sábado, 11 de julho de 2020

Trabalho cerebral e trabalho braçal (1890) – Piotr Kropotkin

Encounter (1944) de Maurits Cornelis Escher (1898 – 1972).



Originalmente publicado como artigo em março de 1890 na revista The Nineteenth Century (pp. 456-475), “Brain Work and Manual Work” será incluído como penúltimo capítulo de “Fields, Factories, and Workshops” (1899). A tradução que disponibilizaremos nessa publicação foi extraída de: KROPOTKIN, Pedro. Trabalho cerebral e braçal. In: MORIYÓN, Félix García (Org.). Educação libertária. Tradução de José Claudio de Almeida Abreu. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.


***



Nos tempos antigos, os homens de ciência, em particular aqueles que mais fizeram em favor da filosofia natural, não desprezaram o trabalho braçal; Newton aprendeu na juventude a arte de manejar as ferramentas, exercitando a imaginação na construção de aparelhos bastante engenhosos e quando começou suas pesquisas em ótica estava em condições de poder polir as lentes de seus instrumentos e fazer sozinho o grande telescópio, que, na época era uma obra meritória; Leibniz era aficionado a inventar mecanismos: os moinhos de vento e as carroças que andavam sem cavalos preocupavam sua imaginação, tanto quanto as especulações matemáticas e filosóficas; Lineu tornou-se botânico, ao mesmo tempo que ajudava diariamente o seu pai, que era jardineiro; em suma, para nossos gênios, as artes mecânicas não foram obstáculo para as pesquisas abstratas, podendo-se dizer que, antes, as favoreceram. Por outro lado, se os trabalhadores de outros tempos tiveram poucas oportunidades para dominar a ciência, muitos pelo menos, tiveram as suas inteligências estimuladas pela própria variedade de trabalhos realizados naquelas oficinas em que ainda não havia penetrado a especialização, tendo muitos deles a vantagem de estarem familiarmente ligados a homens de ciência. Watt e Rennie eram amigos do professor Robinson; Brindley, o peão caminheiro, apesar de ganhar 1,50 francos por dia, tinha ligações com pessoas cultas, o que lhe permitiu desenvolver capacidades notáveis no campo da engenharia; outros passaram a juventude em lojas e oficinas, tornando-se mais tarde um Smeaton ou um Stephenson.

Nós mudamos tudo isso; sob o pretexto da divisão do trabalho, separamos violentamente o trabalho intelectual do braçal. A massa trabalhadora não recebe mais educação científica do que seus avós, e, ademais, se vê privada da pouca educação que poderia adquirir nas pequenas oficinas, enquanto que seus filhos, homens e mulheres, condenados a viverem na mina ou na fábrica desde a idade de treze anos, esquecem logo o pouco que aprenderam na escola. Os homens de ciência, por sua parte, desprezam o trabalho braçal. Quem poderia fazer um telescópio ou outro instrumento menos complicado? Muitos não são capazes nem mesmo de desenhar um aparelho científico, somente dão uma vaga ideia ao construtor, e deixam a este o cuidado de inventar o aparelho de que necessitam. E mais ainda, elevam o desprezo pelo trabalho braçal à altura de uma teoria: “O homem de ciência – dizem – deve descobrir as leis da natureza, o engenheiro deve aplicá-las e o operário deve executar em madeira ou aço, em ferro ou pedra, os desenhos e formas traçadas por aquele, devendo trabalhar com máquinas inventadas para o seu uso, mas não inventadas por ele. Não importa que ele não as entenda nem possa melhorá-las; o homem de ciência e o engenheiro cientista cuidarão do progresso da ciência e da indústria”.

A isto pode-se objetar que, não obstante, há uma classe de homens que não pertence a nenhuma das três categorias indicadas: na juventude foram trabalhadores braçais, e alguns continuam sendo ainda; mas, devido a algum acontecimento feliz, conseguiram adquirir certo conhecimento científico, e deste modo combinar a ciência com a arte mecânica. É verdade que existem tais pessoas, e não é falta de sorte existir um núcleo de homens que tenha escapado da tão ponderada especialização do trabalho, sendo exatamente a eles que a indústria deve os seus principais e mais recentes inventos. Mas, pelo menos na velha Europa, eles são exceção, o anormal, os soldados que, afastando-se das filas, assaltam a barreira levantada, com tanto interesse, entre as classes. E são tão poucos, comparados com as crescentes necessidades da indústria – e também da ciência –, como demonstrarei a seguir, que em todo o mundo as pessoas lamentam a sua escassez.

Que significa esse fruto que vem ao mesmo tempo da Inglaterra, França, Alemanha, Estados Unidos e Rússia, pedindo a educação técnica, se não o desagrado geral pela divisão anual em cientistas, engenheiros e trabalhadores? Escutem os que conhecem a indústria e vocês verão que a base de suas queixas é esta: “O operário cujo trabalho é especializado pela divisão permanente da faina, perde todo o interesse intelectual por ela, o que ocorre principalmente na grande indústria, assim como na sua capacidade inventiva. - O operário antigamente inventava muito; os trabalhadores braçais, e não os homens de ciência ou os engenheiros, foram os que descobriram ou aperfeiçoaram os primeiros motores e todo esse mundo de maquinaria que transformou a indústria nos últimos cem anos; mas desde que introduziu a fábrica de grandes proporções, o operário, deprimido pela monotonia do trabalho deixou de inventar. Que pode inventar o tecelão que trabalha com quatro teares e não sabe nada sobre os seus complicados movimentos, nem qual foi a progressão do mecanismo para chegar ao estado atual? Que pode aprender um homem condenado por toda a vida a ligar os extremos de dois fios com a maior rapidez e não sabe nada mais do que dar um nó?

No princípio da indústria moderna, três gerações de operários inventaram, mas agora deixaram de fazê-lo. E quanto aos avanços introduzidos pelos engenheiros, educados especialmente para idealizar máquinas, ou lhes falta o gênio ou são pouco práticos. Faltam a seus inventos essas pequenas coisas, das quais uma vez falou sir Frederich Bramwell, em Bath; esses detalhes que só se aprendem na oficina e que permitiram a Murdoch e aos trabalhadores de Soho fazer uma máquina completa do engenho de Watt. Somente quem conhece a máquina, não só no desenhoe no papel, mas em pleno funcionamento, é que poderá melhorá-la. Não há dúvida de que Smeaton e Newcomen eram grandes engenheiros, e no entanto, em suas máquinas, um menino tinha que abrir a válvula do vapor a cada batida do pistom, e foi um desses meninos que idealizou a ligação da válvula com o resto da máquina para que ele abrisse automaticamente, e ele pudesse ir brincar com os companheiros. Mas na maquinaria moderna não há espaço para descobertas deste tipo. A educação científica em alta escala se tomou necessária para a realização de novos avanços, e esta é negada aos trabalhadores, de modo que não há meio de sair do atoleiro, a menos que não se integrem a educação cientificamente mecânica, a menos que a fusão dos conhecimentos venha substituir a atual divisão”.

