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Resumo: publicaremos aqui a tradução de Railton Sousa Guedes (publicada originalmente pelo Projeto Periferia) de uma introdução de Cappelletti à obra mais famosa de Piotr Kropotkin. Revisamos a tradução e ajustamos a ortografia do texto. A versão original da introdução pode ser encontrada nesse link.
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Apoio Mútuo é a obra mais representativa da personalidade intelectual de Kropotkin. Nela se encontram expressos igualmente o homem de ciência e o pensador anarquista; o biólogo e o filósofo social; o historiador e o ideólogo. Trata-se de um ensaio enciclopédico, de um gênero cujos últimos cultores foram os positivistas e os evolucionistas. Abarca quase todos os ramos do saber humano, desde a zoologia à história social, desde a geografia à sociologia da arte, postas ao serviço de uma tese filosófica-científica que constitui, por sua vez, uma interpretação particular do evolucionismo darwiniano.
Pode-se dizer que a dita tese chega a ser o fundamento de toda sua filosofia social e política e de todas suas doutrinas e interpretações da realidade contemporânea. Como articulação entre esse fundamento e essas doutrinas está uma Ética de expansão vital.
Para compreender o sentido da tese básica de Apoio Mútuo é necessário partir do evolucionismo darwiniano ao qual adere Kropotkin, considerando-o a última palavra da ciência moderna.
Até o século XIX os naturalistas tinham quase por axioma a ideia da fixidez e imobilidade das espécies biológicas: Tot sunt species quot a principio creavit infinitum ens. Ainda no século XIX, o mais célebre dos cultores da história natural, o huguenote Cuvier, seguia imperturbável em seu fixismo. Mas já em 1809, Lamarck, em sua Filosofia Zoológica, defendia para grande escândalo da Igreja e da Academia, a tese de que as espécies zoológicas se transformam, em resposta a uma tendência imanente de sua natureza e adaptando-se ao meio circundante. Há em cada animal um impulso intrínseco (ou “esforço”) que o leva a novas adaptações e o provê de novos órgãos, que se agregam a seu fundo genético e se transmitem por herança. À ideia do impulso intrínseco e da formação de novos órgãos exigidos pelo meio ambiente se agrega a da transmissão hereditária. Tais ideias, às quais Cuvier se oporia três anos mais tarde em seu Discurso Sobre as Revoluções do Globo, da Teoria das Catástrofes Geológicas e das Sucessivas Criações [1], encontrou apoio indireto nos trabalhos do geólogo inglês, Lyell, que, em seu Princípios de Geologia demostrou a falsidade do catastrofismo de Cuvier, provando que as causas da alteração da superfície do planeta hoje não diferem das eras passadas [2].
Lamarck descende filosoficamente da filosofia da Ilustração, mas não descartou totalmente a teleologia. Para ele há na natureza dos seres vivos uma tendência continua a produzir organismos cada vez mais complexos [3]. Tal tendência atua em resposta às exigências do meio e não apenas cria novos caracteres somáticos como também os transmite por herança. Uma vontade inconsciente e genérica impulsiona, pois, a mudança segundo uma lei geral que determina a transição do simples para o complexo. Esta lei servirá de base à filosofia sintética de Spencer. Pese a importância da teoria de Lamarck na história da ciência e também da filosofia, ela estava limitada por inegáveis deficiências. Lamarck não aportou muitas provas a suas hipóteses; partiu de uma química pré-científica; não considerou a evolução senão enquanto processo linear. Darwin, por sua vez, se preocupou em acumular, sobretudo através de suas viagens ao redor do mundo, uma grande quantidade de observações zoológicas e botânicas; colocou-se em dia com a química iniciada por Lavoisier (embora tenha ignorado a genética fundada por Mendel) e teve da evolução um conceito mais amplo e complexo. Descartou toda classe de teleologismo e se baseou em supostos estritamente mecanicistas. Suas notas revelam que tinha consciência das aplicações materialistas de suas teorias biológicas. De fato, não apenas recebeu a influência de seu avô Erasmus Darwin e do geólogo Lyell, como também