Resumo: neste texto vamos analisar o processo por meio do qual a atividade expressiva da produção social humana se converte em trabalho, ou seja, em extraenisação da vida humana como expressão da subsunção ao processo de trabalho. Utilizaremos referências cruzadas entre estudos antropológicos e a crítica da economia política realizada por Marx. Nosso objetivo é demonstrar como essa discussão envolve necessariamente a questão da desagregação da comunidade (Gemeinwesen) através da formação e desenvolvimento da lei do valor.
Observação: o processo que descreveremos produz uma contra-tendência que se afirma como necessidade revolucionária na classe proletária contra a subsunção desta ao trabalho. Como nosso texto adquiriu proporções relativamente grandes, trataremos dessa questão em outra ocasião.
Observação: o processo que descreveremos produz uma contra-tendência que se afirma como necessidade revolucionária na classe proletária contra a subsunção desta ao trabalho. Como nosso texto adquiriu proporções relativamente grandes, trataremos dessa questão em outra ocasião.
1. A singularidade da condição humana: gênero de existência em modos superorgânicos
Antes de analisarmos o processo de alienação da atividade produtiva (extraenisação), é fundamental fazer alguns comentários acerca do modo de ser genérico dos seres humanos. Em outras palavras: buscaremos definir o que entendemos por gênero humano de existência. Neste sentido, vamos abordar a questão da auto-produção humana das comunidade originárias (Gemeinwesen). Já fizemos uma primeira aproximação dessa questão no texto Ensaio sobre a produção humana: modo de produzir pessoas (Comunidade). Embora nossas premissas sejam semelhantes, nossas conclusões se encontram mais bem formuladas do que antes e, portanto, encontra-se justificada a reavaliação dessa questão nesse presente texto. Vamos começar com algumas distinções.
Em primeiro lugar, é necessário que fique evidente que por “materialismo histórico” nós compreendemos algo mais amplo do que pensam os marxistas. Nós somos “materialistas” porque consideramos a existência de um ponto de vista material, mas não compreendemos por “matéria” algo imutável, portanto somos também “históricos” por considerar os processos materiais como efetuações históricas contínuas. Neste sentido, incluímos todo o conjunto do que podemos chamar de Natureza nessa onto-epistemologia, compreendendo-a como um “plano de imanência” que ganha diferentes consistências segundo distintos modos de existência.
Os modos de existência se diferenciam na medida em que se considera a maneira como está organizada a distinção entre conteúdo e expressão neste ou naquele “agenciamento”. Para que fique evidente: o agenciamento é entendido aqui como uma “simbiose” entre elementos heterogêneos que operam num “co-funcionamento” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 43). Uma vez que em toda a Natureza se encontram essas relações, concordamos com Gabriel Tarde quando este diz que:
isto quer dizer que cada coisa é uma sociedade e que todas as coisas são sociedades. E é bastante notório que a ciência tenda, mediante uma sequência lógica dos seus movimentos anteriores, a generalizar estranhamente a noção de sociedade. Ela fala-nos de sociedades celulares, porque não de sociedades atómicas? Isto para não falar das sociedades de estrelas, dos sistemas solares. Todas as ciências parecem destinadas a tornar-se ramos da sociologia (TARDE, 1999, p. 58 apud LATOUR, 2000, p. 24).
Compreende-se, portanto, que o conceito de sociedade não é um traço característico de nenhum modo de existência, uma vez que todos os modos de existência são determinadas formas de organização social da matéria. Era com isso em mente que escrevemos o texto sobre o modo de existência da matéria viva em: O Que é um Ser Vivo? A resposta de Humberto Maturana e Francisco Varela. Neste texto o leitor encontrará mais premissas que envolvem nossa abordagem, mas vale destacar, entretanto, que nós não definimos o que, diferentemente de Maturana e Varela, entendemos por vida. Mesmo que já tenhamos indicado que nosso objetivo aqui é definir o que é próprio do modo de existência humano (o gênero humano) e não os demais modos, é fundamental compreender que cada modo “funciona” com elementos de outros modos (por exemplo: as sociedades celulares possuem, como na citação de Tarde, sociedades atômicas dentro de si).
Segundo Deleuze e Guattari, a matéria possui um modo físico-químico cuja natureza da distinção real entre conteúdo e expressão é “real-formal”, pois tanto em nível molar de expressividade material quanto no nível molecular se instaura uma ressonância de expressão (indução). Um outro modo de existência é chamado de “orgânico”, onde a natureza da distinção real entre conteúdo e expressão é “real-real”, pois refere-se a sujeitos diferentes onde se instaura uma linearidade de expressão (transdução). Portanto,
o que caracteriza o estrato orgânico é esse alinhamento da expressão, essa exaustão ou esse destaque de uma linha de expressão, esse rebatimento da forma e da substância de expressão numa linha unidimensional que vai garantir a independência recíproca em relação ao conteúdo sem ter que considerar ordens de grandeza (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 76).
Finalmente, o modo pela qual os seres humanos possuem uma relativa singularidade (que muitos chamam de “humanidade”) nada mais é do que uma outra organização dessa distinção real entre conteúdo e expressão. Deleuze e Guattari caracterizam essa distinção como “real-essencial”, pois refere-se a atributos ou categorias diferentes onde se instaura uma sobrelinearidade de expressão (tradução). A isso preferimos chamar, como Alfred Kroeber fez certa vez, de modo “superorgânico” do processo material de existência. Esse é o modo que produz o que chamamos de gênero humano. No entanto, é necessário considerar que outros seres genéricos podem surgir na medida em que esse modo material emergir em outras condições da Natureza que tornem isso possível. Portanto não podemos antropocentrizar tal forma de existência aos seres humanos, uma vez que ela existe em potência noutros animais. Mas vejamos agora no que consiste a vida superorgânica de forma mais detalhada.
O modo superorgânico é o fundamento para exprimir a singularidade humana, mas não se confunde com ela. Os seres humanos são, em primeiro lugar, animais como quaisquer outros. Vimos que a socialidade não é um traço distintivo da condição humana. No entanto, nossa espécie difere das demais no modo característico como expressa sua socialidade e é isso que precisamos entender.
Com efeito, uma concepção antropocêntrica como a de Maurice Godelier (1992) afirma que: o humano é “capaz não só de viver em sociedade como de transformar a sociedade onde vive, ou seja, de produzir sociedade para viver”. Mas sabemos que todos os animais se apropriam de seus ambientes e os transformam segundo suas necessidades e, ao mesmo tempo, produzem socialidade pra viver. O nome dessas produções é caracterizado por Jacob von Uexküll pelo conceito de “Umwelt” (mundo-próprio): “Os mundos-próprios, que são tantos quantos os próprios animais” (1982, p. 25). Veja, por exemplo, essa construção de um ninho do pássaro conhecido pelo nome popular de joão-de-barro (trata-se de uma sequência de fotos sobrepostas):
Muitos animais são capazes produzir onde habitam, usar instrumentos de produção além de seus próprios órgãos em diferentes graus. Não é necessário dizer que os animais fazem isso segundo sua intencionalidade. O que, portanto, caracterizaria o gênero humano? É o que veremos a seguir.
Em vez de produzir apenas seu mundo próprio, um modo superorgânico “sabe produzir segundo a medida de qualquer species” (MARX, 2004, p. 85). Segundo Marx, tal habilidade torna possível que o animal humano produza a si mesmo enquanto um ser genérico (Gattungswesen), isto é, produza um gênero humano de existência (idem). Ao fazer isso, um modo material superorgânico torna toda a Natureza exterior a seu corpo orgânico um possível mundo próprio, isto é, faz de qualquer ambiente seu corpo inorgânico (com o qual mantém uma ligação metabólica de existência). Neste sentido, a espécie persiste una em suas diferentes linhagens sem que seus descendentes deixem de ser homo sapiens.
De qualquer forma, a generalidade de um modo superorgânico (neste caso, o gênero humano) só pode se exprimir em parcialidades situadas histórica e geograficamente. Portanto, na medida em que vive em diferentes ambientes com metabolismos sociais distintos, o gênero humano difere essencialmente quanto aos seus modos de vida. Esses modos de vida serão chamados de “comunidades” (Gemeinwesen).
A capacidade do modo superorgânico dos humanos é uma potência que exprime uma articulação complexa das habilidades: linguístico-simbólicas (no sentido que Peirce dá ao signo simbólico), técnicas (possibilidade de empregar bens para produzir outros bens, por exemplo: usar um instrumento de trabalho para produzir outro instrumento de trabalho) e mnésicas (o pensamento simbólico permite fixar ideias que são incorporadas na forma de uma memória coletiva da comunidade que é compartilhada transgeracionalmente por meio da educação, portanto a hereditariedade de um pertencimento comunitário para além da hereditariedade genética).
Cada um desses modos interagem e se influenciam reciprocamente no continuum existencial da qual são todos imanentes (que chamamos pelo nome de Natureza).
Feitas essas considerações, passemos agora para a questão das “comunidades originárias” que exprimiram formas de existência coletiva (Gemeinwesen) diferentes no interior do mesmo gênero humano.
2. Comunidades Originárias
Quando em posse de sua própria potência genérica, a forma social elementar de existência humana são as comunidades originárias. Com esse conceito nos referimos às sociedades que eram ditas “primitivas” pelos antropólogos evolucionistas do final do século XIX.
A comunidade como expressão da auto-produção do gênero humano tem como primeiro ato histórico a produção de si mesma como coletividade superorgânica, ou seja, a produção de pessoas como “membros da comunidade”. Neste sentido “a comunidade tribal, o grupo natural, não surge como conseqüência, mas como a condição prévia da apropriação e uso conjuntos, temporários, do solo” (MARX, 1985, p. 65, grifos nossos). O termo “uso” é equivocado, pois o ambiente aqui não é tomado como uma “externalidade” da sociedade, mas como parte do metabolismo social (como afirmamos acima). Já a palavra “apropriação” deve ser compreendida num sentido restritamente territorial.
O ambiente de existência da comunidade originária é um Umwelt expresso com signos territoriais expressivamente humanos (os símbolos que indicam a qual pertencimento comunitário se refere). Neste caso, preferimos chamar pelo nome de corpo inorgânico em vez de “mundo próprio” para usar termos distintos (alterações nossas entre colchetes):
A natureza é o corpo inorgânico do [humano], a saber, a natureza enquanto ela mesma não é corpo humano. O [humano] vive da natureza significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de ficar num processo [metabólico] contínuo para não morrer. Que a vida física e mental do homem está interconectada com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza está interconectada consigo mesma, pois o [humano] é uma parte da natureza (MARX, 2004, p. 84, grifos originais).
Utilizaremos um estudo de caso de uma comunidade originária para exemplificar o que queremos dizer e já vamos indicar em que esse modo de vida comum difere de outras formas de organizar a coletividade superorgânica do gênero humano.
Quando consideramos a análise dos mayas-tojolabal realizada por Carlos Lenkersdorf, percebemos que, para esta comunidade, a terra não tem um valor econômico (não se pode usá-la como recurso, nem trocá-la como mercadoria), pois ela não pode ser propriedade privada, uma vez que ninguém poderia, como dizem, se apoderar da “Madre Tierra” e “prostituí-la”. A “Madre Tierra” é considerada uma fonte de vida cósmica, a matriz comum de toda a existência. Portanto, na cosmopolítica dos tojolabales, todos os habitantes da “Madre Tierra” (humanos, animais, plantas, pedras, etc.) possuem “coração” (atsil) e participam ativamente como membros da comunidade, ou seja, do relacionamento recíproco de todos com cada um pautado na intersubjetividade (LENKERSDORF, 1996, p. 113).
Por ejemplo, el grano de maíz que cae al suelo no es nada deleznable. Es el maíz mediante el cual la Madre Tierra nos alimenta. Es carne de nuestra carne, ya que somos hombres de maíz. Por ello tenemos que recogerlo para mostrarle el respeto que le debemos, tanto a Nuestra Madre como al granito de maíz (LENKERSDORF, 1996, p, 118, grifos nossos).
Não se trata de uma metáfora dizer que “somos o que comemos” (como no exemplo do milho citado acima), pois nossa nutrição faz parte de nossa vida. E a alimentação das pessoas é um momento de sua (re)produção social, na medida em que o consumo é pressuposto como uma necessidade a realizar mediante a atividade produtiva. Neste caso, os maya-tojolabales possuem autoconsciência de seu metabolismo social com seu corpo inorgânico. Não obstante, esse modo de pensamento com a qual essa comunidade afirma manter sua intersubjetividade cósmica assume a forma de uma mitologia (que a antropologia contemporânea prefere chamar de “ontologia”).
