mesmo propusessem às parisienses escolher cada um seu vestido, haveria muito quem preferisse um vestido simples a todos os enfeites fantasistas das nossas mundanas.

Os gostos variam como as épocas e aquele que estiver de cima no momento da revolução será certamente um gosto de simplicidade. A sociedade, como os indivíduos, tem as suas horas de cobardia, mas também tem seus minutos de heroísmo. Por miserável que seja quando se rebaixa, como agora, em busca de interesses mesquinhos e estupidamente pessoais, ela tem seus momentos de nobreza. Os homens de coração adquirirem o ascendente que hoje é próprio de gente interesseira. As dedicações demonstram-se, os grandes exemplos são imitados; só os egoístas sentem-se envergonhados de ficar para trás e, de boa má vontade, apressam-se em fazer coro com os generosos e os valentes.

Não queremos exagerar o papel destas belas paixões e não é sobre elas que fundamos o nosso ideal de sociedade. Mas não exageremos se admitimos que nos ajudarão a atravessar os primeiros momentos, os mais difíceis. Não podemos contar com a continuidade destas devotações na vida cotidiana; mas podemos esperá-las nos ocorrentes,  e é quando é preciso. É precisamente no momento em que se precisa desbravar o terreno, limpar a imundice acumulada em séculos de opressão e de escravatura que a sociedade anarquista terá necessidades desses lances de fraternidade.

Além disso, se a revolução se fizer no sentido de que falamos, a livre iniciativa achará um vasto campo de ação para evitar as investidas dos egoístas. Em cada rua, em cada quarteirão poderão surgir grupos de se encarregarem de prover ao vestuário. Farão o inventário do que possui a cidade revoltada e conhecerão muito aproximadamente que recursos possui neste gênero.

Não podendo oferecer a cada cidadão uma pelica em zibelina e a cada cidadã um vestido de veludo, a sociedade distinguirá provavelmente entre o supérfluo e o necessário.

Mas dirão; “é o nivelamento! O hábito cinzento do frade! É o desaparecimento de todos os objetos de arte, de tudo o que embeleza a vida!”.

Não, certamente, e baseando-nos sobre o que há existe, vamos já demonstrar como uma sociedade anarquista poderia satisfazer os gostos mais artísticos dos seus cidadãos sem por isso lhes conceder fortunas de milionários.






AS VIAS E OS MEIOS



I



Que uma sociedade, cidade ou território assegure a todos os seus habitantes o necessário (e nós vamos ver como a concepção do necessário poderá apoderar-se de tudo que é indispensável para produzir, isto é, da terra, das máquinas, das oficinas, dos meios de transporte, etc). Não deixará de expropriar os detentores atuais do capital para o entregar à comunidade.

Com efeito, o que se lança em rosto à organização burguesa não é só o capitalista açambarcar uma grande parte dos benefícios de cada empresa industrial e comercial, permitindo-lhe que viva sem trabalhar; a principal queixa, como já notamos, é que toda a produção tomou uma direção absolutamente falsa, visto que não se faz no intuito de assegurar o bem-estar de todos; está nisso a sua condenação.

Tirando proveito da revolução operada na indústria pelo vapor, o desenvolvimento súbito da química e da mecânica e nas invenções do século, o capitalismo aplicou-se, no seu próprio interesse, a aumentar o rendimento do trabalho humano e conseguiu-o numa muito grande medida. Mas dar-lhe outra missão seria desarrazoado.

Agora compete à sociedade generalizar esta produtividade superior, limitada hoje a certas indústrias, e aplicá-las no interesse de todos. Mas é evidente que para garantir a todos o bem-estar, a sociedade deve retomar posse de todos os meios de produção.

Os economistas nos lembrarão sem dúvida, – e gostam de o lembrar – o bem-estar relativo de uma certa categoria de jovens obreiros, robustos, hábeis em certos ramos especiais da indústria. É sempre esta minoria que nós apontamos com orgulho. Mas mesmo esse bem-estar, de alguns, estar-lhes assegurado? Amanhã, a incúria, a imprevidência ou a avidez de seus patrões pode atirar estes privilegiados à rua e estes pagarão então com meses ou anos de mal-estar ou de miséria o período de bem-estar de que tinham gozado. Que de indústrias maiores (estojos, ferro, açúcar etc.) sem falar das indústrias efêmeras, não temos nós visto estacionar e desfalecer, ora em resultado de especulações, ora em consequência dos deslocamentos naturais do trabalho, ora finalmente por efeito da concorrência, suscitada pelos próprios capitalistas! Todas as indústrias principais da tecelagem e da mecânica passaram recentemente por esta crise, que dizer então daquelas, cujo caráter distintivo é da periodicidade da falta de trabalho!

Que dizer ainda do preço que custa o bem-estar relativo de algumas categorias de obreiros? Porque é bem pela ruína da agricultura, pela exploração descarada do camponês e pela miséria das massas que se obtém. Em face dessa franca minoria de trabalhadores gozando dum certo bem-estar, quantos milhões de seres humanos vivem dia a dia sem salário certo, prontos a dirigir-se onde os chamarem; quantos camponeses trabalham quatorze horas por dia por uma pitança medíocre! O capital despovoa o campo, explora as colônias e os países onde a indústria está pouco desenvolvida; condena a imensa maioria dos obreiros a ficarem sem educação técnica, medíocres mesmo no seu ofício. O estado florescente duma indústria compra-se constantemente pela ruína de dez outras.

E não é um acidente; é uma necessidade do regime capitalista. Para estar no caso de retribuir algumas categorias de obreiros, é preciso que o camponês seja a besta de carga da sociedade; é preciso que o campo fique deserto em favor da cidade; é preciso que os pequenos se aglomerem nos arrabaldes infectos das grandes cidades e fabriquem quase por nada os mil objetos de pequeno valor que põem os produtos da grande manufatura ao alcance dos compradores de salário medíocre: para que o pano ruim possa gastar-se vestindo trabalhadores pagos pobremente, é preciso que o alfaiate se contente com um salário de matar fome. É preciso que os países atrasados do Oriente sejam explorados pelos do Ocidente, para que, em certas indústrias privilegiadas o trabalhador tenha, sob o regime capitalista, uma espécie de bem-estar limitado.

O mal da atual organização não está, pois, em que o lucro da produção passe ao capitalista, como tinham dito Rodbertus e Marx estreitando assim a concepção social e as vistas de conjunto sobre o regime do capital. O lucro não é mesmo senão uma consequência de causas mais profundas. O mal está em que pode haver um lucro qualquer em lugar dum simples excesso não consumido por cada geração. Para haver lucro é preciso que homens, mulheres e crianças sejam obrigados pela fome a vender as suas forças de trabalho por uma parte mínima do que essas forças produzem e, sobretudo, do que são capazes de produzir.

Em quanto o homem for obrigado a pagar um tributo ao detentor para ter o direito de cultivar o solo ou de pôr uma máquina em movimento, e o proprietário for livre de produzir o que lhe prometer maiores lucros ante que a maior soma dos objetos necessários à existência, o bem-estar não poderá ser assegurado senão temporariamente ao pequeno número, e será comprado de cada vez pela miséria duma parte da sociedade. Com efeito não basta distribuir em partes iguais os benefícios que uma indústria consegue realizar, se se tem ao mesmo tempo de explorar milhares de obreiros. Trata-se de produzir, com a menor perda possível de força humana, a maior soma possível dos produtos mais necessários ao bem-estar de todos.

Esta vista em conjunto não poderia ser do domínio dum proprietário particular. E é por isso que toda a sociedade, tomando-a como ideal, será levada a expropriar tudo o que serve para proporcionar o bem-estar produzindo as riquezas. Será preciso apoderar-se da terra, das oficinas, das minas, dos meios de comunicação, etc., e além disso, que estude o que é preciso para produzir no interesse todos, assim como as vias e meios de produção.


II



Quantas horas de trabalho por dia deverá o homem fornecer para assegurar à sua família um sustento confortável, uma casa conveniente e o vestuário indispensável? Esta pergunta tem muitas vezes preocupado os socialistas, e eles admitem geralmente que bastariam quatro a cinco horas por dia, contanto, bem entendido, que toda a gente trabalhasse. No fim do século passado, Benjamin Franklin ficava-se no limite de cinco horas! E se as necessidades de conforto aumentaram depois, também a força de produção aumentou mais rapidamente.

Num outro capítulo, falando da agricultura, veremos tudo o que a terra pode dar ao homem que a cultivar razoavelmente, em lugar de atirar a semente ao acaso num solo mal lavrado, conforme se pratica hoje. Nas grandes fazendas do Oeste americano, que cobrem dezenas de léguas quadradas, mas cujo terrenos é muito mais pobre do que o solo beneficiado dos países civilizados, obtém-se apenas 12 a 18 hectolitros por hectare, isto é, metade do rendimento das fazendas dos Estados do Leste americano. E entretanto, graças as máquinas, que permitem a dois homens lavrar num dia dois hectares e meio, cem homens produzem num ano o bastante para entregar em domicílio o pão de dez mil pessoas durante um ano inteiro.

Bastaria assim que um homem trabalhasse nas mesmas condições durante trinta horas, ou seis meios dias de cinco horas cada um, para ter pão todo o ano, – e trinta meios dias para assegurar uma família de cinco pessoas.

E provaremos também com dados tomados na prática atual, que se se tivesse recorrido à cultura intensiva, menos de sessenta meios dias de trabalho poderiam assegurar a toda a família o pão, a carne, os legumes e até as frutas de luxo.

Por outro lado, estudando o preço que custam hoje as casas operárias, edificadas nas grandes cidades, pode-se afirmar que para ter uma casinha separada, como se edificam para os operários, bastariam de 1.400 a 1.800 dias de trabalho de cinco horas. E como uma casa deste gênero dura cinquenta anos pelo menos, resulta que 28 a 36 meios dias por ano, proporcionam à família um alojamento salubre, bastante elegante e provido de todo o conforto necessário, ao passo que alugando o mesmo alojamento com um patrão, o obreiro paga-a por 75 a 100 dias de trabalho por ano.

Note-se que essas cifras representam o máximo do que custa hoje a habitação na Inglaterra, dada a organização viciosa das nossas sociedades. Na Bélgica tem-se edificado cidades obreiras bem mais baratas. Tudo bem considerado pode-se afirmar que numa sociedade bem organizada, uns trinta ou quarenta meios dias de trabalho por ano bastam para garantir um alojamento absolutamente confortável.

Resta o vestuário. Aqui o cálculo é quase impossível, porque os lucros realizados sobre o preço de venda por uma nuvem de intermediários escapam à apreciação. Tome-se como exemplo o pano e adicionem-se todos os descontos feitos pelo proprietário do pasto, pelo dono dos carneiros, pelo mercador de lã e todos os seus intermediários até as companhias de estrada de ferro, dos fiadeiros e tecelões, mercadores de confecção, vendedores e comissários e tudo o que se paga por uma roupa tem sobre si uma nuvem de burgueses. Por isso é absolutamente impossível dizer quantos dias de trabalho representa um sobretudo que pagais por cem francos num grande armazém de Paris.

O que é certo é que com as máquinas atuais chegam-se a fabricar quantidades verdadeiramente incríveis de tecidos.

Bastarão alguns exemplos. Nos Estados Unidos em 7551 manufaturas de algodão (fios e tecidos), 157.000 obreiros e obreiras produzem um milhar, 939 milhões, 400.000 metros de obra de algodão e mais uma grande quantidade de linhas. Admitindo que uma família gaste 200 metros por ano, o que seria muito, equivaleria a cinquenta horas de trabalho ou dez meios dias a cinco horas cada um. E ainda teria as linhas a mais, isto é, fio para coser e fio para tramar o pano e fabricar estofos de lã misturada com algodão.

Quanto aos resultados obtidos pela tecelagem só, a estatística oficial dos Estados Unidos ensina que se em 1870 um obreiro, trabalhando 13 a 14 horas por dia fazia 9500 metros de pano de algodão branco por ano, treze anos mais tarde (1883) fazia 27.000 metros trabalhando apenas 55 horas por semana. Mesmo nos tecidos estampados obtinha-se, compreendendo tecelagem e impressão, 29.150 metros em 2669 horas de trabalho por ano, ou pouco mais ou menos 11 metros por hora. Assim, para ter os seus 200 metros, bastaria trabalhar menos de vinte horas por ano.

É bom fazer notar que a matéria-prima chega a estas manufaturas quase como vem dos campos e que a série de transformações por que passa antes de se mudar em estofo é executada no lapso de vinte horas. Mas para “comprar” esses 200 metros no comércio, o obreiro bem retribuído deveria fornecer, “pelo baixo”, 10 a 15 dias de trabalho a dez horas cada um, isto é, 100 a 150 horas. E quanto ao camponês inglês, teria de penar um mês ou pouco mais, para se dar esse luxo.

Está-se vendo por este exemplo que os cinquenta meios dias de trabalho por ano se poderia numa sociedade bem organizada vestir melhor que os pequenos burgueses se vestem hoje.

Mas com tudo isto não nos foi preciso senão sessenta meios dias de cinco horas de trabalho para obter os produtos da terra, quarenta para habitação e cinquenta para vestuário, o que ainda não perfaz a metade do ano, pois que, deduzindo as festas, o ano representa trezentos dias de trabalho. Restam ainda cento e cinquenta meios dias úteis, que se podem aproveitar para as outras necessidades da vida: vinho, açúcar, café ou chá, móveis, transportes etc. etc.

Mas se contarmos nas nações policiadas os que nada produzem, constataremos que o número de produtores propriamente ditos poderia ser o duplo. E se em lugar de cada dez pessoas, vinte se ocupassem na produção do necessário, essas vinte não teriam que trabalhar mais cinco horas por sai sem diminuir a produção. E bastaria reduzir a perda de forças humanas ao serviço das famílias ricas e da administração, que conta um funcionário por cada dez habitantes e utilizar essas forças em aumentar a produtividade da nação, para reduzir a quatro e mesmo três horas de trabalho, querendo contentar-se com a produção atual.

Em conclusão: suponhamos uma sociedade de vários milhões de habitantes metidos na agricultura e numa grande variedade de indústrias; que nesta sociedade todas as crianças aprendem a trabalhar com os braços tanto como o cérebro. Admitamos enfim que todos os adultos menos as mulheres ocupadas na educação das crianças se obrigam a trabalhar cinco horas por dia, dos vinte ou vinte e dois anos até os quarenta e cinco ou cinquenta e que se empregam em ocupações à sua escolha em qualquer dos ramos do trabalho humano considerado “necessário”. Uma tal sociedade poderia em troca garantir o bem-estar de todos os seus membros, - isto é, um bem-estar diversamente real do que hoje goza a burguesia. – E cada trabalhador dessa sociedade disporia por outro lado pelo menos de cinco horas diárias, que poderia consagrar à ciência, à arte e necessidades individuais fora da categoria do “necessário”, podendo incluir mais tarde nesta categoria, quando a produtividade do homem aumentasse, tudo o que ainda hoje é considerado luxuoso ou inacessível.







AS NECESSIDADES DO LUXO



I



Entretanto o homem não é um ser que possa viver exclusivamente para comer, beber e procurar um abrigo. Desde que tenha satisfeito as exigências materiais, as necessidades a que se possa atribuir um caráter artístico se apresentarão tanto mais artísticas e ardentes. Tantos indivíduos, tantos desejos; quanto mais civilizada for a sociedade, mais a individualidade for desenvolvida, mais esses desejos serão variados.

Mesmo hoje veem-se homens e mulheres privarem-se do necessário para adquirir tal bagatela, para obter tal prazer, certo gozo intelectual ou material. São precisamente estas bagatelas que rompem a monotonia da vida, que a fazem agradável. Valeria a pena viver-se com todos os seus pesares inevitáveis se nunca, fora do trabalho cotidiano, o homem pudesse obter um único prazer conforme os seus gostos individuais?

Se nós desejamos a revolução social, é certamente, em primeiro lugar para assegurar o pão a todos, para metamorfosear esta sociedade execrável, onde cada dia vemos trabalhadores robustos andarem com as mãos abanando por não terem um patrão que os queira explorar; mulheres e crianças vaguearem de noite sem abrigo; famílias inteiras reduzidas a pão seco, crianças, homens e mulheres morrerem por falta de cuidados, se não de alimento. É para por termo a estas iniquidades que nos revoltamos.

Mas nós esperamos da Revolução outra coisa. Vemos o trabalhador, obrigado a lutar penosamente pela vida, está reduzido a nunca conhecer esses altos gozos – os mais altos que sejam acessíveis ao homem – da ciência e, sobretudo, da descoberta científica, da arte e principalmente da criação artística. É para lhe deixar o tempo, a possibilidade de desenvolver as suas capacidades intelectuais que a Revolução deve garantir a cada um o pão cotidiano.

Certamente hoje, que centenas de milhares carecem de pão, de carvão, de roupa e de abrigo, o luxo é um crime: para satisfazer é necessário que o filho do trabalhador esteja sem pão. Mas numa sociedade que todos comam conforme precisarem, as necessidades do que hoje chamamos luxo serão mais vivas. E como os homens não são iguais, sempre haverá, e é preciso que haja, homens e mulheres cujas necessidades estejam acima da média numa qualquer direção.

Nem toda a gente precisa dum telescópio; há pessoas que preferem os estudos microscópicos ao das estrelas. Uns gostam de estátuas e outros das telas dos mestres. Há quem deseje um piano, enquanto outros se contentam com um berimbau. O camponês adorna o seu quarto com uma imagem d’Espinal e se o seu gosto se desenvolvesse quereria ter uma bela gravura. Acusa-se de ordinário as nossas sociedades comunistas ideias de terem por único objetivo a vida material de cada indivíduo: “Tereis talvez o pão para todos, nos dizem, mas não tereis nos vossos armazéns comunais belas pinturas, instrumentos de ótica, móveis de luxo, ornatos em suma, essas mil coisas que servem para satisfazer a infinita variedade dos gostos humanos. – E por isso mesmo suprimis toda a possibilidade de se obter seja o que for fora do pão e da carne que a Comuna pode oferecer a todos, e do pano cinzento com que ides vestir todas as vossas cidadãs”.


II



Confessamos francamente que quando pensamos nos abismos de miséria e de sofrimento que nos cercam; quando ouvimos os estribilhos desgarradores dos obreiros que percorrem as ruas pedindo trabalho, repugna-nos discutir esta
questão: “Como se fará em uma sociedade em que todos comam até saciar-se, para satisfazer tal pessoa que deseja uma louça de Sevres ou um vestido de veludo?”

Por única resposta somos tentados a dizer:

Angariemos primeiro o pão. Quanto à porcelana e ao veludo, mais tarde o veremos!”

Mas, porque, além do pão, o homem tem outras precisões; e porque a força da Anarquia está precisamente em que ela compreenda “todas” as paixões e não ignora nenhuma, vamos dizer em poucas palavras como ele se poderia arranjar para satisfazer as necessidades intelectuais e artísticas do homem.

Trabalhando cinco ou quatro horas por dia até a idade de 45 ou 50 anos, dissemos, o homem poderia facilmente produzir “tudo” o que é necessário para garantir cabalmente o bem-estar.

Mas o dia do homem habituado ao trabalho e ligado a uma máquina não é de cinco horas; é de dez horas, trezentos dias por ano e por toda a sua vida. Assim gasta-se a saúde e esgota-se a inteligência.

Assim quando se podem variar as ocupações e sobre tudo alternar o labor manual com o trabalho intelectual, fica-se ocupado voluntariamente, sem fadiga, dez ou doze horas. É normal. O homem que tiver feito quatro ou cinco horas de trabalho manual necessário para viver, terá ainda diante de si cinco ou seis horas, que procurará preencher segundo o seu gosto. E essas horas lhe darão plena possibilidade de obter, associando-se a outros, tudo o que quiser fora do necessário garantido a todos.

Primeiro desempenhar-se-á, nos campos, ou nas oficinas, do trabalho que dever à sociedade pela sua parte de contribuição à produção geral e empregará a outra metade do seu dia, da sua semana ou do seu ano na satisfação dos seus gostos artísticos ou científicos.

Correspondendo a todos os gostos e a todas as fantasias possíveis, nascerão mil sociedades.

Uns, por exemplo, poderão dar as suas horas de lazer à literatura. Formar-se-ão em grupos, compreendendo escritores, compositores, impressores, gravadores e desenhadores, todos perseguindo um fim comum: a propagação das ideias que lhe são caras.

Hoje o escritor sabe que há uma besta de carga, o obreiro, a quem pode confiar, a troco de três ou quatro francos por dia, a impressão dos seus livros, mas cuida muito pouco de saber o que é a imprensa. Se o compositor se envenena com o pó do chumbo, e se o menor que serve a máquina morre de anemia – outros míseros aparecerão que o substituam.
Mas quando deixar de haver famintos prontos a vender os braços por uma magra pitança e quando o explorador de ontem tiver recebido instrução e tiver as suas ideias a gravar no papel e a comunicar aos outros, forçoso será aos literatos e aos sábios associar-se entre si para imprimirem a sua prosa e os seus versos.

Enquanto o escritor considerar a blusa e o trabalho manual como indício de inferioridade, parecer-lhe-á estupefaciente ver um autor compor ele mesmo o seu livro em caracteres de chumbo. Não tem a sala de ginástica ou o dominó para se distrair? Mas quando o opróbrio que ligam ao trabalho tiver desaparecido; quando todos forem obrigados a servir-se dos braços , não tendo mais sobre quem descarregar, oh, então os escritores, assim como seus admiradores e admiradoras, aprenderão depressa a arte de manejar o componedor; compreenderão o gozo de virem todos juntos – todos os apreciadores da obra que se imprime – compô-la e vê-la sair, bela da sua pureza virginal, duma máquina rotativa.

Perderá a literatura alguma coisa com isso? O poeta será menos poeta depois de ter trabalhado nos campos? Ou colaborado com as suas mãos a multiplicar a sua obra? O romancista perderá do seu conhecimento do coração humano depois de ter acotovelado o homem na oficina, na mata, no traçado duma estrada ou atelier? Propor estas perguntas é responder-lhes.

Certos livros serão talvez menos volumosos, mas imprimir-se-ão menos páginas para dizer mais.

Talvez se publiquem menos nomenclatura, mas o que se imprime será mais bem lido, mais bem apreciado. O livro dirigir-se-á a um círculo mais vasto de leitores, mais instruídos, mais aptos para julgá-lo.

De mais, a arte de imprimir, que tem progredido tão pouco depois de Guttemberg, está ainda na infância. Precisa-se ainda duas horas para compor em letras móveis o que se escreve em dez minutos e procuram-se processos mais expeditos de multiplicar o pensamento, Hão de se achar.


III



É por ventura um sonho conceber uma sociedade onde, sendo todos produtores, recebendo todos uma instrução que lhe permita cultivar as ciências ou as artes, e tendo todos vagar de o fazer, se associem entre si para publicarem seus trabalhos suportando a sua parte do trabalho manual?

Neste momento já se contam por milhares e milhares as sociedades sábias, literárias e outras. Entretanto estas sociedades são agrupamentos voluntários, entre gente que se interessa por determinado ramo do saber, associada para publicar os seus trabalhos. Os autores que trabalham nas descobertas científicas não são pagos. As descobertas não se vendem; eles enviam-nas gratuitamente, em todos os cantos do globo, a outras sociedades que cultivam os mesmos ramos do saber. Certos membros da sociedade inserem uma nota duma página, reunindo certa observação, outros publicam trabalhos extensos, frutos de longos anos de estudo; enquanto outros se limitam a consultá-los como pontos de partida de novas investigações. São verdadeiramente associações entre autores e leitores para a produção de trabalhosa que todos ligam interesse.

É verdade que a sociedade sábia, tal qual como o diário dum banqueiro – dirigi-se ao editor, que contrata obreiros para fazerem o trabalho da impressão. Gente que exerce profissões liberais “despreza” o trabalho manual que, com efeito, se efetua hoje em condições embrutecedoras. Mas uma sociedade, que dispensa a cada um dos seus membros a instrução larga, filosófica e “científica”, saberá organizar o trabalho corporal de modo a fazer o orgulho da humanidade; e a sociedade sábia tornar-se-á uma associação de investigadores, de amadores, e de obreiros, conhecendo todos um ofício doméstico e interessando-se todos pela ciência.

Se por exemplo se ocupam de geologia, todos contribuirão a explorar as camadas terrestres, todos darão a sua parte das investigações. Dez mil observadores em vez de cem farão mais num ano do que hoje fazem cem em vinte anos nos nossos dias. E quando se tratar de publicar os diversos trabalhos, dez mil homens e mulheres versados nos diferentes ofícios, lá estarão para levantar as cartas, gravar os desenhos, compor e imprimir o texto. Alegremente, todos juntos darão os seus vagares, no verão à exploração, no inverno ao trabalho no atelier. E quando os seus trabalhos tiverem aparecido, não acharão só cem leitores: acharão dez mil, todos interessados na obra comum.

É, aliás, a obra do progresso que nos ensina este caminho.

Quando a Inglaterra quis ter um grande dicionário da sua língua, fez um apelo aos voluntários e mil pessoas vieram espontâneas escavar as bibliotecas e terminaram em poucos anos o que um homem só não faria numa vida inteira.