Este é o verdadeiro significado do atual movimento em favor da educação técnica; mas em vez de apresentar à consideração pública as causas, talvez inconscientes do descontentamento atual, em vez de elevar a discussão e dar à questão toda a amplitude que ela merece, os porta-estandartes do movimento a mantêm dentro dos limites mais reduzidos. Alguns deles lançam mão de uma linguagem com pretensões patrióticas e na verdade ridícula, falando em deixar fora de combate toda indústria estrangeira, enquanto que os outros não veem na educação técnica mais que o meio de melhorar um pouco a máquina humana da fábrica, permitindo que alguns operários ascendam a uma classe superior.

Semelhante ideal pode satisfazer a tais pessoas, mas não àqueles que não perdem de vista os interesses integrados da ciência e da indústria, e consideram ambas como um meio de elevar a humanidade a mais alto nível. Nós, portanto, defendemos que, no interesse das duas, assim como da sociedade em geral, todo ser humano, sem diferenças de origem, deveria receber uma educação que lhe permitisse, seja homem ou mulher, ligar o verdadeiro conhecimento científico a outro, igualmente profundo, da arte mecânica. Reconhecemos sem reservas a necessidade da especialização dos conhecimentos, mas afirmando que esta deve vir depois da educação geral, que deve compreender tanto a ciência quanto o trabalho braçal. À divisão da sociedade em trabalhadores intelectuais e braçais, nós opomos a integração de ambos os tipos de atividades; e em vez de “educação técnica”, que impõe a manutenção da atual divisão dos dois tipos de trabalho referidos, proclamamos a educação integral ou completa, o que significa o desaparecimento dessa distinção tão perniciosa. Expressando mais claramente, a aspiração da escola sob este sistema deveria ser a seguinte: dar uma educação tal, que ao deixar as salas de aula com a idade de dezoito ou vinte anos, os jovens de ambos os sexos estariam dotados de um cabedal de conhecimentos científicos que lhes permitisse trabalhar com proveito para a ciência, e que ao mesmo tempo tivessem um conhecimento geral das bases do ensino técnico e a habilidade necessária em qualquer indústria especial, para poder ocupar o seu posto dignamente no grande mundo da produção manual da riqueza. Sei que muitos acharão esta aspiração demasiado ampla ou impossível de alcançar, mas acredito que se tiverem a paciência de ler as páginas seguintes, verão que, para ela, não necessitamos mais do que se pode obter com facilidade, ou melhor dizendo, do que se obteve; e o que se pôde fazer em pequena escala, poderia ser feito em outra maior, se não fossem as causas econômicas e sociais que impedem que se leve a cabo uma reforma de importância em nossa sociedade, tão miseravelmente organizada.

A experiência foi feita na Escola Técnica de Moscou, durante vinte anos consecutivos, com centenas de crianças, e, segundo o testemunho dos mais competentes jurados de Bruxelas, Filadélfia, Viena e Paris, a tentativa deu resultado satisfatório. A escola de Moscou admite jovens de até quinze anos, e não exige deles, a esta idade, mais do que um conhecimento geral de geometria e álgebra junto com um conhecimento comum da língua do país, e recebe também alunos mais jovens das classes preparatórias. A escola é dividida em duas seções, a mecânica e a química; mas como eu, pessoalmente, conheço melhor a primeira, e, como é também a mais importante com referência à questão de que estamos tratando, limitarei minhas observações à educação dada na seção mecânica.

Depois de cinco ou seis anos de escola, o estudante a deixa com um profundo conhecimento de matemática superior, física, mecânica e ciências afins; é, na verdade, tão completo o conhecimento, que não deixa nada a desejar ao que se adquire nos melhores cursos de matemática das mais eminentes Universidades europeias. Quando eu estudava na Universidade de São Petersburgo, pude comparar a instrução dos estudantes da Escola Técnica de Moscou com a nossa e vi os cursos de geometria superior que alguns deles haviam recompilado para os colegas. Admirei a facilidade com que aplicavam o cálculo integral aos problemas dinâmicos, chegando à conclusão de que enquanto nós, estudantes da Universidade, mal sabíamos nos servir das mãos, os alunos da Escola Técnica fabricavam com as suas, e sem a ajuda de operários profissionais, lindas máquinas de vapor, desde a pesada caldeira até o último parafuso, maquinaria agrícola e aparelhos científicos, tudo para a indústria, recebendo os primeiros prêmios pelo trabalho manual nas Exposições Internacionais. Eram hábeis artesãos educados cientificamente – trabalhadores com educação universitária –, altamente apreciados até pelos fabricantes russos, que tanto desconfiam da ciência.

Pois bem, o método adotado para obter tão excelente resultado foi o seguinte. No tocante à ciência, decorar era pouco conveniente, mas a pesquisa independente era estimulada por todos os meios possíveis: ensinava-se a ciência ao lado de suas aplicações e o que se aprendia na sala de aula se aplicava na oficina, dando-se muita atenção às mais elevadas abstrações da geometria, como meio de desenvolver a inteligência e o amor à pesquisa. Quanto ao ensino da arte mecânica, o sistema adotado era bem diferente daquele que fracassou na Universidade de Cornell, e bem diferente também dos usados na maioria das escolas técnicas. Não se mandava o estudante a uma oficina para aprender um determinado ofício e ganhar com ele a vida o mais rápido possível, mas sim praticar um ensino conforme o plano elaborado pelo fundador da escola, M. Dellavros, e que agora é aplicado também em Chicago e Boston, do mesmo modo sistemático que se usa para ensinar o trabalho de laboratório nas universidades.