Segundo Lenkersdorf, os mayas-tojolabal possuem uma “cosmovisão” (expressão do autor) de que vivem numa “comunidade cósmica”, onde tudo é “sagrado”. Essa existência “sacra” do cosmos é imanente à comunidade intersubjetiva. Além disso, Lenkersdorf também relata que não existem coisas que seriam “profanas” para os maya-tojolabal, pois tudo é, de direito, sagrado, uma vez que exprime a rica pluralidade de modos de existência da comunidade cósmica (LENKERSDORF, 1996, pp. 171-172). No entanto, a “falta de respeito” mesma é considerada uma “profanação”, uma transgressão do “direito sagrado de tudo”, como, por exemplo, a compra-venda de terras (daí a crítica que a comunidade tojolabal faz à chamada “sociedade dominante” – que é capitalista – como uma “sociedade profanadora”, que desrespeita a vida comunitária).
Essa discussão nos leva, finalmente, para a forma de “fetiche” existente nas comunidades originárias. Trata-se de um fetichismo que deriva da própria virtude dos mitos em garantir a coesão da sociedade e sua perseveração. Nestas condições, as pessoas recalcam para si mesmas o fato de que elas próprias criaram suas relações sociais. Trata-se do que Maurice Godelier chamou de “opacidade” do “sagrado”:
o sagrado rouba à consciência coletiva e individual algo do conteúdo das relações sociais, algo de essencial à sociedade, e que, fazendo isso, o sagrado traveste o social, torna-o opaco a si mesmo. E é preciso ir mais longe ainda e mostrar que existe algo na sociedade que faz parte do ser social dos membros que a compõem e que precisa de opacidade para se produzir e se reproduzir (GODELIER, 2001, p. 261, grifos originais).
Este “fetichismo”, portanto, difere em natureza daquele que surge da lei do valor (que veremos mais adiante). Sua especificidade consiste na criação de “duplos sobrehumanos” que substituem a posição de causa eficiente do produto das ações dos próprios “humanos mundanos”. O sagrado manifestar-se-ia em “coisas” que operam como “significantes flutuantes” (para usar uma expressão de Lévi-Strauss) ou, como diria Barth, em “signos obtusos”.
Vemos um argumento muito próximo em Hélenè Clastres acerca dos guaranis e suas relações com as “pedras sagradas” (1978, p. 29): “A segunda significação das pedras sagradas, cuja guarda incumbe aos homens, fica, dessa maneira, evidente: elas testemunham que os deuses ainda estão entre os homens e que o mundo (a sociedade) perdurará enquanto assim for”. Em suma, esse “fetichismo” não faz parte da história da desumanização humana, pois garante a perseveração social das pessoas na comunidade originária de modo que não constitui uma forma de alienação.
Vale destacar que essas comunidades originárias não são entes monolíticos, pois estiveram em todos os contextos históricos e geográficos da humanidade em interação umas com as outras e com formas societárias onde já existe algum grau de extraenisação (que vamos discutir a seguir).
3. O que é extraenisação?
O processo de alienação, da extraenisação (Entfremdung) do trabalho, surge quando: “o objeto (Gegenstand) que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor” (MARX, 2004, p. 80). Para compreender adequadamente esta formulação, consideramos apropriado fazer um paralelo com as ideias de Spinoza sobre a existência “passional” se exprimir como “inadequação” entre ações e consequências nos modos de existência. Até porque nossa leitura é mais spinoziana do que hegeliana e nós não somos marxistas, apenas usamos o que é útil e adequado da obra de Marx.
Com efeito, Spinoza distingue duas qualidades de causa: adequada e inadequada (ou parcial). A primeira é “aquela cujo o efeito pode ser percebido clara e distintamente por ela mesma” (Ética, Parte 3, def. 1) e a segunda é “aquela cujo o efeito não pode ser compreendido por ela só” (idem). A causa adequada contem em si as premissas das consequências e a inadequada contém apenas uma parte das premissas das consequências.
A partir dessas definições, vejamos como prossegue Spinoza: “Digo que agimos quando, em nós ou fora de nós, sucede algo de qual somos a causa adequada” (Ética, Parte 3, def. 2), ou seja, “quando de nossa natureza se segue, em nós ou fora de nós, algo que pode ser compreendido clara e distintamente por ela só” (idem). “Digo, ao contrário, que padecemos quando, em nós, sucede algo, ou quando de nossa natureza se segue algo de que não somos causa senão parcial” (idem). “Padecer” é o equivalente a não ter posse sobre a potência das próprias ações, produzindo passivamente as consequências de sua existência. “Agir” é auto-determinar as próprias práticas no sentido de que os efeitos de nossas atividades sejam compreendidos como envolvendo a necessidade de nós mesmos como causa adequada.
Portanto, em uma coletividade de existência da qual somos imanentes, podemos ter uma relação de adequação ou de inadequação com relação à (re)produção da mesma. Em outras palavras: a coletividade pode se exprimir como sendo a produção de nossa própria vida coletiva ou nossa vida coletiva mesma que foi subordinada para exprimir uma coletividade estranha, da qual somos, por isso mesmo, a causa inadequada. Enquanto passivos, produzimos nossa existência como uma potência estranha a nós mesmos, como se nossa externalização de vida se desligasse do nosso viver e se voltasse contra nós mesmos.
Nesse sentido, afirmamos com Marx que a extraenisação surge da dissolução da comunidade originária, quando as pessoas passam a produzir uma vida coletiva estranha a elas mesmas. Mas como saímos de uma situação de “adequação” para um estado de “inadequação” nas nossas ações? Utilizaremos outro estudo de caso para indicar algumas hipóteses, uma vez que esta questão ainda está em aberto. Não obstante, nossa premissa fundamental, assim como a de Marx, é de que tal processo surge com a mercantilização: com a transformação da atividade produtiva dos seres humanos em trabalho produtor de mercadorias.
4. O caso dos Baruya segundo Godelier:
No artigo “Moeda de sal” e circulação das mercadorias entre os Baruya da Nova Guiné, Maurice Godelier desenvolve um estudo acerca do funcionamento do sal como forma de equivalente geral das mercadorias que circulam nas relações intersocietárias da região da Nova Guiné estudada pelo antropólogo supracitado.
O objetivo do autor é demonstrar como o sal dos Baruya assume a função de “moeda de troca” nas transações comerciais. A partir deste argumento central, Godelier buscará responder três questões teóricas que suscitam seu estudo de caso, quais sejam: “1) O sal dos Baruya é uma forma primitiva de ‘moeda’? 2) Qual é o fundamento do valor de troca dessa moeda? 3) Se há troca e moeda, há lucro?” (GODELIER, 1981, p. 139). Vamos partir dos resultados de sua pesquisa para sintetizar suas contribuições teóricas com relação à questão da emergência do valor nas sociedades humanas.
Antes de abordar as respostas dadas pelo autor às perguntas mencionadas acima, é necessário situar o campo de pesquisa com a qual trabalha Godelier. Neste caso, devemos contextualizar onde e com quem o autor realizou sua pesquisa. Vamos utilizar outra obra do antropólogo francês, onde ele se detém mais detalhadamente a essas questões. Em “La producción de grandes hombres”, o autor relata que os Baruya não teriam entrado em contato com os “brancos” até o ano de 1951. Essa consideração é importante, uma vez que sua pesquisa se dá entre os anos de 1967 a 1969, pouco tempo após os primeiros contatos com o Estado (que começaram em 1960). Portanto, ainda que Godelier não o afirme, sua obra pressupõem esta situação como condição de possibilidade para analisar as relações sociais de modo mais “focalizado” ao “microssistema” regional da qual fazem parte os Baruya.
No que diz respeito às informações mais propriamente geográficas, os Baruya situam-se na região onde fica o Estado Independente da Papua-Nova Guiné, país da Oceania que ocupa a metade oriental da ilha da Nova Guiné. Em setembro de 1979, os Baruya estavam dispostos em dezessete aldeias num relevo de aproximadamente 1.600 a 2.300 metros de altitude nos altos vales que englobam a cadeia de montanhas Kratke Range (GODELIER, 2005, p. 13). Utilizaremos um mapa de Godelier para melhor ilustrar essa localização (GODELIER, 2005, p. 14, destaque nosso):
O ambiente de existência dos Baruya, conquistado num processo histórico de guerras e desterritorializações envolvendo grupos étnicos da região, tem condições de existência muito particulares, dentre elas a baixa temperatura das “highlands”. O frio impede o crescimento das variedades de árvores com os quais é possível fabricar “capas de casca de árvore” (ficus) que são usadas justamente para se proteger dessa falta relativa de calor. Portanto, existem limites de subsistência social e ambientalmente condicionados. Se por um lado o ambiente faz constrições, também permite vantagens, uma vez que “Todas as terras propícias à cultura do sal (zonas planas e bem irrigadas) foram apropriadas pelas diversas linhagens quando da conquista dos vales de Marawaka depois de Wonenara” (GODELIER, 1981, p. 130). Tal condição corrobora a proposição de que: “a terra é um monopólio natural: não pode ser indefinidamente estendida, apenas redividida” (ANDERSON, 1995, p. 31). De fato, os membros das linhagens conquistadoras contraem as terras hereditariamente (GODELIER, 1981, pp. 130-131). Em síntese, pode-se afirmar que Godelier está de acordo com a proposição de Marx, segundo a qual:
A única barreira que a comunidade pode encontrar ao relacionar-se com as condições naturais de produção como suas próprias – quanto à terra – serão as outras comunidades, que já a tenham reclamado para si, como seu corpo inorgânico. A guerra será, portanto, uma das primeiras tarefas de toda comunidade primitiva desta espécie, tanto para a defesa da propriedade quanto para a aquisição dela (MARX, 1985, pp. 84-85, grifos originais).
Isso explicaria que a “vontade de se apoderar de terras de sal é uma das razões reconhecidas de certas guerras com os Andjé e os Usarumpia, vizinhos dos Baruya” (GODELIER, 1981, p. 130). Agora que já situamos a sociedade Baruya, podemos desenvolver as discussões mais propriamente teóricas do autor.
No que diz respeito à primeira pergunta (sobre o sal ser ou não “moeda”), Godelier vai responder que sim, mas argumenta ser necessário entender em que condições essa “moeda” existe. O autor demonstra que a produção de sal está implicada na “necessidade objetiva de os Baruya exportarem [sal] para importar os meios de produção necessários à sua agricultura, os meios de se protegerem do frio” (GODELIER, 1981, p. 139, acréscimo meu), sendo essa última questão relacionada ao ambiente, como havíamos dito. Eles também precisam conseguir adornos cerimoniais para “assegurar o controle de certas forças sobrenaturais (feitiços mágicos)” (idem). Em suma, trata-se de satisfazer suas necessidades sociais.
Seu estudo vai contra a generalização da teoria das “economias de subsistência”, uma vez que esta sociedade não é autossuficiente, dependendo de suas relações comerciais com as demais (que, reciprocamente, também são dependentes do sal Baruya). Portanto, dada essa “variedade de funções essenciais”, tanto de subsistência quanto de expressão simbólica, podemos afirmar que “a troca não constitui atividade marginal, um apêndice ocasional de funcionamento da sociedade Baruya, mas elemento estratégico de sua estrutura. No limite, pode-se dizer que essa sociedade não pode subsistir sem trocas” (idem). Esse também é um estudo de caso contra a generalização da ideia de que os “excedentes de produção” fundam a troca comercial, pois não “é após ter assegurado sua subsistência que os Baruya se voltam para a troca e liquidam seus excedentes. Na realidade, o sal é para eles produto destinado antes de tudo à troca, portanto, uma mercadoria” (idem, grifos nossos). Em outras palavras: este estudo demonstra que a forma mercadoria não depende de uma produção para além da subsistência para devir. Também é possível concluir que o “aumento de complexidade social”, ou o “desenvolvimento das forças produtivas”, não são fatores explicativos da gênese da forma mercadoria, como certa tradição de um determinado “marxismo” deu a entender.
O estudo de Godelier se contrapõe, neste sentido, às generalizações de Pierre Clastres1, para quem o modo de ser das comunidades originárias (chamadas por ele de “sociedades primitivas”) impossibilitava uma produção além das necessidades coletivas e acrescenta que:
É sempre pela força que os homens trabalham além das suas necessidades. E precisamente essa força está ausente do mundo primitivo, a ausência dessa força externa define a própria natureza das sociedades primitivas. Doravante podemos admitir, para qualificar a organização econômica dessas sociedades, a expressão economia de subsistência, desde que se entenda por isso, não a implicação de uma carência, de uma incapacidade, inerentes a esse tipo de sociedade e à sua tecnologia, mas, pelo contrário a recusa de um excesso inútil, a vontade de adequar a actividade produtiva à satisfação das suas necessidades (CLASTRES, 1975, p. 189, grifos do autor).
Não obstante, permanece de acordo com a ideia de satisfação de necessidades sociais, uma vez que a produção de sal não visa precisamente isso, mesmo que signifique certa interdependência num circuito comercial regional.