do economista Adam Smith, do demógrafo Malthus e do filósofo Comte [4]. Em 1859 publicou sua Origem das Espécies que lhe valeu prontamente o título de celebridade universal; doze anos mais tarde trouxe à luz Descendência do Homem [5]. Darwin aceita de Lamarck a ideia da adaptação ao meio, mas nega admitir a da força imanente que impulsiona a evolução. Rechaça, em consequência, toda possibilidade de mudanças repentinas e admite apenas uma série de câmbios graduais e acidentais. Formula, em substituição do princípio lamarckiano do impulso imanente, a lei da seleção natural [6]. Partindo de Malthus, observa que há uma reprodução excessiva dos viventes, que levaria por si mesma a que cada espécie encheria toda a terra. Se isso não sucede é porque uma grande parte dos indivíduos perecem. Dessa forma, a desaparição dos mesmos obedece a um processo de seleção. Dentro de cada espécie surgem inúmeras diferenças; só sobrevivem aqueles indivíduos cujos caracteres diferenciais os tornam mais aptos para adaptar-se ao meio. De tal maneira, a evolução aparece como um processo mecânico, que torna supérflua toda teleologia e toda ideia de uma direção e de uma meta. Esta lei básica da seleção natural e da sobrevivência do mais apto (que alguns filósofos contemporâneos, como Popper, consideram mera tautologia) partilha da ideia da luta pela vida (Struggle for Life) [7]. Esta se manifesta principalmente entre os indivíduos de uma mesma espécie, onde cada um luta pelo predomínio e pelo acesso à reprodução (seleção sexual).
Herbert Spencer, que antes de Darwin já havia esboçado o plano de um vasto sistema de filosofia sintética, estendeu a ideia da evolução, por um lado, à matéria inorgânica (Primeiros Princípios, 1862, II Parte,) e, por outro lado, à sociedade e à cultura (Princípios de Sociologia, 1876-1896). Para ele, a luta pela vida e sobrevivência do mais apto (expressão que usava desde 1852), representa não somente, o mecanismo pelo qual a vida se transforma e evolui mas também a única via de todo progresso humano [8]. Assenta assim as bases do que se chamará de darwinismo social, cujos dois filhos, o feroz capitalismo manchesteriano e o ignominioso racismo, foram talvez mais longe do que aquele pacífico burguês podia imaginar. Huxley, discípulo fiel de Darwin, publica, em fevereiro de 1888 na revista Nineteenth Century, um artigo que, como seu próprio título indica, é em sua totalidade um manifesto do darwinismo social: The Struggle for Life. A Programme [9]. Kropotkin fica comovido por este trabalho onde vê expostas ideias sociais, contra as quais sempre lutara, fundadas em teorias científicas tidas como a culminação do pensamento biológico contemporâneo. Reage contra ele e, a partir de 1890, se propõe refutá-lo em uma série de artigos que vão aparecendo também em The Nineteenth Century e que mais tarde amplia e complementa ao reuni-los em um único volume titulado: Apoio Mútuo, Fator da Evolução.
Um caminho para refutar Huxley e o darwinismo social seria seguir os passos de Russell Wallace, que põe o cérebro do homem à margem da evolução. Há que se levar em conta que este ilustre sábio, que formulou sua teoria da evolução das espécies quase ao mesmo tempo que Darwin, ao reservar um lugar à parte para a vida moral e intelectual do ser humano, sustentava que desde o momento em que este descobriu o fogo entrou no campo da cultura e deixou de ser afetado pela seleção natural [10]. Deste modo Wallace se desvencilhou, muito mais que Darwin ou Spencer, do prejuízo racial [11]. Mas Kropotkin, firme em seu materialismo, não podia seguir a Wallace, que não duvidava em postular a intervenção de Deus para explicar as características do cérebro e a superioridade moral e intelectual do homem.
Por outro lado, como socialista e anarquista, não podia de modo algum concordar com as conclusões de Huxley, nas quais via sem dúvida um cômodo fundamento para a economia do irrestrito “laissez faire” capitalista, para as teorias racistas de Gobineau (cujo Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas publicara já em 1855), para o malthusianismo, e para as elucubrações falsamente individualistas de Stirner e de Nietzsche.