O desenho, como é natural, era considerado como o primeiro passo na educação técnica. Depois se levava o aluno à oficina de carpintaria, ou melhor, laboratório, onde se lhe ensinava por completo o ofício, não se poupando nenhum esforço para alcançar tal resultado, pois ele era considerado, e com razão, a verdadeira base de toda a indústria. Mais tarde era encaminhado à oficina do torneiro, onde aprendia a construir em madeira os modelos das coisas que teria de fazer em metal nas oficinas seguintes. Depois seguia a fundição, onde se lhe ensinava a fundir as partes das máquinas que preparara na madeira. E só depois de ter passado pelos três primeiros estágios é que era admitido nas oficinas de ferreiro e maquinaria. Este é o sistema que os leitores encontrarão detalhadamente descrito numa obra de Mr. Ch. H. Ham. Quanto à perfeição do trabalho mecânico dos estudantes, não vejo nada melhor do que referir-me às memórias dos jurados nas mencionadas exposições.

Na América se introduziu o mesmo sistema quanto à parte técnica, primeiro, na Escola de Artes e Ofícios de Chicago, e mais tarde na de Boston que, conforme me garantiram, é a mais perfeita de todas. Neste país, ou melhor, na Escócia, encontrei o sistema aplicado com muito bom êxito, durante alguns anos, sob a direção do doutor Olgivie, no colégio de Gordon, em Aberdeen, numa escala mais limitada. Dá-se ao aluno, ao mesmo tempo, uma profunda educação científica e uma boa prática de oficina. Mas não num ofício específico, como infelizmente ocorre com frequência. Passa pela oficina de carpintaria, de fundição e de maquinaria, e em cada uma delas aprende os fundamentos dos três ofícios, a ponto de equipar a escola com uma boa quantidade de coisas úteis. Ademais, segundo o que pude observar nas aulas de geografia e física, assim como também no laboratório de química, o sistema “da mão ao cérebro”, e vice-versa, encontra-se totalmente em ação, sendo coroado de êxito. Os meninos trabalham com os instrumentos físicos, e estudam geografia no campo, com instrumento na mão, do mesmo modo que na aula. Como velho geógrafo, alguns trabalhos topográficos encheram me o coração de alegria. É evidente que o departamento industrial do colégio de Gordon não é uma mera cópia de nenhuma escola estrangeira, pelo contrário, não posso deixar de acreditar que, se Aberdeen deu um grande passo para a integração entre a ciência e o ofício, foi como consequência natural do que se vinha praticando, em pequena escala, nas escolas da referida cidade.

A Escola Técnica de Moscou não é, entretanto, uma escola ideal. Não dá aos jovens a educação humanitária. Mas, não obstante, devemos reconhecer que essa experiência, sem falar de centenas de outras parciais, demonstrou de modo incontestável a possibilidade de integrar uma elevada educação científica com o que é necessário para se chegar a ser um hábil artesão. Ela provou que o melhor meio de produzir artesãos verdadeiramente hábeis era tomar a coisa pela base, abrangendo o problema da instrução em toda a sua extensão, em vez de dar alguns conhecimentos num determinado ofício e instruir um pouco em algum tipo especial de ciência. E isto fez ver também o que se pode obter sem apertar muito os alunos, se se tiver sempre o cuidado de aplicar uma economia racional ao tempo dedicado ao trabalho, e se a teoria caminhar sempre ao lado da prática. Considerados sob este ponto de vista, os resultados de Moscou não oferecem nada de extraordinário e poderiam mesmo ser melhores se estes métodos fossem aplicados desde os primeiros anos da educação. A perda de tempo é o traço mais característico do nosso sistema atual. Ensina-se uma quantidade de coisas inúteis e de tal modo que gastamos muito mais tempo do que o necessário para aprender. O nosso atual sistema de ensino tem origem numa época em que o que se exigia de uma pessoa bem instruída era mais limitado, e isto não se modificou, apesar do considerável aumento de conhecimentos que o estudante deve ter, desde que a ciência ultrapassou os seus antigos limites. Daí o aumento de pressão nas escolas, assim como também a urgente necessidade de modificar, tanto o texto como o sistema, de acordo com as novas necessidades e os exemplos que aqui e ali nos dão as diferentes escolas e diferentes professores.

Não há dúvida de que os anos da infância não deveriam ser empregados tão inutilmente como acontece hoje. Os professores alemães demonstraram até que ponto os brinquedos infantis servem de instrumento para dar conhecimentos concretos em geometria e matemática. Os meninos que fizeram os quadros do teorema de Pitágoras com pedaços de cartolina colorida não o verão, quando chegar a hora de estudar geometria, como um instrumento de tortura idealizado pelo professor para martirizá-los, e muito menos ainda, se o aplicarem da maneira como fazem os carpinteiros. Problemas complicados de aritmética, que dão tanto trabalho na infância, são resolvidos facilmente por crianças de sete ou oito anos, se forem apresentados sob forma atrativa e interessante. E se o Kindergarten, do qual os professores alemães fazem frequentemente uma espécie de barraca em que cada movimento da criança é regulado de antemão, se transformou numa pequena prisão para os meninos, a ideia que precedeu à sua fundação é, no entanto, válida. Em suma, é quase impossível imaginar, sem haver experimentado, quantos conhecimentos úteis, hábitos de classificação e gosto pelas ciências naturais podem ser inculcados na mente da criança. E se uma série de cursos concêntricos, adaptados às várias fases do desenvolvimento do ser humano, fossem utilizados na educação, os primeiros conhecimentos em todas as ciências, excetuando a sociologia, poderiam ser ensinados antes dos dez ou doze anos, de modo que dessem uma ideia do universo, da terra e seus habitantes e dos principais fenômenos físicos, químicos, sociológicos e botânicos, deixando a descoberta das suas leis para um outro tipo de estudos mais profundos e específicos. Por outro lado, sabemos como as crianças gostam de fazer elas mesmas os seus brinquedos e com que prazer imitam o trabalho dos adultos, quando os veem ocupados na oficina ou na obra. Mas os pais estupidamente bloqueiam essa paixão ou não sabem como utilizá-la. A maior parte deles deprecia o trabalho braçal e prefere mandar os filhos estudarem história romana ou o método de Franklin para fazerem dinheiro, em vez de vê-los dedicar-se a um trabalho que é próprio das “classes inferiores”. Assim, os pais fazem todo o possível para aumentar as dificuldades dos estudos posteriores.