Maurice Godelier também argumenta que “a sociedade Baruya constitui exemplo importante para esclarecer a economia das sociedades neolíticas, das quais muitas deviam importar a matéria-prima de suas ferramentas” (GODELIER, 1981, p. 139). Parece uma ideia evolucionista, mas o autor deixa subentendido de que se trata de uma hipótese para efeitos comparativos em estudos futuros e não de uma generalização por indução.
Agora, para que tenha valor de troca, o sal (na sua forma mercadoria) “tem, antes, valor de uso” (idem), ou seja, é consumível. Não obstante, “a parte do sal consumida pelos próprios Baruyas é mínima; não porque o sal seja fisicamente raro entre eles, mas porque é exclusivamente objeto de consumo ritual” (idem). Portanto, o sal é uma mercadoria cujo valor de uso está expresso na sua qualidade de objeto ritual, sua significação ideológica, como especiaria de apreciação gastronômica e, também, pelas dificuldades de seu processo de produção. O consumo do sal entre os Baruya é realizado nos momentos extra-ordinários, isto é, quando “o cotidiano cede ao cerimonial” (GODELIER, 1981, p. 140). Daí que essa mercadoria seja “de preço”, dado sua posição social enquanto bem valorizado pela coletividade. Mas, é necessário destacar, entre os próprios Baruya não há comércio, mas sim uma economia de dons e contra-dons (chamada por Godelier de “redistribuição”).
Como vimos, a localização ambiental particular dessa sociedade garante certas “vantagens comparativas”, pois, “se o sal não é fisicamente raro entre os Baruya, ele o é entre todos os grupos que não o produzem e que o reservam igualmente para ocasiões e necessidades cerimoniais” (idem). Neste sentido, seria possível dizer, em consonância com a economia clássica, que “quem diz troca mercantil também diz divisão social do trabalho”. Este estudo de caso demonstra que a interdependência entre as sociedades acaba por se estabelecer pela troca mercantil.
Godelier utiliza o conceito de “moeda” para se referir a uma mercadoria que possui a função de um “equivalente geral”, ou seja, um bem que pode ser trocado pelo conjunto de outros bens que participam da esfera da circulação. Nas atividades comerciais, portanto, uma moeda é aquilo que exerce a função de mediadora geral das trocas (mesmo que ainda não tenha assumido a forma dinheiro como puro valor de troca sem valor de uso). O sal adquire essa conversibilidade geral e, portanto, funciona como moeda (e somente ele chega a assumir essa forma). Mas é necessário deixar explícito que se trata de uma generalidade e não de uma universalidade, pois existem bens que não participam da esfera da circulação, como é o caso dos bens de consumo corrente. As batatas-doces e o inhame-branco, por exemplo, não são mercadorias, portanto permanecem apenas na esfera da redistribuição e do consumo. Talvez uma das causas que levaram à tese equivocada da “economia de subsistência” seja a situação particular desses bens de consumo, uma vez que, neste caso, são produzidos para realizar diretamente as necessidades sociais.
As considerações acima nos levam para a segunda questão, qual seja: existindo valor de troca, qual seu fundamento? O valor de troca do sal, segundo Godelier, está diretamente associado com o “volume das necessidades sociais” (GODELIER, 1981, p. 141). A posição de equilíbrio entre oferta e demanda não é dada pelas necessidades individuais, mas pelas convenções coletivas entre os pares numa transação que leva em consideração as necessidades coletivas de cada sociedade. De todo modo, para fixar uma convenção do gênero, é necessário uma regularidade na troca mercantil com certos parceiros comerciais. Daí que a normalização das “taxas” era realizada “quando existiam trocas regulares e importantes, entre grupos estranhos mas vizinhos, que não ignoravam as condições de produção ou os esforços necessários a seus parceiros para conseguir suas mercadorias” (GODELIER, 1981, p. 142).
Se uma “taxa normal de troca” se forma através da regularidade das trocas, no que consiste sua medida? Com essa questão em mente, Godelier busca verificar se a “teoria do valor trabalho” se aplicaria a esse caso (ou seja: se a troca é realizada entre equivalentes de trabalho). Neste sentido, o antropólogo busca examinar um dos casos mais comum de troca dos Baruya, com uma sociedade vizinha. Trata-se da troca dos Baruya com os Youndouyé, tribo “com a qual estão ligados por um pacto ‘de amizade eterna’” (idem). Interessante destacar a questão do “pacto”, pois usamos o termo “convenção” acima para designar os “acordos de comércio” dos Baruyas justamente por se tratar de articulações que não são explicadas exclusivamente pela “economia” (tal como a delimitaríamos enquanto “organização da reprodução material das sociedades”).
Godelier descreve que 1 barra média de sal é trocada por 6 capas de casca de árvore dos Youndouyé. Ao analisar as quantidades de tempo de trabalho investidas nos produtos respectivos, Godelier afirma que a taxa normal da troca é uma taxa desigual em termos de trabalho, “pois em trabalho os Baruya recebem quase três vezes mais do que dão” (GODELIER, 1981, p. 143), portanto não se trata de uma troca entre equivalentes. Como, portanto, os parceiros de troca chegaram nessa medida? Ou ainda, como colocou o próprio Godelier: “Por quê, visto que se conhecem e vivem sempre em paz, Baruya e Youndouyé consideram como normal esta taxa desigual? (Desigual a nossos olhos e em termos de troca de trabalho social)” (GODELIER, 1981, p. 144).
A resposta do autor é a seguinte: “o sal é caro porque é um produto de ‘luxo’, cuja fabricação exige um saber técnico e mágico que as tribos vizinhas não possuem” (idem). O que os Baruya fazem seus companheiros pagar é o que Godelier chamou de um monopólio de uma dupla raridade, uma vez que as terras com recursos propícios para a produção salina se encontram concentradas em território Baruya e o próprio processo produtivo envolve um saber de exclusividade dessa sociedade.
Considerando o que já havíamos dito sobre a questão da realização das necessidades sociais serem o objetivo da troca mercantil nessas sociedades, podemos complementar dizendo que “a troca se estabelece num nível que traduz ao mesmo tempo a necessidade e o trabalho” (idem), pois também depende dessa dimensão qualitativa do trabalho concreto e sua “especialização” técnica. De todo o modo, no que diz respeito à “taxa comercial”, “o trabalho parece desempenhar um papel secundário: só definiria uma espécie de mínimo, abaixo do qual a taxa de troca não deve cair” (idem). Por outro lado, a necessidade com relação à “mercadoria sal”, que aparece para as sociedades vizinhas na forma de uma demanda por este valor de uso difícil de se obter, nos diz que “a raridade de produto definiria o limite máximo que ela pode atingir” (idem).
Os resultados do estudo de Godelier parecem indicar o seguinte: o “preço de equilíbrio”, neste caso particular, é regulado pela comparação entre diferentes ofertas (medidas em mínimo de trabalho) com relação às diferentes demandas (medidas em termos de necessidades sociais). Ao mencionar a troca de pedaços de sal dos Baruya por nozes com os Menyamya, Godelier evidencia que, diferentemente do caso com os Youndouyé, os Menyamya que acabam trabalhando menos. As nozes, para os Baruya, são utilizadas com cascas de caneleira, para adquirir “o poder mágico de atrair ‘grande quantidade’ de caça para o caminho que tomará o caçador” (GODELIER, 1981, p. 145) e também são consumidas, “durante uma cerimônia, pelos jovens homens casados quando se tornam pai do primeiro filho, para purificar a boca e o corpo de poluções perigosas, provenientes de suas relações sexuais com a esposa” (idem). Portanto, conclui-se disto que existe uma prevalência do princípio da “utilidade social” (da necessidade coletiva pelo valor de uso). Em outras palavras: nestas sociedades a valorização de um bem é proporcional à posição social que este adquire no processo de reprodução da vida societária, principalmente quando envolvem a capacidade de exercer “poderes mágicos” ou o “gasto produtivo” dos rituais que formam as pessoas da comunidade.
Finalmente: a questão a respeito do lucro, uma vez que a troca se faz entre proporções de trabalho social desiguais. Aqui a resposta é negativa, pois, como demonstra Godelier, entre os Baruya não existe acumulação de “riqueza” e, portanto, não é possível existir lucro, pois não há vantagens sociais garantidas à quem acumula (pelo contrário). Nem a repartição desigual das terras salinas produz desigualdades sociais (em termos da repartição da produção de sal), “pois os proprietários concedem a seus parentes, aliados ou amigos, o direito de usar temporariamente ou de forma permanente parte de suas terras de sal, e sobretudo porque todo o indivíduo que corta a erva de sal é obrigado a retribuir uma parte” (GODELIER, 1981, p. 146, grifos nossos). Vale destacar que, em outro trabalho sobre os Baruya (já citado aqui), Godelier já afirmava que “un rasgo chocante de la organizacion social baruya es la ausencia entre ellos de la existencia de un lazo directo entre el poder y la riqueza. La riqueza no da poder y el poder no aporta riquezas” (GODELIER, 2005, p. 9).
Nem mesmo empréstimo de barras de sal dado a alguém que queira adquirir um porco (veja-se o exemplo citado pelo autor em: [GODELIER, 1981, p. 145]) produz lucro, mesmo que exista uma relativa “taxa de juros”, pois não é possível guardar sal para usá-lo com esse objetivo. “Adquire-se, certamente, vantagem material para prestígio moral por haver emprestado, nas não se procura lucro em detrimento do devedor” (GODELIER, 1981, p. 146). Neste caso, “o princípio e o objetivo das trocas” é “a satisfação das necessidades sociais, o consumo, e não a procura por lucro” (idem).
Isso não significa que não exista hierarquia social entre os Baruya, mas que esta não está organizada conforme as mesmas regras de várias sociedades das “Western Highlands”, onde existe a figura dos “big mans”. “A autoridade política e o prestígio social de um clã, de uma linhagem ou de um indivíduo estão menos em sua riqueza em terra ou em sal do que em suas funções rituais ou guerreiras, número de esposas e filhos” (idem).
Com relação a seus “parceiros comerciais”, a situação é diferente, pois existe uma consciência social de que os Baruyas “saem ganhando” quando trocam seu sal. Também vimos que esse “lucro” também representa uma diferença em termos de quantidade de trabalho social de cada produto, ou seja, a troca seria “desigual” neste sentido. Mas nestas sociedades consideradas por Godelier, “o trabalho não é um recurso raro” (GODELIER, 1981, p. 147, grifos do autor). Ao menos para os homens, Godelier estima que as atividades produtivas ocupariam apenas 1/3 do tempo socialmente disponível.
O que fica em aberto nessa situação é a questão de se pesquisar: como o trabalho se torna recurso raro? Podemos construir uma hipótese para responder essa questão com o trabalho do próprio Godelier. Na medida em que a sociedade Baruya não possui classes sociais (veja-se: [GODELIER, 2005, pp. 8-9]), pode-se inferir disto que esta é uma das condições que “faltaria” para tornar “escasso” o trabalho, pois, como dizia Pierre Clastres (1975, p. 21, grifos originais): “alguma coisa existe na ausência”.
O tempo disponível prevalece sobre o tempo de trabalho e isso se traduz numa relação comercial onde os produtos do trabalho não aparecem valorizados pelo tempo de trabalho, mas pelo tempo disponível para as necessidades:
Por esta razão, a desigualdade das trocas traduz a utilidade social comparada dos produtos trocados, sua desigual importância na escala das necessidades sociais e as diversas situações de monopólio dos grupos permutadores. O importante é que se tenha o suficiente para satisfazer as necessidades e, lembrando as palavras de um informante, “se recebemos o suficiente, o trabalho é coisa do passado, é esquecido” (GODELIER, 1981, p. 147, grifos originais).
Nestas circunstâncias, Godelier afirma que existe “desigualdade sem exploração” (GODELIER, 1981, p. 147, grifos do autor). Mas se a riqueza não é medida pelo tempo de trabalho, porque poderíamos afirmar que existe “desigualdade”? Somente aos nossos olhos “capitalizados” isto constitui uma desigualdade. Pode-se dizer que a lógica subjacente do modo de produção Baruya pode seguir o princípio de que: “tanto menos tempo socialmente necessário é gasto na produção, tanto mais tempo socialmente disponível se dispõe”. A título de ilustração, vejamos o que Clastres fala sobre a introdução de machados de metais em algumas tribos após contato com europeus:
A vantagem de um machado metálico sobre um machado de pedra é demasiado evidente para que nos detenhamos sobre ela: pode-se realizar com o primeiro talvez dez vezes mais trabalho que com o segundo, num mesmo período de tempo; ou então fazer o mesmo trabalho em dez vezes menos tempo. E quando os índios descobriram a superioridade produtiva dos machados dos homens brancos, desejaram-nos, não para produzirem mais no mesmo tempo, mas para produzirem a mesma coisa num tempo dez vezes mais curto (CLASTRES, 1975, p. 190, grifos nossos).