Considera, pois, o manifesto huxleyano como uma interpretação unilateral e, portanto, falsa da teoria darwinista da “struggle for life” e se propõe demostrar que junto ao princípio da luta (de cuja vigência não duvida) deve-se levar em conta outro ainda mais importante para explicar a evolução dos animais e o progresso do homem. Este princípio é o da ajuda mútua entre os indivíduos de uma mesma espécie (e, às vezes, também entre os de espécies diferentes). O mesmo Darwin admitira este princípio. No prólogo à edição de 1920 do Apoio Mútuo, escrito poucos meses antes de sua morte, Kropotkin manifesta sua alegria pelo fato de que o próprio Spencer reconhecera a importância da “ajuda mútua e seu significado na luta pela existência”. Nem Darwin nem Spencer outorgaram nunca, sem embargo, a categoria que lhe dá Kropotkin ao pô-la ao mesmo nível (quando não acima) da luta pela vida como fator de evolução.
Traz um exame bastante minucioso da conduta de diferentes espécies animais, desde os escaravelhos coveiros, os caranguejos das Molucas, até os insetos sociais (formigas, abelhas, etc.), para o qual aproveita as investigações de Lubbock e Fabre; desde o falcão crespo do Brasil até o frailecico e o aguzanieves. Desde caninos, roedores, angulados e ruminantes até elefantes, javalis, morsas e cetáceos; depois de haver descrito particularmente os hábitos dos macacos que são, entre todos os animais “os mais próximos ao homem por sua constituição e por sua inteligência”, conclui que em todos os níveis da escala zoológica existe vida social e que, a medida que se ascende na dita escala, as colônias ou sociedades animais tornam-se cada vez mais conscientes, deixam de ter um mero alcance fisiológico e de fundamentar-se no instinto, para chegar a ser, ao cabo, racionais. Em vez de sustentar, como Huxley, que a sociedade humana nasceu de um pacto de não agressão, Kropotkin considera que ela existiu desde sempre e não foi criada por nenhum contrato, mas que foi anterior inclusive à existência dos indivíduos. O homem, para ele, não é o que é senão por sua sociabilidade, ou seja, pela forte tendência ao apoio mútuo e à convivência permanente. Se opõe assim ao contratualismo, tanto na versão pessimista de Hobbes (honro homini lupus), que fundamenta o absolutismo monárquico, como na versão otimista de Rousseau, sobre a qual se considera baseada a democracia liberal.
Para Kropotkin, como para Aristóteles, a sociedade é tão natural ao homem como a linguagem. Nada como o homem merece o apelido de “animal social” (zóon koinonikón).
Mas Aristóteles se opõe e não admite a equivalência que aquele estabelece entre “animal social” e “animal político” (zóon politikón). Segundo Kropotkin, a existência do homem depende sempre de uma coexistência. O homem existe para a sociedade tanto como a sociedade para o homem. É claro, por isso sua simpatia por Nietzsche não podia ser profunda.
Considera o nietzscheanismo, tão em moda em sua época como na nossa, “um dos individualismos espúrios”. Identifica-o em definitivo com o individualismo burguês, “que só pode existir sob a condição de oprimir às massas e do lacaismo, do servilismo e da tradição, da obliteração da individualidade dentro do próprio opressor, como no seio da massa oprimida” [12].
Como Guyau, o Nietzsche francês cuja moral sem obrigação nem sanção encontra-se tão próxima à ética anarquista, ele o censura por não haver compreendido que a expansão vital à qual aspira é antes de tudo uma luta pela justiça e pela liberdade do povo. Com maior força todavia se opõe ao solipsismo moral e ao egotismo transcendental de Stirner, que considera “simplesmente a volta dissimulada à atual educação do monopólio de uns poucos” e o direito ao desenvolvimento “para as minorias privilegiadas”.
Sem deixar de reconhecer, pois, que a ideia da luta pela vida, tal como proposta por Darwin e Wallace, resulta sumamente fecunda desde que torne possível abarcar uma grande quantidade de fatos sob um enunciado geral, insiste em que muitos darwinistas têm restringido aquela ideia a limites excessivamente estreitos e tendem a interpretar o mundo dos animais como um sangrento cenário de lutas ininterruptas entre seres sempre famintos e ávidos de sangue. Graças a eles a literatura moderna se empanturra com o grito “vae victis” (ai dos vencidos!), grito que consideram como a última palavra da ciência biológica. Elevaram a luta sem quartel à condição de princípio e lei da biologia e pretendem que a ela se subordine o ser humano.