Depois vêm os anos de colégio e de novo se torna a perder o tempo de modo incrível. Tomemos, por exemplo, a matemática, que todos deveriam saber porque é a base de toda educação posterior, e que tão poucos aprendem em nossas escolas. Infelizmente se perde muito tempo em geometria usando um sistema que consiste em confiar tudo à memória. Na maioria dos casos, a criança lê várias vezes a demonstração de um teorema até que sua memória retém a série de raciocínios. Por esta razão, nove entre dez meninos, dois anos depois de deixarem a escola, não conseguirão reproduzir a demonstração de um teorema elementar, a não ser que se tenham dedicado à matemática. Esquecerão quais as linhas auxiliares que devem traçar, uma vez que nunca aprenderam a descobrir a demonstração por si mesmos. Não é, pois, de se admirar que mais adiante eles encontrem tantas dificuldades em aplicar a geometria à física, que progridam tão penosamente e que sejam tão poucos os que dominem os altos estudos matemáticos. E, no entanto, há outro método que facilita o avanço em geral, com muito mais rapidez, e com o qual aquele que uma vez aprendeu geometria jamais o esquecerá. Este sistema se apresenta como um problema cuja solução não é dada de antemão e, portanto, o aluno terá que buscá-la por si mesmo. Deste modo, se se fizerem antes alguns exercícios com régua e compasso, não haverá nem uma criança entre vinte ou trinta que não consiga traçar um ângulo que seja igual a outro lado e demonstrar que são iguais, através somente de algumas indicações do professor. E se os problemas posteriores se apresentarem numa sucessão sistemática (há excelentes livros de texto dedicados a tal propósito), e se o professor não apressar os alunos, fazendo-os avançar mais rapidamente do que podem, eles passarão de um problema a outro com surpreendente facilidade. O professor só terá de fazer com que o aluno resolva o primeiro problema e deste modo adquira confiança em seu modo de raciocinar.

Além disso, cada verdade geométrica deve ser gravada na inteligência em sua forma concreta. Tão logo os alunos resolvam alguns problemas no papel, devem fazer o mesmo no espaço dedicado ao recreio, com pause corda, e depois aplicar estes conhecimentos na oficina. Somente então as linhas geométricas adquirirão um significado concreto na mente das crianças, só então verão que o professor não está brincando quando diz que resolvam os problemas com régua e compasso, sem necessidade de apelar para outros meios, só então saberão geometria. “Dos olhos e da mão ao cérebro”, este é o verdadeiro princípio de economia de tempo no ensino. Recordo, como se fosse hoje, como aprendi rapidamente a geometria sob um aspecto novo e como isto facilitou todos os estudos posteriores. Tratava-se de fabricar um balão mongolfier e eu observei que os ângulos da parte superior de cada uma das tiras de papel com que se havia de compor o balão devia, cada uma, cobrir menos da quinta parte de um ângulo reto. Recordo ainda como as raias e tangentes deixaram de ser meros signos cabalísticos, desde o momento em que nos permitiram calcular a altura de um pau no perfil da obra de uma fortaleza, e como se tornava simples a geometria aplicada ao espaço, quando começamos a fazer em pequena escala um baluarte com torneiras e barbetas, ocupação que, como era de se esperar, foi logo proibida por causa do estado em que ficavam nossas roupas. “Vocês parecem operários”, diziam nossos professores, reprovando-nos. Porém isto, e o consequente desenvolvimento do uso da geometria, era para nós uma verdadeira satisfação.

Ao obrigar nossos filhos a estudarem coisas reais, a partir de meras representações gráficas, em vez de procurar que eles as façam por si mesmos, estamos causando uma perda de tempo preciosa. Cansamos inutilmente a sua imaginação. Acostumamo-los ao pior sistema de aprendizagem, matamos em flor a independência do pensamento, e poucas vezes conseguimos dar um verdadeiro conhecimento sobre aquilo que nos propomos ensinar. O caráter superficial, a repetição como papagaio e a prostração e inércia do entendimento são o resultado deste nosso método de educação. Não lhes ensinamos o modo de aprender. E até os próprios princípios da ciência lhe são transmitidos por meio de um sistema bastante abstrato, enchendo-se a cabeça das pobres criaturas somente com regras.

A ideia de unidade, que é arbitrária e pode mudar segundo o nosso modo de medir (o fósforo, a caixa de fósforos, a dúzia de caixa de fósforos ou a grosa, o metro, o centímetro, o quilômetro e assim por diante), não se imprimiu na mente e, por isso, quando os meninos chegam às frações decimais se veem impossibilitados de compreendê-las, enquanto que na França, onde o sistema é coisa corrente, tanto nas medidas quanto nas moedas, até mesmo aqueles operários que só tiveram instrução elementar, são familiarizados com os decimais. Para representar vinte e cinco centavos escrevem “zero vinte e cinco”, e a maioria dos meus leitores deve, sem dúvida, lembrar de como esse mesmo zero no início de uma série de números nos confundia na infância. Procuramos também, por nossa parte, tornar a álgebra incompreensível, e nossos filhos levam um ano inteiro para aprender não a álgebra, mas um simples sistema de abreviaturas que se poderia estudar facilmente se fosse ensinado junto com a aritmética.

O tempo que se perde na física é deplorável. Enquanto os jovens entendem com muita facilidade os princípios da química e suas fórmulas, desde o momento em que começam a fazer experiências com vasos e tubos, a maioria encontra muita dificuldade na parte mecânica da física, devido, em primeiro lugar, ao fato de não saberem geometria, e especialmente porque só lhes dão máquinas complicadas, em vez de induzi-las a fazer simples aparelhos para ilustrar os fenômenos que estão estudando. Em vez de aprender as leis das forças com instrumentos pouco complicados, que um menino de quinze anos poderia facilmente fazer, os alunos estudam por meio de desenhos, de forma puramente abstrata. Em vez de construírem sozinhos uma máquina Atwood com o cabo de uma vassoura e a roda de um relógio velho, ou comprovarem as leis da queda dos corpos fazendo deslizar uma chave por uma corda em diagonal, mostra-se a eles um aparelho complicado, ocorrendo às vezes que o próprio professor não sabe como explicar-lhes os princípios em que o aparelho se fundamenta, o que o obriga algumas vezes a incorrer em erros, e assim acontece com todas as coisas, do princípio ao fim, com poucas exceções.