Não é análogo ao que aconteceu com os Baruya? Trata-se de uma interpelação no que entendemos por “economia”, isto é, a ciência burguesa de administração da acumulação de valor no modo de produção capitalista. Acontece que o tempo de trabalho socialmente necessário é a “substância do valor” no capitalismo (e apenas neste modo de produção). Curiosamente, é também Marx que nos fala:
O tempo de trabalho como medida da riqueza põe a própria riqueza como riqueza fundada sobre pobreza e o tempo disponível como tempo existente apenas na e por meio da oposição ao tempo de trabalho excedente, ou significa pôr todo o tempo do indivíduo como tempo de trabalho, e daí a degradação do indivíduo a mero trabalhador, sua subsunção ao trabalho. Por isso, a maquinaria mais desenvolvida força o trabalhador a trabalhar agora mais tempo que o fazia o selvagem ou que ele próprio com suas ferramentas mais simples e rudimentares (MARX, 2011, p. 946, grifos originais).
A pergunta que se nos impõe é a seguinte: “Sob que condições pode transformar-se essa relação entre o homem primitivo e a actividade de produção?” (CLASTRES, 1975, p. 191). É deveras antiquado falar em “homem primitivo”, mas a pergunta sob a tal “mudança na atividade produtiva” permanece. Com Godelier avançamos nessa questão quando ele falou sobre o fato do “trabalho” não ser raro nessas sociedades.
Enfim, os Baruyas trocam seu sal numa circulação simples das mercadorias e este constitui “um caso de economia mercantil simples, unida a uma economia não-mercantil, que repousa no trabalho individual e coletivo de produtores diretos que redistribuem seus produtos ao longo dos canais de parentesco e vizinhança” (GODELIER, 1981, p. 147).
Não obstante, já existe uma divisão sexual e social do trabalho entre os Baruya e, além disso, as mulheres são submetidas a uma dominação patriarcal (GODELIER, 2005). Neste caso, também emerge, no interior da sociedade, hierarquias que estão fundadas no monopólio do controle sobre o “poder sagrado” (GODELIER, 2001, pp. 261-262). Vale destacar, neste sentido, que: “Não é a Sociedade que rouba [às pessoas] algo dela mesma, são as [pessoas] reais que se roubam entre [elas] algo de suas relações sociais” (GODELIER, 2001, p. 262, grifos originais, correções nossas). É necessário mais pesquisas para destrinchar essas questões, mas isso não nos impede de levantar a seguinte hipótese: essas “monopolizações” (da terra feita território, de saberes especializados da produção salina na forma de poderes mágicos, do poder sagrado dominado pelo segmento dos “homens grandes”) são germes das apropriações privadas e, portanto, da emergência da divisão da sociedade em classes sociais.
Essa nossa proposta de análise da questão está relacionada à definição de propriedade privada, qual seja: tornar um bem comum algo privado é retirá-lo do domínio comunitário integral (não importa se isso se faz através de um “particular” ou por meio de um ager publicus), ou seja, é um ato de separação. Portanto, somente quando é possível alienar um bem comum, isto é, apenas quando se privatiza um bem expropriado-o de sua própria comunidade é que podemos falar em troca mercantil.
No caso dos maya-tojolabales, tudo é sagrado e isso impede a criação de autoridades entre eles, anulando processos de “privatização” de saberes ou bens (não é à toa que eles organizam sua vida social por meio de assembleias comunitárias baseadas no consenso de todos).
Com efeito, essa questão ficará mais nítida se incluirmos outras contribuições que buscaram compreender esse processo. É o que faremos a seguir.
5. O princípio da autoridade como fundamento da divisão de classe e o surgimento da extraenisação
Kropotkin argumenta, no que diz respeito à especialização do poder sagrado que mencionamos acima, que surgem entre as pessoas:
os magos, os xâmanes, os feiticeiros, os reptadores de chuva, os oráculos e os sacerdotes que foram, por ordem natural das cousas, os primeiros monopolizadores de um rudimentar conhecimento da natureza e os fundadores dos diferentes cultos – do sol, da lua, das forças naturais dos ancestrais – que serviam perfeitamente de elo mantenedor da unidade federativa das tribus” (1936, pp. 14-15, grifos nossos).
Destacamos um trecho que consideramos equivocado, uma vez que esses grupos de pessoas não surgem espontaneamente nas sociedades, sendo consequência de processos mais profundos que é preciso analisar com cuidado.
Além destes, surgem também os “peritos em matéria de usos e costumes antigos a quem se recorria em casos de discórdia ou de conflito” (KROPOTKIN, 1936, p. 15) que seriam os precursores da casta jurídica que impõe a autoridade da Lei (veja-se: A Lei e a Autoridade).
Ao lado dessas duas classes, havia uma terceira – a dos chefes temporários dos bandos de combate – a quem se atribuía a posse dos segredos mágicos do êxito das batalhas, do envenenamento das armas e de vários outros segredos militares (idem).
O que há de comum entre esses grupos é a monopolização de saberes, costumes e técnicas e sua hereditariedade mantida através de ritos secretos que garante o privilégio das linhagens em que se formam esses grupos. As hierarquias passam a se desenvolver concomitantemente com o acentuamento da divisão social e sexual do trabalho.
Com a expertise desses grupos mencionados acima, surge a autoridade institucional deles diante do restante da sociedade e, portanto, a obrigação de obedecer às suas ordens como se fossem discursos sobre a verdade imutável das coisas. No caso dos sacerdotes isso é evidente: após a separação que fazem do sagrado dos demais membros da sociedade, eles utilizam seu monopólio para se colocarem como os oficiais intérpretes do mundo, aqueles cujo direito de dizer “como as coisas são” é autorizado em detrimento de quem não participa da classe sacerdotal.
Isso nos remete às contribuições de Pierre Clastres. O poder de dominar, segundo este outro antropólogo, está diretamente associado à força coercitiva e ao par comando-obediência. Para Clastres, a forma elementar do exercício do poder de uns sobre os outros é a manifestação da divisão da sociedade entre os que mandam e os que obedecem, pois uma parte dela tornou-se um princípio de autoridade transcendente, isto é, emergiu na sociedade como um “órgão separado do poder político” (2011, p. 138). Neste sentido, o poder político se autonomiza do ser social das comunidades originárias na medida em que este órgão separado passa a funcionar como “[acionamento] efetivo da relação de poder” (CLASTRES, 2011, p. 111).
A tendência histórica dessas classes formadas pela autoridade é impor para o resto da comunidade um trabalho subordinado, isto é, fazer com que as pessoas sejam subsumidas ao processo de trabalho. Trata-se de um processo histórico onde diferentes sociedades interagem em escalas cada vez mais amplas, fazendo com que as especializações se agravem na mesma proporção em que a (re)produção social delas depende cada vez mais de um intercâmbio mercantil generalizado (já que é necessário encontrar artigos que permitam diferenciar as pessoas em termos de status nessas formações sociais, como, por exemplo, o consumo de especiarias nas sociedades de corte européia). Neste caso:
A troca de mercadorias começa onde as comunidades terminam, em seus pontos de contato com outras comunidades ou com membros de outras comunidades. Tão logo as coisas se tornam mercadorias no exterior da comunidade, tornam-se também, por repercussão, mercadorias no interior da vida comunal. Sua relação quantitativa de troca é por enquanto inteiramente casual. São permutáveis pela vontade de seus possuidores de aliená-las reciprocamente (MARX, 1996, p. 212).
Quando “parte do produto do trabalho seja intencionalmente feita para a troca” (MARX, 1996, p. 213), temos uma situação em que “consolida-se (…) a separação entre a utilidade das coisas para as necessidades imediatas e sua utilidade para a troca” (idem, grifos nossos). Neste caso, se estende e se intensifica a condição na qual é preciso alienar reciprocamente os bens de sua comunidade com relação aos bens de outras, tornando esse processo parte da própria organização social da produção nas sociedades. Assim produz-se a condição de extraenisação, pois as pessoas tornam-se tanto menos a “causa adequada” de suas coletividades quanto mais a produção de mercadorias aparece diante delas como uma inexorabilidade (devido ao aumento da esfera de circulação e, portanto, da divisão social do trabalho). Neste caso, as classes precisam garantir a coesão social e sua dominação por meio da constituição de um poder centralizado: surgimento do Estado.
A primeira forma societária que articula esses processos num modo de produção que supera os laços de parentesco como ordenamento social da atividade produtiva é o tributário. Neste modo de produção se desenvolve amplamente a prática imperial-colonial sobre os povos, subsumindo-os ao processo de trabalho para extrair deles sobreprodutos na forma de tributos. Vamos analisar esse modo de produção antes, pois é com a expansão desses impérios que se constitui um mercado mundial e, portanto, uma divisão internacional do trabalho (a premissa fundamental da constituição do capitalismo como um modo de produção histórico-mundial.
6. O modo de produção tributário:
No modo de produção tributário, o controle do processo de produção social é realizado por “meios outras que não a pressão econômica” (MARX, 1967, p. 791 apud WOLF, 1987, p. 279). Neste caso, a mobilização do trabalho extraenisado é feita “fundamentalmente por meio do exercício do poder e dominação” (WOLF, 1987, p. 279). Neste caso, Clastres estava certo em considerar a coerção política como fundamental para a extração de excedentes, ainda que tenha se equivocado com relação à antecedência lógica das classes sociais (pois ele pensava que o Estado vinha antes das classes). Portanto, neste modo de produção, “a disposição do trabalho social é (…) uma função da localização do poder político e será diferente quando essa localização muda de posição” (WOLF, 1987, p. 279).
As variações históricas de concretização deste modo de produção oscilam entre dois polos, ou seja, entre duas tendências de desenvolvimento histórico e formação social:
uma em que o poder está firmemente concentrado nas mãos de uma elite dominante, situada no ápice do sistema de poder, e outra em que o poder está, em ampla medida, com os senhores locais, e o domínio do ápice é frágil e fraco (idem).
Estas situações alternativas não constituem “casos isolados”, pois emergem conforme a variações das correlações de força entre as classes e outros fatores do modo tributário: “elas funcionam em um continuum de distribuições de poder” (idem).
Quando uma elite de “apropriadores de excedentes” (ou melhor: expropriadores) está situada no ápice de um sistema piramidal, seu poder geralmente está associado à elementos estratégicos do processo de produção (como, por exemplo, a distribuição de água) e ao controle estratégico de um exército permanente com capacidade militar suficiente para assegurar um relativo monopólio do exercício da violência física. Desta forma, os governantes não dependerão da força dos senhores locais para extrair os excedentes dos produtores diretos (geralmente comunidades agrícolas), podendo, inclusive, fazê-los disputar cargos do corpo administrativo de seu governo.
Também será possível “restringir o poder dos comerciantes, evitando o acesso deles aos produtores primários por meio de investimentos controlados no campo e impedindo que financiem em causa própria suseranos potencialmente rebeldes” (idem). Além de atrair a adesão dos produtores diretos com esse tipo de política, é capaz de desagregar poderes translocais, como a formação de guildas, seitas religiosas, ligas, etc.
Quando os senhores locais tiverem posse dos elementos estratégicos acima mencionados, o poder central será fragilizado e a expropriação de excedentes na forma de tributos será realizada de modo difuso por estes senhores (como, por exemplo, a corveia no feudalismo europeu). Nesta situação alternativa, o fluxo tributário tende a ser mantido e administrado localmente e a classe de senhores locais costuma fazer alianças entre si por conta própria. Tais alianças podem ser realizadas tanto contra o centro quanto por questões faccionalistas. Trata-se de uma situação belicosa, onde a luta entre senhores repercute nas tentativas do centro em geri-la por meio da estratégia de “dividir e conquistar”, além da dependência dos produtores primários em garantir sua segurança em lealdade aos “seus senhores” para não perecerem no “fogo cruzado”.
Percebe-se que este modo de produção tributário compreende tanto a variação feudalista (como foi na Europa medieval e no Xogunato japonês, por exemplo) quanto a variação chamada de “despótica” (como foi no Egito Antigo, no Império Inca, em algumas dinastias chinesas, por exemplo). Em ambos os casos temos uma extração coercitiva de tributos de uma classe dominada (camponeses) que geralmente é organizada em unidades domésticas autossuficientes. Ora se realiza mediante uma tendência para a centralização política, ora por uma descentralização política faccionalista por parte de classes de senhores da guerra (como os xoguns japoneses ou os senhores feudais europeus) e pressão, ao mesmo tempo, para aberturas comerciais da parte dos mercantes que financiavam a produção local controlada por estes senhores.
