domingo, 5 de julho de 2020

Por que nós somos anarquistas? (1886) – Élisée Reclus

Foto de Élisée Reclus, tirada em 1878 (fonte).


Vamos continuar publicando textos extraídos de obras em português. Dessa vez vamos publicar um texto de Élisée Reclus sobre os motivos para sermos anarquistas.

O texto “Pourquoi sommes-nous anarchistes?” foi publicado originalmente em La Tribune des peuples, Paris (maio de 1886). Geralmente atribuem (equivocadamente) a primeira publicação a uma versão disponível em La Société nouvelle, Year 5, Nº 2, 1889 (pp. 153-155).

A referência que utilizamos nessa publicação é a seguinte: RECLUS, Élisée. Por que nós somos anarquistas? (RECLUS, 2016, pp. 43-46). In: COÊLHO, P. A (Org.). Élisée Reclus – Anarquia pela educação. São Paulo: Hedra, 2016.



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As poucas linhas que se seguem não constituem um programa. Elas só têm um único objetivo: justificar a utilidade que haveria para elaborar um projeto de programa que seria submetido ao estudo, às observações, às críticas de todos os revolucionários comunistas.

Talvez, contudo, elas encerrem uma ou duas considerações que poderiam encontrara seu lugar no projeto que eu reivindico.

Somos revolucionários porque queremos a justiça e porque em toda parte vemos a injustiça reinar à nossa volta. É no sentido inverso do trabalho que são distribuídos os produtos do trabalho. O mandrião tem todos os direitos, inclusive o de esfomear seu semelhante, enquanto o trabalhador nem sempre tem o direito de morrer de fome em silêncio: colocam-no na prisão quando é culpado de greve. Pessoas que se denominam padres tentam fazer crer no milagre para que as inteligências sejam-lhes subjugadas; pessoas denominadas reis dizem-se emanadas de um senhor universal para ser senhor, por sua vez; pessoas armadas por eles cortam, retalham e fuzilam à vontade; pessoas em toga que se dizem a justiça por excelência condenam o pobre, absolvem o rico, vendem amiúde as condenações e as absolvições; comerciantes distribuem veneno em vez de alimento, matam a varejo em vez de matar o atacado e tornam-se, assim, capitalistas honrados. A certeira abarrotada, eis o senhor, e aquele que a possui tem em seu poder o destino dos outros homens. Tudo isso nos parece infame e queremos mudá-lo. Contra a injustiça apelamos à revolução.

Todavia, “a justiça é apenas uma palavra, pura convenção”, dizem-nos.

“O que existe, é o direito da força!” Pois bem, se é assim, somos revolucionários. Das duas coisas, uma: ou a justiça é o ideal humano e, neste caso, nós a reivindicamos para todos; ou só a força governa as sociedades e, neste caso, usaremos a força contra nossos inimigos. Ou a liberdade dos iguais ou a lei do talião.

Mas por que se apressar? Perguntam-nos todos aqueles que, para eximir-se de agir, esperam tudo do tempo. A lenta evolução das coisas basta-lhes, a revolução faz-lhes medo. Entre eles e nós a história julgou. Nunca qualquer progresso, seja parcial, seja geral, realizou-se por simples evolução pacifica. Ele sempre se deu pela revolução repentina. Se o trabalho de preparação opera-se com lentidão nos espíritos, a realização das ideias ocorre bruscamente: a evolução faz-se no cérebro e são os braços que fazem a revolução.

E como proceder a essa revolução que vemos preparar-se lentamente na sociedade e da qual ajudamos a advento por todos os nossos esforços?

Seria agrupando-nos por corpos subordinados uns aos outros? Seria constituindo-nos, como o mundo burguês que combatemos, num conjunto hierárquico, tendo seus senhores responsáveis e seus inferiores irresponsáveis, mantidos como instrumentos na mão de um chefe? Começaremos por abdicar para nos tornar livres? Não, pois somos anarquistas, isto é, homens que querem conservar a plena responsabilidade de seu atos, que agem em virtude de seus direitos e de seus deveres pessoais, que dão a um ser seu desenvolvimento natural, que não tem quem quer que seja por senhor e não são os senhores de ninguém.

Queremos nos livrar da opressão do Estado, não ter mais acima de nós superiores que possam comandar-nos, pôr sua vontade no lugar da nossa.

Queremos rasgar toda lei exterior, atendo-nos ao desenvolvimento consciente das leis interiores de toda a nossa natureza. Suprimindo o Estado, suprimimos também toda moral oficial, sabendo de antemão que não pode haver moralidade na obediência a leis incompreendidas, na obediência de pratica da qual nem mesmo se busca perceber. Só há moral na liberdade. É só pela liberdade também que a renovação permanece possível. Queremos manter nosso espirito aberto, prestando-se de antemão a todo progresso, a toda nova ideia, a toda iniciativa generosa.

Entretanto, se somos anarquistas, os inimigos de todo senhor, também somos comunistas internacionais, pois compreendemos que a toda vida é impossível sem agrupamento social.

Isolados nada podemos, enquanto que, pela união intima, podemos transformar o mundo.

Nós nos associamos uns aos outros como homens livres e iguais, trabalhando numa obra comum e regulando nossas relações mutuas pela justiça e pela benevolência reciproca. Os ódios religiosos e nacionais não podem separar-nos, visto que o estudo da natureza é nossa única religião e que temos o mundo por pátria. Quanto a grande causa das ferocidades e das vilanias, ela cessara de existir entre nós.

A terra tornar-se-á propriedade coletiva, as barreiras serão retiradas e, doravante, o solo pertencendo a todos, poderá ser ordenado para a satisfação e o bem-estar de todos. Os produtos demandados serão precisamente aqueles que a terra puder fornecer de melhor, e a produção respondera exatamente as necessidades, sem que jamais algo se perca como no trabalho desordenado que se faz hoje. Assim, também, a distribuição de todas essas riquezas entre os homens será retirada de explorador privado e será feita pelo funcionamento normal de toda a sociedade.

Não temos por que traçar de antemão o quadro da sociedade futura: cadê à ação espontânea de todos os homens livres cria-lo e dar-lhe sua forma, por sinal, incessantemente mutável como todos os fenômenos da vida.

Todavia, o que sabemos é que [diante de] toda injustiça, todo crime de lesa-majestade humana, encontrar-nos-ão de pé para combatê-los.

Enquanto durar a iniquidade, nos, anarquistas-comunistas-internacionais, permaneceremos em estado de revolução permanente.

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