Entretanto, Marx considerava que o evolucionismo darwiniano, baseado na luta pela vida, formava parte da revolução social [13] e, ao mesmo tempo, os economistas manchesterianos o tinham como excelente suporte científico para sua teoria da livre competição, na qual a luta de todos contra todos (a lei da selva) representa o único caminho para a prosperidade. Kropotkin coincide com Marx e Engels em que o darwinismo deu um golpe de misericórdia à teleologia. Quanto ao intento de aproveitar para os fins da revolução social a ideia darwinista da vida (interpretada como luta de classes) ele consigna relativa importância. Por outro lado, como Marx, ataca Malthus, cujo primeiro adversário de porte havia sido Godwin, o precursor de Proudhon e do anarquismo.
Mas a decidida oposição ao malthusianismo, que propicia a morte massiva dos pobres por sua inadaptação ao meio, e a luta contra Huxley, que não encontra outro fator de evolução fora da perene luta sangrenta, não significam que Kropotkin tenha aderido a uma visão idílica da vida animal e humana, ou se entregue, como muitas vezes se diz, a um otimismo desenfreado e ingênuo. Como naturalista e homem de ciência ele está longe dos róseos quadros galantes e festivos do rococó, e não compartilha simplesmente da ideia do bom selvagem de Rousseau. Pretende situar-se em um ponto intermediário entre este e Huxley. O erro de Rousseau consiste no fato de ter perdido completamente de vista a luta sustentada com unhas e dentes, e Huxley é culpado de um erro de caráter oposto; mas nem o otimismo de Rousseau nem o pessimismo de Huxley podem ser aceitos como uma interpretação desapaixonada e científica da natureza.
O ilustre biólogo Ashley Montagu escreve a este respeito: “É erro generalizado crer que Kropotkin se propôs demostrar que é a ajuda mútua e não a seleção natural ou a competência o principal ou único fator que atua no processo evolutivo”. Em um livro de genética publicado recentemente por uma grande autoridade na matéria, lemos: “Reconhecer a importância que tem a cooperação e a ajuda mútua na adaptação não contradiz de nenhuma maneira a teoria da seleção natural, conforme interpretaram Kropotkin e outros”. Os leitores de Apoio Mútuo prontamente perceberão até que ponto é injusto este comentário. Kropotkin não considera que a ajuda mútua contradiga a teoria da seleção natural. Seguidamente chama a atenção sobre o fato de que existe competição na luta pela vida (expressão que critica acertadamente com razões, sem dúvida, aceitáveis para a maior parte dos darwinistas modernos). Repetidamente destaca a importância da teoria da seleção natural, que destaca como a mais significativa do século XIX. O que aponta como inaceitável e contraditório é o extremismo representado por Huxley em seu ensaio “Struggle for Existence Manifesto”, e assim o demonstra ao qualificá-lo de “atroz” em suas Memorias [14]. Com efeito, em Memorias de um Revolucionário relata: “Quando Huxley, querendo lutar contra o socialismo, publicou em 1888 no Nineteenth Century, seu atroz artigo ‘A luta pela Existência é Apenas um Programa’, decidi apresentar de uma forma compreensível minhas objeções àquele modo de entender a referida luta, de que era a mesma entre os animais e os homens, com os materiais que acumulei durante seis anos” [15]. O propósito não teve uma calorosa acolhida entre os homens de ciência amigos, uma vez que a interpretação da “luta pela vida como sinônimo de ai dos vencidos!”, fora elevada ao nível de um imperativo da natureza, convertendo-se quase em um dogma.
Só duas pessoas apoiaram a rebeldia de Kropotkin contra o dogma e a “atroz” interpretação huxleyana: James Knowles, diretor da revista Nineteenth Century e H.W. Bates, conhecido autor de Um Naturalista no Rio Amazonas. Para os demais, a tese que pretendia defender, contra Huxley, havia sido anteriormente proposta pelo geólogo russo Kessler, se bem que este apenas havia aduzido alguma prova em favor da mesma. Élisée Reclus, com sua autoridade de sábio, dará sua aberta adesão à dita tese e defenderá os mesmos pontos de vista de Kropotkin [16].