Se a perda de tempo é um traço característico de nossos métodos para ensinar a ciência, será também para ensinar uma arte. Sabemos como se perde tempo, quando um rapaz aprende numa oficina, e a mesma observação se pode fazer, até certo ponto, sobre os colégios técnicos que procuram ensinar, desde o início, um determinado ofício, em vez de recorrer aos mais amplos e seguros métodos de ensino sistemático. Assim como há nas ciências algumas noções e sistemas que servem de preparação para o estudo de todas, há também aquelas que servem de fundamento para o estudo específico de qualquer ofício. Reuleaux demonstrou num interessante livro, a Theoretische Kinematik, que contém, digamos assim, uma filosofia de toda espécie de maquinaria. Cada máquina, por mais complicada que seja, pode-se reduzir a um número limitado de elementos – pranchas, cilindros, discos, cones, etc. –, assim como as poucas ferramentas – cinzéis, serras, pilões, martelos, etc. – e, por mais complicados que sejam os seus movimentos, podem-se decompor num reduzido número de modificações da ação, tais como, transformação do movimento circular em retilíneo, e outras pelo estilo, com certo número de elos intermediários. Assim também cada ofício pode-se decompor numa grande quantidade de elementos. Em cada um há que se saber fazer uma prancha com superfícies paralelas, um cilindro, um disco, um quadro e um buraco redondo; como manejar um número limitado de ferramentas, não sendo elas mais do que meras modificações de uma dúzia de tipos; e como se transformam os movimentos. Este é o fundamento de toda a arte mecânica. De modo que o conhecimento da fabricação em madeira desses elementos primordiais, o conhecimento do manejo das principais ferramentas de carpinteiro deveria ser a verdadeira base de todo o conhecimento da arte mecânica.

Além disso, ninguém pode ser bom estudante de ciências se não tiver conhecimentos de meios adequados de pesquisa científica, se não tiver aprendido a observar, a descrever com exatidão, a descobrir as mútuas relações entre fatos aparentemente independentes, a levantar hipóteses e prová-las, a raciocinar sobre a causa e o efeito, e assim por diante.

E ninguém poderá ser um bom artesão, se não estiver familiarizado com um bom método de arte mecânica. É necessário que cada um se acostume a conceber o objeto do seu pensamento numa forma concreta, desenhá-lo ou modelá-lo, evitar o descuido das ferramentas, os maus hábitos de trabalho, dar a tudo um bom toque de efeito final, sentir prazer na contemplação do belo e desprezar o feio. Seja arte mecânica, ciências ou belas artes, a principal aspiração do ensino não deve ser a de fazer do principiante um especialista, mas ensinar-lhe os elementos fundamentais e os bons hábitos de trabalho. E sobretudo dar-lhe essa aspiração geral que mais tarde o levará a pôr em tudo o que realizar o amor à verdade, a ver com prazer tudo o que é bonito, tanto na forma quanto no fundo, a sentir necessidade de ser útil aos demais seres humanos e conseguir que o seu coração bata em uníssono com todos os semelhantes.

Quanto a evitar a monotonia do trabalho, que decorreria do fato de o discípulo só fazer cilindros e discos e não máquinas completas ou outros objetos inúteis, há uma infinidade de meios para impedir que isto aconteça, e um deles, usado em Moscou, é digno de menção. Não é dar trabalho somente como mero exercício, mas utilizar tudo o que o aluno faz desde o primeiro momento. Vocês não se lembram do prazer que sentiam na juventude ao ver que o trabalho que faziam era aproveitado, ainda que só em parte, em qualquer coisa útil? Pois isso se pratica em Moscou: cada peça que o aluno constrói é utilizada como parte de alguma máquina em qualquer das outras oficinas. Quando o estudante entra numa oficina de maquinaria e se põe a fazer um bloco quadrangular de ferro com superfícies paralelas e perpendiculares, este trabalho não deixa de ser interessante para ele, porque sabe que, uma vez concluído e depois de haver provado os seus ângulos e superfícies e corrigido os seus defeitos, não será jogado fora, mas sim passado a outro aluno mais adiantado que irá arrematá-lo, pintá-lo e o enviará à loja do colégio como peso para segurar papéis, recebendo deste modo o ensino sistemático um caráter bastante atrativo.

É evidente que a rapidez no trabalho é um fator importante na produção; de modo que há motivo para perguntar se com este sistema se obteria a necessária velocidade. Respondemos que há dois tipos de rapidez: a que vi numa fábrica de fitas em Nottingham, onde homens adultos, com mão se cabeças trêmulas, trabalhavam de maneira intensa, ligando os restos de fios que sobram nas bobinas, não sendo possível seguir com os olhos a rapidez dos seus movimentos. Mas o próprio fato de se necessitar de um trabalho tão violento é a maior condenação do sistema da grande indústria. O que resta do ser humano atrás destes corpos tão trêmulos? Quais serão as consequências disto? Para que tal desgaste da força humana, quando ela poderia produzir dez vezes o valor do resto do fio que se pretende aproveitar? Este tipo de rapidez só se justifica em função da economia resultante do trabalho escravo na fábrica. Por este motivo não devemos esperar que nenhum colégio aspire a semelhante rapidez no trabalho. Mas existe também a rapidez que representa uma economia de tempo dos operários habilidosos, a que se obtém por meio da educação que apregoamos.

Por mais simples que seja o trabalho, o operário instruído o realizará melhor e mais rápido do que o que carece de instrução. Observe-se, por exemplo, como faz um bom operário para cortar qualquer coisa; suponhamos que se trate de um pedaço de cartolina; é fácil comparar os seus movimentos com os de alguém não adestrado. Este toma a cartolina, pega o instrumento de corte sem olhá-lo, traça uma linha de qualquer jeito e começa a cortar; estará cansado no meio do trabalho, e quando terminar vai ver que o que fez não tem valor algum. E aquele, ao contrário, começará examinando o material que vai utilizar, ajeitando-o se for necessário, traçará a linha com exatidão, segurará ao mesmo tempo a cartolina e a régua, pegará com habilidade o instrumento de corte, cortará facilmente, apresentando assim um trabalho bem feito. Este é o tipo de rapidez que economiza tempo. Assim deve ser com o trabalho humano, e o melhor meio de obtê-la é através da melhor instrução possível. Os grandes mestres pintavam com uma rapidez surpreendente, mas isto era resultante do grande desenvolvimento de sua inteligência e imaginação, de uma delicada concepção do belo e de uma fina percepção das cores. E este é o tipo de trabalho rápido que faz falta à humanidade.