Podemos encontrar ambos os casos na Europa. No entanto, consideramos um equívoco que o elemento insurgente da classe dominada tenha sido, de certa forma, abafado por Wolf, pois este fator que explica a centralização política dos Estados Absolutistas (segundo uma certa historiografia). Após a intensificação da luta de classes (principalmente devido às revoltas camponesas), o feudalismo teve que ceder espaço para uma forma de despotismo, constituindo o Estado Absolutista, como demonstra Perry Anderson em “Linhagens do Estado Absolutista” (2004).
Quando a Europa passa a se expandir colonialmente pelo mundo inteiro, interconectando todas as regiões num mercado mundial, as condições de reprodução do modo de produção tributário atingem seu limite histórico e inicia-se um processo de transição ao capitalismo que emerge e se desenvolve no próprio ambiente histórico do modo precedente.
7. A transição ao capitalismo:
Consideramos didático e oportuno utilizar o resumo de Godelier da periodização do processo de transição proposto por Marx:
Marx distinguió, en cierto modo, tres etapas en la transición del modo de producción feudal al modo de producción capitalista, etapas que constituyen una periodización muy aproximativa de los procesos de transición. El primer período, al que llama el preludio o las premisas, iniciado en el último tercio del siglo XV, se habría prolongado hasta finales del siglo XVI; le habría sucedido el período de juventud y desarrollo del modo de producción capitalista, con la constitución del mercado mundial y la multiplicación de las manufacturas. Por fin, desde los últimos años del siglo XVIII hasta finales del XIX, las manufacturas cedieron su lugar al maquinismo y a la gran industria, que produjeron revoluciones tanto en la producción industrial como en la agrícola, así como una gigantesca urbanización de los países industriales y un enorme cambio en las relaciones ciudad-campo (GODELIER, 2000, p. 195).
Considera-se que o feudalismo entrou em crise no século XIV, encontrando os limites de sua reprodução (GODELIER, 2000, p. 198). Portanto, parte-se da hipótese de que novas formas de produção passam a se afirmar concomitantemente à desagregação do modo feudal. Não obstante, tal processo é perpassado por conflitos em todos os sentidos possíveis:
En términos de historia y de sociedad, suprimir elementos de una relación significa una lucha social, tensiones, conflictos, oposiciones de ideas y valores; en resumen, cambios socio-culturales orientados. La formación de las relaciones capitalistas de producción no se reduce a fenómenos puramente “económicos”. Implica un conjunto de luchas sociales, de conflictos de intereses y de ideas (GODELIER, 2000, p. 199).
Para Marx, assim como para Godelier, a transição para o capitalismo ocorre em primeiro lugar num “centro” onde se canalizam a emergência das novas formas dominantes de produção. Neste sentido, Marx considerava que a Inglaterra constituía o lugar onde o processo de transição teria avançado mais e, portanto, utiliza seus processos históricos como referência em “O Capital”. Uma vez que a transição se refere ao surgimento de novas relações de produção, os processos de conservação das “formas antigas” são compreendidos como logicamente antagônicos ao “desenvolvimento” das “novas formas”. Contudo, é necessário destacar que a “localização do centro” não se trata de um pressuposto teórico, pois são os próprios resultados da pesquisa empírica que apontam para essa direção.
O capitalismo cresce e se forma a partir do feudalismo em decomposição, portanto, “sobre la base de la habilidad, de técnicas y procesos de trabajo heredados del pasado” (GODELIER, 2000, p. 195) até o momento em que, para continuar sua maturação, deve “destruir su punto de partida y reemplazarlo por nuevas técnicas y maneras de producir más adecuadas y que son producto de su propio desarrollo” (idem). É neste sentido que temos, respectivamente: “la subsunción formal de un proceso de trabajo antiguo bajo formas sociales nuevas, bajo relaciones de producción nuevas, a la subsunción real de un proceso de trabajo nuevo bajo esas nuevas relaciones de producción” (GODELIER, 2000, p. 196, grifos originais). Em outras palavras: um momento em que predomina a base técnica antiga sobre relações de produção novas e a transformação dessa base a partir de novas técnicas que sejam correspondentes à forma social emergente.
Para construir essa análise, Marx começa, segundo Godelier, por definir a nova forma social que assume a produção. A partir da compreensão da “lógica orgânica” dessas novas relações, é possível traçar sua gênesis e evolução. Neste sentido, a “estrutura das novas relações sociais” é caracterizada pela combinação dos seguintes conjuntos de relações: (1) a produção mercantil chega ao limite de seu desenvolvimento histórico; (2) está assentada na propriedade privada dos meios de produção e do dinheiro; (3) estes meios de produção e dinheiro apropriados de forma privada funcionam como “capital”, ou seja, como componentes do processo de “valorização do valor”; (4) essa valorização do capital se faz mediante a exploração do trabalho assalariado (“pessoalmente livre”) dos proletários (aqueles que foram privados dos meios de produção e subsistência e portanto precisam vender sua força de trabalho aos proprietários).
Godelier adverte que a análise trata da combinação desses elementos e não na emergência de cada um deles. Considerados de forma isolada, a propriedade privada, bem como o dinheiro e trabalho assalariado existiam de diferentes formas em outros modos de produção. O que é “inovador”, neste caso, é a forma específica com que se coordenam no modo de produção capitalista.
Depois de definir a estrutura das relações de produção novas, é possível analisar por meio de quais processos históricos seus componentes passaram a se combinar e em que circunstâncias isso se torna possível. É neste ponto da análise que Marx busca situar a “acumulação originária de capital”, processo por meio do qual se dissocia o trabalhador de seus meios de produção. Em síntese, trata-se da associação histórica de:
1) a pilhagem colonial e a acumulação de capital mercantil; 2) a política dos Estados mercantilistas (protecionismo, leis contra a vagabundagem, sistema de impostos, etc.) e a dívida pública; 3) a expropriação dos pequenos proprietários de meios de produção, camponeses e artesãos. O modelo explicativo especifica a necessária simultaneidade de tais mecanismos, já que tomados isoladamente aparecem em diferentes períodos históricos, e o fato de terem agido quando já se davam outras condições necessárias à eclosão do capitalismo, relativas às forças produtivas, ao surgimento da burguesia, à formação do Estado moderno, etc. (CARDOSO, 1980, p. 121).
Este é o “método regressivo” segundo Godelier, pois busca compreender as razões da dissolução das relações sociais feudais. Neste sentido, deve-se considerar como as formas artesanais e agrícolas feudais foram se desintegrando na medida em que avançava a acumulação originária e a consequente formação do mercado mundial. No caso das corporações de artesãos, temos a conversão do “mestre” em “patrão” que não participa mais da produção, tornando-se o dirigente exclusivo do processo e administrador das atividades de compra e venda das oficinas. Desta forma, ele passa a defender seus próprios interesses em detrimento das convenções comunitárias das guildas, gerando uma série de conflitos. No campo temos a conversão de camponeses servos em trabalhadores agrícolas assalariados em certos casos. Neste sentido, as alterações nas relações de produção correspondem a distintos níveis de subsunção ao processo de produção emergente no período de transição.
Depois de se ter a síntese das novas relações e as formas pelas quais elas desagregam as antigas, passa-se para a análise da expansão de tais relações. A subsunção formal ao processo de trabalho abrange as mudanças relativas ao aumento das jornadas de trabalho que implica na ampliação da exploração em termos absolutos da força de trabalho. Neste caso, temos a transformação da corporação e suas formas artesanais de produção na manufatura com seus trabalhadores parceleiros, especializados na execução de uma só tarefa. Mas foi somente com a introdução das máquinas no processo produtivo que surge a grande indústria e as condições de possibilidade da subsunção real do trabalhador ao processo de trabalho. Com o maquinismo temos um progressivo incremento técnico na produção, mediante a aplicação sistemática de conhecimentos científicos, que permite ao capitalista ampliar sua exploração relativamente à produtividade do trabalho. O trabalhador torna-se um “operário” no sentido estrito do termo: o ritmo da produção é ditado pelas máquinas das quais este é um “apêndice”. Portanto, a grande indústria finaliza a transição ao capitalismo no lugar onde ela se estabelece.
Marx não deteve sua análise aqui, pois a produção industrial se desenvolve de modo contraditório e complementar com outras formas de produção. Estas são progressivamente subordinadas ao processo de expansão e acumulação capitalista, ou seja, são subsumidas. O centro do nascimento do novo modo de produção gera transformações nas suas periferias, mas estas mudanças não necessariamente implicam em reproduzir o “modelo do centro” ou que tais periferias já são imediatamente capitalistas (a ideia de “capitalismo periférico”). Além disso, Godelier afirma que existem duas periferias que se distinguem mediante sua posição com relação ao centro e sua relação de subordinação.
A primeira periferia é a “periferia do Ocidente”, por se tratar das relações comerciais da própria Europa: “É a periferia da Europa, a Polônia que produz trigo para a França. A Polônia se torna cada vez mais agrícola, com um regime que restaura o feudalismo, porque os senhores fazem produto do trigo exportado” (HOLLANDA; RIBEIRO, 2011, p. 6). A segunda é a das colônias (idem). Tomemos como exemplo um caso hispânico:
En la segunda periferia, las cosas iban a ser muy distintas, según los países fueran transformados en colonias o sufrieran, solos, las presiones comerciales y políticas de los países europeos. En Méjico, o Perú, las antiguas formas de producción y de organización sociales fueron destruidas y recompuestas por los españoles en fórmulas mixtas, al poner en simbiosis comunidades indígenas de un nuevo tipo, mezclaron estructuras españolas con estructuras precoloniales y grandes explotaciones agrícolas o mineras directamente administradas por los colonos (GODELIER, 2000, p. 204).
As circunstâncias com as quais se realizavam as formas coloniais variam de acordo com as condições dos processos de colonização que incluem os fatores demográficos (alta concentração de população indígena nas terras altas da América, por exemplo), ambientais (terras apropriadas para produção de produtos tropicais), dentre outras variáveis (como a possibilidade de importação de mão de obra africana escravizada para formas de produção escravistas). É precisamente nestes casos que é possível dar continuidade (com as devidas revisões críticas) com as análises dos processos de transição que Marx havia iniciado.
8. Apropriações críticas da análise da transição:
Gostaríamos acrescentar as apropriações críticas e inovadoras do conceito de “subsunção” de Marx por Ann Laura Stoler. Para esta autora, a subsunção não se limita ao processo de trabalho, pois também pode abranger: “las relaciones sociales em las cuales se reproduce la fuerza de trabajo” (STOLER, 1987, p. 104). Neste caso, podem existir subsunções formais de unidades domésticas comunitárias de reprodução da força de trabalho ao capitalismo. Além disso, a autora destaca que a subsunção formal pode coexistir com a real no mesmo espaço-tempo, como indica sua análise da transição capitalista em Sumatra (STOLER, 1987, pp. 103-125).
Também é de suma importância a leitura de Silvia Federici da acumulação originária de capital. Segundo esta autora, a gênese do capital também precisa ser entendida no quadro das seguintes realizações:
(1) a constituição do trabalho de reprodução – que é o trabalho de reproduzir indivíduos e força de trabalho – como “trabalho de mulheres” e como uma esfera social separada, aparentemente localizado fora da esfera das relações econômicas e, como tal, desvalorizado do ponto de vista capitalista, um desenvolvimento coevo com a separação do campesinato da terra e a formação de um mercado de mercadorias; (2) a institucionalização do controle do estado sobre a sexualidade e a capacidade reprodutiva da mulher, através da criminalização do aborto e da introdução de um sistema de vigilância e punição, literalmente expropriando mulheres de seus corpos. Este processo serviria de base para a instituição de uma nova divisão sexual do trabalho e de uma nova organização familiar, subordinando as mulheres aos homens e, em correspondência, diferenciando ainda mais social e psicologicamente as mulheres e os homens. Ao mesmo tempo, a apropriação do Estado do corpo das mulheres e sua capacidade reprodutiva tem sido o começo de sua regulação dos “recursos humanos”, sua primeira intervenção “biopolítica”, no sentido foucaultiano da palavra, e contribuição para o acúmulo de capital, na medida em que isso é essencialmente a multiplicação do proletariado (FEDERICI, s.d.).
Portanto, a gênese do modo de produção capitalista é o processo por meio da qual: (1) o capitalismo realiza a separação entre o trabalhador de suas condições objetivas de trabalho (meios de produção), através da sua efetiva desapropriação. Esta divisão leva ao paroxismo o processo de extraenisação do trabalho. Na medida em que o processo produtivo não mais realiza diretamente a perseveração da comunidade humana, também é necessário que se estabeleça: (2) a divisão entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo, onde este último é domesticado na forma servil de trabalho de mulheres supervisionado pelo Estado enquanto regulador demográfico da nação e promotor da “higiene” e do “bem-estar social”.
9. A Lei do Valor e a extraenisação
O pressuposto da produção capitalista é, como vimos, o mercado mundial e este é a expressão do mundo extraenisado do trabalho. Portanto, a análise da forma mercadoria torna-se fundamental para a compreensão deste modo de produção.
Para Marx (1996, p. 205):
A Economia Política analisou, de fato, embora incompletamente, valor e grandeza de valor e o conteúdo oculto nessas formas. Mas nunca chegou a perguntar por que esse conteúdo assume aquela forma, por quê, portanto, o trabalho se representa pelo valor e a medida do trabalho, por meio de sua duração, pela grandeza do valor do produto de trabalho.
Marx escreve uma “crítica da economia política” justamente para desnaturalizar as formas históricas com as quais, de maneira a-histórica, lidaram os economistas burgueses. Neste sentido que devemos compreender que o valor não é, como em David Ricardo, algo como uma “substância natural” do “trabalho” e que, portanto, a crítica de Marx não é baseada numa “teoria do valor-trabalho”, mas sim em uma análise da Lei do Valor. Até porque muitas sociedades humanas sequer tinham produzido a forma mercadoria, ainda que a expansão colonial do valor tenha subsumido-as e, em muitas ocasiões, obrigado-as a estabelecerem trocas mercantis. Em suma, a mercadoria não é aparece como o resultado de uma “evolução natural” das sociedades, pois depende, como vimos acima, de um complexo processo histórico para emergir. Não se reduz a uma forma que surge após um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas, pois este desenvolvimento mesmo é subproduto do processo da produção de valor. Portanto, antes de prosseguirmos, é necessário compreender qual é a lógica de existência própria na qual opera a forma mercadoria.
As primeiras impressões que temos ao entrar num mercado é estar diante de uma multiplicidade de coisas em termos de utilidades distintas (valores de uso), mas que estão todas diante de nós com um “custo comum” que se apresenta em graus diferentes. Neste caso, estamos perante uma diversidade de qualidades medidas sob o mesmo denominador comum de quantidade: um valor de troca expresso nos preços. Portanto, do ponto de vista do valor de troca, todas as mercadorias parecem conter diferentes quantidades de uma mesma “coisa”. Já vimos qual foi a resposta dada pelos economistas políticos clássicos (trabalho como substância do valor e tempo de trabalho como medida de sua grandeza). Agora vejamos as problematizações de Marx.
“Quando no início desse capítulo, para seguir a maneira ordinária de falar, havíamos dito: A mercadoria é o valor de uso e valor de troca, isso era, a rigor, falso. A mercadoria é valor de uso ou objeto de uso e ‘valor’” (MARX, 1996, p. 188, grifo nosso). Em outras palavras: a questão para Marx se coloca em outros termos. Acontece que, além da eternização da forma mercadoria, os economistas burgueses não souberam distinguir entre a manifestação do valor e sua “substância”. Primeiro tratemos de sua manifestação.
O valor de troca é a forma de expressão do valor, mas não o valor propriamente dito. A expressão do valor compreende a forma de valor relativo e a forma de valor equivalente. Respectivamente: “a mercadoria cujo valor é expresso ou aquela na qual é expresso o valor” (MARX, 1996, p. 178). Existe, portanto, uma relação de pressuposição recíproca entre essas formas. O conteúdo da forma relativa do valor é uma grandeza permutável, enquanto que o conteúdo da forma equivalente do valor não possui “nenhuma determinação quantitativa de valor” (MARX, 1996, p. 184). Ora, a equivalência não permuta a grandeza do valor, mas os próprios corpos mercantis: “A forma equivalente de uma mercadoria é consequentemente a forma de sua permutabilidade direta com outra mercadoria” (MARX, 1996, p. 183). Essa unidade contraditória pode ser expressa da seguinte maneira: a mercadoria reconhece no corpo da outra o seu valor enquanto mercadoria, pois ao se relacionar com a outra mercadoria como sua equivalente, ela se relaciona a si mesma como relativa, como um exemplar particular de sua espécie (MARX, 1996, p. 181).
A troca mercantil simples é baseada nessa permutabilidade entre pares fixos de mercadorias nas quais uma expressa sua forma relativa para a outra enquanto equivalente e vice-versa. Neste caso: a forma relativa do valor (x de mercadoria A) se expressa por meio de uma forma equivalente (y de mercadoria B), portanto: x/A = y/B. A mercadoria A está para B como forma relativa e a B serve para A como forma equivalente. Portanto, quando os economistas burgueses analisam as oscilações no valor de troca das mercadorias e concluem que as relações de oferta e demanda são preponderantes, eles apenas verificam que o valor relativo de uma mercadoria pode variar mesmo quando seu valor propriamente dito permaneça constante (MARX, 1996, pp. 182-183). Logo, o argumento de que o preço vem da igualação entre oferta e demanda não refuta a existência do valor em termos “substanciais”.
Em seguida, Marx afirma que: “A primeira peculiaridade que chama a atenção quando se observa a forma equivalente é está: o valor de uso torna-se forma de manifestação de seu contrário, do valor” (MARX, 1996, p. 184). É uma equação complexa, mas vejamos o exemplo de Marx (idem):
Por exemplo: 40 varas “valem” — o quê? Dois casacos. Como a espécie de mercadoria casaco desempenha aqui o papel de equivalente, o valor de uso em face do linho como corpo de valor, basta também determinado quantum de casacos para expressar determinado quantum de valor de linho. Dois casacos podem expressar, portanto, a grandeza de valor de 40 varas de linho, mas não podem nunca expressar sua própria grandeza de valor, a grandeza de valor de casacos.
Ou seja: a mercadoria equivalente é o corpo do valor da mercadoria relativa. É a equivalente que diz quanto vale a relativa na troca mercantil (ainda que “se cale” quando se trata de si própria). A forma equivalente estabelece uma igualdade qualitativa (a generalidade da forma mercadoria) e a forma relativa uma proporcionalidade quantitativa (a variação de seu valor de troca):
A antítese interna entre valor de uso e valor, oculta na mercadoria, é, portanto, representada por meio de uma antítese externa, isto é, por meio de uma relação de duas mercadorias, na qual uma delas, cujo valor deve ser expresso, funciona diretamente apenas como valor de uso; a outra, ao contrário, na qual o valor é expresso, vale diretamente apenas como valor de troca (MARX, 1996, p. 189).
Marx nos apresenta uma analogia para essa equação usando o “peso”. Quando se colocam numa balança coisas diferentes com massas distintas, verifica-se que é possível igualá-las numa proporção em que a balança fica em equilíbrio (por exemplo, 1 kg de chumbo de um lado e 1 kg de algodão de outro – daí a brincadeira de “qual pesa mais?”, cuja resposta óbvia é “nenhum, já que possuem o mesmo peso”). No entanto, o peso se refere a um conteúdo “natural” dessas coisas e o valor não. Neste sentido que Marx afirma que (1996, p. 185, grifos meus):
O ferro representa na expressão de peso do pão de açúcar uma propriedade natural comum a ambos os corpos, seu peso, enquanto o casaco representa na expressão de valor do linho uma propriedade sobrenatural a ambas as coisas: seu valor, algo puramente social.
Aqui encontramos expressamente a ideia de Marx segundo a qual o valor é uma invenção social historicamente determinada que, segundo nossa interpretação, assume o lugar que outrora foi do “sagrado” (aquilo que vimos acima com Godelier). Antes de analisar as outras peculiaridades do valor equivalente, é necessário explicar o que é essa “propriedade sobrenatural”, isto é, qual a substância do valor?
Em primeiro lugar: “Apenas produtos de trabalho privados autônomos e independentes entre si confrontam-se como mercadorias” (MARX, 1996, p. 171). Neste caso, diferentes trabalhos socialmente úteis são dissociados em unidades produtivas privadas que, não obstante, estão interconectadas pela divisão social do trabalho. Portanto:
Numa sociedade cujos produtos assumem, genericamente, a forma mercadoria, isto é, numa sociedade de produtores de mercadorias, desenvolve-se essa diferença qualitativa dos trabalhos úteis, executados independentemente uns dos outros, como negócios privados de produtores autônomos, num sistema complexo, numa divisão social do trabalho (MARX, 1996, p. 172).
A categoria de valor só aparece numa sociedade em que a igualdade entre as pessoas assume a forma de uma igualdade de possuidores de coisas. Como Marx mesmo havia dito (MARX, 1996, p. 187): “isso só é possível numa sociedade na qual a forma mercadoria é a forma geral do produto de trabalho, por conseguinte também a relação das pessoas umas com as outras enquanto possuidoras de mercadorias é a relação social dominante”. Será mediante a troca dessas coisas que se fundamentará as condições prévias da produção, substituindo a regulação mediante a existência comunitária (que havíamos mencionado no início) pela “autorregulação” do mercado. Portanto:
Do mesmo modo que as mercadorias, isto é, as unidades imediatas do valor de uso e do valor de troca, saem do processo como resultado, como produto, assim também ingressam nele na qualidade de elementos constitutivos. De um processo produtivo não pode sair nunca nada que nele não tenha entrado sob a forma de condições de produção (MARX, 1985, p. 43, grifos originais).
A própria naturalização do mercado é consequência desta condição. Outro efeito que aparece nas sociedades em que a mercadoria assumiu a forma dominante é o progressivo desenvolvimento da forma contratual como relação social e, na mesma proporção, uma desagregação cada vez mais intensa das relações de comunalidade. A forma contratual corrói os vínculos sociais e exige das pessoas um “autointeresse esclarecido” como subjetividade dominante. Esse processo subjetivo está de acordo com a relação exigida entre “indivíduos privados” expressa em termos de transações imediatas. Neste sentido, a “Lei do Valor” se afirma efetivamente como dissolução da comunidade (Gemeinwesen).
Portanto, os homens relacionam entre si seus produtos de trabalho como valores não porque consideram essas coisas meros envoltórios materiais de trabalho humano da mesma espécie. Ao contrário. Ao equiparar seus produtos de diferentes espécies na troca, como valores, equiparam seus diferentes trabalhos como trabalho humano. Não o sabem, mas o fazem (MARX, 1996, p. 200, grifos e sublinhados nossos).
A substância do valor é, em outras palavras, o “trabalho humano abstrato” ou “gelatina de trabalho” (diferentemente do “trabalho concreto”). A grandeza por meio da qual é medida essa substância é seu tempo de duração. No entanto, trata-se do tempo socialmente necessário para produzir uma mercadoria qualquer sob condições sociotecnológicas de produtividade dadas. Um tempo de trabalho que deve ser, no mínimo, igual ao tempo médio para ser rentável segundo os critérios da conjuntura econômica descritos em termos de “eficiência”.
O trabalho concreto é a atividade produtiva útil socialmente e o “trabalho abstrato” nem sequer é uma atividade, apenas uma abstração. Mas essa abstração tem efeitos reais que abordaremos a seguir. Esta “gelatina de trabalho” (expressão de Marx) é o resultado da extraenisação que subsume as pessoas ao trabalho. É o trabalho extraenisado que se torna uma espécie de “substância sobrenatural” que se cristaliza nas mercadorias, uma potência hostil existindo fora e contra seus produtores.
Da mesma forma que o cristianismo buscava assimilar certas alteridades num processo catequético, pois projetava nas pessoas a condição niveladora de “filhos de Deus”, a subsunção ao trabalho extraenisado se projeta sobre as pessoas como se fosse “obra da humanidade”. A própria ideia de uma “humanidade geral” (em abstrato) surge desse processo. Conforme observa Isaak Illich Rubin a esse respeito:
Não estaríamos exagerando se disséssemos que talvez o conceito de homem em geral, e de trabalho humano em geral, surgiram sobre a base da economia mercantil. Era precisamente isto que Marx queria mostrar quando indicou que o caráter humano geral do trabalho se expressa no trabalho abstrato (RUBIN, 1980, p. 154).
Em outras palavras: a existência humana como vida subsumida ao processo de trabalho. A condição de possibilidade histórica dessa situação é a separação dos produtores diretos dos seus meios de produção por meio do processo histórico que Marx chamou de acumulação originária de capital. No entanto, não desenvolveremos essa questão aqui.
Depois dessas considerações, duas novas peculiaridades aparecem para a forma equivalente: “É portanto uma segunda peculiaridade da forma equivalente que trabalho concreto se converta na forma de manifestação de seu contrário, trabalho humano abstrato” (MARX, 1996, p. 186). O significado dessa proposição já foi tratado dois parágrafos acima. “É, portanto, terceira peculiaridade da forma equivalente que trabalho privado se converta na forma de seu contrário, trabalho em forma diretamente social” (idem). No caso dessa última peculiaridade, trata-se da divisão internacional do trabalho em conformidade com o desenvolvimento do mercado mundial: trabalhos privados socialmente globalizados.