Para que esta obra fosse verdadeiramente coletiva, seria preciso organiza- la de modo que cinco mil voluntários autores, impressores, e revisores, tivessem trabalhado em comum; mas deu-se esse passo para frente, graças a imprensa socialista, que já nos oferece exemplos do trabalho manual combinado com o intelectual.

É o caminho da liberdade. No futuro, quando um homem tiver qualquer coisa útil a dizer, uma palavra que vá além das idéias do seu século, não procurará um editor que lhe adiante o capital necessário. Procurará colaboradores entre os que conhecerem a profissão e tenham compreendido o alcance da nova obra e publicarão juntos o livro ou o jornal.

A literatura e o jornalismo deixariam de ser um meio de fazer à custa dos outros. Há alguém que conheça a literatura e o jornalismo e que não deseje numa época enfim livrar-se dos que outrora a protegiam e hoje a exploram? Só no dia em que as letras e a ciência se virem livres da escravidão mercenária tomarão o seu verdadeiro lugar na obra do desenvolvimento humano.


IV



A literatura, a ciência e a arte devem ser servidas por voluntários. Só com esta condição poderão libertar-se do jugo do Estado, do capital e da mediocridade burguesa que os afogam.

Que meios tem hoje o sábio para fazer as investigações que o interessam? Pedir o auxílio do Estado, que não pode ser concedido a mais dum aspirante em cem, e que nenhum obterá se se não obriga ostensivamente a bater os caminhos abertos e a marchar sobre as trilhas já conhecidas. Lembremo-nos do Instituto de França condenando Darwin, da Academia de S. Petersburgo repelindo Mendeleff e da Sociedade Real de Londres, recusando-se a publicar como “pouco científica” a memória de Joule que continha a equivalência mecânica do calor.

É além disso o sistema de socorros concedidos pelo Estado é tão mau, que em todos os tempos a ciência procurou passar sem ele. É precisamente por isso que a Europa e a América estão cobertas de milhares de sociedades científicas, organizadas e mantidas por voluntários. Algumas tem tomado um desenvolvimento tão formidável que todos os recursos das sociedades subvencionadas não seriam bastantes para comprar os seus tesouros.

A Sociedade Zoológica de Londres não compra os animais que povoam os seus jardins aos milhões, são-lhe enviados por outras sociedades e por colecionadores de todo o mundo. Estas remessas compreendem muitas vezes animais que se não comprariam por todo o ouro do mundo; tal dentre eles foi capturado com perigo de vida por um viajante que se lhe afeiçoou como a um filho e que deu à Sociedade por ter a certeza de o ver bem cuidado, que são inumeráveis, chega para a manutenção desta “menagerie”.

O que se pode dizer dos inventores em geral é o que se tem dito dos sábios. Quem não sabe que preço de sofrimentos custaram as grandes invenções! Noites em claro, privações do pão para a família, falta de utensílios e de matérias-primas para as experiências, é a história de todos os que tem dotado a indústria com o que faz o orgulho, o único justo, da nossa civilização.

Mas que é preciso para sair destas condições que todo o mundo é unânime em achar más? Ensaiou-se a patente, cujos resultados são conhecidos. Faminto o inventor vende-a por qualquer preço e quem não fez mais que emprestar o capital é quem embolsa os lucros muitas vezes enormes, da invenção. Por outro lado a patente isola o inventor. Obriga-o a guardar o segredo das suas pesquisas, que muitas vezes conduzem a um tardio desengano; enquanto a mais simples sugestão que partisse dum cérebro estranho menos absorvido pela ideia fundamental, bastaria para fecundar o invento e torná-lo prático. Como toda a autoridade, a patente não faz senão entravar o progresso da indústria. O breve, na prática, é um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento rápido da invenção.

O que é preciso para favorecer o gênio das descobertas é primeiramente o despertar do pensamento, é a audácia de concepção, que toda a nossa educação contribuiu a fazer esmorecer; o saber divulgado às mãos cheias que centuplica o número dos investigadores; é finalmente a consciência de que a humanidade vai dar um passo para a frente.

Só a Revolução social pode dar esse choque ao pensamento, a audácia, o saber, a convicção de que se trabalha para todos.

É então que se verão vastas oficinas providas de força motriz e de instrumentos de toda a espécie, imensos laboratórios industriais abertos a todos os investigadores. É lá que eles virão trabalhar nos seus sonhos depois de se terem desobrigado com a sociedade; lá que passarão as suas cinco ou seis horas de lazer; lá que farão as suas experiências; lá que encontraram outros camaradas, peritos em outros ramos da indústria e vindo também estudar algum problema difícil, poderão entreajudar-se, esclarecer-se mutuamente; fazer enfim saltar do choque das idéias e da sua experiência a solução desejada.


V



E a arte? Chegam-nos de toda a parte queixas sobre a decadência da arte. Estamos com efeito longe dos grandes mestres da Renascença. A técnica da arte tem feito recentemente progressos imensos; milhares de pessoas, dotadas dum certo talento, cultivam todos os ramos, mas a arte parece fugir do mundo civilizado! A técnica progride, mas a inspiração frequenta menos que nunca os ateliers dos artistas.

Donde viria ela com efeito?

Só uma grande ideia pode inspirar a arte. A arte é no nosso ideal sinônimo de criação. Deve lançar os seus ideais para frente, mas salvo algumas raras, muito raras exceções, o artista de profissão fica muito ignorante, muito burguês, para entrever os horizontes novos.

Esta inspiração, além disso, não pode sair dos livros: deve ser haurida na vida e a sociedade atual não a poderia dar.

Os Rafaéis e os Murilos pintaram numa época onde a procura dum novo ideal se acomodava ainda às velhas tradições religiosas. Pintavam para decorar as grandes igrejas que representavam elas mesmas a obra pia de várias gerações. A basílica, com o seu aspecto misterioso, a sua grandeza, que a ligava à própria vida da cidade, podia inspirar o pintor. Ele trabalhava para um monumento popular; dirigia-se a uma multidão, dela recebendo em troca a inspiração. Falava-lhe no mesmo sentido que lhe falavam a nave, os pilares, os vitrais pintados, as estátuas e as portas ornamentadas. Hoje a maior honra a que aspira o pintor é ver a sua tela, emoldurada em madeira dourada e pendurada em um museu, uma espécie de loja de “bric-a-brac”, - onde se verá, como se vê no prado, a Ascensão de Murilo ao lado do Mendigo de Velasques e dos Cães de Filipe II. Pobre Velasques, pobre Murilo! Pobres estátuas gregas, que “viviam” nas acrópoles das suas cidades e que hoje se aborrecem sob os cortinados de pano encarnado do Louvre! Só quando tal cidade, tal território, tal nação ou tal grupo de nações tiver retomado a sua unidade na vida social, a arte poderá haurir a sua inspiração da “ideia comum” da cidade ou da federação. Então o arquiteto conceberá o monumento da cidade, que já não será nem um templo nem uma prisão nem uma fortaleza; então o pintor, o escultor, o cinzelador, o ornamentista etc. saberão onde colocar suas telas, suas estátuas e suas decorações, indo todos pedir a sua força de execução à mesma nascente vital e todos marchando juntos gloriosamente para o futuro. Mas até então a arte não poderá senão vegetar.

As melhores telas dos pintores modernos são ainda as que reproduzem a natureza. Mas como poderá o pintor dar a poesia do trabalho dos campos sem a ter ele mesmo sentido, se não seguiu a charrua desde o romper da alva; se não teve a sensação de cortar as canas do trigo com uma foice, ao lado dos robustos ceifeiros e das moças a encherem os ares com alegres cantigas. Como pintar o amor da terra sem ter o sentido?

É preciso à volta do trabalho, ver o sol poente, ter sido camponês com as camponesas, ter estado no mar com os pescadores, ter lutado com as ondas, afrontado a tempestade e ter sentido, depois de levantar uma rede sem nada, a decepção de voltar a casa com as mãos vazias. É preciso ter sentido “viver” a máquina para saber o que é a força do homem e traduzi-la numa obra de arte.

As obras desses artistas do futuro, que terão vivido a vida do povo, como os grandes artistas do passado, não serão destinadas à venda. Farão parte dum todo vivo, que sem elas não existiria, como elas não existiriam sem ele.

A arte, para se desenvolver, deve estar ligada à indústria, de sorte por assim dizer se confundam. Mas isto não poderá realizar senão numa sociedade em que gozemos folga e bem-estar. Ver-se-ão então surgir associações de arte, onde cada um poderá dar provas das suas capacidades; porque a arte não poderia dispensar uma infinidade de trabalhos suplementares puramente manuais e técnicos. Estas associações artísticas encarregar-se-ão de embelezar os lares dos seus membros, como fizeram esses amáveis voluntários, os jovens pintores de Edimburgo, decorando as paredes e o teto do grande hospital dos pobres da cidade.

Dir-se-á o mesmo com todos os gozos que se procuram fora do necessário. Aquele que quiser um piano de cauda entrará na associação dos fabricantes de instrumentos de música. E dando-lhe uma parte dos seus meios dias de folga, terá bem cedo o piano dos seus anelos. Se se apaixonar pelos estudos astronômicos, entrará na associação dos astrônomos e terá um telescópio, se o desejar, fornecendo uma parte do seu trabalho à obra comum, e não falta trabalho ordinário de que tanto precisa um observatório, como trabalhos de pedreiro, carpinteiro, fundidor etc.

Numa palavra, as cinco ou sete horas diárias de que cada um disponha depois de ter consagrado algumas horas à produção do necessário bastariam largamente para dar satisfação a todas as precisões de luxo infinitamente variadas. Milhares de associações se encarregariam de o satisfazer. O que hoje é privilégio duma maioria ínfima, seria assim acessível a todos. O luxo, deixando de ser o aparato tolo e berrante dos burgueses, tornar-se-ia uma satisfação artística.

Todos seriam mais felizes. No trabalho coletivo executado com alegria do coração para alcançar um fim desejado – livre obra de arte ou objeto de luxo, – cada um encontrará o estímulo e o repouso necessário para tornar a vida mais agradável.

Trabalhando para abolir os senhores e os escravos, trabalhamos para a felicidade duns e doutros para o bem da humanidade.






O TRABALHO AGRADÁVEL



I



Quando os socialistas afirmam que uma sociedade liberta do capital poderia tornar o trabalho agradável e suprimiria toda a tarefa repugnante e malsã, há quem se lhes ria na cara. Entretanto podem-se ver hoje mesmo progressos frisantes consumados neste caminho; e em toda a parte onde estes progressos se tem produzido, os patrões só tem a felicitar-se pela economia de força obtida por este modo.

É evidente que a oficina poderia tornar-se tão sã e tão agradável como um laboratório científico. E não menos evidente é que haveria toda a vantagem em o fazer. Em uma oficina espaçosa e bem arejada, o trabalho é melhor; aplicam-se-lhe facilmente os pequenos melhoramentos de que cada um representa uma economia de tempo e de mão de obra. E se a maior parte das oficinas continuam nos lugares infectos e insalubres que conhecemos, é porque se não conta com o trabalhador na organização das fábricas e porque a dissipação mais absurda das forças humanas é o seu traço distintivo.

Entretanto já se encontram por aqui e por ali, em estado de exceções, muito raras, algumas oficinas tão bem acondicionadas que seria um verdadeiro prazer trabalhar nelas, se o labor não devesse durar mais de quatro ou cinco horas por dia, bem entendido, e se cada um tivesse facilidade de o variar conforme os seus gostos.

Eis aqui uma fábrica – infelizmente consagrada a engenhos de guerra, que nada deixa a desejar com relação à organização sanitária e inteligente. Ocupa vinte hectares de terreno, quinze dos quais estão envidraçados. O chão, em tijolos refratários, está tão limpo como o duma casita de mineiro e o teto de vidro é cuidadosamente limpo por uma esquadra de obreiros que não fazem mais nada. Forjam-se ai barras de aço pesando vinte toneladas e quando se para em frente a trinta passos de um forno, cujas chamas têm a temperatura de mais dum milhar de graus, não se lhe adivinha a presença senão quando a imensa goela do forno deixa escapar um monstro de aço. E este monstro é manobrado unicamente por três ou quatro trabalhadores, que abrem, ora aqui, ora ali uma torneira fazendo mover imensas engrenagens pela pressão da água nos tubos.

Entra-se preparando para ouvir o ruído ensurdecedor dos golpes de pilão e descobre-se que não há absolutamente pilões. Os imensos canhões de cem toneladas e os eixos dos vapores transatlânticos são forjados por pressão hidráulica e o obreiro limita-se a dar a volta a uma torneira para comprimir o aço que se aperta em lugar de o forjar.

Espera-se um ruído infernal em veem-se máquinas que cortam blocos de aço de dez metros de comprido sem mais bulha do que é precisa para cortar um queijo. E quando exprimíamos a nossa admiração ao engenheiro que nos acompanhava, ele respondeu:

Mas é uma simples questão de economia! Esta máquina que aplaina o aço já nos serve há quarenta e dois anos. Não teria servido dez anos se as suas partes mal ajustadas ou demasiado fracas, se chocassem, chiassem e gastassem a cada golpe de plaina!”

Os altos fornos? Seria uma despreza inútil deixar fugir o calor em lugar de o utilizar: para que torrar os fundidores quando o calor perdido pela irradiação representa toneladas de carvão?”

Os pilões que faziam tremer os edifícios a cinco léguas em redondo, eram ainda um desperdício”.

Forja-se melhor pela pressão do que pelo choque e custa menos.

O espaço dado a cada banco, a claridade da oficina, a sua limpeza, tudo é uma simples questão de economia. Trabalha-se melhor quando se vê bastante luz e não se aperta os cotovelos.

É verdade, acrescentou, que estávamos bastante apertados antes de virmos para aqui. É que o terreno custa terrivelmente caro nos arredores das grandes cidades: os proprietários são tão vorazes!”

O mesmo acontece em relação às minas. Não só por Zola como pelos jornais, sabe-se o que é a mina de hoje. Ora a mina, no futuro, será bem arejada, com uma temperatura tão perfeitamente regulada como a duma câmara de trabalho, sem cavalos condenados a morrer debaixo da terra; fazendo-se a tração subterrânea por meio dum cabo automático posto em movimento à boca do poço. Os ventiladores estarão sempre em movimento e não haverá explosões. E esta mina não é um sonho; já se veem assim na Inglaterra e nós visitamos uma. Ainda que este arranjo é uma questão de economia. A mina de que falamos, apesar de sua imensa profundidade, 430 metros, fornece mil toneladas de hulha por dia, só com 200 trabalhadores, ou cinco toneladas por dia só com um trabalhador, enquanto que a média para os dois mil poços da Inglaterra é apenas de 300 toneladas por ano e 1 por trabalhador.

Poderíamos se fosse preciso, multiplicar os exemplos, demonstrando que, para a organização material, o sonho de Furrier não era uma utopia. Mas os jornais socialistas têm já tratado frequentemente este assunto e a opinião está formada. A manufatura, a fábrica, a mina, podem ser salutares, tão soberbas como os melhores laboratórios das universidades modernas e quanto melhor forem organizadas mais produtivo será o trabalho humano.

Pode-se então duvidar que numa sociedade de iguais, onde os “braços” não sejam obrigados a vender-se, em quaisquer condições, o trabalho seja realmente um prazer, um divertimento?

A tarefa repugnante ou malsã deve desaparecer, porque é evidente que nestas condições é nociva à sociedade inteira. Escravos podiam-se-lhe entregar; o homem livre criará novas condições dum trabalho agradável e infinitamente mais produtivo. As exceções de hoje serão a regra amanhã.

O mesmo será quanto ao trabalho doméstico, que a sociedade hoje atira sobre os “sofredores” da humanidade – a mulher.


II



Uma sociedade transformada pela Revolução saberá fazer desaparecer a escravidão doméstica, – talvez a mais tenaz por ser também a mais antiga. Unicamente não se apegará nem à maneira sonhada pelos falansterianos nem à maneira imaginada pelos comunistas autoritários.

O falanstério repugna a milhões de seres humanos. O homem menos expansivo experimenta certamente o desejo de se encontrar com os seus semelhantes para um trabalho comum, tornando tanto mais atraente a quem se sente como uma parte do grande todo. Mas não é assim nas horas de folga destinadas a repouso e intimidade. O falanstério, e mesmo o familistério, não contam com isso, ou antes, procuram corresponder a esse desejo por agrupamentos factícios.

O falanstério, que na realidade é um imenso hotel, pode agradar a uns, ou mesmo a todos, em certos períodos da sua vida, mas a grande massa prefere a vida de família (família do futuro, bem entendido). Prefere o apartamento isolado e os normandos e anglo-saxões vão até preferir a casinha de quatro, seis ou oito quartos onde a família, ou a aglomeração de amigos podem viver separados.

Quanto às considerações de economia que algumas vezes se fazem valer em favor do falanstério, é economia de confeiteiro. A grande economia, a única razoável é fazer a vida agradável a todos, porque o homem, contente da sua vida, produz infinitamente mais que aquele que maldiz o que o cerca.

Outros socialistas repudiam o falanstério. Mas quando se lhes pergunta como se poderia organizar o trabalho doméstico, respondem: “Cada um fará o seu próprio trabalho”. “Minha mulher satisfaz bem o da casa: as burguesas que façam o mesmo”. E se é um burguês socializante que fala, ele atira a sua mulher com um sorriso gracioso: “Não é assim, querida, que tu passarias bem sem criada numa sociedade socialista? Tu farias, não é? Como a mulher do nosso valente amigo Paulo, ou do João, o marceneiro, que tu conheces?”

E a mulher responde-lhe com um sorriso agridoce: “Sim, querido”, dizendo para si que, felizmente, isso virá para as calendas gregas.

Criada ou esposa, é ainda e sempre com a mulher que o homem conta para se descarregar dos trabalhos da casa.

Mas a mulher também reclama – enfim – a sua parte de emancipação da humanidade. Não quer ser a besta de carga da casa. Já lhe basta o ter de dar tantos anos da sua vida à educação de seus filhos. Não quer ser cozinheira, costureira, varredora da casa. E as americanas, tomando a dianteira nesta obra de reivindicação, é um queixume geral nos Estados Unidos sobre a falta de mulheres que queiram entregar-se a trabalhos domésticos. A senhora prefere a arte, a política, a literatura, ou o salão de jogo; a obreira faz o mesmo e não se encontram criadas. São raras nos Estados Unidos as moças e mulheres que queiram aceitar a escravidão do avental.

E a solução vem ditada pela própria vida, evidentemente muito simples. É a máquina quem se encarregará, pelas três quartas partes, do serviço caseiro.

Engraxais os vossos sapatos e sabeis quanto é ridículo esse trabalho: que pode haver mais ridículo? Esfregar vinte ou trinta vezes um sapato com uma escova, que pode haver de mais estúpido? É preciso que um décimo da população europeia se venda, em troca dum grabato e dum alimento insuficiente, para fazer esse serviço embrutecedor; é preciso que a mulher se considere a si mesma uma escrava, para que tal operação continue todas as manhãs por dezenas de milhões de braços.

Entretanto os barbeiros já tem máquinas para escovar os crânios lisos e as cabeleiras crespas; não seria bem mais simples aplicar o mesmo princípio à outra extremidade?

É o que se faz. Hoje a máquina de engraxar sapatos torna-se de uso geral nos grandes hotéis europeus e americanos. Também se vulgariza fora dos hotéis. Nas grandes escolas da Inglaterra, divididas em seções diferentes, sustentando cada uma de 50 a 200 alunos, acha-se mais simples ter um só estabelecimento que todas as manhãs engraxa à máquina os mil pares de sapatos e os entrega em domicílio, isto dispensa ter uma centena de criadas destinadas unicamente a esta estúpida operação. O estabelecimento cuida dos sapatos e entrega-os todas as manhãs engraxados à máquina.

Lavar a louça! Encontrarão por ventura uma dona de casa que não tenha horror a este trabalho? Trabalho longo e sujo ao mesmo tempo e que ainda o mais das vezes se faz à mão, unicamente porque se não liga importância ao trabalho da escrava doméstica.

Na América já se encontrou coisa melhor. Há já um certo número de cidades onde a água quente é distribuída a domicílio tal qual a água fria entre nós. Em tais condições o problema era duma grande simplicidade e uma mulher, Mme. Cockrane, resolveu-o. A sua máquina lava vinte dúzias de pratos, enxuga-os e seca-os em menos de três minutos. Uma fábrica de Illinois faz estas máquinas, que se vendem por um preço acessível às famílias médias. E quanto às pequenas, podem enviar a sua louça ao estabelecimento, assim como os sapatos. É até provável que as duas funções, lavagem e engraxamento sejam feitas pela mesma empresa.

Limpar as facas; esfolar a pele e torcer as mãos lavando a roupa, para espremer a água; varrer as tábuas os escovar os tapetes, levantando nuvens de poeira, que depois é preciso tirar dos sítios onde se vai aninhar, tudo isto se faz ainda porque a mulher é escrava; mas se não fosse, quem o havia de fazer? O homem que não é escravo? O homem, ou há de estar no campo ou na oficina a trabalhar, salariado ou não, ou há de estar em casa a arear facas e lavar roupa. A mulher também tem que trabalhar, nisso ou noutra coisa, visto que quer igualdade de direitos, aliás muito justa. Mas tudo isto começa a desaparecer, fazendo-se estas coisas infinitamente melhor a máquina; e as máquinas de toda a espécie serão introduzidas no lar logo que a distribuição de força a domicílio permita pô-las todas em movimento sem despender o menor esforço.

Mas a pequena máquina a domicílio não é a última palavra para a alforria do trabalho doméstico. A família sabe do seu isolamento atual; associa-se com outras famílias para fazer em comum o que hoje se faz em separado.

Com efeito o futuro não está em ter uma máquina de engraxar, outra de lavar a roupa e sucessivamente para cada família. O futuro está no colarífero comum, que levará o calor a todas as casas de um quarteirão e dispensará de acender o lume. Isto já se faz em algumas cidades americanas. Um grande foco envia água quente a todas as casas, em todos os quartos. A água circula em tubos e para regular a temperatura, basta dar volta a uma torneira. E quem quiser ter além disso fogo em chama em qualquer quarto pode acender o gás especial de aquecimento expedido dum reservatório central.

A vela, o candeeiro, e mesmo o gás fizeram o seu tempo. Há cidades inteiras onde basta apertar um botão para que a luz salte e no fim, é tudo um objeto de economia – e de saber – dar-se o luxo duma lâmpada elétrica.

Enfim, já se trata – sempre na América, de formar sociedades para suprimir a quase totalidade do serviço doméstico. Bastaria criar serviços de casa para cada grupo de casas. Um carro viria a domicílio com o cesto dos sapatos para engraxar, louça para lavar, roupa por limpar, tapetes por escovar e no outro dia pela manhã traria feita e bem-feita, toda a obra que lhe tivésseis confiado.

Algumas horas mais tarde o vosso café quente e os vossos ovos cozidos aparecerão na vossa mesa.

Efetivamente, entre o meio dia e as duas horas há certamente mais de vinte milhões de americanos e outros tantos ingleses, que todos comem um assado de boi ou de carneiro, porco cozido, batatas cozidas e o legume da estação. E são pelo menos oito milhões de fogos que ardem duas ou três horas para assar esta carne e cozer estes legumes; oito milhões de mulheres passando o seu tempo a preparar este banquete que não consta senão talvez de dez pratos diferentes.

Por que é que o trabalho da mulher nunca foi contado para nada, porque em cada família a mãe, muitas vezes três ou quatro criadas, são obrigadas a dar todo o seu tempo aos negócios da cozinha? Porque aqueles mesmos que querem a emancipação do gênero humano não incluíram a mulher no sonho de emancipação e consideraram isso indigno da sua alta dignidade, mas recusam pensar “nesses negócios de cozinha” de que se aliviaram sobre as costas do grande “sofredores” que é a mulher.

Emancipar a mulher não é abrir-lhe as portas da universidade, dos tribunais e do parlamento. É sempre sobre uma outra mulher que a mulher emancipada atira os trabalhos domésticos. Emancipar a mulher é livrá-la do trabalho embrutecedor da cozinha e da lavagem; é organizar-se de maneira que possa criar e educar os seus filhos, se assim lhe parecer, considerando sempre bastante vagar para tomar a sua parte na vida social.

Isto se fará, já o dissemos, e começa já a fazer-se. Uma revolução que se decorasse com as mais belas palavras de Liberdade, Igualdade, Solidariedade, mantendo ao mesmo tempo a escravidão do lar, não seria revolução. A metade da humanidade, submetida ainda à escravidão do lar e da cozinha, teria ainda que se revoltar contra a outra metade.








A LIBERDADE DE ENTENDIMENTO



I



Habituados como estamos, por preconceitos hereditários, uma educação e uma instrução absolutamente falsa, a não ver em toda a parte senão governo, legislação e magistratura, chegamos a crer que os homens se despedaçariam uns aos outros como as feras no dia em que o policial não tivesse os olhos abertos sobre nós, o que seria se a autoridade sucumbisse a qualquer cataclismo. E passamos, sem dar por isso, ao lado de mil e mil agrupamentos humanos, que se formam livremente, sem nenhuma intervenção da lei e que chegam a realizar coisas infinitamente superiores aquelas que se efetuam sob a tutela governamental.