Muito mais poderíamos acrescentar com relação aos deveres da escola, mas me limitarei somente a dizer mais algumas palavras a respeito da conveniência de estabelecer o sistema de educação ligeiramente esboçado nas páginas precedentes. Inútil seria dizer que não se deve alimentar a esperança de que haja em educação e em algum dos pontos tratados nas páginas anteriores alguma reforma verdadeiramente importante, enquanto as nações civilizadas permanecerem sob o atual, estreito e egoísta, sistema de consumo e produção. Tudo o que podemos esperar, enquanto durarem as atuais condições, é tentar, aqui e ali, de maneira microscópica, fazer alguma melhoria em escala limitada; tentativas que, por necessidade, se encontrarão muito abaixo dos resultados desejados, por causa da impossibilidade de informar em pequena escala, quando é tão estreita a conexão existente entre as múltiplas funções de uma nação civilizada. Mas a energia do gênio construtivo da sociedade depende, principalmente, da profundidade de suas concepções a respeito do que se deveria fazer e de que modo; e a necessidade de reconstruir o ensino é uma daquelas que está mais ao alcance de todos e é das mais adequadas para inspirar à sociedade esses ideais, sem os quais o estancamento e até mesmo a decadência são inevitáveis. Suponhamos, pois, que uma comunidade – uma cidade ou um território com pelo menos: alguns milhões de habitantes – desse o tipo de instrução que resenhamos, a todos os seus filhos, sem distinção de origem (e somos bastante ricos para permitir-nos esse luxo), sem pedir-lhes nada em troca, senão o que darão quando se tornarem produtores da riqueza; suponhamos que se tenha dado tal educação e analisemos as suas prováveis consequências.

Não insistirei no aumento de riqueza resultante de se ter um jovem exército de produtores bem instruídos e bem capacitados; nem tampouco nos benefícios sociais provenientes de se eliminar as atuais distinções entre os trabalhadores intelectuais e braçais; e de se chegar assim à concordância harmoniosa de interesses, tão necessária nestes tempos de lutas sociais. Nada direi sobre o complemento de vida de que todos desfrutariam, desde o momento em que pudessem gozar do uso das suas faculdades mentais e corporais e nem das vantagens que resultariam de se elevar o trabalho mecânico ao posto de honra que de direito lhe corresponde na sociedade, em vez de ser, como acontece hoje, um sinal de inferioridade. Não insistirei também na necessidade de desaparecer a miséria e a degradação presentes, com seu cortejo de vícios, crimes, prisões e toda sorte de indignidades, que são suas naturais consequências. Enfim, não tocarei agora na grande questão social sobre que tanto se escreveu e tanto falta ainda para escrever: somente me proponho chamar a atenção nestas páginas sobre os benefícios que a própria ciência lograria com a mudança.

Não faltará naturalmente quem diga que rebaixar os homens de ciência à categoria de trabalhadores braçais representaria a decadência daquela e do gênio; mas, os que assim consideram, é provável que hão de convir em que o contrário é precisamente o que deveria acontecer, isto é, um progresso tal nas ciências e nas artes e tão grande avanço na indústria, que mal poderíamos imaginar, podendo compará-lo com a época do Renascimento. Praticou-se uma vulgaridade, falando com ênfase dos progressos da ciência neste século; e, no entanto, é evidente que se se comparar com os séculos passados há muito de que se orgulhar. Mas se considerarmos que a maior parte dos problemas que o nosso século resolveu já haviam sido propostos e suas soluções previstas há cem anos, teremos que admitir que o avanço não foi tão rápido assim como era de se esperar, e que sem dúvida nenhuma há algo que o dificulta.

A teoria mecânica do calor foi perfeitamente prevista no século passado por Rumford e Humphrey Davy, e mesmo na Rússia ela foi preconizada por Somonoraff. E, no entanto, foi preciso mais de meio século para que a teoria reaparecesse na ciência. Lamark, e mesmo Lineu, Geoffroy Saint-Hilaire, Erasmo, Darwin e muitos outros tinham perfeito conhecimento da variabilidade das espécies; eles abriram o caminho que leva à constituição da biologia dentro dos princípios da diferenciação. Mas neste caso, também foi preciso meio século para que a questão da variabilidade das espécies voltasse à ordem do dia, e todos sabemos de que modo as ideias de Darwin se divulgaram e se impuseram à juventude universitária, em geral, através de pessoas que pertenciam ao magistério, e isto que nas mãos de Darwin a teoria da evolução era limitada, devido à excessiva importância dada a um só fator da evolução.

Há muito tempo a astronomia está precisando fazer uma revisão nas hipóteses de Kant e Laplace, mas ainda não apareceu nenhuma teoria que seja aceita em geral. A geologia fez sem fez, sem dúvida, maravilhosos progressos na reconstituição dos conhecimentos paleontológicos, mas a geologia dinâmica, ao contrário, caminha com uma lentidão espantosa, enquanto que todo avanço posterior na grande questão relacionada com as leis da distribuição dos organismos vivos na superfície da terra fica paralisada pela falta de conhecimentos a respeito da extensão do período glaciário durante a era quaternária. Por último, cm cada ramo da ciência, impõe-se uma revisão das teorias correntes, assim como uma nova e ampla generalização, e se a primeira requer a inspiração do gênio que impulsionou a Galileu e Newton, ela reclama também um aumento no número dos cientistas. Quando os fatos contrários às teorias correntes se tornam numerosos, estas têm que ser revistas (vimos isto no caso de Darwin), e para tanto são necessários muitos cientistas.

Imensas regiões da terra estão ainda por explorar; o estudo da distribuição geográfica dos animais e das plantas se depara a cada passo com sérias dificuldades. Os exploradores atravessam os continentes sem saber nem mesmo como determinar a latitude e nem como manejar um barômetro. A fisiologia, tanto das plantas como dos animais, a psicofisiologia e as faculdades psicológicas do homem e dos animais são outros tantos ramos do saber humano que reclamam mais antecedentes para fortalecer as suas bases. A história continua sendo uma fable convennue [fábula acordada], principalmente pela falta de novas ideias, e também porque necessita de operários que pensem de um modo científico para reconstituir a vida dos séculos passados, do mesmo modo que Harold, Rogers ou Agostinho Kierry fizeram com relação a uma determinada época. Em suma, não há nenhuma ciência que não sofra no seu desenvolvimento por falta de gente que possua uma concepção filosófica do universo, disposta a aplicar sua capacidade de pesquisa num determinado campo, por mais limitado que seja, e que disponha do tempo necessário para se ocupar da especulação científica.