Portanto, o desenvolvimento da forma equivalente até o caráter de “equivalente geral” (que se exprime na forma dinheiro do valor) coincide com a conversão do trabalho concreto realizado de distintas formas em trabalho assalariado indistinto, como “capacidade puramente subjetiva”1, ou seja, “não é esse ou aquele trabalho, mas é trabalho por excelência, trabalho abstrato: absolutamente indiferente diante de sua determinabilidade particular, mas suscetível de qualquer determinação” (MARX, 2011, p. 365). Esse “desnudamento do trabalho” se dá, como já afirmamos, mediante a “separação do trabalho livre das condições objetivas de sua efetivação – dos meios e do material do trabalho” (MARX, 1985, p. 65), isto é, através da expropriação dos produtores diretos. Neste caso, já se trata da gênese e reprodução do próprio modo de produção capitalista. É nessa forma social de produção que se atinge os limites da extraenisação do trabalho e, consequentemente, do desenvolvimento da Lei do Valor. Neste caso, precisamos observar a relação entre o trabalho assalariado e a forma dinheiro do valor neste modo de produção se quisermos compreender como o valor impõem sua autarquia.
Para Marx, o assalariamento especificamente capitalista determina a forma dinheiro do valor, pois “O dinheiro é o tempo de trabalho como objeto universal, ou a objetivação do tempo de trabalho universal, o tempo de trabalho como mercadoria universal” (MARX, 2011, p. 173). Em outras palavras: o conteúdo estrutural do dinheiro capitalista é o tempo do trabalho abstrato e o seu valor está diretamente associado ao preço da força de trabalho. Este preço, por sua vez, resulta da troca entre capital e trabalho. Ele varia conforme a variação do custo de reprodução do trabalho vivo, isto é, do indivíduo trabalhador (em sua vida familiar) e de sua classe como um segmento social particular da sociedade.
Quando Marx distingue entre trabalho concreto produtor de valor de uso e trabalho abstrato produtor de valor, ele busca determinar que: 1) o capitalista compra força de trabalho e não o trabalho propriamente dito, a capacidade de trabalhar durante um período de tempo e não o processo de trabalho (no processo de produção, esta força de trabalho aparece para o capitalista como seu capital variável, cujo valor de uso é gerar valor); 2) o capitalista paga ao trabalhador o custo de (re)produção desta capacidade de trabalhar e não o rendimento do processo de trabalho (o rendimento da força de trabalho, quando é posta para trabalhar, é apropriado pelo capitalista que reclama seu direito ao valor de uso que comprou no contrato de trabalho). Desta forma o capitalista paga o próprio salário do operário com parte do valor produzido pelo mesmo e ainda se apropria dos sobreprodutos do trabalho na forma de mais-valor (exploração). O sistema salarial é o pressuposto necessário da forma dinheiro do equivalente geral, pois esse pagamento na forma de renda monetária reproduz a relação de compra/venda dos meios de subsistência (bens de consumo produzidos como mercadorias). O valor de troca disposto no mercado é realizado, não simplesmente a serviço da sobrevivência da força de trabalho, mas também como um momento de consumação do valor (que, caso seja “ofertado em demasia”, precisa ser destruído). Além disso, o próprio resultado da troca entre capital e trabalho é o preço da força de trabalho (MARX, 2011, pp. 399-400). Vejamos o porquê.
Nos Grundrisse, Marx afirma que (2011, p. 179): “Economia de tempo, a isso se reduz afinal toda economia”. O tempo de trabalho dos meios de produção (objeto e instrumento de trabalho) é tempo de trabalho já realizado, isto é: trabalho morto, objetivado. Durante o processo produtivo, a maquinaria e os materiais utilizados na produção apenas transferem o seu valor na forma desse tempo cristalizado para o bem produzido. Portanto, o capitalista encontra a fonte do mais-valor apenas na absorção do tempo de trabalho vivo, ou seja, de tempo de trabalho ainda não objetivado que é posto na produção como processo de objetivação, como exteriorização de tempo por meio do ato de trabalho. O resultado é a soma do tempo cristalizado com o “mais-tempo” efetivado. O tempo de trabalho se cristaliza nos produtos e sobreprodutos que os trabalhadores produzem. Trata-se do trabalho passado sugando o trabalho presente, “sepultando” o trabalho vivo na forma de trabalho morto.
Uma parte do capital e, por conseguinte, o conjunto do capital transforma-se numa grandeza variável precisamente porque, em lugar do dinheiro, de uma grandeza constante de valor, ou dos meios de subsistência – que são grandezas constantes de valor e nos quais se pode representar o dinheiro – o que se troca é, pelo contrário, um elemento, a capacidade viva de trabalho, que gera valor e que, como elemento que produz valores, pode ser maior ou menor, pode representar-se como grandeza variável, e em geral, em todas as circunstâncias, só entra no processo produtivo como seu fator apenas como grandeza fluida, em devir, embora encerrada dentro de limites diversos –; não como grandeza havida, fixada (MARX, 1985, p. 49, grifos originais).
É assim que o capital nasce e se acumula, pois “Em lugar do valor da parte variável do capital temos agora a valorização enquanto processo, o trabalho implicado no ato da valorização” (MARX, 1985, p. 51, grifos originais). Essa autovalorização do capital é o movimento mesmo da extraenisação do trabalho: “a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta à desvalorização do mundo [humano] (Menschewelt)” (MARX, 2004, p. 80).
Se em outras sociedades pode existir uma forma de fetichismo que se expressa como “forças sagradas” ocupando o lugar das pessoas como causa eficiente das suas ações, numa sociedade dominada pelo valor são as “coisas” enquanto mercadorias que tomam esse lugar. É neste sentido que devemos compreender o conceito de fetichismo das mercadorias desenvolvido por Marx. Trata-se de uma situação em que: “as relações entre os produtores (…) assumem a forma de uma relação social entre os produtos de trabalho” (1996, p. 198), ou seja, a forma mercadoria produz “relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas” (MARX, 1996, p. 199). Em outras palavras:
O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos (MARX, 1996, p. 198).
Neste caso, quando o mundo mercantil coisifica as relações sociais de produção, as classes sociais formam-se como segmentos sociais que possuem coisas:
Na sociedade capitalista, os diferentes elementos da produção (meios de produção, força de trabalho e terra) pertencem a três diferentes classes sociais (capitalistas, trabalhadores assalariados e proprietários de terras), e adquirem, portanto, uma forma social particular, forma que não possuem em [outros modos de produção]. Os meios de produção aparecem como capital, o trabalho como trabalho assalariado, a terra como objeto de compra e venda (RUBIN, 1980, p. 32, modificação minha).
Portanto, na unidade contraditória do Capital com o Trabalho, o proprietário privado dos meios de produção “é apenas capital personificado, sua alma é a alma do capital” (MARX, 1996, p. 347). O vendedor de força de trabalho é, por sua vez, a personificação da “substância” geradora de valor.
Essas ideias já eram premissas do jovem Marx em seus manuscritos de 1844, quando ele afirmava que: “A essência subjetiva da propriedade privada, a propriedade enquanto atividade sendo para si, enquanto sujeito, enquanto pessoa, é o trabalho” (MARX, 2004, p. 99), ou seja, como processo da extraenisção. Tanto a “essência subjetiva da propriedade privada”, isto é, o trabalho enquanto “exclusão da propriedade, e o capital, [que é] o trabalho objetivo enquanto exclusão do trabalho [em ato], são a propriedade privada enquanto sua relação desenvolvida da contradição” (MARX, 2004, p. 103, acréscimos meus). Logo:
A produção [capitalista] produz o humano não somente como uma mercadoria, a mercadoria humana, o humano na determinação da mercadoria; ela o produz, nesta determinação respectiva, precisamente como um ser desumanizado (entmenchtes Wesen) tanto espiritual quanto corporalmente – imoralidade, deformação, embrutecimento de trabalhadores e capitalistas. Seu produto é a mercadoria consciente-de-si e auto-ativa, … a mercadoria humana (MARX, 2004, pp. 92-93).
10. Imperialismo e espoliação
Para Rosa Luxemburgo, a reprodução ampliada do capital também tem seus limites. Se é necessário que este valor acumulado possa ser usado para acumular mais, pois o sentido da acumulação capitalista é valorizar o valor sempre, então os mercados tornam-se cada vez menos disponíveis para a realização da “capitalização” da mais-valia através do valor de troca das mercadorias, uma vez que o poder aquisitivo da classe trabalhadora não cresce na mesma proporção em que aumentam os excedentes de produção. Esta é a tese do subconsumismo associada à superprodução. Portanto:
No tráfico interno capitalista, na melhor das hipóteses, só podem ser realizadas determinadas partes do produto social total: o capital constante gasto, o capital variável e a parte consumida da mais-valia; em compensação, a parte da mais-valia que se destina à capitalização será realizada “fora”. Se a própria capitalização da mais-valia é um fim e um motivo impulsor da produção, por outro lado, a renovação do capital constante e variável (assim como a parte consumida da mais-valia) é a ampla base e a condição prévia daquela. E ao passo que, com o desenvolvimento internacional do capitalismo, a capitalização da mais-valia se torna cada vez mais premente e precária, a ampla base do capital constante e variável, como volume, torna-se cada vez mais potente, em têrmos absolutos, em relação à mais-valia. Daqui tira-se um aspecto contraditório: os antigos países capitalistas constituem mercados cada vez maiores entre si, e se tornam cada vez mais indispensáveis uns para os outros, enquanto ao mesmo tempo combatem, entre si, cada vez mais acirradamente, como competidores, em suas relações com países não-capitalistas (LUXEMBRG, 1970, p. 316, grifos nossos).
A partir destas considerações, Rosa Luxemburgo afirma que não seria possível explicar a acumulação capitalista como um processo ensimesmado. Neste caso, ela afirma que “A acumulação do capital (…) não pode ser explanada sob a hipótese do domínio exclusivo e absoluto da forma de produção capitalista, já que, sem os meios não-capitalistas, torna-se inconcebível em qualquer sentido” (LUXEMBURG, 1970, p. 314, grifos nossos). Em outras palavras: “(…) a acumulação do capital como processo histórico depende, em muitos aspectos, de camadas e formas sociais não capitalistas” (LUXEMBURG, 1970, p. 315).
Neste sentido, a capitalização dos excedentes de produção necessita da “criação de mercados” em regiões não-capitalistas dominadas colonialmente pelas potências capitalistas. “Por isso é que o capitalismo considera, como uma questão vital, a apropriação violenta dos meios de produção mais importantes dos países coloniais” (LUXEMBURG, 1970, p. 319). Este processo é realizado através de violentas formas de espoliação que reproduzem a prática da acumulação originária de capital de vedar os produtores diretos de seus meios de produção. Desta forma, as potências capitalistas subordinam essas regiões à absorção das suas mercadorias excedentes. É este método que Rosa caracterizou como imperialismo. Na época da hegemonia inglesa, temos o exemplo da “guerra do ópio” contra a China (que havia recusado os produtos ingleses) que permite elucidar bem essa prática.
No entanto, existem divergências quanto a essa forma de explicação da dinâmica imperialista no capitalismo. A tese do subconsumismo vai ser contraposta pela tese da necessidade financeira de aplicação dos capitais, uma vez que a reprodução das relações sociais de produção do capitalismo não é mais entravada pela necessidade de “capitalização” na venda, pois, a partir do momento em que o capital bancário se funde com o capital industrial (gerando o capital financeiro), é possível ao capitalista o financiamento indeterminado dos seus investimentos no exterior.
De acordo com a análise de Marx, a taxa de lucro obtida no interior de uma economia capitalista nacional tendia a declinar no longo prazo (mas também internacionalmente). Com a ajuda do capital financeiro, foi possível aplicar no exterior o capital excedente na busca de maiores lucros e, portanto, garantir a recomposição da taxa de lucro. Portanto, os países que chegaram nesse nível de desenvolvimento disputavam, não os mercados para vender seus bens, mas domínios exclusivos onde podem realizar seus próprios investimentos externos.
De todo o modo, essa outra explicação parte das mesmas premissas apresentadas por Rosa Luxemburgo com relação à necessidade de controle de regiões não-capitalistas. Nesta perspectiva, a concorrência entre capitalistas tende a atingir proporções monopolistas. Trata-se do que Lenin chamou de “capitalismo monopolista”. Para Lenin, esta seria a necessidade do imperialismo nesta “fase superior do capitalismo”, definida pela conjunção das seguintes características:
1. a concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios […]; 2. a fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse capital financeiro, da oligarquia financeira; 3. a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente grande; 4. a formação de associações internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si, e 5. o termo da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes (Lenin, 2008, p. 90).