Abra-se um jornal cotidiano. As suas páginas são inteiramente consagradas aos atos do governo, às intrigas políticas. Lendo-o um chinês julgaria que na Europa não se faz nada sem ordem dalgum senhor. Acha aí seja o que for sobre as instituições que nascem, crescem e se desenvolvem sem precisões ministeriais! Nada ou quase nada! Se há mesmo uma rubrica de “fatos diversos”, é porque se ligam a polícia. Um drama de família, um ato de revolta, não são mencionados se os policiais se não deixam ver.

Trezentos e cinquenta milhões de europeus amam-se ou aborrecem-se, trabalham ou vivem dos seus rendimentos, sofrem ou gozam. Mas a sua vida, seus atos (à parte a literatura, o teatro e o esporte), tudo fica ignorado dos jornais, se os governos não intervêm de qualquer modo.

Sucede o mesmo com a história.

Conhecemos os menores detalhes da vida dum rei ou dum parlamento, conservaram-nos todos os discursos bons e maus proferidos nas assembleias, “que nunca influíram no voto de um único membro”, como dizia um velho parlamentar. As visitas dos reis, o bom ou mau humor dos políticos, os seus trocadilhos e as suas intrigas, tudo isto é cuidadosamente guardado para a posteridade. Mas temos todas as dificuldades do mundo para reconstituir a vida duma cidade da idade média, para conhecer o mecanismo desse imenso comércio de troca que se fazia entre as cidades hanseáticas ou mesmo como a cidade de Rouen edificou a sua catedral. Se algum sábio passou a vida a estudá-lo as suas obras ficaram desconhecidas e as “histórias parlamentares”, isto é, falsas, visto que só falam de um lado da vida das sociedades multiplicam-se, apregoam-se, ensinam-se nas escolas.

E nós não chegamos a aperceber-nos da tarefa prodigiosa que executa cada dia o agrupamento espontâneo dos homens, e que constitui a obra capital do nosso século.

É de toda a evidência que na sociedade atual, baseada na propriedade individual, ou seja, a espoliação, e sob o individualismo limitado, portanto estúpido, os fatos deste gênero são necessariamente limitados: aí o entendimento não é sempre perfeitamente livre e funciona muitas vezes para um fim mesquinho, se não execrável.

Mas o que nos é preciso é mostrar que, apesar do individualismo autoritário que nos afoga, há sempre na nossa vida uma parte muito vasta em que se não age senão por livre entendimento; e que passar sem governo é muito mais fácil do que se pensa.

Já citamos os caminhos de ferro em apoio da nossa tese e aí voltamos ainda.

Sabe-se que a Europa tem uma rede de caminhos de ferro de 280.000 quilômetros e que sobre esta rede pode-se hoje circular – do norte ao sul, do nascente ao poente, de Lisboa a Petersburgo e de Calais a Constantinopla, – sem sofrer paragens, sem mesmo mudar de vagão (viajando em trem expresso). Melhor do que isso: um coli lançado em uma gare irá encontrar o destinatário, não importa onde, seja na Turquia ou na Ásia Central sem outra formalidade para o expedidor do que escrever o lugar do destino em um retalho de papel.

Este resultado podia ser obtido de dois modos. Ou bem um Napoleão, um Bismark, um potentado qualquer teria conquistado a Europa e de Paris, de Berlim ou de Roma teria traçado em uma carta as direções das vias férreas e regulado a marcha dos trens. O idiota coroado Nicolau I sonhou proceder assim.

Quando lhe apresentaram projetos de caminhos de ferro entre Moscou e Petersburgo, pegou numa régua e traçou na carta da Rússia uma linha reta entre as duas capitais, dizendo: “Eis o traçado”. E o caminho fez-se em linha reta, por sobre ravinas profundas, levantando pontes vertiginosas que foi preciso abandonar a cabo de alguns anos, custando dois a três milhões em média por cada quilômetro.

Eis um dos meios, mas em outras partes procedeu-se de modo diferente. Os caminhos de ferro foram construídos por seções; estas foram ligadas entre si; e depois as companhias diversas a que as seções pertenciam procuraram entender- se para fazerem combinar os seus trens à chegada e à partida a fim de fazerem rodar sobre seus rails wagons de todas as proveniências sem descarregar as mercadorias na passagem duma rede para outra.

Tudo isso se fez por livre entendimento, por troca de cartas e de propostas, por congressos onde os delegados vinham discutir tal questão social, não para legislar, – e depois dos congressos os delegados voltavam às suas companhias, não com uma lei, mas com um projeto a retificar ou rejeitar.

É claro que houve dificuldades, houve teimosos que não se queriam deixar convencer. Mas o interesse comum acabou pondo todos de acordo sem ter de invocar exércitos contra os recalcitrantes.

Esta imensa rede de caminhos de ferro ligados entre si, e este prodigioso tráfico a que dão lugar, constituem, sem dúvida, o traço mais frisante do nosso século; – e devem-se ao livre entendimento. Se alguém o tivesse previsto e predito a cinquenta anos, os nossos avós o teriam julgado louco ou imbecil. Teriam dito: “Nunca fareis chegar à razão a cem companhias de acionistas! É uma utopia um conto de fadas que nos estais contando. Só um governo central, com um diretor de pulso o poderia impor”.

Ora bem! Pois o que há de mais interessante nesta organização é que não há nenhum governo central europeu de caminhos de ferro! Nada! Nem ministro de caminhos de ferro, nem ditador nem mesmo um parlamento continental, nem ainda um comitê dirigente! Tudo se faz por convenção.

E nós perguntamos ao estadista se pretende que “nunca se poderá passar sem governo central, ainda que só fosse para regular o tráfico”, perguntamos-lhe: “Mas como podem os caminhos de ferro passar sem ele? Como conseguem fazer viajar milhões de viajantes e montanhas de mercadorias através de todo um continente? Se as companhias proprietárias dos caminhos de ferro puderam entender-se, porque não se acordariam da mesma maneira os trabalhadores que tomassem posse dos caminhos de ferro? E se a companhia de Petersburgo – Varsóvia e a de Paris – Belford podem agir em conjunto sem se darem o luxo dum chefe para uma e para outra, por que razão no seio das nossas sociedades, constituída cada uma por um grupo de trabalhadores livres, seria preciso um governo?


II



Quando tentamos demonstrar por exemplo que mesmo hoje, apesar da iniquidade que preside à organização da sociedade atual, os homens, uma vez que seus interesses não sejam diametralmente opostos, sabem muito bem pôr-se de acordo sem intervenção da autoridade, não ignoramos as objeções que nos serão opostas.

Estes exemplos têm o seu lado defeituoso, porque é impossível citar uma única organização isenta da exploração do fraco pelo forte, do pobre pelo rico. É por isso que os estadistas não deixaram de nos dizer com a lógica que se lhe conhece: “Bem vedes que a intervenção do Estado é necessária para por termo a essa exploração”.

Unicamente, esquecendo as lições da história, não nos dirão até que ponto o Estado tem contribuído para agravar esse estado de coisas, criando o proletariado e entregando-o aos exploradores. E também se esquecerão de nos dizer se é possível fazer cessar a exploração enquanto as suas causas primárias, – o Capital individual e a miséria, continuarem a existir.

A propósito do completo acordo entre as companhias de caminho de ferro, é de prever que nos digam: “Não vedes como as companhias de caminhos de ferro espremem e maltratam os seus empregados e viajantes? É preciso que o Estado intervenha para proteger o público”.

Mas nós não temos dito e tantas vezes repetido que enquanto houver capitalistas esses abusos de poder se perpetuarão? É precisamente o Estado, o pretendido benfeitor, quem deu às companhias esse terrível poder que exercem hoje. Não criou as concessões, as garantias? Não enviou tropas contra os empregados dos caminhos de ferro em greve? E, ao princípio (isto ainda se vê na Rússia) não estendeu o privilégio até proibir à imprensa mencionar acidentes de estradas de ferro, para não depreciar as ações, de que de fez fiador? Não foi ele, com efeito, quem favoreceu o monopólio que sagrou os Vanderbilt como os Polijahofl, os diretores do P. L. M. e os de Golhard, “os Reis da época?”.

Logo, se damos como exemplo o entendimento tacitamente estabelecido entre as companhias de caminhos de ferro, não é como um ideal de direção econômica, nem mesmo como um ideal de organização teórica. É para mostrar que se capitalistas sem outro objeto senão o de aumentar seus lucros à custa de todo o mundo podem chegar a explorar as vias férreas sem fundarem para isso um escritório internacional, também sociedades de trabalhadores o poderão, tão bem e mesmo melhor, sem nomearem um ministério dos caminhos de ferro europeus.

Apresenta-se uma outra objeção mais séria na aparência. Poderiam dizer-nos que o entendimento de que falamos não é inteiramente “livre” que as grandes companhias dão a lei às pequenas. Poderiam citar por exemplo, tal rica companhia, obrigando os viajantes que vão de Berlim a Bale a passarem por Colônia e Frankfurt, em lugar de seguirem a estrada de Leipzig; tal outra mandando fazer às mercadorias circuitos de cem e de duzentos quilômetros (em longos percursos) para favorecer poderosos acionistas; tal outra enfim arruinando as linhas secundárias. Nos Estados Unidos, viajantes e mercadorias são obrigados algumas vezes a seguir traçados fantásticos para que os dólares afluam à algibeira de Vanderbilt.

Marx demonstrou muito bem como a legislação inglesa fez tudo para arruinar a pequena indústria, reduzir o camponês a miséria e entregar aos grandes industriais batalhões de “pés frescos” forçados a trabalhar por qualquer salário. Dá-se exatamente o mesmo quanto à legislação relativa aos caminhos de ferro e todas as mais indústrias. Quando Rothschild – credor de todos os Estados europeus – empata capital em tal ou tal caminho de ferro, os seus fiéis súbditos, os ministros, arranjam-se de modo que lhe façam ganhar mais.

Nos Estados Unidos, essa democracia que os autoritários nos dão como ideal, a fraude mais escandalosa está misturada em tudo o que diz respeito a caminhos de ferro. Se tal companhia mata os seus concorrentes por uma tarifa muito baixa, é porque se reembolsa por outro lado com as terras que o Estado lhe concedeu a troco de gorjetas. E quando nós vemos sindicatos de companhias de caminhos de ferro (ainda produto da liberdade de entendimento) chegarem algumas vezes a proteger as pequenas companhias contra as grandes, só temos que nos admirar da força intrínseca do livre acordo, apesar da onipotência do grande capital secundado pelo Estado.

Com efeito, as pequenas companhias vivem, a despeito da parcialidade do Estado e se em França, país de centralização, apenas vemos cinco ou seis grandes companhias, na Grã-Bretanha contam-se mais de 110, que se entendem às mil maravilhas e que certo são mais bem organizadas para o transporte rápido das mercadorias e dos viajantes que os caminhos franceses e alemães.

De mais, o que nos ocupa é isto: O entendimento entre as centenas de companhias a que pertencem os caminhos de ferro da Europa “estabeleceu-se diretamente sem intervenção dum governo central”, dando a lei às diversas sociedades. É um princípio que difere absolutamente do princípio governamental, monárquico ou republicano, absoluto ou parlamentar. É uma inovação que se introduz, ainda timidamente, nos costumes da Europa, mas que tem por si o futuro.


III



Quantas vezes não temos lido nos escritos dos socialistas – estadistas reclamações deste gênero: “E quem então se encarregará na sociedade futura de regular o tráfico nos canais? Se passasse pela cabeça dum dos vossos ‘companheiros’ anarquistas atravessar a sua barca em um canal e cortar o caminho aos milhares de barcos, – quem o faria voltar à razão?”.

Confessemos que a suposição é um pouco fantasista. Mas poder-se-ia acrescentar: “E se, por exemplo, tal Comuna ou tal grupo quisesse fazer passar as suas barcas adiante das outras, eles entupiriam o canal para carregar, talvez pedras, enquanto o trigo destinado a tal outra Comuna ficaria para trás. – Quem então regularia a marcha dos barcos, se não era o governo?” Ora pois, a vida real mostrou que se pode muito bem passar sem governo, aqui como em outra parte. O livre entendimento, e a livre organização substituem essa máquina custosa e nociva.

Sabe-se o que os canais para a Holanda, são suas estradas. Também se sabe o tráfico que se faz por esses canais. O que entre nós se transporta por uma estrada de ferro ou asfaltada, transporta-se na Holanda pelas vias dos canais. É lá que se poderiam bater para fazer passar os seus barcos primeiros que os outros. É lá que o governo deveria intervir para pôr ordem no tráfico.

Mais práticos, os holandeses, desde muito tempo tem sabido arranjar-se de modo diverso, criando espécies de “guildes”, sindicatos de barqueiros. Eram associações livres, surgidas das próprias necessidades da navegação. A passagem dos barcos fazia-se segundo uma ordem de inscrição, seguindo-se todos pela sua ordem. Nenhum devia meter-se adiante dos outros, sob pena de ser riscado do sindicato. Nenhum estacionava nos portos de embarque mais que um certo número de dias e se durante eles não arranjava carga, tanto pior para ele, partia vazio, mas deixava o lugar aos que chegavam de novo. O entupimento assim era impossível, mesmo com a concorrência dos empresários, consequência da propriedade individual. Suprimida esta e o entendimento será ainda mais cordial, mais equitativo para todos.

Pode ser, em todo o caso é muito provável que aqui mesmo o grande capital oprima o pequeno. Pode também acontecer que o sindicato tenha uma tendência para se erigir em monopólio, – principalmente com o patrocínio precioso do Estado, que não deixará de se ir lá meter. – Somente não esqueçamos que estes sindicatos representam uma associação cujos membros não tem senão interesses pessoais; mas que se cada armador fosse forçado pela socialização da produção, do consumo e da troca a fazer parte de cem outras associações necessárias à satisfação das suas necessidades, as coisas mudariam de aspecto. Poderoso sobre as águas, o grupo dos barqueiros sentir-se-ia fraco em terra firme e baixaria das suas pretensões, para se entender com os caminhos de ferro, as manufaturas e todos os outros agrupamentos. Eis, pois, uma associação que dispensou o governo.

Visto que estamos falando de navios e de barcos, mencionemos uma das mais belas organizações que surgiram no nosso século.

Sabe-se que cada ano mais de mil navios vem encalhar nas costas da Inglaterra. No mar um bom navio raras vezes teme a tempestade. É perto das costas que se esperam os perigos. Mar encapelado que lhe quebra as amaduras, golpes de vento que lhe levam os mastros e as velas, correntes que o tornam ingovernável, recifes e baixios ondos vem esbarrar.

Mesmo quando outrora os habitantes das costas acendiam fogueiras para atrair os navios para os recifes e apoderar-se, segundo o costume, das cargas, eles fizeram sempre o possível para salvar as equipagens. Avistando um navio em perigo, lançavam as suas cascas de nós e dirigiam-se em socorro dos náufragos, muitas vezes para encontrarem eles mesmos a morte nas vagas. Cada cabana à borda do mar tem a sua lenda de heroísmo, tanto desenvolvido pela mulher como pelo homem, para salvar as tripulações perdidas.

O Estado, os sábios fizeram alguma coisa para diminuir o número de sinistros. Os faróis, os sinais, as cartas, os avisos meteorológicos de certo os diminuíram muito, mas resta cada ano um milhar de navios e muitos milhares de vidas a salvar.

Assim alguns homens de boa vontade puseram-se ao trabalho. – Bons marinheiros, eles mesmo imaginaram um barco de salvação que pudesse afrontar a tempestade sem se afundar nem virar e abriram campanha para interessar o público na empresa, arranjar o dinheiro necessário, construir barcos e pô-los nas costas onde quer que pudessem prestar serviços.

Esses homens não eram jacobinos, não se dirigiam ao governo. Tinham compreendido que para levar a bom fim a sua empresa, precisavam do concurso, do entusiasmo dos marítimos, seu conhecimento dos lugares – principalmente da sua dedicação. E para achar homens que, ao primeiro sinal se lancem, de noite, no caos das vagas, nem pelos escolhos, e lutando cinco, seis, dez horas contra as ondas, antes de abordar o navio em angústia – homens prontos a sacrificar a sua vida para salvar a dos outros, – é preciso o sentimento de solidariedade, o espírito de sacrifício, que não se compra com galões.

Foi, pois, um movimento espontâneo saído do livre entendimento e da iniciativa individual.

Centenas de grupos locais surgiram ao longo das costas. Os iniciadores tiveram o bom senso de se não apresentarem como monstros procuraram as luzes: nas barcas dos pescadores. Um lorde mandava 25.000 francos, a uma aldeia próxima, para se construir um barco de salvação; a oferta era aceita, mas deixava-se a situação à escolha dos pescadores e marinheiros da localidade.

Tudo pelos voluntários, organizados em comitês ou grupos locais! Tudo pelo auxílio mútuo e pelo acordo: ó anarquistas – Assim eles nada pedem aos contribuintes e no ano passado lhes trazia um milhão e 76 mil francos de cotizações espontâneas.

Quanto aos resultados: a associação possuía em 1891, 293 barcos de salvação. Nesse mesmo ano salvava 601 náufragos e 33 navios e desde a sua fundação tem salvo 32.671 seres humanos. Notemos de passagem que a associação envia todos os anos aos pescadores e aos marinheiros excelentes barômetros por um preço três vezes menor que o seu valor real. Propaga os conhecimentos meteorológicos e conserva os interessados ao corrente das variações súbitas previstas pelos sábios.

Repetimos que as centenas de comitês ou grupos locais, não os organizados hierarquicamente e compõem-se unicamente dos voluntários- salvadores e das pessoas que se interessam por esta obra. O comitê central que é antes um centro de correspondências, não intervém de modo algum.

Tomemos uma outra sociedade do mesmo gênero: a Cruz Vermelha. Imaginai alguém vindo dizer a vinte anos: “O Estado, por mais capaz que seja de fazer massacrar vinte mil homens num dia ou ferir cinquenta mil, é incapaz de dar socorro às suas próprias vítimas. É preciso, pois, enquanto existir a guerra, – que a iniciativa particular intervenha e que os homens de boa vontade se organizem internacionalmente para esta obra da humanidade!”.

Que dilúvio de troças não teria caído sobre quem falasse de semelhante modo! Primeiro tratavam-no de utopista, depois respondiam-lhe: “Os voluntários faltarão precisamente onde serão mais precisos. Os hospitais livres serão todos centralizados em lugar seguro, enquanto às ambulâncias faltará o necessário. As rivalidades nacionais farão de modo que os pobres soldados morrerão sem socorros”. Tanto discursadores, tantas reflexões desanimadoras.

Quem é que não ouviu perorar neste tom? Pois bem, é sabido o que se passa. Sociedades da Cruz Vermelha organizaram-se livremente, em toda parte, em cada país em milhares de localidades e quando rebentou a guerra 1870-71, os voluntários puseram-se em ação. Vieram oferecer os seus serviços homens e mulheres de hospitais e ambulâncias, víveres, roupas, medicamentos para os feridos. Os comitês ingleses mandaram comboios inteiros de alimento, roupas, utensílios, grãos para semear, animais de carga, até charruas a vapor com homens para ajudar a lavoura dos departamentos devastados pela guerra!

Consulte-se somente “A Cruz Vermelha” por Gustavo Moynier e ficar-se-á pela imensidade da tarefa executada.

A dedicação dos voluntários da Cruz Vermelha foi superior a todo o elogio. Eles não podiam senão ocupar os postos mais perigosos; e enquanto médicos pagos pelo Estado fugiam com o seu estado-maior à aproximação dos prussianos, os voluntários da Cruz Vermelha continuavam a sua tarefa debaixo das balas, suportando as brutalidades dos oficiais bismarkinos e napoleônicos, prodigalizando os seus cuidados aos soldados de todas as nacionalidades: holandeses e italianos, suecos e belgas, – até aos japoneses e chineses – se entendiam maravilhosamente. Repartiam seus hospitais e ambulâncias segundo as necessidades do momento; rivalizavam sobre tudo pela higiene de seus hospitais. E quantos franceses não falam ainda, com uma gratidão profunda, dos ternos cuidados que receberam da parte de tal voluntária holandesa ou alemã nas ambulâncias da Cruz Vermelha!

Eis portanto uma organização, nascida de ontem, e que conta neste momento os seus membros por centena de milhares, que possui ambulâncias, hospitais, trens, que elabora processos novos no tratamento das feridas devido à iniciativa espontânea de alguns homens de coração.

Talvez se diga que os Estados são alguma coisa nesta organização. – Sim, os Estados puseram-lhe a mão para apoderarem dela. Os comitês dirigentes são presididos por quem os lacaios chamam príncipes de sangue. Imperadores e rainhas dispensam o seu patrocínio aos comitês nacionais. Mas não é a esse patronato que se deve o sucesso da organização. É a mil comitês locais de cada nação, à atividade dos indivíduos, à dedicação de todos os que buscam aliviar as vítimas da guerra. E essa dedicação seria bem maior, se os Estados se não metessem absolutamente de permeio.

Podemos lamentar que tão grandes esforços sejam postos ao serviço duma causa tão má e perguntamos como o filho do poeta: “Para que as ferem, se as curam depois?” Procurando demolir a força do Capital e o poder dos burgueses, nós trabalhamos para pôr fim às matanças e antes quereríamos ver os voluntários da Cruz Vermelha desenvolverem a sua atividade para chegarem conosco a suprimir a guerra. Mas devíamos mencionar esta imensa organização como uma prova a mais dos resultados do livre entendimento e da livre assistência.

Citaremos ainda as inúmeras sociedades às quais o exército alemão deve principalmente a sua força, que não depende só da disciplina, como geralmente se acredita. Estas sociedades pululam na Alemanha e tem por fim propagar os conhecimentos militares.

Num dos últimos congressos da “Aliança militar” (Kriegerbund), viram-se delegados de 2.452 sociedades, compreendendo 151.712 membros, e todas federadas entre si. É uma formidável rede de sociedades, englobando militares e civis, geógrafos e ginastas, caçadores e técnicos, que surgem espontaneamente, organizam-se, federam-se, discutem e vão fazer explorações no campo. São estas associações voluntárias e livres que fazem a verdadeira força do exército alemão.

O fim é execrável, mas o que nos importa salientar, é que o Estado compreendeu apesar da sua grandíssima missão, a organização militar – compreendeu que o seu desenvolvimento seria tanto mais certo, como fosse abandonado ao livre entendimento dos grupos e à livre iniciativa dos indivíduos.

Mesmo em matéria de guerra, é ao livre entendimento que todos se dirigem hoje, e para confirmar a nossa asserção basta lembrar os trezentos mil voluntários ingleses, a Associação internacional de artilharia e a Sociedade em via de formação para a defesa das costas da Inglaterra, que certamente, se se constituir, será ativa diversamente do ministério da marinha com os seus couraçados que saltam e as suas baionetas que dobram como chumbo.

Mas todos os fatos que vimos de citar apenas permitem entrever o que o livre entendimento nos reserva no futuro, quando não houver mais Estados.





OBJEÇÕES




I



Examinemos agora as principais objeções que são opostas no comunismo.


A maior parte provém evidentemente dum mal-entendido; mas algumas levantam questões importantes e merecem toda a nossa atenção.


Não temos que nos ocupar em repelir as objeções que são feitas ao comunismo autoritário: nós mesmos as constatamos. As nações civilizadas demasiado tem sofrido na luta que devia tender à libertação do indivíduo, para poderem relegar o seu passado e tolerar um governo que viesse impor-se até nos menores detalhes da vida do cidadão, mesmo quando esse não tivesse outro fim senão o bem da humanidade. Se, alguma vez uma sociedade comunista autoritária chegasse a constituir-se, pouco duraria e seria bem cedo obrigada pelo descontentamento geral, ou a dissolver-se, ou a reorganizar-se sob princípios de liberdade.


É duma sociedade comunista-anarquista que nos vamos ocupar, duma sociedade que reconheça a liberdade plena e integral do indivíduo, que não admita nenhuma autoridade, que não use de nenhum constrangimento para obrigar o homem ao trabalho. Limitando-nos nestes estudos ao lado econômico da questão, vejamos se, composta de homens tais como eles são hoje, – nem melhores, nem piores, nem mais nem menos laboriosos, – esta sociedade teria probabilidades de se desenvolver felizmente?


A objeção é conhecida: “Se a existência de cada um está assegurada e se a necessidade de ganhar um salário não obriga o homem a trabalhar, ninguém trabalhará. Cada um descarregará sobre os outros os trabalhos que não é obrigado a fazer.” Levantemos primeiro a incrível leviandade com que se lança esta objeção sem crer que a questão se reduz, na realidade, a saber se, duma parte, se do trabalho salariado se tiram efetivamente os resultados que se pretende obter? E se, doutra parte, o trabalho voluntário não é hoje mais produtivo que o trabalho estimulado pelo salário? Questão que demandaria um estudo aprofundado. Mas enquanto nas ciências exatas ninguém se pronuncia sobre objetos infinitamente menos importantes e menos complicados senão depois de sérios estudos, se recolhem cuidadosamente os fatos e se lhes analisam as relações, aqui há quem se contente com um fato qualquer, por exemplo, o insucesso de uma associação de comunistas na América – para decidir sem recurso. Fazem como o advogado que não vê no colega adverso o representante duma causa ou duma opinião contrária à sua, mas um simples competidor num torneio oratório; e que, se tem a sorte de achar a réplica, não cuida em achar outro meio de ter razão.


É por isso que o estudo desta base fundamental de toda a economia política, – o estudo das condições mais favoráveis para dar à sociedade a maior sombra de produtos úteis com a menor perda de forças humanas, não avança.


O que faz esta leviandade tanto mais tocante é que, mesmo na economia política capitalista, já se encontram certos escritores, levados pela força das coisas a pôr em dúvida este axioma dos fundadores da sua ciência, axioma segundo o qual a ameaça da fome seria o melhor estimulante do homem para o trabalho produtivo. Começam a perceber que entra na produção um certo elemento coletivo, muito desdenhado até aos nossos dias e que bem podia ser mais importante que a perspectiva do ganho pessoal. A qualidade inferior do trabalho salariado, a perda assustadora de força humana, nos trabalhos de agricultura e da indústria moderna; a quantidade sempre crescente de gozadores que hoje procuram descarregar-se sobre os braços dos outros, a ausência dum certo ardor na produção, que se manifesta cada vez mais, - tudo isso começa a preocupar os economistas da escola “clássica”. Alguns dentre eles perguntam-se se não erraram raciocinando sobre um ente imaginário, idealizado em feio, que se supunha ser guiado exclusivamente pelo engodo do ganho ou do salário? Esta heresia chega a penetrar nas universidades: há quem a avente nos livros de ortodoxia economista. O que não impede de um grande número de reformadores socialistas de ficarem partidários da remuneração individual e de defenderem a velha cidadela do salariado, mesmo quando os seus defensores de outrora a entregam já, pedra por pedra, aos assaltantes.


Assim temem que sem compreensão a massa não queira trabalhar. Mas não temos nós já na nossa vida ouvido exprimir estas mesmas apreensões por duas vezes, pelos escravagistas dos Estados Unidos antes da libertação dos negros e pelos senhores russos antes da libertação dos servos? “Sem o chicote, o negro não trabalhará” – diziam os escravagistas.


“Longe da vigilância do senhor, o servo deixará os campos incultos”, diziam os boyardos russos.


Estribilho dos senhores franceses de 1789, estribilho da idade média, estribilho velho como o mundo, ouvimo-lo cada vez que se trata de reparar uma injustiça da humanidade.


E de cada vez a realidade lhe vem dar um desmentido formal. O camponês liberto em 1792 trabalhava com uma energia feroz, desconhecida dos seus antepassados; o negro liberto trabalha mais que seus pais e o campônio russo, depois de ter honrado a lua de mel da sua alforria, festejando a Sexta-feira Santa como igual ao domingo, retomou o trabalho com tanto mais energia, quanto a laboração foi mais completa. Onde quer que a terra não lhe falte, ele lavra encarniçadamente, – é o termo.


Além disso, quem então, senão os economistas, nos ensinou que se o assalariado se desempenha, quer bem quer mal, da sua obrigação, um trabalho intenso e produtivo não se obtém senão do homem que vê o seu bem-estar crescer em razão dos seus esforços? Todos os cânticos entoados em honra da propriedade reduzem-se precisamente a este axioma.


Porque, – coisa notável, – quando alguns economistas, querendo celebrar os benefícios da propriedade, nos mostram como uma terra inculta, um pântano ou um solo pedregoso se cobrem de ricas searas sob o suor do camponês – proprietários, de modo nenhum provam a sua tese em favor da propriedade. Admitindo que a única garantia para não ser espoliado dos frutos do seu trabalho seja possuir os instrumentos de trabalho – o que é verdade, - provam somente que o homem não produz realmente senão quando trabalha em toda a liberdade, que tem uma certa escolha das suas ocupações, que não tem vigia para o incomodar e que enfim vê o seu trabalho aproveitar-lhe, assim como a outros que fazem como ele e não a um ocioso qualquer. É tudo que se pode deduzir da sua argumentação e o que nós também afirmamos.


Quanto à forma de posse do instrumento de trabalho, isso não intervém senão indiretamente na sua demonstração para assegurar ao cultivador que ninguém lhe arrancará o benefício dos seus produtos nem das suas benfeitorias. – E para apoiar a sua tese em favor da “prosperidade” contra qualquer outra forma de “posse”, não deveriam os economistas demonstrar-nos que sob a forma de posse comunal, a terra nunca produz tão ricas searas como quando a posse é pessoal? Ora isso não é, o contrário é o que se constata.


Vede uma comuna no cantão de Vaud, quando todos os homens da aldeia vão no inverno abater a madeira na floresta, que é de todos. Pois bem, é precisamente durante estas festas do trabalho que se mostra o maior ardor na tarefa e o maior ardor e o mais considerável desenvolvimento da força humana.


Ou então tomai uma aldeia russa, da qual todos os habitantes vão ceifar um prado pertencente à comuna ou arrendado a ela, é lá que compreendereis o que o homem “pode” produzir quando trabalha em comum para uma obra comum. Os companheiros rivalizam entre si quem traçará com a sua foice o círculo mais largo. Ao lado dos maridos as mulheres empenham-se em não lhes ficarem atrás.


É ainda uma festa de trabalho, durante a qual cem pessoas fazem em algumas horas o que seu trabalho executado separadamente não teria acabado em alguns dias. Que triste contraste faz ao lado disto o trabalho do proprietário isolado!


Poderíamos enfim citar milhares de exemplos entre os pioneiros da América, nas aldeias da Suíça, Alemanha, Rússia e certas partes da França; os trabalhos feitas na Rússia pelas esquadras de pedreiros, carpinteiros, barqueiros, pescadores etc., que empreendem uma tarefa para repartirem diretamente os lucros ou mesmo a remuneração sem passar pelas mãos do intermediário.


O bem-estar sempre foi o mais poderoso estímulo ao trabalho. O trabalhador livre que vê o bem-estar e o luxo aumentar em proporção dos seus esforços, desenvolve infinitamente mais energia e obtém os produtos de primeira ordem muito mais abundantes.


Nisso está todo o segredo. É por isso que uma sociedade que visa o bem-estar de todos e à possibilidade de todos gozarem a vida em todas as suas manifestações, fornecerá um trabalho voluntário infinitamente mais considerável do que a produção obtida até agora sob o aguilhão da escravidão e do salariado.




II



Todo aquele que pode hoje aliviar-se sobre outros do trabalho indispensável à existência, apressa-se em fazê-lo – e está admitindo que será sempre assim. Ora, o trabalho indispensável à existência é essencialmente manual. Sejamos artistas ou sábios, nenhum de nós e pode privar dos produtos obtidos pelo trabalho dos braços: pão, vestuário, estradas, navios, luz, calor etc. Até dos nossos gozos, não hã um que não se baseie no trabalho manual. E é precisamente deste labor, fundamento da vida, que se querem descarregar.


Compreendemo-lo perfeitamente. Hoje assim deve ser.


Porque, fazer um trabalho manual significa encerrar-se dez ou doze horas por dia num atelier doentio, ou ficar dez anos, trinta anos, toda a vida, agarrado à mesma tarefa.


Isto significa a condenação a um salário reles, à inferioridade por toda a vida perante toda a gente e até a seus próprios olhos, porque, digam o que quiserem os belos senhores, – o trabalhador manual é sempre considerado inferior ao trabalhador do pensamento, e quem penou dez horas no atelier não tem tempo e menos ainda meios de se dar os altos gozos da ciência e da arte, nem sobretudo preparar-se para os apreciar; deve contentar-se com as migalhas que caem da mesa dos privilegiados.


Compreendemos, pois, que todos tenham uma só aspiração: sair, ou fazer sair seus filhos desta condição inferior: de se criar, uma situação “independente”, isto é – viver também do trabalho alheio!


Assim será enquanto houver uma classe de trabalhadores de braços e outra classe de trabalhadores do pensamento – mão negras e mãos brancas – será sempre assim.


Com efeito, que interesse pode ter este trabalho embrutecedor para o obreiro, que antecipadamente conhece a sua sorte, que desde o berço até a campa há de viver na mediocridade, na pobreza, na incerteza do dia de amanhã? Assim, quando se vê a imensa maioria dos homens retomar todas as manhãs a triste tarefa, fica-se surpreendido da sua perseverança que lhes permite, como uma máquina, obediente e cega, ao impulso que lhe dão, de levar esta vida de miséria, sem esperança no dia de amanhã, sem mesmo entrever em vagos clarões que um dia eles, ou ao menos seus filhos, farão parte desta humanidade, rica enfim de todos os tesouros da livre natureza, de todos os gozos do saber e da criação científica e artística, reservados hoje a alguns privilegiados.


É precisamente para pôr fim a esta separação entre o trabalho mental e o trabalho manual, que nós queremos abolir o salariado, que queremos a Revolução social. Então já o trabalho não se apresentará como uma maldição da sorte, tornar-se-á o que deve ser: o livre exercício de “todas” as faculdades do homem.


Seria tempo, além disso, de submeter a uma análise rigorosa essa lenda de trabalho superior que se pretende obter debaixo do açoite do salário.


Basta visitar, não a manufatura e a oficina modelos que se encontram aqui e ali em estado de exceções, mas as oficinas tais como elas são ainda quase todas, para considerar o imenso desperdício de forças humanas que caracteriza a indústria atual.


Por uma fábrica organizada mais ou menos racionalmente, há cem ou mais que malbaratam o trabalho do homem, essa força precisa, sem outro motivo mais sério que o de procurar talvez dois soldos a mais para o patrão.


Aqui vereis moços de vinte a vinte e cinco anos, todo o dia sobre um banco, o peito oprimido, sacudindo febrilmente a cabeça e o corpo para atar com uma ligeireza de prestidigitador as duas pontas de maus restos de fios de algodão que sobraram do tear de rendas. Que progênie deixarão no mundo estes corpos trêmulos e raquíticos. Mas… “eles ocupam tão pouco lugar na oficina e rendem cada um cinquenta cêntimos por dia”, dirá o patrão.


Vereis além, numa imensa oficina de Londres, moças encalvecidas aos dezessete anos, a força de conduzir à cabeça, duma sala para outra, pratos de fósforos, enquanto a mais simples máquina poderia carrear os fósforos para as suas mesas. Mas… custa tão pouco o trabalho das mulheres que não tem ofício especial! Uma máquina para que? Quando aquelas não puderem mais, facilmente se substituem… Há tantas por aí na rua!


E por toda a parte assim, de S. Francisco a Moscou, de Nápoles a Estocolmo. O estrago das forças humanas é o traço predominante distintivo da indústria – sem falar do comércio, onde atinge proporções ainda mais colossais.


Ainda não é tudo. Se falardes ao diretor duma oficina bem organizada, ele vos explicará ingenuamente que hoje é difícil achar um obreiro hábil, vigoroso, enérgico, que se entregue ao trabalho com denodo. Se um se apresenta, dirá, entre os vinte ou trinta que vêm todas as segundas-feiras pedir-nos trabalho, ele tem a certeza de ser recebido, ainda mesmo que estejamos tratando de reduzir o número de braços. È reconhecido ao primeiro golpe de vista e aceita-se sempre, embora tenhamos de nos desfazer no outro dia dum obreiro idoso ou menos ativo: E aquele que acaba de ser despedido e todos os que seguirem amanhã, vão juntar-se a essa imensa reserva do capital – os obreiros sem trabalho, – que se não chamam aos teares e aos bancos senão em momentos de pressa ou para vencer a resistência dos grevistas. Ou ainda, esse refugo das melhores oficinas, esse trabalhador mediano vai reunir-se ao grande exército, também formidável de obreiros velhos ou medíocres, que circula continuamente entre as oficinas secundárias, as que apenas salvam as despesas e que se tiram de dificuldades por truques e embustices ao comprador e sobretudo ao consumidor dos países distantes.


E se falardes ao próprio trabalhador, sabereis que a regra dos atelieres é que o obreiro nunca faça aquilo que é capaz. Desgraçado daquele que, numa oficina inglesa, não seguisse este conselho que à entrada recebe dos camaradas.


Porque os trabalhadores sabem que se num momento de generosidade, cederam às instâncias dum patrão e consentirem em intensificar o trabalho para acabar obras urgentes, de então em diante esse trabalho nervoso será exigido como regra na escala dos trabalhos. Assim em nove oficinas por dez, preferem nunca produzir o que podem. Em certas indústrias limita-se a produção para manter os preços elevados e às vezes passa-se a palavra de ordem de “Cocanny”, que significa: “para má paga mau trabalho!”.


O trabalho salariado é um trabalho de servo: não pode nem deve dar tudo quanto poderia dar. Se a indústria rende atualmente cem vezes mais do que no tempo dos nossos avós, deve-se ao súbito despertar das ciências físicas e químicas no fim do século passado; não a organização capitalista do trabalho salariado, mas contra a vontade desta organização.




III



Os que estudaram seriamente a questão não negam nenhuma das vantagens do comunismo – com a condição, bem entendido, que seja completamente livre, isto é, anarquista. – Reconhecem que o trabalho pago em dinheiro, mesmo disfarçado sobre o nome de bônus, em associações obreiras governadas pelo Estado, guardaria estigma de salariado, e conservaria os seus inconvenientes. Constatam que todo o sistema não tardaria a sofrer, disso, mesmo quando a sociedade reentrasse na posse dos instrumentos de produção. E admitem que, graças à educação integral dada a todos os filhos, aos hábitos laboriosos das sociedades civilizadas, com a liberdade de escolher e variar de profissões e o atrativo do trabalho feito por iguais para o bem-estar de todos, uma sociedade comunista não teria falta de produtores, que bem depressa triplicariam e decuplicariam a fecundidade do solo e dariam um novo avanço à indústria.


Eis no que convêm os nossos contraditores, “mas o perigo, dizem eles, virá dessa minoria de ociosos que não quererão trabalhar, apesar das excelentes condições que tornarão o trabalho agradável, ou que lhe não suscitam o espírito de continuação. Hoje a perspectiva da fome obriga os mais refratários a caminhar com os outros. Aquele que não chega à hora fixada é logo despedido. Mas basta uma ovelha sarnosa para contaminar um rebanho ou três ou quatro obreiros negligentes ou recalcitrantes para desencaminharem todos ou outros e introduzirem no atelier o espírito de revolta que torna o trabalho impossível, de sorte que no fim das contas não haverá remédio senão voltar a um sistema que force os cabeças a reentrar nas fileiras. Ora bem, o único sistema que permite exercer esta pressão sem atingir os sentimentos do trabalhador não será a remuneração conforme o trabalho executado? Pois que qualquer outro meio implicaria a intervenção contínua duma autoridade, que cedo repugnaria o homem livre.


Eis, segundo cremos, a objeção em toda a sua força, pretendendo justificar o Estado, a lei penal, o juiz e o carcereiro.


Poderíamos limitar-nos a responder o que tantas vezes temos repetido a propósito da autoridade em geral. “Para evitar um mal possível, recorreis a um meio que é por si mesmo um mal maior e que é a causa dos mesmos abusos a que vos quereis opor. Pois não esqueçais que é o salariado, - a impossibilidade de viver doutra maneira que não seja vender a sua força de trabalho, - que criou o sistema de capitalismo atual, cujos vícios começais a reconhecer.” O salariado nasceu da escravidão e da servidão (imposto pela força) de que não é uma modificação modernizada. Assim o argumento não tem mais valor do que os outros com que se pretende desculpar a propriedade e o Estado.


Entretanto vamos examinar esta objeção e ver o que ela poderia ter de justo. Primeiro, não é evidente que se uma sociedade no princípio do trabalho livre fosse realmente ameaçada pelos ociosos, poderia livrar-se sem se dar uma organização autoritária ou recorrer ao salariado.


Suponha-se um grupo dum certo número de voluntários, unindo-se em uma empresa qualquer, para o êxito da qual rivalizem de zelo, menos um dos associados que frequentemente falta ao seu posto; deverão por causa dele dissolver o grupo, nomear um presidente que imponha multas, ou como na Academia distribuir senhas de presença? É evidente que não farão nada disso, mas que um dia digam ao camarada que ameaça fazer periclitar a empresa: “Meu amigo, nós gostaríamos bem de trabalhar contigo, mas como faltas amiúde no teu posto, ou fazes negligentemente o teu serviço, devemos separar-nos. Vai procurar outros camaradas que se acomodem à tua negligência!”.


O mesmo se passa com a manutenção dum certo nível moral na sociedade. Pretende-se que isso é devido ao guarda campestre, ao juiz e ao policial; enquanto que na realidade ela mantém-se “apesar” do juiz, do policial e do guarda campestre. – “Muitas leis, muitos crimes”.


– Isto foi dito muito antes de nós.


Não é só nos ateliers industriais que as coisas se passam assim, pratica-se em toda a parte, diariamente, numa escala de que só os roedores de livros podem ainda duvidar.


Quando uma companhia de caminhos de ferro federada com outras companhias falta aos seus compromissos, quando chega atrasada com seus trens e deixa as mercadorias demoradas nas suas estações as outras companhias ameaçam resilir os contratos e isto de ordinário é suficiente.


Crê-se geralmente, ao menos, ensina-se – que o comércio não é fiel aos seus compromissos senão com medo dos tribunais; não é verdade. Nove vezes em dez, o comerciante que falta à sua palavra não é levado a juízo. Aliás onde o tráfico é mais ativo como Londres, só o fato de levar um devedor a defender-se bastará a imensa maioria dos negociantes para que deixem de ter negócios com aquele que os tiver feito confabular com o advogado.


Mas então por que não se faria numa sociedade baseada no trabalho voluntário o que fazem hoje entre companheiros de ateliers, comerciantes e companhias de caminhos de ferro?


Uma associação, por exemplo, que estipulasse com cada um dos seus membros o contrato seguinte: – “Nós estamos prontos a garantir-vos o gozo das nossas casas, armazéns, ruas, meios de transporte, escolas, museus etc., com a condição que dos vinte aos quarenta e cinco ou cinquenta anos consagreis quatro ou cinco horas diárias a um dos trabalhos reconhecidos necessários para viver. Escolhei vós mesmo, quando quiserdes os grupos de que quiserdes fazer parte, ou constituir um novo, contanto que se encarregue de produzir o necessário. E para o resto do vosso tempo, agrupai-vos com quem quiserdes no sentido duma recreação qualquer d’arte ou da ciência a vosso gosto.


“Mil e duzentas ou mil e quinhentas horas de trabalho por ano é tudo quanto se vos pede para vos garantir o que estes grupos produzem ou tem produzido. Mas se nenhum dos milhares de grupos da nossa federação, por qualquer motivo vos não querer receber, se sois absolutamente incapaz de produzir coisa útil, ou o não quereis fazer, então vivei como um isolado ou um doente. Se formos bastante ricos para vos não recusarmos o necessário, teremos muito prazer em vo-lo dar. Sois homem e tendes direito à vida, mas colocando-vos em condições especiais, é mais que provável que disso vos ressentireis nas vossas relações cotidianas com os outros cidadãos. Sereis considerado como um egresso da sociedade burguesa, a menos que reconhecendo-vos como um gênio senão apressem a dispensar-vos de todo o trabalho. E enfim, se isto não vos agrada, procurai por esse mundo outras condições. Ou arranjai aderentes e constituí outros grupos que se organizem sobre novos princípios. Nós preferimos os nossos”.


Eis o que se poderia fazer numa sociedade comunista, se os ociosos nela se tornassem assaz numerosos para ser preciso defender-se deles.




IV



Mas duvidamos muito que haja ocasião de temer esta eventualidade numa sociedade realmente baseada sobre a liberdade inteira do indivíduo.


Com efeito, apesar do prêmio à ociosidade oferecido pela posse individual do capital, o homem verdadeiramente preguiçoso é relativamente raro, uma vez que não seja um doente.


Diz-se muitas vezes entre os trabalhadores que os burgueses são mandriões. Há bastantes, com efeito mas estes são ainda a exceção. Por contrário em cada empresa industrial tem-se a certeza de encontrar um ou mais burgueses que trabalham muito. É verdade que o grande número dos burgueses aproveita a sua situação privilegiada para tomar a si os trabalhos menos penosos e que trabalha em condições higiênicas, de alimento, ar etc., que lhe permitem fazer o seu trabalho sem grande fadiga. Ora, são essas precisamente as condições que reclamamos para todos os trabalhadores sem exceção.


Também é preciso dizer que, graças à sua condição privilegiada, os ricos fazem muitas vezes trabalho absolutamente inútil ou mesmo prejudicial a sociedade. Imperadores, ministros, chefes de repartição, diretores de oficinas, comerciantes, banqueiros etc. sujeitam-se a fazer durante certas horas por dia, um trabalho que ele acham mais ou menos enfadonho, – preferindo todos as suas horas de folga a esta tarefa obrigatória. E se, em nove casos por dez, esta tarefa é funesta, eles nem por isso a acham menos fatigante. Mas é precisamente porque os burgueses empregam a maior energia em fazer o mal (cientemente ou não) e em defender a sua posição privilegiada, que venceram a nobreza campesina e continuam a dominar a massa popular. Se eles fossem ociosos há muito teriam desaparecido como os talões vermelhos.


Quanto à ociosidade da imensa maioria dos trabalhadores, só os economistas e os filantropos falam nisso. Falai a esse respeito a um industrial inteligente e ele vos dirá que se se metesse na cabeça dos trabalhadores serem mandriões, não haveria outra coisa a fazer senão fechar todas as oficinas; porque nenhuma medida de severidade, nenhum sistema de espionagem conseguiria nada. Era bom ver no último inverno o terror provocado nos industriais ingleses quando alguns agitadores começaram a pregar o co-canny, “má paga, mau trabalho”: cedam à força, não se ralem e estraguem o mais que puderem!


– “Desmoralizam o trabalhador, querem matar a indústria!” gritavam aqueles mesmos que antes trovejavam contra a imoralidade do obreiro e a má qualidade dos seus produtos.


Assim, quando se fala da ociosidade possível, é bom compreender que se trata duma minoria ínfima na sociedade. E antes de legislar contra esta minoria, não seria mais urgente conhecer-lhe a origem?


Quem observar com um olhar inteligente sabe que a criança reputada preguiçosa na escola, muitas vezes compreende mal o que lhe é mal-ensinado.


Muitas vezes também, o seu caso provêm de anemia cerebral, resultado da pobreza e duma educação anti-higiênica.


Rapaz preguiçoso para o latim e o grego, trabalharia como um negro se lhe iniciassem nas ciências, principalmente por intermédio do trabalho manual.


Uma mocinha tida como nula em matemática, torna-se a primeira matemática de sua classe se por acaso dá na mão de alguém que soube explicar-lhe o que ela não compreendia nos elementos de aritmética. E um obreiro, desmazelado na oficina, cava no seu jardim desde a aurora do nascer do sol, até de tarde ao anoitecer.


Os preguiçosos são criaturas levadas por uma via que não corresponde nem ao seu temperamento nem à sua capacidade.


Ao ler as biografias dos grandes homens, fica-se impressionado com o número de preguiçosos entre eles. Preguiçosos enquanto não acharam o seu caminho e laboriosos incansáveis mais tarde. Darwin, Stephenson e tantos outros eram deste número. O ocioso é um revoltado que não concebe porque há de ficar uma vida inteira a fazer a décima oitava parte dum alfinete ou a centésima parte de um relógio, ou amarrado a um banco para proporcionar prazer ao patrão, enquanto se sente muito menos besta do que este, e que não tem outra culpa senão ter nascido numa choça em lugar de vir ao mundo num palácio.


Outros descoroçoaram vendo que por mais que queiram não conseguem ser perfeitos no trabalho a que forem arrastados e não sabendo outro, aborreceram o trabalho em geral. Milhares de obreiros e artistas “manqués” estão neste caso.


Pelo contrário, aquele que, desde criança, aprende a tocar “bem” piano, manejar “bem” a polaina, o cinzel, o pincel ou a lima, sentindo que o que faz é “belo”, não abandonará nunca o piano, o cinzel ou a lima. Achará prazer no seu trabalho, que o não fatigará enquanto o não pratique em excesso.


Sob uma única denominação (preguiça) agrupam uma série de resultados devidos a diversas causas, cada uma das quais poderia tornar-se um manancial de bem, em vez de ser um mal para a sociedade. Aqui, como para a criminalidade, como para todas as questões concernentes às faculdades humanas, reuniram-se fatos que não tem entre si nada de comum. Diz-se preguiça ou crime, sem mesmo dar o trabalho de lhes analisar as causas. Empenham-se em os castigar, sem se perguntar se no próprio castigo se não contém um prêmio à “preguiça” ou ao “crime”.


Eis porque uma sociedade livre, vendo o número de ociosos aumentar no seu seio, pensaria, sem dúvida, em rebuscar as causas da sua preguiça para as extinguir, antes de recorrer aos castigos. Quando se trata, como já dissemos, dum simples caso de anemia cerebral: “Antes de carregar de ciência o cérebro da criança, daí-lhe primeiro sangue, fortificai e, para que não perca o seu tempo, levai-a ao campo ou a borda do mar. Aí ensinai-lhe ao ar livre, em não em livros, a geometria, medindo com ela as distâncias até aos rochedos próximos; ela aprenderá as ciências naturais colhendo as flores e pescando no mar; – a física, fabricando o barco em que há de ir pescar. – Mas por favor, não lhe enchais o cérebro de frases e de línguas mortas. Não façais do menor um preguiçoso”.


Um rapaz não tem hábito de ordem e de regularidade. Deixai que os rapazes lhos inculquem entre eles. Mais tarde o laboratório e a oficina, o trabalho num espaço apertado, com muitos utensílios a manejar, lhe darão o método. Não vedes que com os vossos métodos de ensino, elaborados por um ministro para oito milhões de alunos, que representam oito milhões de capacidades diferentes, não fazei mais do que impor um sistema bom para mediocridades, imaginado por uma média de medíocres. A nossa escola torna-se uma universidade da preguiça, como a vossa prisão é uma universidade do crime.


Dai ao obreiro que não pode adstringir-se a fabricar uma minúscula fração de qualquer artigo, que abafa junto duma pequena máquina de fazer buracos, que acaba por odiar, dai-lhe a possibilidade de cavar a terra, cortar árvores na floresta, correr no mar contra a tempestade, sulcar o espaço na locomotiva, mas não obrigueis a ficar toda a vida a vigiar uma pequena máquina de abrir buracos ou a fazer bicos de alfinetes!







O SALARIADO COLETIVISTA




I



Nos seus planos de reconstrução da sociedade, os coletivistas cometeram, na nossa opinião, um duplo erro. Falando em abolir o regime capitalista, quereriam manter, entretanto, duas instituições que fazem o fundo desse regime: o governo representativo e o salariado.


Pelo que toca o governo “chamado” representativo, já falamos muitas vezes. É-nos absolutamente incompreensível que homens inteligentes – e não faltam no partido coletivista – possam conservar-se partidários dos parlamentos nacionais ou municipais após todas as lições que a história nos tem dado a esse respeito, em França, na Inglaterra, na Alemanha, na Suíça ou nos Estados Unidos.


Enquanto de todos os lados vemos o regime parlamentar afundar-se e surgir de todos os lados a crítica “dos próprios princípios” do sistema – e já não só da sua aplicação, como é que socialistas revolucionários defendem esse sistema condenado a morrer?


Elaborado pela burguesia para fazer frente a realeza, consagrar ao mesmo tempo e consagrar o seu domínio sobre os trabalhadores, o sistema parlamentar é a forma por excelência do regime burguês. Pelo regime parlamentar a burguesia procurou simplesmente opor um dique à realeza, sem dar a liberdade ao povo. Mas à medida que o povo se torna mais consciente dos seus interesses, o sistema não pode mais funcionar. Os democratas de todos os países imaginam inutilmente diversos paliativos; falam de representação proporcional, de representação das minorias – outras utopias parlamentares. Esforçam-se, numa palavra, em busca do inencontrável. Mas é forçoso reconhecer que erram o caminho e a confiança num governo representativo desaparece.


Dá-se o mesmo com o salariado: porque depois de ter proclamado a abolição da propriedade privada e a posse em comum dos instrumentos de trabalho, como se pode reclamar, sob uma ou outra forma, a manutenção do salariado? É contudo o que fazem os coletivistas, recomendando os bônus de trabalho.


Compreende-se que os socialistas ingleses, desde o começo deste século, inventassem os bônus de trabalho. Eles procuravam simplesmente pôr o Capital e o Trabalho de acordo. Repudiavam toda a ideia de tocar violentamente na propriedade dos capitalistas.


Se mais tarde Proudhon retomou esta invenção, isto ainda se compreende. No seu sistema mutualista, ele procurava tornar o capital menos ofensivo, apesar da manutenção da propriedade individual, que detestava do fundo do coração, mas que julgava necessária como garantia do indivíduo contra o Estado.


Que economistas mais ou menos burgueses também admitiam os bônus de trabalho não admira mais. Eles querem salvar na próxima derrocada a propriedade individual das casas habitadas, do solo, das oficinas; em todo o caso a das casas habitadas e do capital necessário a produção manufatureira.


Contanto que o bônus de trabalho possa ser trocado por joias e carruagens, o proprietário da casa aceita-lo-á de boa vontade como paga do aluguel. E enquanto a casa de habitação, o campo e a oficina pertencem a proprietários isolados, forçoso será pagar-lhes de qualquer maneira para trabalhar nos seus campos ou nas suas oficinas e morar nas suas casas. Forçoso será igualmente pagar ao trabalhador em ouro, papel-moeda ou bônus cambiáveis contra toda a espécie de mercadorias.


Mas como se pode defender esta nova forma de salariado – o bônus de trabalho – se se admite que a casa, o campo, a oficina já não são propriedades particulares, antes pertencem à comuna ou à nação?




II



Examinemos mais de perto este sistema de retribuição do trabalho gabado pelos coletivistas franceses, alemães, ingleses e italianos.


Reduz-se pouco mais ou menos a isto: Toda a gente trabalha, nos campos, oficinas, escolas, hospitais etc. O dia de trabalho é regulado pelo Estado, ao qual pertence a terra, as oficinas, vias de comunicação etc. Cada dia de trabalho é pago com um bônus de trabalho. Com esse bônus o obreiro pode obter nos armazéns do Estado ou das diversas corporações toda a espécie de mercadorias. O bônus é divisível, de sorte que se pode comprar, por uma hora de trabalho, carne, por dez minutos, fósforos ou então meia hora de tabaco. Em lugar de dizer: quantos soldos são, dir-se-ia, depois da Revolução coletivista, cinco minutos de sabão.


A maior parte dos coletivistas, fiéis à distinção estabelecida pelos economistas burgueses (e por Marx) entre o trabalho “qualificado”, e o trabalho “simples”, dizem além disso que o trabalho qualificado ou profissional deverá ser pago umas tantas vezes mais do que o trabalho “simples”. Assim, uma hora de trabalho do médico será equivalente a duas ou três horas do trabalho da enfermeira ou a três horas do cavouqueiro. “O trabalho profissional ou qualificado será um múltiplo do trabalho simples”, diz o coletivista Groenlund, porque demanda uma aprendizagem mais ou menos longa.


Outros coletivistas, tais como os marxistas franceses, não fazem esta distinção. Proclamam a “igualdade dos salários”. O doutor, o mestre-escola e o professor, serão pagos (em bônus de trabalho) à mesma taxa que o cavouqueiro. Oito horas passadas dando a volta no hospital valerão tanto como oito horas passadas e, trabalhos de aterro ou desaterro, na mina ou na fábrica.


Alguns fazem uma concessão a mais: admitem que o trabalho desagradável ou malsão – tal como o dos esgotos – poderá ser pago por uma taxa mais elevada que o trabalho agradável. Uma hora de serviço nos esgotos, dizem eles, contar-se-á como duas horas de trabalho do professor.


Certos coletivistas admitem a retribuição em bloco, por corporações. Uma corporação diria: “Aqui estão cem toneladas de aço. Foram produzidas por cem trabalhadores e levaram dez dias. Trabalhávamos oito horas por dia, o que faz oito mil horas de trabalho por cem toneladas de aço; ou seja oito horas por tonelada”. Assim o Estado lhes pagaria oito mil bônus de trabalho de uma hora cada um, e estes oito mil bônus seriam repartidos entre os membros da oficina como bem lhes parecesse.


Doutra parte, cem mineiros levando vinte dias para extrair oito mil toneladas de carvão, o carvão valeria duas horas por tonelada e os dezesseis mil bônus duma hora cada um, recebidos pela corporação dos mineiros, seriam repartidos entre estes segundo as suas aplicações.


Se os mineiros protestassem e dissessem que a tonelada do aço não deve custar senão seis horas em vez de oito horas de trabalho; se o professor quisesse fazer pagar o seu duas vezes mais que a enfermeira, então interviria o Estado e regularia as diferenças.


Tal é em poucas palavras a organização que os coletivistas querem fazer surgir da Revolução social. Quanto ao regime político, seria o parlamentarismo, modificado pelo mandato imperativo e o “referendum”, isto é, o plebiscito pelo “sim” ou pelo “não”.


Digamos desde já que este sistema nos parece absolutamente irrealizável. Os coletivistas começaram por proclamar um princípio revolucionário – abolição da propriedade privada – e apenas proclamando, negam-no, mantendo uma organização da produção e do consumo, que nasceu da propriedade privada.


Eles proclamam um princípio, uma sociedade não se pode organizar sobre dois princípios absolutamente opostos, dois princípios que se contradizem continuamente. E a nação, ou a comuna, que adotasse uma tal organização, seria forçada, ou a voltar à propriedade privada ou a transformar-se imediatamente em sociedade comunista.




III



Dissemos que certos escritores coletivistas exigem que se estabeleça entre o trabalho “qualificado” ou profissional e o trabalho “simples”. Pretendem que a hora de trabalho do engenheiro, do arquiteto ou do médico deve ser contada como duas ou três horas do ferreiro, do pedreiro e da enfermeira. E a mesma distinção deve ser feita, dizem eles, entre toda espécie de ofício que exija uma aprendizagem mais ou menos longa e os simples jornaleiros.


Ora, estabelecer esta distinção é manter todas as desigualdades da sociedade atual. É traçar antecipadamente uma demarcação entre os trabalhadores e os que pretendem governá-los. É dividir a sociedade em duas classes bem distintas: aristocracia do saber, acima da plebe das mão calosas; uma votada ao serviço da outra; uma trabalhando com os seus próprios braços para sustentar e vestir os que aproveitam os seus vagares a fim de aprenderem a dominar os seus sustentadores.


É mais ainda, retomar um dos braços mais distintivos da sociedade atual e dar-lhe a sansão da Revolução social. É erigir em princípio um abuso que hoje se condena na velha sociedade que se afunda.


Sabemos o que nos vão responder. Citar-nos-ão os economistas burgueses e Marx com eles para demonstrar que a escala dos salários tem sua razão de ser, pois que “a força de trabalho” do engenheiro terá custado à sociedade mais do que “a força de trabalho” do cavador? Com efeito os economistas não procuraram provar-nos que se o engenheiro é pago vinte vezes mais que o cavador é porque as despesas “necessárias” para fazer um engenheiro são mais consideráveis que as necessárias para fazer um cavador? E Marx não pretendeu que a mesma distinção é igualmente lógica entre diversos ramos de trabalho manual?


Mas nós sabemos também no que devemos ficar a este respeito. Sabemos que se o engenheiro, o sábio e o doutor são hoje pagos dez ou cem vezes mais do que o trabalhador, se o tecelão ganha três vezes mais que o lavrador e dez vezes mais do que a operária duma fábrica de fósforos, não é em razão do seu “custo de produção”, é em razão dum monopólio de educação ou do monopólio da indústria. O engenheiro, o sábio, o doutor exploram um capital – o seu diploma – como o burguês explora uma oficina ou como o nobre explora os seus títulos de nascimento.


Quanto ao patrão que paga ao engenheiro vinte vezes mais que ao trabalhador, é em razão deste cálculo bem simples: se o engenheiro lhe pode economizar cem mil francos por ano, sobre a produção, ele paga-lhe vinte mil francos. E se um contramestre, - hábil em fazer suar os obreiros, - que lhe economiza dez mil francos na mão-de-obra, apressa-se a dar-lhe dois ou três mil francos por ano. Dá um milhar de francos a mais contando ganhar dez e é esta a essência do regime capitalista.


Não venham então falar-nos de “despesas de produção” que custa a força do trabalho, e dizer-nos que um estudante, que passou alegremente a juventude na universidade, tem “direito” a um salário dez vezes mais elevado que o filho do mineiro que se estiola na mina aos onze anos, ou que um tecelão tem “direito” a um salário três ou quatro vezes mais elevado que o agricultor. O tecelão aproveita simplesmente as vantagens em que a indústria vive na Europa em relação aos países que ainda não tem indústria.


Quererão fazer-nos crer, por exemplo, que o salário de trinta soldos que se paga à obreira parisiense, os seis soldos da camponesa do Auvergne, que perde a vista com as rendas, ou os quarenta soldos por dia do camponês representam as suas “despesas de produção”. Sabemos bem que há quem trabalhe muitas vezes ainda por menos, mas também sabemos que isso se faz unicamente porque, graças à nossa soberba organização, é preciso morrer de fome, faltando esses salários irrisórios.


Também não deixarão de nos dizer que a escala coletivista dos salários seria, entretanto, um progresso. – “Valerá mais, dirão ver certos obreiros receber uma soma duas ou três vezes superior à do comum, do que ministros embolsarem num dia o que um trabalhador não chega a ganhar num ano. Sempre seria um passo para a igualdade”.


Para nós seria um passo para trás. Introduzir numa sociedade nova a distinção entre o trabalho simples e o trabalho profissional, atingiria, já o dissemos, a fazer sancionar pela Revolução e erigir em princípio um fato brutal, que suportamos hoje, mas que não obstante achamos injusto. Seria imitar esses sonhadores de 4 de agosto de 1789, que proclamavam a abolição dos direitos feudais com frases de efeito, mas que no oito de agosto sancionavam os mesmos direitos, impondo aos camponeses contribuição para as resgatar aos senhores, que colocavam sob a salvaguarda da Revolução. Seria ainda imitar o governo russo, proclamando, por ocasião da emancipação dos servos, que a terra pertencia desde então aos senhores, enquanto que antes era um abuso dispor de terras que pertencessem exclusivamente aos servos.


Na sociedade atual, quando vemos um ministro pagar-se cem mil francos por ano, enquanto o trabalhador tem de contentar-se com mil, ou menos; quando vemos o contramestre pago duas, três vezes mais do que o obreiro e que, mesmo entre obreiros, há todas as gradações, desde os dez francos do obreiro e os seis soldos da mulher do povo, desaprovamos o salário elevado do ministro e ainda a diferença entre os dez francos do obreiro e os dez soldos da pobre mulher. E dizemos: “Abaixo os privilégios da educação, tal qual como os do nascimento!” Somos anarquistas precisamente porque esses privilégios nos revoltam.


Já nos revoltam nesta sociedade autoritária. Poderíamos então suportá-los numa sociedade que debutasse proclamando a Igualdade?


Aí está porque certos coletivistas, compreendendo a impossibilidade de manter a escala dos salários numa sociedade inspirada pelo sopro da Revolução, se apressam a proclamar que os salários serão iguais. Mas esbarram contra novas dificuldades, e a sua igualdade dos salários torna-se uma utopia tão irrealizável como a escala dos outros coletivistas.


Uma sociedade que se tenha apoderado de toda a riqueza social e que tenha em alta voz proclamado que todos tem o direito a essa riqueza – seja qual for a parte que tiverem tomado anteriormente em a criar, – será obrigado a abandonar toda a ideia de salariado, seja em moeda, seja em bônus de trabalho, qualquer que seja a forma que se apresente.




IV



“A cada um segundo as suas obras”, dizem os coletivistas ou, em outros termos, segundo a sua parte de serviço feita à sociedade. E este princípio é recomendado como devendo ser posto em prática desde que a Revolução tenha posto em comum os instrumentos de trabalho e tudo quanto é necessário à produção!


Ora bem, se a Revolução social tivesse a desgraça de proclamar este princípio, seria travar o desenvolvimento da humanidade; seria abandonar, sem o resolver, o imenso problema social que os séculos passados nos puseram nos braços.


Com efeito, numa sociedade como a nossa, onde vemos que quanto mais o homem trabalha menos ganha, este princípio pode parecer à primeira vista como uma aspiração para a justiça. Mas no fundo, não é senão a consagração das injustiças do passado. É por este princípio que o salariado começou, para ir dar nas desigualdades clamorosas, em todas as abominações da sociedade atual, porque, desde que se começou a avaliar em moeda, ou em toda a outra espécie de salário, os serviços prestados – do dia em que se disse que cada um não teria senão o que ele conseguisse fazer, que lhe pagassem pelas suas obras, toda a história da sociedade capitalista (com o auxílio do Estado) estava escrita previamente; estava encerrada em germe nesse princípio.


Devemos, pois, voltar ao ponto de partida e refazer de novo a mesma evolução? Os nossos teóricos assim o querem; mas felizmente é impossível: a Revolução, já o dissemos, será comunista; aliás, afogada em sangue, terá de recomeçar.


Os serviços prestados à sociedade, – seja em trabalhos na oficina, ou nos campos, ou mesmo serviços morais, “não podem” ser avaliados em unidades monetárias. Não pode haver medida exata do valor, do que se chamou impropriamente de valor de troca, nem do valor de utilidade em relação a produção. Se virmos dois indivíduos trabalhando, um e outro, durante anos, cinco horas por dia, para a comunidade, em diferentes trabalhos que lhes agradem igualmente, podemos dizer que, em suma, seus trabalhos são equivalentes. Mas o seu trabalho não se pode fracionar e dizer que o produto de cada dia, de cada hora ou de cada minuto de trabalho de um, vale o produto de cada hora ou de cada minuto do outro.


Pode-se dizer de “grosso modo” que o homem que, durante a sua vida, se privou de folga durante dez horas por dia, deu à sociedade mais do que aquele que só se privou cinco horas por dia ou que não se privou de nada. Mas não se pode pegar no que fez durante duas horas e dizer que este produto vale duas vezes mais do que o produto duma hora de trabalho doutro indivíduo e remunerá- lo em proporção. Seria desconhecer tudo o que há de complexo na indústria, na agricultura, na vida inteira da sociedade atual: seria ignorar a que ponto todo o trabalho do indivíduo é o resultado dos trabalhos anteriores e presentes da sociedade inteira. Seria julgar-se na idade da pedra, ao passo que vivemos na idade do aço.


Entrai numa mina de carvão e vede este homem, postado junto da imensa máquina que faz subir e descer a gaiola. Tem na mão a alavanca que faz parar e recuar a marcha da máquina; abaixa-a e a gaiola volta para trás num ápice; lança- a para cima, para baixo com uma rapidez vertiginosa. Todo atenção, segue com os olhos na parede um indicador que lhe mostra, numa pequena escala, em que ponto do poço se encontra a gaiola em cada instante da sua marcha e desde que o indicador atingiu um certo nível, suspende súbito o movimento da gaiola, nem um metro mais acima nem mais abaixo que a linha que se quer. E, acabados de descarregar os cestos cheios de carvão e postos de lado os cestos vazios, volta a alavanca e atira de novo a gaiola para o espaço.


Durante oito horas seguidas ele sustenta esta prodigiosa atenção. Se o seu cérebro se descuida um só momento, a gaiola vai esbarrar e quebrar as rodas, romper o cabo, esmagar os homens, suspender todo o trabalho da mina. Perca ele três segundos em cada golpe de alavanca e, - nas minas modernas aperfeiçoadas – a extração é reduzida de vinte a cinquenta toneladas por dia.


Todos os trabalhadores engajados na mina contribuem, na medida de suas forças, da sua energia, do seu saber, da sua inteligência e da sua habilidade, para extrair carvão. E nós podemos dizer que todos tem o direito de “viver”, de satisfazer as suas necessidades e ainda as suas fantasias, depois que o necessário esteja assegurado a todos. Mas como podemos avaliar as suas “obras”?


E depois o carvão que extraem é obra “sua”? Não é também obra daqueles homens que construíram o caminho de ferro que conduz à mina e as estadas que radiam todas as suas estações? Não é também obra dos que lavraram e semearam os campos, extraíram o ferro, cortaram as madeiras na floresta, fabricaram as máquinas que hão de queimar o carvão e assim sucessivamente?


Nenhuma distinção se pode fazer entre as obras de cada um. Medi-las pelos resultados leva-nos ao absurdo. Fracioná-las e medi-las por horas de trabalho leva-nos igualmente ao absurdo. Resta uma coisa: colocar as “precisões” acima das “obras” e reconhecer o direito à vida primeiro, depois ao bem-estar para todos os que tomarem uma certa parte na produção.


Mas tomai outro qualquer ramo da atividade humana, tomais o conjunto das manifestações da existência: Qual dentre nós pode reclamar uma retribuição mais forte para as suas obras? O médico, que descobriu a doença ou a enfermeira, que assegurou a cura pelos seus cuidados higiênicos? É o inventor da primeira máquina a vapor ou o rapaz que, um dia, cansado de puxar a corda que prendia a válvula para fazer passar o vapor debaixo do pistom, atou a corda a uma alavanca da máquina e foi brincar com os seus camaradas, sem suspeitar que tinha inventado o mecanismo essencial de toda a máquina moderna – a válvula automática?


É o inventor da locomotiva ou esse obreiro de Newcastle, que sugeriu substituir por travessas de madeira as pedras que outrora colocavam sob os trilhos e que faziam descarrilar os trens por falta de elasticidade? É o mecânico sobre a locomotiva? O homem que por sinais faz parar os trens? O agulheiro que lhes abre as linhas?


A quem devemos o cabo transatlântico? Seria ao engenheiro que teimava em afirmar que o cabo transmitiria os despachos enquanto os sábios eletricistas declaravam a coisa impossível? A Maury, o sábio que aconselhou abandonar os grossos cabos por outros delgados como uma cana? Ou ainda a esses voluntários vindos não se sabe donde, que passavam dia e noite sobre a ponte a examinar minuciosamente cada metro de cabo para tirarem os pregos que os acionistas das companhias marítimas faziam cravar bestialmente na camada isoladora do cabo, a fim de o inutilizar?


E num domínio ainda mais vasto, o verdadeiro domínio da vida humana com suas alegrias, suas dores e seus acidentes, – cada um de nós não lembra que lhe haja na sua vida prestado um serviço tão importante que se indignasse se lhe falassem de o avaliar em dinheiro? Esse serviço tanto podia ser uma palavra, uma simples palavra dita a tempo, como anos e anos de dedicação.


“As obras de cada um!” – Mas as sociedades humanas não viveram duas gerações seguidas, desapareceriam dentro de cinquenta anos se cada um não desse infinitamente mais que o que lhe pagarão em moeda, em bônus ou em recompensas cívicas. Seria a extinção da raça, se a mãe não gastasse a sua vida para conservar a dos filhos, se cada homem não desse alguma coisa sem nada esperar, se o homem não desse, justamente onde não tem recompensa a esperar.


Os coletivistas compreendem vagamente que uma sociedade não poderia existir se aceitasse o princípio: “A cada um segundo as suas obras”. Eles suspeitam que as “precisões” – não falamos de fantasias – do indivíduo não correspondem sempre às suas “obras”. Também De Paepe nos diz:


“Este princípio – eminentemente individualista – seria de resto ‘temperado’ pela intervenção social para a educação dos meninos e dos mancebos (incluindo a alimentação e a criação) e pela organização social da assistência aos enfermos e doentes, da reforma para os trabalhadores velhos, etc.”.


Suspeitam que o homem de quarenta anos, pai de três filhos, tem outras precisões que o jovem de vinte, que a mulher que dá de mamar a uma criança e passa noites em claro à sua cabeceira não pode fazer tantas “obras” como o homem que dormiu sossegadamente. Parecem compreender gastos à força de ter talvez trabalhado de mais para a sociedade, podem achar-se incapazes de fazer tantas “obras” como aqueles que tiverem passado as suas horas à boa vida e embolsando os seus bônus em situações privilegiadas de estatísticas do Estado.


E empenham-se em “temperar” o seu princípio.


“Sim, dizem eles, a sociedade sustentará e criará os seus filhos; assistirá aos velhos e enfermos! As ‘precisões’ darão a medida das despesas que a sociedade se imporá para temperar o princípio das obras”.


A caridade – o que? A caridade, sempre a caridade cristã, organizada desta vez pelo Estado.


Assim, pois, depois de ter negado o comunismo, depois de ter escarnecido à vontade a fórmula: “a cada um segundo as suas precisões”, eis que se apercebem também, os grandes economistas, que esqueceram alguma coisa – as precisões dos produtores – e apressam-se a reconhecê-lo. Só ao Estado compete apreciá-las; verificar se as precisões não são desproporcionadas às obras. O Estado dará a esmola. Daí a lei dos pobres e ao “workhouse” inglês não vai senão um passo.


Não vais senão um passo, porque mesmo esta sociedade madrasta contra quem a gente se revolta, viu-se também forçada a “temperar” o seu princípio de individualismo; teve também que fazer concessão num sentido comunista e também sob a forma de caridade.


Ela distribuiu jantares a um soldo para evitar saque das suas lojas, construir hospitais – muitas vezes péssimos, mas as vezes esplêndidos – para prevenir o estrago das doenças infecciosas e contagiosas. Ela também, depois de pagar somente as horas de trabalho, recolhe as crianças dos que ela reduziu à última das misérias. Ela também cuida das precisões – por caridade.


A miséria, dissemos nós noutra parte, foi a causa primária das riquezas. Porque, antes de acumular “os lucros” de que tanto gostam de conservar, ainda era preciso que houvesse miseráveis que consentissem em vender a sua força de trabalho para não morrerem de fome. É a miséria que faz os ricos. E se os seus progressos foram rápidos no curso da idade média, é porque as invasões e as guerras que seguiram a criação dos Estados e o enriquecimento pela exploração no Oriente quebraram os laços que outrora uniam as comunidades agrárias e urbanas e as levaram a proclamar, em lugar da solidariedade que praticavam antes, esse princípio de salariado, tão caro aos exploradores.


E é esse princípio que sairia da Revolução e a que ousaram chamar “Revolução Social” – nome tão caro aos famintos e aos oprimidos.


Mas não será assim, porque no dia em que as velhas instituições desabarem sob o machado dos proletários, hão de ouvir-se vozes gritando: “Pão, abrigo, bem-estar para todos!”.


E o povo dirá: “Comecemos por satisfazer a sede de vida, de alegria, de liberdade, que nunca saciamos. Depois iremos à obra: demolição dos velhos vestígios do regime burguês, do ‘deve e há de haver’, das suas instituições, do teu e do meu.


“Demolindo edificaremos”, como dizia Proudhon; “edificaremos em nome do Comunismo e da Anarquia”.







CONSUMO E PRODUÇÃO



I



Encarando a sociedade e sua organização política num ponto de vista que as escolas autoritárias, visto que partimos do indivíduo livre para chegar a uma sociedade livre, em lugar de começar pelo Estado para descer ao indivíduo, – seguimos o mesmo método para as questões econômicas. Estudamos as precisões do indivíduo e os meios a que recorre para as satisfazer, antes de discutir a produção, a troca, o imposto, o governo, etc.

A primeira vista a diferença pode parecer mínima. Mas de fato embrulha todas as noções de economia política oficial.
Abri qualquer obra dum economista.

Ele debuta pela “produção”, a análise dos meios hoje empregados para criar a riqueza, a divisão do trabalho, a manufatura, a obra da máquina, acumulação do capital. Desde Adam Smith até Marx, todos tem procedido desse modo. Só na segunda ou terceira parte da sua obra tratará do CONSUMO, isto é, da satisfação das precisões do indivíduo; e ainda limitando-se a explicar como as riquezas se repartirão entre os que se disputarem a sua posse.

Talvez se diga que é lógico: que antes de satisfazer precisões é preciso criar o que as pode satisfazer; que para consumo é preciso produzir. Mas antes de produzir qualquer coisa, não é necessário sentir-lhe a precisão? Caçar, criar o gado, cultivar a terra, fazer utensílios e mais tarde inventar e fazer máquinas não é tudo satisfação de necessidades? Não era pois o estudo das precisões que deveria governar a produção. Seria, pois, lógico começar por aí e ver em seguida como haver-se para suprir estas precisões pela produção.

É precisamente o que fazemos.

Mas desde que a encaramos debaixo deste ponto de vista a economia política muda completamente de aspecto. Deixa de ser uma simples descrição de fatos e torna-se uma ciência: pode-se definir, “o estudo das precisões da humanidade e dos meios de as satisfazer com a menor perda possível das forças humanas”. O seu verdadeiro nome seria “fisiologia da sociedade”. Constitui uma ciência paralela à fisiologia das plantas ou dos animais, que também é um estudo das precisões da planta e do animal e dos meios mais vantajosos de as satisfazer. Na série das ciências sociológicas a economia das sociedades humanas vem tomar o lugar ocupado na série das ciências biológicas pela fisiologia dos seres animados.

Nós dizemos: “Eis seres humanos reunidos em sociedade. Todos sentem a necessidade de habitar casas salubres. A cabana do selvagem não os satisfaz. Demandam um abrigo sólido, mais ou menos confortável. Trata-se de saber se, dada a produtividade do trabalho humano, poderá ter cada um sua casa, e o que impedirá de a ter?”.

E vemos logo que cada família na Europa poderia perfeitamente ter uma casa confortável, como se constroem na Inglaterra ou na Bélgica ou na cidade Pulman, ou mesmo um apartamento correspondente. Um certo número de dias de trabalho bastaria para dar a uma família de sete ou oito pessoas uma bonita casinha arejada, bem mobiliada e iluminada a gás.

Mas os nove décimos dos europeus nunca tiveram a reserva necessária em tempo e dinheiro para edificar ou mandar edificar a casa dos seus sonhos. E não terá casa e habitará uma “baiúca” enquanto as condições atuais não mudarem.

Nós procedemos, como se vê, inteiramente ao contrário dos economistas, que eternizam as pretendidas leis da produção e, fazendo a conta das casas que se edificam cada ano, demonstram pela estatística que as casas novas não chegam para satisfazer a todos os pedidos e por isso os nove décimos dos europeus devem morar em “baiúcas”.

Passemos à alimentação. Depois de enumerar os benefícios da divisão do trabalho, os economistas pretendem que esta divisão exige que uns se apliquem à agricultura e os outros à indústria manufatureira. Produzindo os agricultores tanto e os manufatores tanto fazendo-se a troca assim, analisam a venda, o benefício, o produto líquido ou lucro, o salário, o imposto, o banco e sucessivamente.

Mas tendo-os seguido até ali, não estamos mais adiantados, e se lhes perguntarmos: “Como é que tantos milhões de seres humanos carecem de pão, quando cada família poderia produzir trigo para alimentar dez, vinte e mesmo cem pessoas por ano?” E eles nos respondem recomeçando a mesma antífona: divisão do trabalho, salário, lucro, capital etc., chegando a esta conclusão que a produção é insuficiente para satisfazer todas as precisões; conclusão que, ainda que fosse verdadeira, de modo nenhum responde à pergunta: “Pode ou não pode o homem, trabalhando, produzir o pão de que precisa? E se não pode, que é que lho impede?”.

Há 350 milhões de europeus. Precisam cada ano tanto de pão, tanto de carne, de leite, ovos e manteiga. Precisam tantas casas, tantos vestuários. É o mínimo das suas precisões. Podem eles produzir tudo isto? Se podem, restar-lhes-á vagar para angariar o luxo, os objetos de arte, a ciência e de recreio – numa palavra tudo quanto não cabe na categoria do estrito necessário? Se a resposta é afirmativa, que é que os impede de ir por diante? Que se há de fazer para aplanar os obstáculos? É preciso tempo? Que o tomem! Mas não percamos de vista o objeto de toda a produção – a satisfação das precisões.

Se as precisões mais imperiosas do homem ficam insatisfeitas, que se há de fazer para aumentar a produtividade do trabalho? Mas não haverá outras causas? Não seria, entre outras, porque a produção tendo perdido de vista as “precisões” do homem, tomou uma direção absolutamente falsa e que a sua organização é viciosa? E visto que o constatamos, com efeito, procuremos o meio de reorganizar a produção, de modo que ela corresponda realmente a todas as precisões.

Eis a única maneira que nos parece justa de encarecer as coisas: a única que permitiria à economia política tornar-se uma ciência, – a ciência da fisiologia social.

Está-se vendo que o ponto de vista seria inteiramente mudado. Atrás do tear, que tece tantos metros de pano, atrás da máquina que fura tantas placas de aço e atrás do cofre forte onde se engolfam os dividendos, ver-se-ia o homem, artífice da produção, excluído quase sempre do banquete que preparou para outros. Também se comprometeria que as pretendidas leis de valor, da troca, etc., não são senão a expressão, muitas vezes falsa, – sendo falso o ponto de partida – de fatos tal qual se passam neste momento, mas que se poderiam passar, e passar-se-ão muito diferentemente, quando a produção for organizada de modo que atenda a todas as precisões da sociedade.


II



Não há um princípio de economia política que não mude totalmente de aspecto posto sob o nosso ponto de vista.

Ocupamo-nos, por exemplo, da superprodução. Eis uma palavra que soa cada dia aos nossos ouvidos. Há, com efeito, um só economista, acadêmico ou aspirante, que não tenha sustentado teses, provando que as crises econômicas resultam da superprodução: que num momento dado se produz mais algodões pintados, panos, relógios, do que é preciso! Não se tem acusado de “rapacidade” os capitalistas que teimam em produzir mais do que o consumo é possível!

Pois bem! Tal raciocínio demonstra-se falso logo que se aprofunde a questão. Ora bem, indicai-nos umas mercadorias, das que são de uso universal, de que se produza mais do que seria preciso. Examinais um a um todos os artigos expedidos pelos países de grande exportação e vereis que quase todos são produzidos em quantidades “insuficientes”, mesmo para os habitantes do país que exporta.

O que a Rússia exporta para a Europa não é um excedente de trigo. As mais fortes colheitas de trigo e de centeio da Rússia da Europa dão “exatamente” o preciso para a população e geralmente o camponês priva-se a si do necessário, quando vende o seu trigo e o seu centeio para pagar o imposto e a renda.

Não é um excedente de carvão que a Inglaterra envia aos quatro cantos do globo, visto que não lhe restam para o consumo doméstico interior senão setecentos e cinquenta quilos por ano e por habitante, e que milhões de ingleses se privam de fogo no inverno, ou não usam dele senão para cozer certos legumes. De fato (não falamos da quinquilharia de luxo) não há no país da grande exportação, a Inglaterra, senão uma única mercadoria de uso universal, o algodão estampado, cuja produção seja assaz considerável para “talvez” exceder as precisões. E quando se pensa nos farrapos que substituem os vestidos em um bom terço dos habitantes do Reino Unido, é-se levado a perguntar se os algodões exportados não daria com pequena diferença a conta das precisões reais da população.

Geralmente não é um excesso que se exporta, embora as primeiras exportações tivessem talvez tido essa origem. A fábula do sapateiro que andava descalço é verdadeira para as nações como aquela o era outrora para o artífice. Exporta-se o necessário pela razão de que só com o seu salário os trabalhadores não podem comprar o que lhes falta, pagando rendas, lucros, interesses do capitalista e do banqueiro. A superprodução, pois, não existe; é um palavrão inventado pelos teóricos da economia política.

Todos os economistas nos dizem que, se há uma “lei” econômica bem assente é esta: “O homem produz mais do que consome.” Depois de ter vivido dos produtos do seu trabalho, sempre lhe resta um excedente. Uma família de cultivadores produz com que sustentar várias famílias e assim por diante.

Para nós esta frase, tantas vezes repetida, é vazia de sentido. Se devesse significar que cada geração deixa alguma coisa às gerações futuras, seria exata. Com efeito um cultivador planta uma árvore que viverá trinta ou quarenta anos, um século, e da qual seus netos hão de colher ainda os frutos. Se desbravou um hectare de terra virgem, a herança das gerações futuras aumentou. A ponte, a estrada, o canal, a casa e os móveis são outras tantas riquezas legadas às gerações futuras.

Mas não é disso que se trata. Dizem que o cultivador produz mais trigo do que consome. “Poderiam dizer antes, que o Estado, tendo-lhe sempre levado uma boa parte dos seus produtos em forma de impostos, o padre em forma de dízimos, e o proprietário em forma de renda, criou-se uma classe de homens que antigamente consumiam o que produziam, salvo a parte reservada para o imprevisto ou das despesas representadas por árvores, estradas, etc., mas que hoje são obrigados a sustentar-se de castanhas ou de milho, beber água-pé, sendo o resto levado pelo Estado, o proprietário, o padre e o agiota.

Preferimos então dizer: “O cultivador consome menos do que produz, porque o obrigam a dormir na palha e a vender a pena; a contentar-se com a água-pé e vender o vinho, vender o trigo e comer centeio.

Notemos também que tomando por ponto de partida as precisões do indivíduo, chega-se necessariamente ao comunismo como uma organização que permite satisfazer as “precisões” do indivíduo da maneira mais completa e mais econômica. Ao passo que partindo da produção atual e visando somente o benefício ou o lucro, mas sem perguntar se a produção corresponde à satisfação das produções, chega-se necessariamente ao capitalismo, ou, quando muito, ao coletivismo – sendo um e outro formas de salariado.

O Comunismo, – isto é, uma vista sintética do consumo, da produção, da troca, e uma organização que corresponda a esta vista sintética – torna-se assim a consequência lógica desta compreensão das coisas, a única a nosso ver, que seja realmente científica.

Uma sociedade que satisfizer as precisões de todos, e que souber organizar a produção, deverá além disso fazer tábua rasa de certos preconceitos concernentes à indústria e, em primeiro lugar, da teoria tão gabada pelos economistas sob o nome de “divisão do trabalho”, que vamos abordar no capítulo seguinte.








DIVISÃO DO TRABALHO



I



A economia política sempre se limitou a constatar os fatos que via produzirem-se na sociedade e a justificarem-se no interesse da classe dominante. Ela age do mesmo modo quanto à divisão do trabalho, criada pela indústria; tendo-a achado vantajosa para os capitalistas, ela erigiu-a em princípio.

Olhai esse ferreiro de aldeia, dizia Adam Smith, pai da economia política moderna. Se ele nunca se habituou a fazer pregos, só com custo chegará a fazer dois ou três centos por dia, e ainda assim maus. Mas se esse mesmo ferreiro nunca fez senão pregos, dará facilmente até dois mil e trezentos no decurso de um dia. E Smith apressava-se a concluir: “Dividamos o trabalho, especializemos, especializemos sempre; tenhamos ferreiros que não saibam fazer senão cabeças ou pontas de pregos e assim produziremos mais. Enriqueceremos”.

Quanto a saber se o ferreiro que foi condenado a fazer cabeças de pregos toda a sua vida, não perderá todo o gosto pelo trabalho; se não ficará inteiramente à mercê do patrão com este ofício limitado; se não ficará sem trabalho quatro meses no ano, se o seu salário não baixará quando puderem facilmente substituí-lo por um aprendiz, Smith nem pensava quando exclamou: “Viva a divisão do trabalho! Eis a verdadeira mina de ouro para enriquecer a nação!”.

E todos gritavam com ele.

E mesmo quando um Sismondi, ou um J. B. Say perceberam mais tarde que a divisão do trabalho, em lugar de enriquecer a nação, não enriquecia senão os ricos, e que o trabalhador, reduzido a fazer toda a sua vida a décima oitava parte dum alfinete, se embrutecia e caia na miséria – que propunham os economistas oficiais? – Nada! – Não diziam que aplicando assim toda a vida a um único trabalho maquinal, o obreiro perdia a sua inteligência e o seu espírito inventivo e que, pelo contrário, a variedade das ocupações daria em resultado aumentar consideravelmente a produtividade da nação. É precisamente a questão que se vem hoje propor.

Além disso se unicamente os economistas pregassem a divisão do trabalho permanente e muitas vezes hereditário, deixa-los-íamos perorar à sua vontade. Mas as ideias professadas pelos doutores da ciência infiltram-se nos espíritos, percertendo-os, e à força de ouvir falar em divisão do trabalho, da renda, do crédito etc., como de problemas de longa data resolvidos, todo mundo (e o próprio trabalhador) acaba raciocinando como os economistas, por venerar os mesmos fetiches.

Assim vemos numerosos socialistas, aqueles mesmos que não recearam atacar os erros da ciência, respeitarem o princípio da divisão do trabalho. Que lhes fale da organização da sociedade durante a Revolução, e responderão que a divisão do trabalho deve ser mantida; que quem fazia bicos de alfinetes antes da Revolução. Trabalharão só cinco horas, mas fazendo bicos de alfinetes – seja. Mas vós não fareis senão bicos de alfinetes toda a vida, enquanto outros farão máquinas ou projetos de máquinas, permitindo fabricar milhares de alfinetes; e outros ainda se especializarão nas altas funções do trabalho literário, científico, artístico etc. Nascestes fazedor de bicos de alfinetes. Pasteur nasceu vacinador da raiva e a Revolução vos deixará uns e outros nos seus empregos respectivos.

Pois bem, é este princípio horrível, nocivo à sociedade e embrutecedor do indivíduo, fonte de toda uma série de males, que nos propomos agora discutir nas suas diversas manifestações.

São conhecidas as consequências da divisão do trabalho. Estamos evidentemente divididos em duas classes: duma parte produtores, que consomem muito pouco e são dispensados de pensar, porque é preciso trabalhar e que trabalham mal, porque seu cérebro se conserva inativo; e doutra parte os consumidores, que produzem pouco ou quase nada, tem o privilégio de pensar pelos outros e pensar mal, porque todo um mundo, o dos trabalhadores braçais, lhes é desconhecido. Os obreiros da terra não sabem nada da máquina, os que servem as máquinas ignoram tudo dos trabalhos do campo. O ideal da indústria moderna é a criança servindo uma máquina que não pode nem deve compreender e serventes que a multam – se a sua atenção falha um momento. Procura-se mesmo suprimir de todo o trabalhador agrícola. O ideal da agricultura industrial é um “faz tudo” alugado por três meses e conduzido a uma charrua a vapor ou uma máquina de debulhar. A divisão do trabalho é o homem etiquetado, estampilhado para toda a vida como atador de nós em uma manufatura, como vigia numa indústria, mas não tendo nenhuma ideia do conjunto da máquina, nem da indústria, perdendo por isso mesmo o gosto do trabalho e as capacidades de invenção que, nos debates da indústria moderna, tinham criado a ferramenta de que tanto gostamos de nos orgulhar.

O que se fez aos homens, queriam também fazê-lo às nações. A unidade dividir-se em oficinas nacionais, tendo cada uma sua especialidade. A Rússia, - ensinavam – era destinada pela natureza a cultivar o trigo; a Inglaterra a fazer algodões pintados; a Bélgica a fabricar panos enquanto a Suíça forma amas-secas e professoras. Em cada nação especializa-se ainda: Lyon faria as sedas, o Auvergne as rendas e Paris artigos de fantasia. Era, pretendiam os economistas, um campo ilimitado oferecido à produção ao mesmo tempo que ao consumo; uma era de trabalho e de imensa fortuna que se abria para o mundo.

Mas estas vastas esperanças desvaneciam-se à medida que o saber técnico se derrama no universo. Enquanto a Inglaterra era a única a fabricar os algodões estampados e a trabalhar os metais em grande; enquanto só Paris fazia brinquedos artísticos etc., tudo ia bem; podia-se pregar o que se chamava a divisão do trabalho, sem medo de ser desmentido.

Ora, eis que uma nova corrente arrasta as nações civilizadas a tentar nos seus países todas as indústrias, achando vantagem em fabricar o que antes recebiam dos outros países, e as próprias colônias tendem a livrar-se da sua metrópole. As descobertas da ciência universalizam os processos, é desde já inútil pagar no exterior, por um preço exorbitante, o que é tão fácil de produzir em sua casa.

Mas não é certo que esta revolução na indústria dá um golpe direto na teoria da divisão do trabalho que julgavam tão solidamente estabelecida?






A DESCENTRALIZAÇÃO DAS INDÚSTRIAS



I



Em consequência das guerras napoleônicas, a Inglaterra havia quase arruinado a grande indústria que nascia em França no fim do século passado. Ela ficava senhora dos mares e sem concorrentes sérios. Aproveitou-se disso para se constituir um monopólio industrial e, impondo as nações vizinhas os seus preços pelas mercadorias que só ela podia fabricar, acumulou riquezas sobre riquezas e soube tirar partido desta situação privilegiada e de todas as suas vantagens.
Mas tendo a Revolução burguesa do século passado abolido a servidão e criado em França um proletariado, a grande indústria, suspensa um momento no seu avanço, tomou novo voo, e desde a segunda metade do nosso século, a França deixou de ser tributária da Inglaterra pelos produtos manufaturados.

Hoje tornou-se também um país exportador. Vende ao estrangeiro mais de um “milhar” (mil milhões) e meio de produtos manufaturados e dois terços dessas mercadorias são tecidos. Calcula-se que perto de três milhões de franceses trabalham na exportação ou vivem do comércio exterior.

Assim a França não é mais tributária da Inglaterra. Por seu turno procurou monopolizar certos ramos do comércio exterior, tais como sedas e confecções; daí tem tirado imensos benefícios, mas está a ponto de perder para sempre este monopólio, como a Inglaterra está a ponto de perder para sempre o monopólio dos algodões e mesmo das fiações de algodão.

Caminhando para o Oriente, a indústria parou na Alemanha. Há trinta anos a Alemanha era tributária da Inglaterra e da França pela maior parte dos produtos da grande indústria. Já não é assim nos nossos dias. No correr dos últimos vinte e cinco anos e sobre tudo depois da guerra, a Alemanha reformou completamente a sua indústria. As novas oficinas estão aparelhadas com as melhores máquinas: as mais recentes criações da arte industrial em Manchester para os algodões, ou em Lyon para as sedas, são realizadas nas novas oficinas alemãs. Se foram precisas duas ou três gerações de trabalhadores para descobrir a máquina moderna em Lyon ou em Manchester, a Alemanha toma-a toda aperfeiçoada. As escolas técnicas apropriadas às necessidades da indústria, fornecem às manufaturas um exército de obreiros inteligentes, de engenheiros práticos , sabendo trabalhar com as mãos e com o cérebro.

A indústria alemã começa no ponto preciso a que Manchester e Lyon chegaram no fim de cinqüenta anos de esforços, ensaios e tentativas.

Em resultado: a Alemanha diminui de ano para ano as suas importações da França e da Inglaterra. É já sua rival nas exportações para a Ásia e África; mais do que isso: nos próprios mercados de Londres e Paris. Gente de vistas curtas pode gritar contra o tratado de Frankfurt; pode explicar a concorrência alemã por pequenas tarifas de caminhos de ferro. Pode dizer que o alemão trabalha “de graça” descurando os grandes fatos históricos. Mas não é menos certo que a grande indústria, – outrora privilegiada da Inglaterra e da França – deu um passo para o Oriente. Achou na Alemanha um país novo, cheio de forças, e uma burguesia inteligente, ávida de enriquecer por sua vez, pelo comércio estrangeiro.
Na época da abolição da escravidão em 1861, a Rússia quase não tinha indústria. Tudo que precisava de máquinas, de trilhos de locomotivas, de tecidos de luxo, vinha-lhe do Ocidente. Vinte anos mais tarde já possuía 85.000 manufaturas e as mercadorias saídas destas manufaturas quadruplicavam de valor.

As velhas ferramentas foram inteiramente substituídas. Quase todo o aço hoje empregado, três quartas partes do ferro, dois terços do carvão, todos os trilhos, todos os vagões, quase todos os barcos a vapor, são feitos na Rússia. De país destinado, – no dizer dos economistas – a ficar agrícola, a Rússia fez-se um país manufatureiro. Não pede quase nada à Inglaterra e muito pouco à Alemanha.

Os economistas fazem as alfândegas responsáveis por estes fatos, mas os produtos manufaturados na Rússia vendem-se pelos mesmos preços que em Londres. Como o capital não conhece pátria, os capitalistas alemães e ingleses, seguidos de contramestres das suas nações implantaram na Rússia e na Polônia manufaturas que rivalizam com as melhores manufaturas inglesas pela excelência dos produtos. Que abolissem amanhã as alfândegas e as manufaturas só teriam a ganhar. Neste mesmo momento os engenheiros britânicos tratam de dar o golpe de misericórdia às importações de panos e de lãs do Ocidente: montam no sul da Rússia imensas manufaturas de lãs, guarnecidas de máquinas das mais aperfeiçoadas de Bradford, e daqui a dez anos a Rússia não importará senão algumas peças de panos ingleses e de lãs francesas – como amostras.

A grande indústria não caminha só para o Oriente: estende-se também às penínsulas do sul. A exposição de Turim já mostrou em 1884 os progressos da indústria italiana e – não nos equivocamos: o ódio entre as duas burguesias, francesa e italiana, não tem outra origem senão a sua rivalidade industrial. A Itália emancipa-se da tutela francesa; faz concorrência aos mercados franceses na bacia mediterrânea e no Oriente. É por isso e não por outra coisa, que o sangue a de correr um dia na fronteira italiana, - a menos que a Revolução não poupe esse sangue precioso.

Podíamos também mencionar os rápidos progressos da Espanha no caminho da grande indústria, mas tomemos antes o Brasil. Não o tinham os economistas condenado a cultivar para sempre o algodão, a exportá-lo em bruto e receber em retorno os tecidos importados da Europa? Efetivamente, há vinte anos o Brasil tinha apenas nove miseráveis pequenas manufaturas de algodão com 385 fusos. Hoje há quarenta e seis, cinco das quais possuem 40.000 fusos e lançam no mercado trinta milhões de metros de algodão estampado cada ano.

Não há até no México quem não se metia a fabricar tecidos de algodão em lugar de importar da Europa. E quanto aos Estados Unidos eles se emanciparam da tutela da Europa. Aí a grande indústria desenvolveu-se triunfalmente.

Mas é a Índia que devia dar o desmentido mais brilhante aos partidários da especialização das indústrias nacionais.

É conhecida a teoria: As grandes nações europeias precisam de colônias. Estas colônias mandarão à metrópole produtos brutos: a fibra de algodão, lã em velo, espécies etc. E a Europa lhes devolverá esses produtos manufaturados.

Tal era a teoria, tal foi durante muito tempo a prática. Ganharam-se fortunas em Londres e em Manchester ao mesmo tempo que se arruinavam as Índias. Ide só ao museu indiano em Londres, e aí vereis riquezas inauditas, insensatas, amontoadas em Calcutá e Bombaim pelos negociantes ingleses.

Mas outros negociantes, e outros capitalistas, igualmente ingleses, conceberam a ideia muito natural que seria mais hábil explorar diretamente os habitantes da Índia e fabricar os algodões mesmo nas Índias em lugar de os importar da Inglaterra.

Primeiro foi uma série de fracassos. Os tecelões índios, –artistas no seu tear, não podiam afazer-se ao regime da oficina. As máquinas mandadas de Liverpool eram más; era preciso também ter em conta o clima, adaptar-se a novas condições, hoje todas preenchidas, e a Índia inglesa torna-se uma rival cada vez mais ameaçadora das manufaturas da metrópole.

Hoje possui 80 manufaturas de algodão, que empregam cerca de 50.000 trabalhadores e em 1885 tinham manufaturado mais de 1.450.000 toneladas métricas de algodões pintados. Exportam anualmente para a China, Índias holandesas e África – perto de 100 milhões de francos – desses mesmos algodões brancos que se dizia serem a especialidade da Inglaterra. E enquanto os trabalhadores ingleses estão sem trabalho e caem na miséria, as mulheres indianas, pagas à razão de 60 centímetros por dia, fabricam na máquina os algodões vendidos nos portos do extremo Oriente.

Resumindo: não está longe o dia – e os manufatores inteligentes não o dissimularam, em que não se saiba o que se há de fazer dos “braços” que na Inglaterra se ocupavam em tecer algodões para exportar. Ainda mais: sabe-se que daqui a dez anos a Índia não comprará uma única tonelada de ferro à Inglaterra. Já se venceram as primeiras dificuldades para empregar a hulha e o ferro da Índia e oficinas, rivais das fábricas inglesas, já se levantam nas costas do Oceano Índico.

As colônias, fazendo concorrência à metrópole, “por seus produtos manufaturados”, eis o fenômeno determinante da economia do século XIX.

E por que não a fariam? Que lhes falta? – O capital? Mas o capital vai a toda parte onde se encontram miseráveis a explorar. – O saber? Mas o saber não conhece as barreiras nacionais. – Os conhecimentos técnicos do obreiro? – Mas o obreiro hindu seria inferior a esses 92.000 rapazes e raparigas de menos de quinze anos, que trabalham neste momento nas manufaturas têxteis da Inglaterra?


II



Tendo lançado um golpe de vista sobre as indústrias nacionais, seria muito interessante repetir a mesma revista sobre as indústrias especiais.

Tomemos como exemplo – a seda; produto eminentemente francês na primeira metade deste século. Sabe-se como Lyon se tornou o centro da indústria das sedas, colhidas primeiro no sul, mas que pouco a pouco se pediram à Itália, à Espanha, à Áustria, ao Cáucaso, ao Japão, para as meter em obra. Em cinco milhões de quilos de sedas cruas transformadas em tecido na região lyonesa em 1875, só havia 400.000 quilos de seda francesa. Mas como Lyon trabalhava com sedas de importação, por que não fariam o mesmo a Suíça, a Alemanha, a Rússia? A tecelagem da seda desenvolveu-se pouco a pouco nas aldeias do Zurichois. Bale tornou-se um grande centro para os tecidos. A administração do Cáucaso convidou mulheres de Marselha e obreiros de Lyon para que fossem ensinar às georgianas a cultura aperfeiçoada do bicho da seda e aos camponeses do Cáucaso a arte de transformar a seda em estofos. A Áustria imitou-os. A Alemanha montou, com o auxílio dos operários lyoneses, imensos ateliers de sedas. Os Estados Unidos fizeram o mesmo em Paterson…

E hoje a indústria das sedas já não é a indústria francesa. Fazem-se tecidos de seda em Alemanha, em Áustria, nos Estados Unidos, em Inglaterra e em Portugal. Os camponeses do Cáucaso tecem no inverno lenços de seda por um preço que deixaria sem pão os tecelões de Lyon. A Itália manda sedas para França e Lyon, que exportava em 1870-74 cerca de 460 milhões, não exporta mais que 233 milhões. Dentro em pouco, não mandará para o estrangeiro senão os tecidos superiores ou algumas novidades, - para servirem de modelos aos alemães, aos russos e aos japoneses.

O mesmo se dá com todas as indústrias. A Bélgica já não tem o monopólio dos panos: fazem-se na Alemanha, na Rússia, na Áustria, nos Estados Unidos. A Suíça e o Jura Frances já não tem mais o monopólio dá relojoaria: fazem-se relógios em toda parte. A Escócia já não refina açúcar para a Rússia; em Inglaterra importa-se açúcar russo; a Itália, sem ter ferro nem hulha, forja os seus couraçados e faz as máquinas dos seus barcos a vapor; a indústria química já não é monopólio da Inglaterra; faz-se ácido sulfúrico e soda por toda parte. As máquinas de todos os gêneros fabricadas nos arredores de Zurich, faziam-se notar na última exposição universal; a Suíça, que não tem hulha nem ferro, - apenas excelentes escolas técnicas – faz as máquinas melhor e mais barato que a Inglaterra: eis o que resta da teoria das trocas.

Assim a tendência para a indústria – como para tudo o mais – está na descentralização.

Cada nação acha vantagem em combinar entre si a agricultura com a maior variedade possível de oficinas e de manufaturas. A especialização que os economistas nos têm falado era boa para enriquecer alguns capitalistas, mas não tem nenhuma razão de ser, e há, pelo contrário, toda a vantagem em que cada país, cada bacia geográfica posso cultivar seu trigo e os seus legumes e fabricar em sua casa todos os produtos manufaturados que consome. Esta diversidade é o melhor penhor do desenvolvimento completo da produção pelo concurso mútuo e de cada um dos elementos do progresso: enquanto a especialização é a suspensão do progresso.

A agricultura não pode prosperar senão ao lado das oficinas. E desde que uma única oficina faz a sua aparição, uma variedade infinita doutras oficinas de toda a espécie deve surgir em volta dela, a fim de que, suportando-se mutuamente, estimulando-se umas às outras por suas invenções, se acrescentem juntas.


III



É, na verdade, insensato exportar o trigo e importar farinhas, exportar lã e importar pano, exportar ferro e importar máquinas, não só porque os transportes ocasionam despesas inúteis, mas principalmente porque um país que não tem indústria desenvolvida fica por força atrasado em agricultura; porque um país que não tem grandes oficinas para trabalhar o aço, está também atrasado em todas as indústrias; porque, enfim, numerosas capacidades industriais e técnicas ficam sem emprego.

Tudo se liga hoje no mundo da produção. A cultura da terra não é mais possível sem máquinas, sem possantes regas, sem caminhos de ferro, sem manufaturas de adubo. E para ter estas máquinas apropriadas às condições locais, estes caminhos de ferro, estes engenhos de irrigação etc. etc. – é necessário que se desenvolva um certo espírito inventivo, uma certa habilidade técnica que nem podem ver a luz enquanto a enxada ou o arado forem os únicos instrumentos de cultura.

Imaginemos agora uma cidade, um território vasto ou exíguo – pouco importa – dando os seus primeiros passos no caminho da Revolução Social.

“Nada será mudado” – tem-nos dito algumas vezes – “Os ateliers serão expropriados, as oficinas serão declaradas propriedade nacional ou comunal – e cada um voltará ao seu trabalho habitual. A Revolução estará feita”.

Pois bem, não! A Revolução social não se fará com essa simplicidade.

Já o dissemos: Que amanhã a Revolução rebente em Paris, em Lyon ou em outra qualquer cidade; que amanhã ponham a mão, em Paris, ou não importa onde, sobre as oficinas, as casas ou o banco – toda a produção atual deverá mudar de aspecto por este simples fato.

O comércio internacional ficará suspenso, assim como as entradas de trigo estrangeiro; a circulação das mercadorias, dos víveres ficará paralisada. E a cidade ou o território revoltado deverão, para se suprirem, reorganizar completamente toda a produção. Se fracassam, é a morte. Se vencem, é a revolução no conjunto da vida econômica do país.

Diminuída a entrada de víveres, tendo o consumo aumentado, três milhões de franceses trabalhando para a exportação, obrigados a inação, mil coisas que hoje se recebem dos países distantes ou vizinhos, não entrando mais, a indústria de luxo suspensa temporariamente, que farão os habitantes para terem que comer durante seis meses?

É evidente que a grande massa pedirá ao solo o seu sustento desde que os armazéns estejam esgotados. Será preciso cultivar as terras, combinar mesmo em Paris e arredores a produção agrícola com a produção industrial, abandonar as mil pequenas ocupações de luxo, para cuidar do mais preciso – o pão.

Os cidadãos terão que se fazer agricultores. Não à maneira do camponês que se derreia na charrua para colher apenas o seu sustento anual, mas seguindo os princípios da cultura intensiva, de horta, aplicada em vastas proporções por meio das melhores máquinas que o homem inventou, que ele pode inventar. Cultivar-se-á, mas não como a besta de carga de Contal – reorganizar-se-á, não em dez anos, mas imediatamente, no meio das lutas revolucionárias, sob pena de sucumbir diante do inimigo.

É preciso fazê-lo como seres inteligentes, recorrendo ao “saber” organizando-se e, bandos risonhos para um trabalho agradável, como os que resolviam, há cem anos, o campo de Marte, para a festa da federação: trabalho cheio de gozos, quando se não prolonga desmensuradamente.

Cultivar-se-á, mas ter-se-á também de produzir mil coisas que estamos habituados a pedir ao estrangeiro. E não esqueçamos que para os habitantes do território revoltado – estrangeiros serão todos os que não tiverem seguido na Revolução.

Em 1793, em 1871, para Paris revoltado, o estrangeiro era já a província, mesmo às portas da capital. O açambarcador de Croyes fazia fome aos “sem calções” de Paris tão bem ou melhor ainda que as hordas alemãs trazidas ao solo francês pelos conspiradores de Versalhes. Será preciso passar sem esses estrangeiros. E há de se passar. A França inventou o açúcar de beterraba quando o açúcar de cana veio faltar em conseqüência do bloqueio continental. Paris achou o salitre nas suas adegas quando o salitre não chegava doutra parte. Seríamos agora inferiores aos nossos avós, que apenas balbuciavam as primeiras palavras da ciência?

É que uma Revolução é a aurora duma ciência nova; é mais uma revolução nos espíritos que nas instituições. E falam-nos em voltar ao atelier, como se se tratasse de voltar para casa depois dum passeio na floresta de Fontainebleau!

A Revolução reorganizará radicalmente toda a vida econômica, no atelier, no estaleiro e na oficina. Que Paris em Revolução social se ache só um ou dois anos isolado do mundo inteiro pelos partidários da ordem burguesa! E esses milhões de inteligências que a grande oficina ainda felizmente não embruteceu, esta cidade dos pequenos ofícios que estimulam o cérebro do homem sem nada pedir ao universo, senão a força motriz do sol que o alumia, do vento que leva as nossas impurezas e dar todo o seu esforço ao trabalho no solo que pisamos.

Ver-se-á que amontoado sobre um ponto do globo esta imensa variedade de trabalhos que se completam mutuamente e o espírito vivificante duma revolução, podem fazer por alimentar, vestir, alojar e encher de todo o luxo possível dois milhões de seres inteligentes.

Para isto não é preciso fazer romance. O que já se sabe, o que já foi experimentado e reconhecido como prático, bastaria para executar, com a condição de se fecundado, vivificado pelo sopro audacioso da Revolução, pelo levantamento espontâneo das massas.






A AGRICULTURA



I



Lançou-se muitas vezes em rosto à economia política o tirar todas as suas deduções deste princípio certamente falso, que o único móvel capaz de impelir o homem a aumentar a sua força de produção é o interesse pessoal estritamente compreendido.

O reproche é perfeitamente justo: tão justo que as épocas das grandes descobertas industriais e dos grandes progressos na indústria são precisamente aquelas em que se sonhava a felicidade de todos, em que se preocupavam menos com o enriquecimento pessoal. Os grandes investigadores e os grandes inventores pensavam sobretudo na emancipação da humanidade; e se os Watt, os Stephenson, os Jacquard só tinham podido prever a que estado de miséria as suas noites brancas levariam o trabalhador, teriam provavelmente queimado os seus apontamentos e quebrado os seus modelos.

Um outro princípio que tem lugar na economia política é igualmente falso. É a admissão tácita, comum a quase todos os economistas, que se muitas vezes há superprodução em certos ramos, uma sociedade, contudo, nunca terá bastantes produtos para satisfazer as precisões de todos; e que, por consequência, nunca chegará um momento em que ninguém seja obrigado a vender a sua força de trabalho em troca dum salário. Esta admissão tácita encontra-se na base de todas as teorias, de todas as pretendidas “leis” ensinadas pelos economistas.

Entretanto é certo que desde que a uma aglomeração civilizada qualquer se perguntasse quais são as precisões de todos os meios de as satisfazer, perceberia que já possui na indústria como na agricultura, com que promover largamente a todas as precisões, contanto que se saiba aplicar esses meios à satisfação das precisões reais.

Que isto é verdade pela indústria ninguém pode contestar. Basta estudar nos grandes estabelecimentos industriais os processos já em vigor para extrair o carvão e os minerais, obter o aço e dar-lhe forma, fabricar o que serve para o vestuário etc., para perceber que no que respeita aos produtos das nossas manufaturas, as nossas fábricas, as nossas minas nenhuma dúvida é possível. Já poderíamos quadruplicar a nossa produção e fazer ainda economia sobre o trabalho.

Mas nós vamos mais longe. Afirmamos que a agricultura está no mesmo caso da indústria: o lavrador, como o manufator “possui” já os meios de quadruplicar se não decuplicar a sua produção e poderá fazê-lo desde que sinta precisão disso e proceda à organização societária do trabalho em lugar da organização capitalista.

Cada vez que se fala de agricultura, imagina-se logo o camponês curvado sobre a charruta, atirando ao azar no solo um trigo mal escolhido e esperando com angústia o que a estação boa ou má lhe renderá. Vê-se uma família trabalhando desde pela manhã até a noite, sem ter por única recompensa mais que um grabato, pão seco e uma bebida amarga. Vê-se, numa palavra, a besta selvagem de La Bruniere.

E para este homem, submetido à miséria, fala-se quanto muito de aliviar o imposto e a renda.

Mas ninguém ousa imaginar um lavrador, endireitando-se por fim, tendo folgas e produzindo em poucas horas diárias com que sustentar não só a família, mas cem homens pelo menos.

No mais forte dos seus sonhos do futuro os socialistas não ousam ir além da grande cultura americana que, no fundo, não passa da infâmia da arte.

O agricultor de hoje tem ideias mais largas, concepções bem mais grandiosas. Não pede senão uma fração de are para fazer crescer toda a alimentação vegetal, duma família; para sustentar vinte e cinco animais cornígeros não precisa senão o espaço que outrora era preciso para um só; quer chegar a “fazer” o solo; a desafiar as estações e o clima; a aquecer o ar e a terra em roda da planta nova; a produzir, uma palavra, em um hectare o que outrora não se recolhia em cinquenta hectares, e isto sem se fatigar muito; reduzindo muito a soma do trabalho anterior. Pretende que se poderá produzir amplamente com que sustentar toda a gente, não dando à cultura dos campos senão justamente o que cada um pode dar com prazer e alegria.

Eis a tendência atual da agricultura.

Enquanto os sábios, guiados por Liebig, criador da teoria química da agricultura, erravam muitas vezes o caminho na sua presunção de teóricos, alguns cultivadores iletrados abriram à humanidade uma nova via de prosperidade. Hortelões de Paris, de Troyes, de Rouen, jardineiros ingleses, fazendeiros flamengos, cultivadores de Jersey, de Guernesey abriram-nos tão largos horizontes que a vista hesita em os abraçar.

Enquanto uma família de camponeses devia ter, pelo menos, sete ou oito hectares para viver dos produtos do solo, – e é sabido como já vivem os camponeses – já se não pode mesmo dizer qual é a extensão mínima do terreno necessário para dar a uma família tudo o que se pode tirar da terra – o necessário e o luxo – cultivando-a segundo os processos da cultura intensiva. Cada dia encurta esse limite. E se nos perguntam qual é o número de pessoas que podem viver ricamente no espaço duma légua quadrada, sem nada importar dos produtos agrícolas do exterior, ser-nos-á difícil responder a essa pergunta. Esse número aumenta rapidamente em proporção dos progressos da agricultura.

Há dez anos podia-se já afirmar que uma população de cem milhões viveria muito bem dos produtos do solo francês sem nada importar. Mas hoje diremos que cultivando a terra, “como já se cultiva em muitos lugares, mesmo em terrenos pobres”, cem milhões de habitantes nos cinquenta milhões de hectares do solo francês seria ainda uma muito fraca proporção do que o solo poderia sustentar.

Em todo o caso, - como vamos ver – pode-se considerar como “absolutamente demonstrado” que se Paris e os dois departamentos do Sena e do Sena-e-Oise se organizassem amanhã em comuna anarquista, na qual todos trabalhassem com os seus braços e se o universo inteiro recusasse enviar-lhe um só grão de trigo, um único cesto de frutas e só lhe deixasse o território dos dois departamentos, - estes produziriam não só o trigo, a carne e os legumes necessários, mas todos os frutos de luxo em quantidade suficiente para a população urbana e rural.

E afirmamos, ainda, que a despesa total de trabalho humano seria muito “menor” que a despesa atual empregada em sustentar esta população com trigo colhido no Auvergne ou na Rússia, legumes produzidos pela grande cultura um pouco em toda a parte e frutos amadurecidos no Meio-dia.

Não Cremos que seja preciso suprimir todas as trocas, mas queremos salientar que a teoria das trocas, como se professa hoje, é singularmente exagerada.


II



Ser-nos-ia impossível citar aqui a marcha dos fatos sobre que baseamos as nossas asserções. E somos forçados a enviar os nossos leitores, para mais amplos esclarecimentos, para os artigos que publicamos em inglês. Sobretudo convidamos muito seriamente aqueles a quem a questão interessa, a lerem algumas excelentes obras publicadas em França tais como: A cultura da horta, por M. Ponce, Paris 1869, - Le Potager Gressent, Paris 1885, – Fisiologia e cultura do trigo, por Rissler, Paris 1886, - etc.

Quanto aos habitantes das grandes cidades, que não tem uma idéia real do que pode ser a agricultura – que conversem com os hortelãos e verão abrir-se um mundo novo a seus olhos. Assim poderão entrever o que será a agricultura no século XX. Compreenderão de que força estará armada a Revolução social quando, se souber o segredo de tirar da terra tudo quanto se lhe pedir.

Alguns fatos bastarão para demonstrar que as nossas afirmações não são, de modo nenhum, exageradas; queremos só fazê-las preceder duma observação geral.

Sabe-se em que miseráveis condições se encontra a agricultura na Europa. Se o cultivador da terra não é roubado pelo proprietário agrícola, sê-lo-á pelo Estado. Se o Estado o tributa modestamente o agiota, que o escraviza com letras à ordem, fez dele em breve um simples locatário do solo, que pertence realmente a uma companhia financeira. Assim o proprietário, o Estado e o banqueiro roubam o cultivador, pela renda, o imposto e os juros. Em França o cultivador paga ao Estado 44% do produto bruto.

Há mais: a parte do proprietário e a do Estado crescem sempre. Apenas, por prodígios de canseira, de invenção ou de iniciativa obtém colheitas mais fortes, e o tributo que deverá ao proprietário, ao Estado ou ao banqueiro, aumentará em proporção. Se dobra o número de hectares recolhidos num hectare, a renda dobrará e por conseguinte os impostos, que o Estado se apressará a elevar ainda, se os preços sobem. E assim sucessivamente. Em resumo, em toda parte o cultivador do solo trabalha 12 a 16 horas por dia, por toda parte os três inimigos lhe levam tudo o que ele poderia por de parte. Eis porque a agricultura fica estacionária. Só por efeito de uma rixa entre os três vampiros, por um esforço de inteligência ou por acréscimo de trabalho é que ele conseguirá dar um passo para a frente.

Cada máquina, cada enxada, cada tonel de adubo químico é vendido por três ou quatro vezes o que custa. Não esqueçamos também o intermediário, que tira a parte do leão sobre os produtos do solo.

Aí está por que, durante todo este século de invenções e de progresso, a agricultura só se aperfeiçoa em espaços muito restritos, ocasionalmente e por sobressaltos.

Felizmente sempre tem havido pequenos terrenos encravados, esquecidos durante algum tempo pelos abutres, e onde aprendemos o que a agricultura intensiva pode dar à humanidade. Citemos alguns exemplos.

Nos prados da América (que aliás não dão senão magras colheitas de 7 a 12 hectolitros por hectare e ainda com secas periódicas prejudicando muitas vezes as colheitas) quinhentos homens, trabalhando só oito meses no ano, produzem o sustento anual de 50.000 pessoas. O resultado obtém-se aqui por uma forte economia de trabalho. Sobre esses largos plainos, que a visão não chega a abraçar, a lavra, a colheita, a debulha estão organizadas quase militarmente, nada de idas e vindas inúteis, nada de perdas de tempo. Tudo é feito com a exatidão duma parada.

É a grande cultura, a cultura extensiva, aquela que toma o terreno, tal como sai das mãos da natureza sem procurar melhorá-lo. Quando ele tiver dado tudo o que pode, abandoná-lo-ão, procurarão mais além um solo virgem para o esgotar por seu turno.

Mas também lá há a cultura intensiva a que as máquinas vêm e sempre virão em auxílio: visa sobretudo a cultivar “bem” um espaço limitado, estrumá-lo, emendá-lo concentrar o trabalho e obter o maior rendimento possível. Este gênero de cultura aumenta todos os anos, e, enquanto se contentam com uma colheita média de 10 a 12 hectolitros na grande cultura do Meio-dia, nas terras férteis do Oeste americano colhem-se regularmente 36, mesmo até 50 e algumas vezes 56 hectolitros no Norte da França.

E enquanto mais intensidade se dá à cultura, menos trabalho se despende para obter o hectolitro de pão. A máquina substitui o homem para os trabalhos preparatórios e faz-se, uma vez por todas, tal melhoria do solo, como drenagem e limpeza das pedras, que permite no futuro duplicar as colheitas. Algumas vezes uma lavra profunda permite obter dum solo medíocre excelentes colheitas de ano para ano sem nunca adubar. Assim fizeram durante vinte anos em Rothamstead, perto de Londres.


Não façamos romance agrícola. Fiquemos nesta colheita de 40 hectolitros, que não demanda um solo excepcional, mas simplesmente uma cultura racional, e vejamos o que significa.

Os 3.600.000 indivíduos que habitam os dois departamentos do Sena-e-Oise consomem por ano, para seu alimento, um pouco menos de 8 milhões de hectolitros de cereais, de trigo principalmente. Na nossa hipótese precisariam, pois, cultivar, para obter esta colheita, 200.000 hectares sobre os 610.000 que possuem.

É evidente que os não cultivarão à enxada. Isso levaria muito tempo (240 dias de 5 horas por hectare). Beneficiaria talvez o solo uma vez por todas: drenariam o que deve ser drenado; aplainariam o que deve aplainar; espiariam o solo, – embora se gastasse nesse trabalho preparativo cinco milhões de dias de 5 horas – ou média de 25 dias por hectare.

Em seguida lavrar-se-ia à máquina de arrotear a vapor, o que faria 4 dias por hectare e dar-se-iam mais quatro dias por hectare para lavrar à charrua dupla. Não se atirava a semente aos quatro ventos, mas em linha. E com tudo isto ainda se não teriam gasto 25 dias de 5 horas por hectare, sendo o trabalho feito em boas condições. Mas durante três ou quatro anos se derem 10 milhões de das a uma boa cultura, poder-se-á mais tarde ter colheitas de 40 e de 50 hectolitros, não gastando já senão a metade do tempo.

Logo apenas se terão gasto 15 milhões de dias para dar o pão a esta população de 3.600.000 habitantes. E todos os trabalhos seriam tais que cada um os poderia fazer sem precisar músculos de aço e mesmo sem ter jamais trabalhado na terra. A iniciativa e a distribuição geral dos trabalhos viriam daqueles que sabem o que a terra requer. Quanto ao trabalho em si, não há parisiense homem ou mulher, tão fraco, que não seja capaz, depois de algumas horas de aprendizagem, de vigiar as máquinas, ou de contribuir, cada um da sua parte, para o trabalho agrário.

Ora bem, quando se pensa, que no caos atual que há, sem contar os ladrões de alta-roda, perto de cem mil homens que jazem sem trabalho em seus diversos ofícios; vê-se que a força “perdida” na nossa atual organização bastaria sozinha para dar (por uma cultura racional) o pão necessário aos 3 ou 4 milhões de habitantes dos dois departamentos.

Ainda não contamos com esse trigo obtido (em três anos por Mr. Hallett) de que um só grão transplantado produziu um tufo, contendo mais de 10.000 sementes. Não temos, pelo contrário, citado senão o que fazem numerosos fazendeiros em França, na Inglaterra e na Bélgica – e o que se podia fazer desde amanhã com a experiência e o saber adquiridos pela prática.

Mas sem a Revolução isso não se fará nem amanhã nem depois, porque os detentores do capital e do solo não tem nisso interesse algum e porque os camponeses que com isso beneficiariam não tem nem saber nem dinheiro, nem tempo para dar os primeiros passos.

A sociedade atual ainda lá não chegou. Não proclamem os parisienses a Comuna anarquista e eles aí virão forçadamente, porque não farão a asneira de continuar a fazer bijuterias de luxo e não se exporão a ficar sem pão.
Demais o trabalho agrícola ajudado por máquinas tornar-se-ia bem depressa a mais atraente e a mais alegre de todas as ocupações.

Já basta de ourivesaria, de fatos para bonecas! Iria cada um retemperar-se no trabalho dos campos, procurar nele o vigor, e alegria de viver.


III



Os ingleses que comem muita carne, consomem uma quantidade média, um pouco menos de 100 quilos anuais por pessoa adulta: supondo que todas as carnes consumidas sejam de boi, isso faz um pouco menos dum terço de boi. Um boi por ano para cinco pessoas (incluindo as crianças) já é uma ração suficiente. Para três milhões e meio de habitantes daria um consumo anual de 700.000 cabeças de gado.

Ora com o atual sistema de pastagem é preciso ter, pelo menos, dois milhões de hectares para sustentar 660.000 cabeças de gado. Entretanto, comprados modestamente, regados por água corrente (como recentemente se criou em milhares de hectares no Sudoeste da França) 500.000 hectares já são suficientes. E quando se recorre ao milho, e se faz a ensilagem como os árabes, obtém-se toda a forragem necessária sobre uma superfície de 88.000 hectares.

Nos arredores de Milão, onde se aproveitam as águas de esgoto para irrigar os prados, obtém-se sobre uma superfície de 9.000 hectares irrigados o sustento de 4 a 6 conígeros por hectare e em alguns pedaços favorecidos tem-se recolhido até 45 toneladas de feno seco, por hectare, o que dá a alimentação anual de 9 vacas de leite.

Na ilha de Guernasey, sobre um total de 4.000 hectares, perto da metade (1.900 hectares) estão cobertos de cereais e legumes e 2.100 somente ficam para os prados; sobre 2.100 hectares sustentam 1.480 cavalos, 7.260 cabeças de gado, 900 carneiros e 4.200 porcos, o que faz mais de 3 cabeças de gado por hectare, sem contar os cavalos, os carneiros e os porcos. Inútil acrescentar que a fertilidade do solo está feita pelos adicionamentos de algas marinhas e adubos químicos.

Voltando aos nossos três milhões e meio de habitantes da aglomeração de Paris, vê-se que a superfície necessária à criação do gado desce de dois milhões de hectares a 88.000. Pois bem, não paremos nos números mais baixos, tomemos os da cultura intensiva ordinária; acrescentemos fartamente o terreno necessário para o gado miúdo que deve substituir uma parte dos cornígeros, e demos 160.000 hectares, à criação do gado – 200.000, se querem, sobre os 410.000 hectares que nos ficam, depois de haver provido ao pão necessário à população.

Sejamos generosos e ponhamos cinco milhões de dias de trabalho, metade dos quais para benfeitorias permanentes, e teremos o pão e a carne garantidos, não contando com toda a carne suplementar que se pode obter em forma de aves, porcos engordados, coelhos etc., sem contar que uma nação provida de legumes excelentes e de frutas, gastará muito menos carne que os ingleses que suprem com o alimento animal a pobreza do seu “menu” vegetal. Uma população de três milhões e meio deve ter pelo menos 1.900.000 homens adultos aptos para trabalhar, e outras tantas mulheres. Assim para garantir o pão e a carne a todos, não seriam preciosos mais de 17 dias de trabalho por ano, somente para os homens. Ponde mais três milhões de dias para arranjar leite. Dobrai tudo e o total não chega a 25 dias de cinco horas – simples negócio de se recriar um pouco nos campos: pão, carne e leite, estes três produtos que depois da habitação formam a preocupação principal, cotidiana, dos nove décimos da humanidade.

No dia em que Paris compreender que saber o que se come e como se produz é uma questão de interesse público, quando toda a gente tiver compreendido que esta questão é muito importante, infinitamente mais importante que os debates do parlamento e do conselho municipal, nesse dia a Revolução estará feita. Paris tomará as terras dos dois departamentos e cultiva-las-á. E então, depois de ter dado, toda a vida, um terço da sua existência para “comprar” um alimento insuficiente e mau, o parisiense o produzirá ele mesmo, debaixo dos seus muros, no recinto das fortificações (se ainda existirem) em algumas horas dum trabalho são e atraente.

Agora falemos das frutas e dos legumes. Saiamos de Paris e vamos visitar um desses estabelecimentos da cultura hortícola, a alguns quilômetros das academias, prodigiosos ignorados pelos sábios economistas. Paremos, por exemplo, em casa de M. Ponce, autor duma obra sobre a cultura das hortas, que não faz segredos do que a terra lhe rende e que a conta a toda gente.

M. Ponce, e sobretudo os seus obreiros, trabalham como negros. São oito a cultivar um pouco mais dum hectare (onze décimos). Trabalham sem dúvida doze e quinze horas por dia, isto é, três vezes mais. Fossem eles vinte e quatro e não seriam demais M. Ponce vai certamente responder-nos que, visto pagar a soma assustadora de 2.500 francos por ano de renda e impostos e 2.500 francos pelo adubo comprado nas casernas, é forçoso fazer exploração. “Explorado, exploro por minha vez”, seria a sua resposta. A sua instalação custou-lhe também 30.000 francos, certamente mais de metade aos barões “farnientes” da indústria. Em suma a sua instalação não representa mais de 3.000 dias de trabalho e provavelmente muito menos.

Agora vejamos as suas colheitas: 10.000 quilos de cenouras, 10.000 quilos de cebolas, rabanetes e outros pequenos legumes, 6.000 pés de couves, 3.000 couves-flores, 5.000 cestos de tomates, 5.000 dúzias de frutos escolhidos, 154.000 saladas, enfim um total de 125.000 quilos de legumes e frutas sobre um hectare e um décimo – sobre 110 metros de comprido e 100 de largo. O que faz mais de 110 toneladas de legumes por hectare.

Mas um homem não come mais de 300 quilos de legumes e de frutos por ano e o hectare do hortelão dá bastantes legumes e frutos para servir ricamente a mesa de 350 adultos todo o ano.

Assim, 24 pessoas, empregando-se todo o ano a cultivar um hectare de terra, mas não lhe dando mais que cinco horas por dia produziria frutos e legumes para 350 adultos, o que equivale pelo menos a 500 indivíduos.

Uma produção igual não é exceção. Faz-se dentro de Paris numa superfície de 900 hectares, por 5.000 hortelãos. Unicamente estes hortelãos estão reduzidos ao estado de bestas de carga para pagar “uma renda média de 2.000 francos por hectare”.

Mas estes fatos, que todos podem verificar, não provam que 7.000 hectares(sobre os 210.000 que nos restam) bastariam para dar todos os legumes possíveis, assim como uma boa provisão de frutos aos três milhões e meio de habitantes de nossos dois departamentos?

Quanto à quantidade de trabalho necessário para produzir esses frutos e esses legumes, ela atingiria a cifra de 50 milhões de dias de 5 horas (meio cento de dias por cada masculino adulto) se tomássemos por medida o trabalho dos horticultores. Mas já vamos ver esta quantidade reduzir-se, se recorremos aos processos já em voga em Jersey e em Guernesey. Lembramos somente que hortelão não é forçado a trabalhar tanto senão porque produz principalmente novidades, cujo preço elevado serve para pagar rendas babulosas, e que mesmo os seus processos reclamam mais trabalho do que é preciso na realidade. Não tendo os meios de fazer fortes despesas para sua instalação, obrigado a pagar muito caro o vidro, a madeira, o ferro e a hulha, pediu ao estrume o calor artificial, que se pode obter com menor despesa pela hulha e pela estufa.


IV



Os horticultores, dizíamos, são obrigados a reduzir-se ao estado de máquinas e a renunciar a todas as alegrias da vida para obterem suas colheitas fabulosas. Mas estes rudes cavadores têm rendido à humanidade um imenso serviço, ensinando-nos “que se faz” o solo.

Fazem-no, eles, com camadas de estrume que já serviram para dar às plantas novas e às novidades o calor necessário. Fazem o solo em tão grandes quantidades que cada ano são forçados a removê-lo em parte. Sem isso os seus jardins subiriam cada ano de 2 a 3 centímetros. Fazem-no tanto que (é Barral no “Dicionário de Agricultura”, no artigo “Hortelãos” que no-lo ensina), nos contratos recentes, o hortelão estipula que “levará o seu solo consigo”, quando abandonar a parcela que cultiva. O solo levado em carroças, com os móveis e o resto – eis a resposta que os cultivadores práticos deram às lucubrações dum Ricardo, que representava a renda como um meio de igualizar as vantagens naturais do solo. “O solo vale o que vale o homem”, tal é a divisa dos jardineiros.

E entretanto os hortelãos parisienses e rouenenses fatigam-se três vezes mais que os seus irmão de Guernesey e de Inglaterra para obter os mesmos resultados.

Toda cultura hortícola é baseada nestes dois princípios:

1º Semear em canteiro, criar as plantas novas num solo rico, num espaço limitado, onde se possam tratar e transplantar mais tarde quando tiverem bem desenvolvida a “cabeleira” das raízes. Fazer numa palavra o que se faz com os animais: tratá-los na sua infância.

2º Para amadurecer as colheitas cedo, aquecer o solo e o ar, cobrindo as plantas com caixilhos ou campânulas e produzindo na terra um forte calor pela fermentação do estrume.

Transplantação e temperatura mais elevada que a do ar, eis a essência da cultura hortícola, uma vez que o solo foi feito artificialmente.

Como já vimos, a primeira destas duas condições está posta em prática e demanda só alguns aperfeiçoamentos de detalhe. E para realizar a segunda trata- se de aquecer o ar e a terra, substituindo o estrume por água quente circulando tubos fundidos, seja no solo, seja em caixilhos ou no interior de estufas quentes.

É o que já se faz. O horticultor parisiense pede já ao “Thermo-syphão” o calor que antes pedia ao estrume. E o jardineiro inglês constrói a estufa quente.

Outrora a estufa era o luxo do rico. Reservava-se às plantas exóticas ou de ornato, mas hoje vulgariza-se. Hectares inteiros estão cobertos de vidro nas ilhas de Jersey e de Guernesey, sem contar os milhares de pequenas estufas que se veem em Guernesey em cada fazenda, em cada jardim. Nos arredores de Londres, começa-se a cobrir de vidro campos inteiros e milhares de pequenas estufas se instalam cada ano nos subúrbios.

Fazem-se de todas as qualidades desde as estufas de paredes de granito até ao modesto abrigo em tábuas de abeto e cobertura de vidro, que apesar de todas as sanguessugas capitalistas, não custa mais de quatro a cinco francos o metro quadrado. Aquecem-se, ou não se aquecem absolutamente nada (basta o abrigo, se não se trata de obter novidades); e fazem-se brotar – não uvas nem flores tropicais, mas batatas, cenouras, ervilhas e feijão-branco.

Assim emancipamo-nos do clima; dispensamo-nos do trabalho laborioso de envolver as plantas novas em camadas preservadoras; não se compram mais exorbitâncias de estrume, cujos preços sobem em proporção da procura; e em parte suprime-se o trabalho humano: sete ou oito horas bastam para cultivar um hectare coberto de vidro e para obter resultados iguais aos de M. Ponce. Em Jersey, sete homens trabalhando menos de 60 horas por semana, obtém, sobre espaços infinitesimais, colheitas que antes demandavam hectares de terreno.

Poderiam dar-se sobre este objeto detalhes interessantes. Limitemo-nos a um único exemplo. Em Jersey, 34 homens de ganhar e um jardineiro, cultivando um pouco mais de 4 hectares envidraçados (ponhamos 70 homens que não dessem mais de 5 horas por dia) obtém de ano para ano as colheitas seguintes:

25.000 quilos de uvas cortadas desde o 1° de maio, 80.000 quilos de tomates, 30.000 quilos de batatas em abril, 6.000 quilos de ervilhas e 2.000 quilos de feijão-branco cortados em maio – sejam 143.000 quilos de frutos e de legumes, sem contar uma segunda colheita, muito forte, de certas estufas, em uma imensa estufa de recreio, nem as colheitas de toda sorte de pequenas culturas em pleno chão entre as estufas.

Cento e quarenta e três toneladas de frutos e novidades! Com que sustentar largamente mais de 1.500 pessoas durante o ano inteiro. E isto não demanda mais de 21.000 dias de trabalho – sejam 210, “horas por ano”, para a metade somente de mil dos adultos.

Juntai-lhe a extração de 1.000 toneladas pouco mais ou menos de carvão (é o que se queima por ano nestas estufas, para aquecer 4 hectares) e sendo a Inglaterra a extração média de 3 toneladas por dia de dez horas e por obreiro, faz um trabalho suplementar de seis a sete horas por ano para cada um dos 500 adultos.

Soma total, se só metade dos adultos desse um quinquagésimo de meio dia por ano à cultura dos frutos e dos legumes “fora da estação”, todos poderiam comer todo o ano frutas e legumes de luxo à saciedade, ainda que não os obtivessem senão em estufa. E teriam ao mesmo tempo, como segunda colheita nas mesmas estufas a maior parte dos legumes ordinários que nos estabelecimentos como o de M. Ponce exigem, como vimos, cinqüenta dias de trabalho.

Acabamos de ver a cultura do luxo Mas já dissemos que a tendência atual é de fazer da estufa uma simples horta envidraçada. E quando se aplica a este uso, obtém-se com abrigos de vidro extremamente simples, aquecidos ligeiramente durante três meses, colheitas fabulosas de legumes: por exemplo 450 hectares de batatas por hectare, como primeira colheita no fim de abril. Depois disso, tendo beneficiado a terra, far-se-ia rotar novas colheitas, de maio a fim de outubro, numa temperatura quase tropical devido ao abrigo de vidro.

Hoje para obter 450 hectares de batatas é preciso lavrar cada ano uma superfície de 20 hectares, ou mais, plantar e mais tarde sachar as plantas, arrancar as ervas más com um sacho, e sucessivamente.

O que já se tem dito não será bastante para dar uma ideia do que o homem pode obter do solo, tratando-o com inteligência?


V



Em todos os nossos raciocínios temos contado com os precedentes admitidos e já parte postos em prática. A cultura intensiva dos campos, os plainos regados pelas águas de esgoto, a horticultura de legumes, enfim a horta envidraçada, são realidades. Como Leonce de Lavergne havia previsto, há trinta anos, a tendência da agricultura moderna é para reduzir quanto possível o espaço cultivado, criar o solo e o clima, concentrar o trabalho e reunir todas as condições necessárias à vida das plantas.

Esta tendência nasceu do desejo de realizar fortes somas de dinheiro sobre a venda das “novidades”. Mas depois que os processos de cultura intensiva se inventaram, generalizaram-se e estendem-se aos legumes mais comuns, porque permitem procurar “mais” produtos com “menos” trabalho e mais segurança.

Com efeito, depois de estudar os abrigos de vidro mais simples de Guernesey, afirmamos que feitas todas as contas, gasta-se “muito menos” trabalho para obter debaixo de vidro, em abril, batatas, do que se gasta para ter a sua colheita três meses mais tarde, ao ar livre, cavando um espaço cinco vezes maior, regando-o e mondando as ervas daninhas. É como com a ferramenta e à máquina. Economiza-se sobre o trabalho, empregando uma ferramenta ou uma máquina aperfeiçoada, mesmo fazendo uma despesa adiantada para as comprar.

Faltam-nos ainda algarismos completos relativos à cultura dos legumes comuns debaixo de vidro. Esta cultura é de origem recente e só se faz em pequenos espaços. Mas temos algarismos relativos à cultura, já com uns trinta anos de idade, dum objeto de luxo, a uva, e estes algarismos são concludentes.

No Norte da Inglaterra na fronteira da Escócia, onde o carvão custa apenas 4 francos a tonelada à boca do poço, ocupam-se há muito tempo da cultura da uva em estufa. Há 30 anos, estas uvas maduras em janeiro, vendia-se o cultivador, a razão de vinte e cinco francos a libra e revendiam-se a 50 francos para a mesa de Napoleão III. Hoje o mesmo produtor não as vende a mais de 3 francos a libra. É ele mesmo que no-lo diz num artigo recente dum jornal de hoticultura. É que os concorrentes mandam toneladas e toneladas de uvas a Londres e a Paris. Graças à barateza do carvão e uma cultura inteligente, a uva no inverso cresce no Norte e faz a sua viagem, em sentido contrário, dos produtos ordinários, para o Sul. Em maio, as uvas inglesas e as de Jersey são vendidas a dois francos a libra pelos jardineiros, e ainda esse preço só se mantém pela fraqueza da concorrência.

Em outubro as uvas cultivadas em imensas quantidades nos arredores de Londres – sempre debaixo de vidro, mas um pouco de aquecimento artificial – vendem-se à libra pelo mesmo preço que as compras nas vinhas da Suíça, ou do Reno, isto é, por alguns soldos. É ainda muito caro por motivo da renda excessiva do solo, custo de instalação e aquecimento, sobre os quais o jardineiro paga um tributo formidável ao industrial e ao intermediário. Isto explicado, pode-se dizer que não custa “quase nada” ter no outono uvas deliciosas na latitude e no clima brumoso de Londres. Num dos seus arrabaldes por exemplo, um mau abrigo de vidro e estuque, arrimado a nossa casinha, com três metros de comprido e dois de largo, dá-nos em outubro, nos últimos três anos, perto de 50 libras de uvas dum gosto superior.

Isto pode parecer paradoxal à primeira vista, porque geralmente pensa-se que a vinha cresce espontaneamente no sul da Europa e que o trabalho do vinhateiro não custa nada. Mas os jardineiros e os agricultores, longe de nos desmentir, confirmam as nossas asserções. “A cultura mais avançada na Inglaterra é a cultura da vinha”, diz um jardineiro prático, o redator do “Jornal da Horticultura” inglês. Além disso, os preços, como se sabe, são eloquentes.

Traduzindo estes fatos em linguagem comunista, podemos afirmar que o homem ou a mulher que roubar as suas folgas “uma vintena de horas por ano”, para dar alguns cuidados, muito agradáveis no fundo, a duas ou três capas de vinha, plantadas debaixo de vidro, sob qualquer clima da Europa, recolherá tantas uvas quantas pode comer com a sua família e entre amigos. E isto aplica-se não só aos produtos da vinha, mas dos de todas as árvores frutíferas aclimatadas.

Uma comuna que praticar em grande os processos, da pequena cultura, terá todos os legumes possíveis, sem empregar nisso algumas dezenas de horas por ano e por habitante.

São fatos que se podem verificar desde amanhã. Bastaria que um grupo de trabalhadores suspendesse durante alguns meses a produção de certos objetos de luxo e desse o seu trabalho a transformação de cem hectares da planície de Gennevilliers em uma série de jardins-hortas, cada um com sua dependência de abrigos de vidros aquecidos para o abrigo dos viveiros e das plantas novas; que depois cobrisse cinqüenta hectares com estufas econômicas, para a obtenção dos frutos deixando evidentemente o cuidado dos detalhes de organização a jardineiros e a horticultores experimentados.

Baseando-se sobre a média de Jersey, que necessita o trabalho de 7 de a 8 homens por hectare debaixo de vidro – o que menos de 24.000 horas de trabalho por ano – o custeio destes 150 hectares reclamaria cada ano cerca de 3.600.000 horas de trabalho. Cem jardineiros competentes poderiam dar a este trabalho cinco horas por dia, e o resto seria feito muito simplesmente por pessoas que, não sendo jardineiros de profissão, soubessem manejar o sacho, o ancinho, a agulheta ou vigiar uma plantação.

Mas este trabalho daria, pelo baixo – já o dissemos num capítulo anterior – todo o necessário e o luxo possível, tratando de frutos e legumes para 75.000 ou 100.000 pessoas pelo menos. Admita-se que haja neste número 36.00 adultos desejosos de trabalhar na horta. Cada uma teria, pois, de consagrar cem horas anuais repartidas por todo o ano. Estas horas de trabalho volviam-se horas de recreio, passadas entre amigos, com as crianças, em soberbos jardins, mais belos talvez que os da legendária Semíramis.

Eis o orçamento do trabalho a suportar para poder comer à saciedade frutos de que hoje nos privamos, e para ter em abundância todos os legumes que a mãe de família arraçoa tão escrupulosamente quando precisa contar os soldos com que enriquecerá o rendeiro e o vampiro proprietário.

Ah, se a humanidade tivesse só a consciência do que pode e se esta consciência lhe desse só a força de querer!

Se ela soubesse que “a covardia do espírito” é o escolho em que todas as revoluções têm fracassado até este dia!


VI



Entrevem-se facilmente os horizontes novos abertos à próxima Revolução Social.

Cada vez que falamos da Revolução o trabalhador sério, que viu crianças sem alimento, franze as sobrancelhas e repete-nos obstinadamente: “E o pão? Não nos faltará se toda a gente como até se fartar? E se o campo, ignorante, trabalhando pela reação, nega o pão à cidade, como fizeram os bandos negros em 1793, que se fará?”

Pois então o campo que experimente só! As grandes cidades passarão sem o campo.

Em que se empregarão com efeito essas centenas de milhares de trabalhadores que se asfixiam hoje nos pequenos ateliers e nas manufaturas, do dia em que retomarem a sua liberdade? Continuarão, depois da Revolução como antes, a encerrar-se nas oficinas? Continuarão a fazer brinquedos de luxo para exportação, quando virem talvez o trigo acabar-se, a carne rarear, os legumes desaparecerem sem virem outros?

Não evidentemente! Sairão da cidade e irão para os campos! Ajudados pela máquina que permitirá aos mais fracos dentre nós ser alguém, levarão a revolução à cultura dum passado escravizado, como a terão levado às instituições e às ideias.

Aqui, centenas de hectares cobrir-se-ão de vidro, e o homem e a mulher dos dedos delicados cuidarão das plantas novas. Além, outras centenas de hectômetros serão lavradas com o enxadão a vapor, temperadas por adubos ou dotadas dum solo artificial obtido pela pulverização da rocha. As legiões alegres de lavradores de ocasião cobrirão esses hectares de searas, guiados em seu trabalho e suas experiências; em parte pelos que conhecem a agricultura, mas sobre tudo pelo espírito, grande e prático, dum povo que acorda dum prolongado sono e a quem esclarece e ilumina este farol luminoso – a felicidade de todos.

E em dois ou três meses, as colheitas temporãs virão aliviar as precisões mais urgentes e prover ao sustento dum povo que, no fim de tantos séculos de espera, poderá enfim saciar a fome e comer até se fartar.

Entretanto o gênio popular, o gênio dum povo que se revolta e conhece as suas precisões, trabalhará em experimentar os novos meios de cultura que já se pressentem no horizonte e que só pedem o batismo da experiência para se generalizarem. Experimentar-se-á a luz, – esse agente desconhecido da cultura, que faz amadurecer a cevada em 45 dias na latitude de Yakoutsk – concentrada ou artificial, a luz rivalizará com o calor para apressar o crescimento das plantas. Um Mouchot do futuro inventará a máquina que deve guiar os raios de sol e fazê-los trabalhar, sem ser preciso ir procurar nas profundezas da terra o calor solar armazenado na hulha. Experimentar-se-á a rega do solo com culturas de microrganismos – ideia racional nascida de ontem, que permitirá dar ao solo as pequenas células vivas tão necessárias às plantas, já para alimentar as radículas, já para decompor e tornar assimiláveis as partes constitutivas do solo.

Com os processos de cultura já em uso, aplicados em grande, saídos desde hoje vitoriosos da luta contra a concorrência mercante, podemos dar-nos o bem-estar e o luxo, em troca um trabalho agradável. O futuro próximo mostrará o que há de prático nas futuras conquistas que fazem entrever as recentes descobertas científicas.

Limitemo-nos por agora a inaugurar a nova estrada que consiste no estudo das precisões e nos meios de as satisfazer.

A única coisa que poderá faltar à Revolução é audácia e iniciativa.

Embrutecidos pelas nossas instituições na escola, escravizados ao passado na idade madura e até ao túmulo, quase não ousamos pensar. Trata-se duma ideia nova? Antes de formarmos uma opinião, consultaremos alfarrábios velhos de cem anos, para sabermos o que os antigos mestres pensavam sobre o assunto.

Se a ousadia do pensamento e a iniciativa não faltam à Revolução, serão os víveres que lhe faltarão.

De todas as grandes jornadas da grande Revolução, a mais bela, a maior, que ficará para sempre gravada nos espíritos, foi aquela, em que os federados, acudindo de todas as partes, trabalharam a terra do Campo de Marte para preparar a festa.

Nesse dia a França foi UMA; animada do espírito novo, entreviu o futuro que se abria ante ela no trabalho em comum da terra.

E será ainda pelo trabalho em comum da terra que as sociedades libertarias acharão de novo a sua unidade e apagarão os ódios, e as opressões que as haviam dividido.

Podendo desde já conceber a solidariedade, esse poder imenso que centuplica a energia e as forças criadoras do homem, a sociedade nova marchará à conquista do futuro com todo o vigor da mocidade.

Cessando de produzir para compradores desconhecidos, e procurando no próprio seio precisões e gostos a satisfazer a sociedade assegurará largamente a vida e o bem-estar a cada um dos seus membros, ao mesmo tempo que a satisfação moral que dá o trabalho livremente escolhido e livremente executado e a alegria de poder viver sem esbarrar na vida dos outros. Inspirados numa nova audácia alimentada pelo sentimento de solidariedade, todos marcharão juntos à conquista dos altos gozos do saber e da criação artística.

Uma sociedade assim inspirada, não terá a temer nem dissensões no interior nem inimigos no exterior. Ás coalizões do passado oporá o seu amor pela ordem nova, a iniciativa audaciosa de cada um e de todos, a sua força tornada hercúlea pelo despertar do seu gênio.

Diante desta força irresistível os “reis conjurados” nada poderão. Terão só que inclinar-se diante dela, jungir-se ao carro da humanidade, rodando para os horizontes novos entreabertos pela Revolução social.

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