Numa comunidade como a que imaginamos haveria milhares de trabalhadores sempre dispostos a atender ao primeiro chamado. Darwin levou cerca de trinta anos reunindo e analisando fatos para a elaboração da teoria da origem das espécies. Mas se tivesse vivido numa sociedade como a que imaginamos, a um só chamado solicitando o concurso dos demais para dados e explorações parciais, teria encontrado milhares de pessoas para responder a seu chamado. Uma multidão de sociedades teria surgido para discutir e resolver cada um dos problemas parciais englobados na teoria, e em menos de dez anos teria chegado à comprovação dos fatos. Todos esses fatores da evolução que só agora é que começam a ser objeto de atenção, teriam aparecido logo em toda a sua magnitude. A rapidez do progresso científico se teria multiplicado muitas vezes. E se um indivíduo isolado não reunisse em si tantos títulos reconhecidos pela posteridade, como acontece hoje em dia, a massa anônima teria feito o trabalho com mais velocidade e com mais probabilidade de avanços posteriores do que uma pessoa só em toda a sua vida. O Dicionário de Murray é um exemplo deste tipo de trabalho do qual depende o futuro.

Além disso há outro aspecto da ciência moderna que fala com mais veemência ainda a favor da mudança que propomos. Enquanto a indústria, desde fins do século passado e durante a primeira parte do presente, vem criando em tal escala, que se pode bem dizer que transformou a própria face da terra, à ciência vem perdendo a sua capacidade criativa. Os cientistas deixaram de criar ou o fazem em escala muito pequena. Não é estranho que a máquina a vapor, mesmo em seus princípios fundamentais, a locomotiva, o navio a vapor, o telefone, o fonógrafo, o tear mecânico, a fotografia em preto e branco e colorida, e milhares de outras coisas menos importantes não tenham sido inventadas por cientistas profissionais, embora nenhum deles visse inconveniente algum em ligar o seu nome a qualquer uma dessas invenções?

Homens que mal haviam recebido instrução na escola e que só haviam recolhido as migalhas do saber da mesa do rico, tendo que se valer dos meios mais primitivos para fazer os seus ensaios – o tabelião Smeeton, o instrumentalista Watt, o construtor de carroças Stephenson, o aprendiz de prataria Fulton, o construtor de moinhos Rennie, o pedreiro Telford, e centenas de outros de quem nem mesmo os nomes se conhecem – foram, como com razão diz Smiles, “os verdadeiros autores da civilização moderna”. Enquanto que os cientistas profissionais, providos de todos os meios de adquirir conhecimentos e de experimentar, representam uma parte insignificante dos instrumentos, máquinas e primeiros motores que mostraram à humanidade o modo de utilizar e manejar as forças da natureza [1]. O fato é significativo e, no entretanto, a explicação é bem simples: aqueles homens – os Watts e os Stephenson – sabiam algo que os sábios ignoram, sabiam valer-se das próprias mãos; o meio em que viviam estimulava as faculdades criativas, conheciam as máquinas, seus fundamentos e ação, haviam respirado a atmosfera da oficina e da obra.

Os homens de ciência vão dizer com certeza: nós descobrimos as leis da natureza; que outros as apliquem; trata-se de uma simples distribuição de tarefas. Mas esta resposta não se baseia na verdade. O que acontece é justamente o contrário, pois, em noventa e nove por cento dos casos, a invenção mecânica vem antes do descobrimento da lei científica. A teoria dinâmica do calor não apareceu antes da máquina a vapor, mas sim depois. Quando milhões de máquinas já transformavam o calor em movimento, diante dos olhos de centenas de professores, por meio século ou mais; quando milhões de trens, controlados por poderosos freios, desprendiam calor e lançavam inúmeras faíscas nos trilhos ao aproximar-se das estações; quando em todo q mundo civilizado os pesados martelos e as perfuradoras passavam intenso calor às massas de ferro sobre as quais agiam, somente então foi que um doutor, Mayer, se aventurou a anunciar a teoria mecânica do calor com todas as suas implicações, e, no entanto, os cientistas por pouco não o empobreceram, apegando-se obstinadamente ao misterioso fluido calórico, qualificando o livro de Joule sobre a equivalência mecânica do calor de “pouco científico”.

Quando as máquinas demonstravam a impossibilidade de utilizar todo o calor emitido por uma determinada quantidade de combustível queimado é que apareceu a lei de Cláusio. E quando em todo o mundo a indústria já transformava o movimento em calor, som, luz e eletricidade, e vice-versa, foi que apareceu a teoria de Grave sobre a “correlação das forças físicas”. Não foi a teoria da eletricidade que nos deu o telégrafo. Quando este foi inventado não conhecíamos a respeito dela mais do que dois ou três fatos apresentados sem muita exatidão em nossos livros. Sua teoria não está ainda formulada, aguarda um Newton, apesar dos brilhantes esforços destes últimos anos. Ainda estava nos seus princípios o conhecimento empírico das leis nas correntes elétricas, quando alguns homens de valor estenderam um telégrafo no fundo do Oceano Atlântico, apesar das críticas das autoridades científicas. O nome de “ciência aplicada” pode induzir a erro, porque na maior parte dos casos o invento, longe de ser uma aplicação da ciência, faz, pelo contrário, com que se produzam novos ramos. As pontes americanas não foram uma aplicação da teoria da elasticidade, foram anteriores a ela e tudo o que se pode dizer em favor da ciência é que neste ramo específico a teoria e a prática se desenvolviam paralelamente, ajudando-se com reciprocidade. Não foi a teoria dos explosivos que levou à descoberta da pólvora. Esta era usada já há séculos, quando a ação dos gases num canhão foi submetida a uma análise científica. E assim sucessivamente: o grande processo da metalurgia, as fundições e as propriedades que estas adquirem pela adição de uma pequena quantidade de algum metal ou metaloide; o recente impulso que tomou a luz elétrica, e mesmo as previsões referentes às mudanças do tempo, que com razão mereceram o qualificativo de “anticientificismo””, quando foram inauguradas pelo velho marinheiro Fitzroy, tudo isto se poderia mencionar como exemplo para o que foi exposto. Não por isso se há de negar que, em algumas ocasiões, a descoberta ou a invenção não foi mais do que a simples aplicação do princípio científico, como, por exemplo, o descobrimento do planeta Netuno. Mas, na maioria dos casos, é exatamente o contrário o que ocorreu. Esta aptidão corresponde muito mais ao domínio da arte do que ao da ciência, como demonstrou Helmholtz numa de suas conferências populares. E só depois de se ter realizado o invento é que a ciência lhe vem dar a sua interpretação. É evidente que cada invento se aproveita dos conhecimentos acumulados previamente e das formas de sua manifestação. Mas em geral ele se sobrepõe ao que se sabe, dá um salto no desconhecido e, deste modo, abre uma nova série de fatos que a pesquisa oferece. Este caráter da inventiva, que consiste em dar um passo além dos conhecimentos existentes, em vez de limitar-se a aplicar uma lei, a assimilá-la, quando se refere ao processo da inteligência, ao descobrimento. Por conseguinte, as pessoas que têm dificuldade para inventar, têm também para descobrir.