Uma vez que o método imperialista vai variar geográfica e historicamente, vamos utilizar o trabalho de David Harvey como um estudo de sua forma histórica mais recente. No entanto, é necessário destacar que sua teorização parte de um contexto e perspectiva analítica particular do próprio autor acerca da própria dinâmica do imperialismo. Neste sentido, Harvey buscará reconceituá-lo ao mesmo tempo em que pretende sintetizar sua formação contemporânea. Portanto, vamos sintetizar a seguir no que consiste suas contribuições para o debate.
David Harvey começa o primeiro capítulo de seu livro “O Novo Imperialismo” fazendo considerações acerca de seu trabalho: “Meu objetivo é examinar a atual condição do capitalismo global e o papel que um ‘novo’ imperialismo [estaria] desempenhando em seu âmbito. Faço-o da perspectiva da longa ‘durée’ e pelas lentes daquilo que chamo de materialismo histórico-geográfico” (HARVEY, 2004, p. 11, grifos nossos). Com essa citação já podemos compreender as premissas da qual parte o autor.
Do ponto de vista mais propriamente teórico, Harvey se considera um “materialista histórico-geográfico”. Na análise harveyriana, o fator geográfico será expresso na lógica territorial de poder que se combina, de forma complexa e contraditória, com a lógica capitalista de poder (que tem a ver com a caracterização do modo de produção que descrevemos acima). Neste sentido, o controle geopolítico de regiões estratégicas será considerado indispensável para a compreensão e descrição das dinâmicas capitalistas.
Em primeiro lugar, é necessário considerar que os Estados Unidos assumiu a hegemonia da prática imperialista no capitalismo contemporâneo, portanto temos um deslocamento histórico da centralidade territorial. Em segundo lugar, que a reprodução ampliada do capital sofreu um entrave posto pela crise de sobreacumulação da década de 1970. Neste caso, temos uma diferença em termos da caracterização da crise e, consequentemente, da solução imperialista adotada, qual seja: a acumulação por espoliação.
Com relação à questão da sobreacumulação de capital, Harvey afirma que (2004, p. 124): “A sobreacumulação (…) é uma condição em que excedentes de capital (por vezes acompanhados de excedentes de trabalho) estão ociosos sem ter em vista escoadouros lucrativos. O termo-chave aqui é, no entanto, excedentes de capital”. Portanto, “a teoria da sobreacumulação identifica a falta de oportunidades de investimentos lucrativos como o problema fundamental” (HARVEY, 2004, p. 116, grifos nossos). Neste sentido, a reprodução ampliada de capital fica comprometida.
O capitalismo resolve a crise de sobreacumulação, segundo Harvey, através da espoliação de ativos que são mantidos em situações pré-capitalistas, funcionando como reservas situadas territorialmente em regiões periféricas e suscetíveis de aplicação a baixos custos (“lucrativa”) do capital excedente. Ele caracteriza esse processo como “acumulação por espoliação”, onde se reproduzem as práticas da acumulação originária descrita por Marx. Se apropriando da análise de Arendt acerca do imperialismo, Harvey argumenta que (2004, p. 119):
Os processos que Marx, seguindo Adam Smith, chamou de acumulação “primitiva” ou “original” constituem, ao ver de Arendt, uma importante e contínua força na geografia histórica da acumulação do capital por meio do imperialismo. Tal como no caso da oferta de trabalho, o capitalismo sempre precisa de um fundo de ativos fora de si mesmo para enfrentar e contornar pressões de sobreacumulação. Se esses ativos, como a terra nua ou novas fontes de matérias-primas, não estiverem à mão, o capitalismo tem de produzi-los de alguma maneira.
Vimos que o imperialismo, tanto para Lenin quanto para Luxemburgo (conservando-se as diferenças entre suas posições), era a forma como o capitalismo mantinha o processo de acumulação de capital em andamento, fazendo com que o Capital perpetuasse sua vida. Para David Harvey, a acumulação por espoliação desempenha um papel análogo, porém espaciotemporalmente diferente, uma vez que sua preponderância e formas de realização varia histórica e geograficamente. Portanto, para garantir que a reprodução ampliada do capital continue, ou seja, para fazer perseverar a exploração de mais-valia da classe operária, o modo de produção capitalista necessita realizar “a apropriação e a cooptação de realizações culturais e sociais preexistentes [ao capitalismo], bem como o confronto e a supressão” (HARVEY, 2004, p. 122). Por se tratar de um processo inerente ao capitalismo (e não apenas um momento de sua gênese), Harvey preferiu chamar essas práticas de “espoliação”.
Diferente da análise de Rosa acerca da capitalização da mais-valia em regiões pré-capitalistas que tendiam a se esgotar cada vez que esse processo se efetuasse, na análise de Harvey se destaca que o próprio regime de acumulação capitalista pode criar suas “formas exteriores”. Neste sentido, “poderíamos dizer que o capitalismo cria, necessariamente e sempre, seu próprio ‘outro’” (HARVEY, 2004, p. 118).
Em nossa interpretação, a análise de Harvey nos permite assumir que as oscilações entre privatizações e nacionalizações são a unidade contraditória de um mesmo processo. Por exemplo: em 2006, Evo Morales estatizava as jazidas de gás, expulsando a Petrobras, mas, depois de sete anos, a empresa brasileira volta para a região após vencer “uma licitação para explorar um campo de produção de gás na Bolívia”.
Harvey também considera como imanente ao método de acumulação por espoliação a criação de um “exército industrial de reserva” nos termos de Marx:
A acumulação do capital, na ausência de fortes correntes de mudança tecnológica poupadora de trabalho, requer o aumento da força de trabalho, que pode acontecer de várias maneiras. O aumento da população é importante (e a maioria dos analistas esquece convenientemente os cuidados que o próprio Marx tomou quanto a isso). O capital também pode se apropriar de “reservas latentes” de um campesinato ou, por extensão, mobilizar mão-de-obra barata de colônias e outros ambientes externos. Se isso não der certo, o capitalismo pode usar seus poderes de mudança tecnológica e investimento para induzir ao desemprego (dispensas), criando assim, diretamente, um exército industrial de reserva de trabalhadores desempregados. Esse desemprego tende a exercer uma pressão de baixa sobre as taxas de salário e abrir assim novas oportunidades de emprego lucrativo do capital (HARVEY, 2004, p. 118).
Na análise de Prabhat Patnaik acerca do “valor do dinheiro”, também se destaca a necessidade de “ambientes ‘pré-capitalistas’” para a formação de um “segundo exército industrial de reserva”:
Por outras palavras, o que logicamente se exige é a existência de mercados pré-capitalistas em que se possa intrometer e não uma real intromissão significativa nesses mercados. Em resumo, constituem “mercados de reserva” a par do exército de reserva da força de trabalho. E assim é porque os bens do sector capitalista podem sempre desalojar a produção local na economia pré-capitalista, provocando nela a desindustrialização e o desemprego. Essa deslocação periódica deixa atrás de si uma massa empobrecida na economia pré-capitalista, que constitui para o sector capitalista um segundo exército de reserva, situado à distância, para além do que existe dentro do próprio sector capitalista. Esse exército de reserva situado à distância garante que o custo hora do trabalho dos trabalhadores situados no meio desse exército de reserva só varie lentamente com o tempo (PATNAIK, 2013, n.p.).
Podemos identificar, neste último autor, que se trata do método da acumulação por espoliação descrito por Harvey. No entanto, o que o estudo de Patnaik coloca é que: a estabilidade do sistema monetário internacional precisa ser ditada pela potência que está na hegemonia imperialista em determinado momento da história. Contemporaneamente, essa “potência imperialista” é os EUA. Seu argumento principal reside na questão de que o funcionamento do dólar como moeda internacional está articulado com o controle do preço do petróleo, dado que a economia estadunidense depende da importação de petróleo para controlar a inflação, ou seja, garantir a estabilidade do preço da força de trabalho (salário):
um padrão puro do dólar só pode constituir o sistema monetário internacional enquanto os Estados Unidos puderem estabelecer a hegemonia global exigida para instilar a confiança entre os detentores de riqueza do mundo capitalista de que a sua divisa é “tão boa como o ouro”. No entanto, uma pré-condição para isso é que o valor da sua força de trabalho, em termos da sua divisa, tem que ser relativamente estável (o que exclui uma inflação significativa, quanto mais uma inflação acelerada no seu próprio território); e, relacionado com isso, o valor das importações cruciais que entram no custo de salários e no custo dos materiais, também tem que ser relativamente estável. Com efeito, enquanto esta última condição se cumprir e as reservas de mão-de-obra internas forem suficientemente grandes para impedir qualquer aumento autónomo de salários, a inflação pode ser excluída como fonte de desestabilização do papel da sua divisa como meio estável de detenção de riqueza. Como a contribuição mais significativa é a importação do petróleo, um padrão dólar pode funcionar enquanto o preço em dólares do petróleo for relativamente estável. Portanto, o que parece à primeira vista ser um padrão dólar puro, se olharmos mais de perto tem que ser um padrão petro-dólar. O sistema monetário pós Bretton Woods pode ser caracterizado não como um padrão dólar, mas mais rigorosamente como um padrão petro-dólar. Segundo todas as aparências, o mundo pode ter acabado com o dinheiro mercadoria com a separação do dólar do ouro. Mas o ponto crucial da argumentação deste livro é que nunca pode ser assim. O valor do dinheiro, mesmo o dinheiro papel ou crédito, deriva da sua ligação ao mundo das mercadorias (PATNAIK, 2013, n.p., grifos nossos).
Neste sentido, para resolver o problema das crises de sobreacumulação na era das finanças mundializadas (controladas por instituições como o Banco Mundial e o FMI), o capitalismo impõem a necessidade do controle imperialista que os EUA faz dos países ricos em reservas petrolíferas, assegurando, desta forma, a estabilidade monetária do sistema econômico como um todo. Isso está de acordo com o diagnóstico de Harvey de que:
se o capitalismo vem passando por uma dificuldade crônica de sobreacumulação desde 1973, então o projeto neoliberal de privatização de tudo faz muito sentido como forma de resolver o problema. Outro modo seria injetar matérias-primas baratas (como o petróleo) no sistema. Os custos de insumos seriam reduzidos e os lucros, por esse meio, aumentados. Como observou o magnata dos jornais Rupert Murdock, a solução de nossas atuais aflições econômicas é o petróleo a 20 dólares, e não a 30, o barril. Não admira que os jornais de Murdock tenham dado tão ávido apoio à guerra contra o Iraque (HARVEY, 2004, p. 124, grifos nossos).
11. Warenwelt contra Gemeinwesen:
Vimos como o mundo das mercadorias (Warenwelt) tanto mais se afirma quanto mais desagregar a comunidade entre pessoas coletivas (Gemeinwesen), produzindo-as como “indivíduos privados”, átomos isolados uns dos outros que partilham seu isolamento através do consumo mercantil de uns e outros. Será mediante a introdução do dinheiro em todas as esferas da vida social e, portanto, através da mercantilização do mundo que tal processo permanece se estendendo e se intensificando. Por enquanto o ar que respiramos ainda é um bem comum livremente disponível (em diferentes qualidades, devido à poluição atmosférica). No entanto, o próprio genoma humano e a água (em certos lugares) estão sendo mercantilizados. Acontece que o dinheiro não admite nenhuma comunidade existindo paralelamente e de forma autônoma, subsumindo real ou formalmente os outros modos de vida a serviço de sua reprodução e autovalorização na forma de capital.
Decidimos finalizar nossas considerações com a seguinte passagem dos Grundrisse que sintetiza muito bem o que vimos (citaremos todo o parágrafo):
O pressuposto elementar da sociedade burguesa é que o trabalho produz imediatamente valor de troca, por conseguinte, dinheiro; e então, igualmente, que o dinheiro compra imediatamente o trabalho e, por isso, o trabalhador tão somente na medida em que ele próprio aliena sua atividade na troca. Portanto, trabalho assalariado, por um lado, e capital, por outro, são apenas outras formas do valor de troca desenvolvido e do dinheiro enquanto sua encarnação. Com isso, o dinheiro é, ao mesmo tempo, imediatamente a comunidade real, uma vez que é a substância universal da existência para todos e o produto coletivo de todos. No entanto, a comunidade no dinheiro, como já vimos, é pura abstração, pura coisa exterior e contingente para o singular e, simultaneamente, puro meio de sua satisfação como singular isolado. A comunidade antiga pressupõe uma relação completamente distinta do indivíduo para si. Portanto, o desenvolvimento do dinheiro em sua terceira determinação rompe tal relação. Toda produção é uma objetivação do indivíduo. Porém, no dinheiro (valor de troca), a objetivação do indivíduo não é a sua objetivação em sua determinabilidade natural, mas sua objetivação como posto em uma determinação (relação) social que simultaneamente lhe é exterior (MARX, 2011, p. 251, grifos originais, sublinhados nossos).
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