A grande massa de dados zoológicos que reuniu, infere, pois, que embora certa a luta entre espécies diferentes e entre grupos de uma mesma espécie, em termos gerais deve-se dizer que a pacífica convivência e o apoio mútuo reinam dentro do grupo e da espécie, e, mais ainda, que aquelas espécies nas quais mais desenvolvida está a solidariedade e a ajuda recíproca entre os indivíduos têm maiores possibilidades de sobrevivência e evolução.
O princípio do apoio mútuo não constitui, portanto, para Kropotkin, um ideal ético nem tampouco uma mera anomalia que rompe as rígidas exigências da luta pela vida, mas um fato cientificamente comprovado como fator da evolução, paralelo e contrário ao outro fator, o famoso “struggle for life”. É claro que o princípio poderia interpretar-se como pura exigência moral do espírito humano, como imperativo categórico, como postulado ou fundamento da sociedade e da cultura. Mas nesse caso haveria que adotar uma posição idealista ou, pelo menos, renunciar ao materialismo mecanicista e, ao naturalismo antiteológico aceito por Kropotkin. Se tanto se esforça por demostrar que o apoio mútuo é um fator biológico, é porque só assim ficam igualmente satisfeitas e harmonizadas suas ideias filosóficas e suas ideias sociopolíticas em uma única “Weitanschaung”, acorde, além de tudo, com o espírito da época.
A concepção huxleyana da luta pela vida, aplicada à história e à sociedade humana, tem uma expressão antecipada em Hobbes, que apresenta o estado primitivo da humanidade como uma luta perpétua de todos contra todos. Esta teoria, que muitos darwinistas como Huxley aceitam complacentes, se funda, segundo Kropotkin, em pressupostos que a moderna etnologia desmente, pois imagina os homens primitivos unidos apenas em famílias nômades e temporais. Invoca, a este respeito, como Engels, o testemunho de Morgan e Bachofen. A família não aparece assim, desabrocha de sua forma primitiva e originária de convivência para um estagio bem mais avançado da evolução social. Segundo Kropotkin, a antropologia nos inclina a pensar que em suas origens o homem vivia em grandes grupos ou rebanhos, similares aos que constituem hoje muitos mamíferos superiores. Seguindo ao próprio Darwin, adverte que não foram monos solitários, como o orangotango e o gorila, os que originaram os primeiros hominídeos ou antropoides, mas, ao contrário, foram monos menos fortes porém mais sociáveis, como o chimpanzé. A informação antropológica e pré-histórica, disponibilizada pelo Museu Britânico, é abundante e está bem atualizada no momento.
Assim crê Kropotkin demostrar amplamente sua tese. O homem pré-histórico vivia em sociedade: as cavernas dos vales de Dordogne, por exemplo, foram habitadas durante o paleolítico e nelas foram encontrados numerosos instrumentos de sílica.
Durante o neolítico, segundo se infere dos restos palafíticos da Suíça, os homens viviam e laboravam em comum e, pelo que parece, em paz. Também estudos, valendo-se de relatos de viajantes e pesquisas etnográficas, as tribos primitivas que ainda habitam fora da Europa (bosquímanos, australianos, esquimós, hotentotes, papúes, etc.), em todas elas encontra-se abundantes provas de altruísmo e espírito comunitário entre os membros do clã e da tribo.
Adiantando-se de certa maneira a estudos etnográficos posteriores, intenta desmitologizar a antropofagia, o infanticídio e outras práticas semelhantes (que antropólogos e missionários da época, sem dúvida, utilizavam para justificar a opressão colonial). Ao contrário, ele destaca a abnegação dos indivíduos em prol da comunidade, o débil ou inexistente sentido da propriedade privada, a atitude mais pacífica que se possa supor, a falta de governo. Neste, ponto, Kropotkin é evidentemente um precursor da atual antropologia política de Clastres [17]. Embora considere inaceitável tanto a visão rousseauniana do homem primitivo enquanto modelo de inocência e de virtude, como a de Huxley e muitos antropólogos do século XIX, que o consideram uma besta sanguinária e feroz, crê que esta segunda visão é mais falsa e anticientífica que a primeira. Em sua luta pela vida – disse Kropotkin – o homem primitivo chegou a identificar sua própria luta com a da tribo, e sem tal identificação jamais a humanidade chegaria ao nível em que hoje se encontra. Se os povos “bárbaros” parecem caracterizar-se por sua incessante atividade bélica, isso se deve, em boa parte, segundo nosso autor, ao fato de que os cronistas e historiadores, os documentos e os poemas épicos, só consideram dignas de menção as façanhas guerreiras e passam quase sempre por alto pelas proezas do trabalho, da convivência e da paz.
Grande importância concede à comuna aldeã, instituição universal e célula de toda sociedade futura, que existiu em todos os povos e sobrevive ainda hoje em alguns. Em lugar de ver nela, como fazem não poucos historiadores, um resultado da servidão, compreende-a como organização previa e até contrária à mesma. Nela não só se garante a cada camponês os frutos da terra comum como também a defesa da vida e o solidário apoio em todas as necessidades da vida. Enuncia uma espécie de lei sociológica ao dizer que, quanto mais íntegra se conserva a obsessão comunal, tanto mais nobres e suaves são os costumes dos povos. De fato, as normas morais dos bárbaros eram bem elevadas e o direito penal relativamente humano frente a crueldade do direito romano ou bizantino.
As aldeias fortificadas, se converteram desde o começo da Era Medieval em cidades, que chegaram a ser politicamente análogas às da antiga Grécia. Seus habitantes, com uma unanimidade que hoje parece quase inexplicável, sacudiram pôr o jugo dos senhores e se rebelaram contra o domínio feudal. De tal modo, a cidade livre medieval, surgida da comuna bárbara (e não do município romano, como sustenta Savigny), chega a ser, para Kropotkin, a expressão talvez mais perfeita de uma sociedade humana, baseada no livre acordo e no apoio mútuo. Kropotkin sustenta, a partir daqui, uma interpretação da Idade Media que contrasta com a historiografia da Erudição e também, em grande parte, com a historiografia liberal, e marxista. Inclusive alguns escritores anarquistas, como Max Nettlau, a consideram excessivamente laudatória e idealizada [18]. Sem embargo, a dita interpretação supõe no Medievo um claro dualismo por um lado, o lado obscuro, representado pela estrutura vertical do feudalismo (cujo vértice ocupam o imperador e o papa); por outro, o lado claro e luminoso, encarnado na estrutura horizontal das ligas de cidades livres (praticamente alheias a toda autoridade política).
Grave erro de perspectiva seria equiparar esta reivindicação da idade Media, não, digamos, com a de pessoas como De Maistre ou Donoso Cortés, mas, inclusive, com a que propuseram Augusto Comte e alguns outros positivistas [19].
Para Kropotkin, a cidade livre medieval é como um precioso tear, cuja urdidura é constituída pelos fios dos grêmios e guildas. O mundo livre do Medievo é, por sua vez, um tear mais vasto (que cobre toda Europa, desde a Escócia até a Sicília e desde Portugal até a Noruega), formada por cidades livremente federadas e unidas entre si por pactos de solidariedade análogos aos que unem aos indivíduos em grêmios e guildas na cidade. Não lhe basta, sem embargo, explicar assim a estrutura do medievo libertário. Julga indispensável explicar também sua gênesis. E, ao fazê-lo, sublinha com força essencial a luta contra o feudalismo, de tal modo que, tal luta basta para dar razão ao nascimento de grêmios, guildas, cidades livres e ligas de cidades, a culminação da mesma explica seu apogeu, e a decadência posterior sua derrota e absorção pelo novo Estado absolutista da época moderna. As guildas satisfaziam as necessidades sociais mediante a cooperação, sem deixar de respeitar por isso as liberdades individuais. Os grêmios organizavam o trabalho também sobre a base da cooperação e com a finalidade de satisfazer as necessidades materiais, sem preocupar-se, fundamentalmente pelo lucro. As cidades, liberadas do jugo feudal estavam regidas na maioria dos casos por uma assembleia popular. Grêmios e guildas tinham, por sua vez, uma constituição mais igualitária do que se possa supor. A diferença entre o mestre e o aprendiz estava mais relacionada a diferença de idade do que a poder ou riqueza, e não existia o regime do salariato. Só na baixa Idade Media, quando as cidades livres começaram a decair por influência de uma monarquia em processo de unificação e de absolutização do poder, o cargo de mestre de um grêmio começou a ser hereditário e o trabalho dos artesãos começou a ser cedido a patrões particulares. Mesmo assim, o salário que percebiam era bem superior ao dos operários industriais do século XIX. Se realizava em melhores condições e em jornadas mais curtas (tanto que na Inglaterra não somavam mais de 48 horas por semana) [20]. Com esta sociedade de trabalhadores livres solidários se associava necessariamente, segundo Kropotkin, a arte grandiosa das catedrais, obra, comunitária para o desfrute da comunidade. A pintura não a executava um gênio solitário para ser depois guardada nos salões de um duque nem os poetas compunham seus versos para que fossem lidos na alcova preferida pelo rei. Pintura e poesia, arquitetura e música surgiam do povo e eram, por isso, muitas vezes, anônimas; sua finalidade era também o gozo coletivo e a elevação espiritual do povo. Nessa filosofia medieval Kropotkin vê um poderoso esforço “racionalista”, não desconectado do espírito das cidades livres. Isto, embora soe estranho para muitos, parece coerente com toda a argumentação anterior: Acaso a universidade, criação essencialmente medieval, não era em suas origens um grêmio (universitas magistrorum et scolarium), igual aos demais? [21].
A ressurreição do direito romano e a tendência a constituir Estados centralizados e unitários, regidos por monarcas absolutos, caracterizou o começo da época moderna. Isto pôs um fim não apenas ao feudalismo (com a domesticação dos aristocratas, transformados em cortesãos) mas também às cidades livres (convertidas em partes integrantes de um entalhe unitário). Cidadãos livres se converteram em leais súditos burgueses do rei. Nem por isso desaparece o impulso natural à ajuda mútua e mesmo à liberdade, que se manifesta na prédica comunista e libertaria de muitos hereges (husitas, anabatistas etc.). E embora seja verdade que a idade moderna comparte um crescimento maligno do Estado que como câncer devora as instituições sociais livres, e promove um individualismo doente (concomitante ou sequela do regime capitalista), aquele impulso não está morto. Se manifesta durante o século XIX, nos sindicatos operários, que prolongam o espírito dos grêmios e guiadas no contexto da luta operária contra a exploração capitalista. Na Inglaterra, por exemplo, onde Kropotkin vivia, a derrogação das leis contra tais sindicatos (Combinatioms Laws), em 1825, produziu uma proliferação de associações gremiais e federações que Owen, grande promotor do socialismo naquele país, logrou federar dentro da “Gran Unión Consolidada Nacional”. Apesar dos contínuos entraves impostos pelo governo da classe proprietária, os sindicatos (trade unions) seguiram crescendo na Inglaterra. O mesmo sucedeu na França e nos demais países europeus e americanos, se bem que às vezes as perseguições os obrigaram a uma atividade clandestina subterrânea. Kropotkin vê assim a luta operária dos sindicatos e no socialismo a mais significativa (embora não a única) manifestação de ajuda mútua e de solidariedade de seu tempo. O movimento operário se caracteriza, segundo ele, pela abnegação, pelo espírito de sacrifício e pelo heroísmo de seus militantes. Ao sustentar isso, sem dúvida não está exagerando em nada, em uma época em que os sindicatos estavam livres da burocratização e da mediação estatal que hoje os caracteriza em quase toda parte, mesmo quando a Internacional já havia sido dissolvida graças às maquinações burocratizantes de Karl Marx e seus amigos alemães. Alguns sociólogos burgueses, que se gabam de um “realismo” verdadeiramente irreal, se esquivam do “ingênuo otimismo” de Kropotkin e, em nome do evolucionismo darwiniano, pretendem negar-lhe sólidos fundamentos científicos.
Isso, não obstante seu desmedido esforço por encontrar uma base biológica para o comunismo libertário, não pode ser tido hoje como inteiramente desencaminhado. É verdade que, como disse o ilustre zoólogo Dobzhansky, foi pouco critico em algumas das provas que apresentou em apoio a suas opiniões. Mas de acordo com o mesmo autor, uma versão modernizada de sua tese, tal como a apresentada por Ashley Montagu, resulta bem mais compatível que contraditória com a moderna teoria da seleção natural. Para Dobzhansky, um dos autores da teoria sintética da evolução, elaborada entre 1936 e 1947 como fruto das observações experimentais sobre a variabilidade das populações e a teoria cromossômica da herança [22], a asseveração de que na natureza cada indivíduo não tem outra opção senão comer ou ser comido resulta tão infundada quanto a ideia de que nela tudo é doçura e paz. É importante destacar que os ecólogos atribuem cada vez maior importância às comunidades da mesma espécie e que a espécie não poderia sobreviver sem certo grau de cooperação e ajuda mútua [23]. Os trabalhos de C.H. Waddington, como Ciência e Ética, por exemplo, vão todavia mais além em sua aproximação das ideias de Kropotkin sobre o apoio mútuo. Um etólogo da escola de Lorenz Irenaeus, Eibl-Eibesfeldt, sem aderir por completo às conclusões do Apoio Mútuo, reconhece que, no que se refere ao altruísmo e à agressividade, elas estão mais próximas da verdade científica do que as de seus adversários. Para Eibl-Eibesfeld, os impulsos agressivos são compensados, no homem, por tendências arraigadas à ajuda mútua [24]. Apesar dos anos transcorridos, que não são poucos levando-se em conta a crescente aceleração dos descobrimentos da ciência, a obra com que Kropotkin intentou brindar uma base biológica ao comunismo libertário, não carece hoje de valor científico. Além de ser um magnífico expoente da sonhada aliança entre a ciência e a revolução, constitui uma interpretação equilibrada e basicamente aceitável da evolução biológica e social. O já mencionado Ashley Montagu escreve: “Hoje em dia Apoio Mútuo é a mais famosa das muitas obras escritas por Kropotkin; a rigor, já é um clássico. O ponto de vista que representa vem abrindo caminho lenta, mas firmemente, e seguramente logo passará a fazer parte do cânone aceito da biologia evolutiva” [25].
Notas
[1] – Cfr. H. Daudin, Cuvier et Lanzarck, París, 1926
[2] – Cfr. G. Colosi, La doctrina dell evolucione e le teorie evoluzionistiche, Florencia, 1945
[3] – S. J. Gould, Desde Darwin, Madrid, 1983, p. 80.
[4] – R. Grasa Hernández, El evolucionismo: de Darwin a la sociobiología, Madrid, 1986, p. 43.
[5] – Cfr. J. Rostand, Charles Darwin, París, 1948; P. Leonardi, Darwin Brescia, 1948; M.T. Ghiselin, The Triumph of the Darwinian Method Chicago, 1949.
[6] – Cfr. A. Pauli, Darwinisimusund Lamarckismus, Muninch, 1905.
[7] – Cfr. G. De Beer, Charles Darwin, Evolution by Natural Selection Londres, 1963.
[8] – Cfr. W.H. Hudson, Introditction to the Philosophy of Herbert Spencer Londres, 1909.
[9] – Cfr. W. Irvine, T. H. Huxley Londres, 1960.
[10] – R. Grasa Hernández, op. cit. p. 57.
[11] – Cfr. W.B. George, Biologist philosopher.- A Study of the Life and Writings of A. R. Wallace, Nueva York, 1964.
[12] – Felix García Moriyón Del socialismo utópico al anarquismo, Madrid, 1985, p. 59.
[13] – J. Hewetson, “Mutual Aid and Social Evolution”, Anarchy 55 p.258.
[14] – Ashley Montagu, Prólogo a El Apoyo Mutuo, Buenos Aires, 1970, PP. VII – VIII.
[15] – P. Kropotkin, Memorias de un revolucionario, Madrid, 1973 p. 419.
[16] – Cfr. E. Reclus, Correspondance París, 1911 – 1925.
[17] – Cfr. P. Clastres, La sociedad contra el Estado, Caracas, 1978.
[18] – Alvarez Junco, Introducción a Panfletos revolucionarios de Kropotkin, Madrid, 1977, p. 26.
[19] – D. Negro Pavón, Comte: Positivismo y revolución, Madrid, 1985, PP. 98 - 99.
[20] – Cfr. Thorold Rogers, Six Centuries of Wages.
[21] – E. Bréhier, La philosophie du Moyen Age, París, 1971, p. 226.
[22] – R. Grasa Hernández, op. cit. p.91.
[23] – T. Dobzhansky, Las bases biológicas de la libertad humana, Buenos Aires, 1957, p. 58.
[24] – G. Eibl-Eibesfeldt, Amor y odio. Historia de las pautas elementales del comportamiento, México, 1974, p. 8.
[25] – Ashley Montagu, op. cit. p. IX.