Na maioria dos casos, o inventor, apesar de ser influenciado pela situação geral da ciência num determinado momento, põe-se a trabalhar com os poucos fatos comprovados que se encontram à sua disposição. Os dados científicos levados em conta para a invenção da máquina a vapor, do telefone e do fonógrafo, foram notadamente elementares. De modo que podemos afirmar que o que sabemos atualmente já é suficiente para resolvermos qualquer dos grandes problemas que apareçam: motores primários que dispensam o vapor, a acumulação da energia, a transmissão de força ou a máquina voadora. Se estes problemas não se resolveram ainda, é somente por causa da falta de gênio inventivo, de escassez de homens ilustrados, e do atual divórcio entre a ciência e a arte. De um lado, temos homens dotados de capacidade inventiva, mas que carecem tanto dos necessários conhecimentos científicos, como dos meios de entregar-se por muitos anos à experimentação. E de outro, pessoas com conhecimentos e facilidades para a experimentação, mas desprovidas de gênio inventivo, devido à educação e ao meio em que vivem, sem mencionar o sistema de patentes que separa e dispersa os esforços dos inventores, em vez de aproximá-los e uni-los.

A chama do gênio que caracterizou os operários nos primeiros tempos da indústria moderna brilhou pela ausência entre nossos cientistas profissionais, e estes não poderão recuperá-la enquanto estiverem afastados do mundo, vivendo na poeira das bibliotecas. E enquanto também não resolverem trabalhar ao lado dos operários, no calor da forja, nas máquinas das fábricas, e no torno da oficina mecânica, mesmo sendo marinheiros no mar e pescadores nas costas, lenhadores nos bosques e agricultores nos campos. Demonstrando que a arte grega e medieval eram filhas da arte antiga e que se alimentavam mutuamente, nossos professores de arte nos disseram repetidas vezes que não devemos esperar uma ressurreição da arte antiga enquanto a arte mecânica for o que é hoje. E o mesmo se pode dizer com relação à ciência; a sua separação prejudica os dois. E a respeito das grandes inspirações que infelizmente foram tão relegadas em grande parte das discussões sobre artes – acontecendo o mesmo com relação à ciência – só poderemos tê-las quando a humanidade, rompendo os seus atuais laços, der um novo passo em direção aos mais elevados princípios da sociologia, acabando de vez com o atual dualismo entre o sentido moral e filosofia.

É evidente, entretanto, que todas as pessoas não podem usufruir ao mesmo tempo de ocupações puramente científicas, pois a variedade de inclinações é tal que muitos estarão melhor nas ciências, outros nas artes, e outros também nos inúmeros ramos da produção de riqueza. Mas qualquer que seja a ocupação de cada um, o serviço que pode prestar dentro do que escolheu será tanto maior quanto maior for o seu conhecimento científico. Seja ele homem da ciência ou artista, físico ou cirurgião, químico ou sociólogo, historiador ou poeta, ganhará muito se empregar parte do seu tempo na oficina ou na granja, se estiver em contato com a humanidade no seu trabalho diário e se tiver a satisfação de saber que ele também, sem fazer uso de nenhum tipo de privilégio, desempenha sua função com qualquer outro produtor de riqueza. Que grande conhecimento da humanidade teriam o historiador e o sociólogo, se aquele o obtivesse não só através dos livros ou de alguns de seus representantes, mas através do conjunto, da vida, do trabalho e das suas relações diárias. A Medicina cuidaria muito mais da higiene do que a Farmácia, se os jovens doutores fossem, ao mesmo tempo, enfermeiros, e se estes, por sua vez, recebessem a mesma instrução que a dos médicos! Quão mais poderia apreciar o poeta a beleza da Natureza e quão mais conheceria o coração humano, se visse sair o sol com os trabalhadores no campo, sendo ele também um agricultor; se lutasse contra a tempestade com os marinheiros, a bordo de algum navio; se conhecesse a poesia do trabalho e do descanso, da tristeza e da alegria, da luta e da vitória!

A chamada divisão do trabalho é filha de um sistema que condena as massas a trabalhar o dia inteiro, a vida inteira numa mesma e monótona tarefa. Mas se levarmos em conta a limitação do número dos verdadeiros produtores da riqueza em nossa sociedade atual e como se dilapida esse trabalho, haveremos de reconhecer que Franklin tinha razão ao dizer que cinco horas de trabalho diário bastariam, em geral, para proporcionar a cada indivíduo, numa nação civilizada, as comodidades de que agora só uns poucos podem usufruir, contanto que todos tomassem parte na produção. Mas de lá para cá alguma coisa avançou, mesmo no ramo mais atrasado da produção, como mostramos nas páginas anteriores. Mesmo nele a produtividade do trabalho pode aumentar imensamente, tornando-se fácil e atrativo.

Mais da metade da jornada de trabalho ficaria assim livre para que cada qual se dedicasse ao estudo das ciências e das artes ou a qualquer ocupação de sua preferência. E o trabalho no seu campo seria tão mais proveitoso quanto mais produtivo fosse o trabalho realizado no resto do dia, se a dedicação à ciência ou à arte fosse produto da inclinação natural e não questão de conveniência e interesses. Ademais, uma comunidade organizada sob o princípio de que todos sejam trabalhadores, seria bastante rica para convir em que todos os seus membros, homens ou mulheres, a uma certa idade, dos quarenta em diante por exemplo, fossem liberados da obrigação moral de tomar parte direta na execução do trabalhado braçal, podendo assim se dedicar completamente ao que mais lhe agradasse no terreno da ciência, da arte ou qualquer outro. E os avanços de todo gênero e em todos os sentidos surgiriam seguramente de tal sistema. Numa semelhante comunidade, não se conheceria a miséria em meio à abundância nem o dualismo da consciência que envenena a nossa existência e afoga todo nobre esforço, podendo-se livremente empreender o voo em direção às mais altas regiões do progresso, compatíveis com a natureza humana.


Notas:


[1] – A química é, em grande parte, uma exceção a esta regra. Será porque talvez o químico seja, sob certo aspecto, um trabalhador braçal? Aliás, nos últimos dez anos, presenciamos uma verdadeira ressurreição nas invenções científicas, principalmente na física, isto é, num ramo em que o mecânico e o homem da ciência estão frequentemente juntos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário