sábado, 13 de março de 2021

Poder contestado: sociedades da Idade do Ferro contra o Estado? (2018) – Manuel Fernández-Götz

Reconstrução da cidade celta de Heuneburg (de 600 aC). Por: Kenny Arne Lang Antonsen.

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Traduzimos um texto do arqueólogo Manuel Fernández-Götz sobre as “sociedades da Idade do Ferro” da Europa. Consideramos que o autor trás contribuições muito pertinentes para uma compreensão mais ampla do movimento histórico (sem o reducionismo evolucionista e teleológico). Este texto é um capítulo da obra “Rebelião e desigualdade em arqueologia” (disponível em: link), que possui muitas discussões interessantes como essa. Nessa contribuição de Fernández-Götz, podemos verificar a disputa por projetos heterogêneos de modos de vida, onde a cooperação e a igualdade não aparecem apenas como “vestígios” das chamadas “sociedades de caça e coleta” como querem fazer crer certos ideólogos.

  • Referência: FERNANDEZ-GÖTZ, Manuel. (2018) Contested power: Iron age societies against the state? In: Hansen, S & Müller, J (Eds.). Rebellion and Inequality in Archaeology (11 ed., Vol. 308, pp. 271-287). Dr. Rudolf Habelt GmbH.

Observação: as notas estão ao final do texto e estão indicadas entre colchetes (antes das referências). Traduzimos o que conseguimos das figuras que foram anexadas nessa publicação. Recortamos o texto da obra da qual foi extraído em um pdf individual que pode ser encontrado nesse link.

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Epígrafe: “A realidade social é uma realidade contraditória. Isso decorre da concepção da estrutura social como uma unidade de opostos e das diferenças de interesses entre agentes individuais e grupos. A contradição e o conflito de interesses fornecem uma base inicial para uma compreensão da mudança, dominação e legitimação da ordem social” (Tilley, 1982, p. 37).

Resumo: Ao longo da antiga Eurásia, são vários os casos em que não é possível falar de uma evolução linear, contínua e gradual ao longo da proto-história de formas mais descentralizadas e igualitárias para outras mais centralizadas e hierárquicas. Embora em uma perspectiva de longo prazo possa ser observada uma tendência à crescente complexidade socioeconômica, este não foi um processo teleológico nem linear. Em vez disso, incluiu ciclos de regressão, crise, hierarquização reduzida e diminuição demográfica. Além disso, deve-se presumir que as mudanças nem sempre ocorreram de forma pacífica e que conflitos internos ou externos frequentemente estavam envolvidos. O objetivo desta contribuição é abordar o tema do conflito da Idade do Ferro, olhando para os ciclos de mudança de centralização e descentralização que ocorreram durante o primeiro milênio aC, e que estavam pelo menos parcialmente ligados a tensões dialéticas dentro e entre as comunidades.

Ascensão e queda do início da Idade do Ferro do Fürstensitze:


A gênese de grandes lugares centrais fortificados é um dos fenômenos mais importantes na pré-história europeia tardia (Fernández-Götz/Krausse, 2016; Fernández-Götz et al., 2014; Sievers/Schönfelder, 2012). Neste artigo, abordarei o tema do conflito e, em particular, das tensões internas, do ponto de vista dos processos de centralização e urbanização da Idade do Ferro. Um dos avanços mais importantes feitos pela pesquisa nas últimas décadas foi o reconhecimento de vários ciclos dinâmicos e mutantes de centralização e descentralização durante o primeiro milênio aC, de modo que um modelo de evolução unilinear não pode ser sustentado (Collis, 2014; Fernández-Götz, 2014a; Fernández-Götz, 2017; Krausse, 2008a; Salač, 2012). Esses processos de mudança estavam pelo menos parcialmente ligados a tensões dialéticas dentro e entre as comunidades.


Entre os séculos 7 e 5 aC, toda uma série de centros de poder, na maioria dos casos descritos com o termo alemão Fürstensitze (“sítios principescos”), se desenvolveram na região ao norte dos Alpes. Esses sítios, entre os quais se destacam Heuneburg, Mont Lassois, Bourges, Hohenasperg, Ipf, Glauberg ou Závist, se estendem por uma área da França Central no oeste até a Boêmia no leste (Krausse, 2008b; 2010) (Figura 1). Eles testemunham um processo de diferenciação e hierarquização no padrão de povoamento que foi ao mesmo tempo uma expressão e um catalisador para o aumento da desigualdade social (Brun/Chaume, 2013; Fernández-Götz/Krausse, 2013). Para citar apenas dois dos exemplos mais espetaculares, pesquisas recentes mostraram que todo o assentamento de Heuneburg (cidadela, cidade baixa e assentamento externo) abrangia uma área de 100 hectares durante a fase da parede de tijolos, com uma população estimada em cerca de 5.000 habitantes (Fernández-Götz, 2014b; Krausse/Fernández-Götz, 2012; Kurz, 2010), e no caso de Bourges, todo o complexo cobria várias centenas de hectares no século 5 aC (Augier et al., 2012; Milcent, 2007; 2014) (Figura 2). No que diz respeito às “tipologias sociais” que foram definidas por autores como Allen W. Johnson e Timothy Earle (2000), as comunidades que foram estabelecidas em torno de centros de poder como Heuneburg, Hohenasperg, Mont Lassois ou Bourges podem ser melhores colocado na transição de chefias complexas para os primeiros estados (Fernández-Götz/Krausse, 2013; Ralston, 2010).


Tradução das legendas da Figura 2 (na ordem da esquerda pra direita, de cima pra baixo):
– Acrópole/assentamento principesco;
– Assentamento com atividades artesanais;
– Área de depósito ritual;
– Vala defensiva;
– Caminho possível;
– Área com inumações ou necrópole;
– Assentamento;
– Assentamento com importações mediterrâneas;
– Poço de armazenamento;
– Achado extraviado;
– Inumação fora da necrópole;
– Enterro rico;
– Grande carrinho de mão;

Os assentamentos mencionados acima podem ter constituído os pontos focais de diferentes entidades que podem ter mantido relações do tipo proposto no modelo de interação de política de pares (Renfrew/Cherry, 1986), como também sugerido por sua distribuição espacial. Fortificações monumentais, arquitetura profana, sagrada e funerária, bairros artesanais e importações do Mediterrâneo, todos testemunham as múltiplas funções de tais locais. Seu significado fortificado e carregado de símbolos se manifesta nas defesas imponentes com margens, valas, muros e portões encontrados, por exemplo, no Heuneburg e no Monte Lassois. A identificação de cemitérios com sepulturas de elite nos arredores dos lugares centrais (por exemplo, Hohmichele, Giessübel-Talhau, Hochdorf, Kleinaspergle, SainteColombe ou Vix) sugere que eles assumiram funções políticas e administrativas. Além disso, tanto o santuário monumental descoberto em Závist quanto uma série de estruturas relacionadas ao culto aos ancestrais, como a garça e a procissão de 350 metros no Glauberg ou o recinto de Vix “Les Herbues” no Mont Lassois, são evidências de religiosos e aspectos de culto. Por fim, as funções artesanais e técnicas, bem como as econômicas e mercantis, se refletem na presença de oficinas de artesãos especializados ou mesmo de bairros inteiros deles, como em Bourges, e nas mercadorias importadas.


No entanto, essa primeira onda de centralização e urbanização foi seguida por uma fase de descentralização que pode ser vista como um exemplo clássico do caráter não linear da história (Diamond, 2011; Friedman, 1982; Friedman/Rowlands, 1977). Como em muitas outras partes da antiga Eurásia (ver, por exemplo, Müller, 2016), não é possível falar de uma evolução linear, contínua e gradual ao longo da pré-história tardia de formas mais descentralizadas e igualitárias para outras mais centralizadas e hierárquico, ou seja, “das aldeias às cidades” ou “dos chefes aos estados”. As razões para o fim aparentemente abrupto do Fürstensitze ainda precisam ser compreendidas. No entanto, se olharmos para o desenvolvimento desses lugares centrais entre a Borgonha e Württemberg como um todo, podemos pelo menos reconhecer um padrão. O Heuneburg foi abandonado em meados do século 5 aC, mais ou menos simultaneamente com centros de poder comparáveis, como Mont Lassois na Borgonha. Ao mesmo tempo, vários locais centrais tornaram-se mais significativos em uma área mais ao norte, por exemplo, Hohenasperg, Bad Dürkheim ou Glauberg. Esses centros de poder eram um pouco mais jovens, estavam localizados mais ao norte e puderam manter seu significado por mais tempo, ou seja, até o final do século V aC. Mas eles também foram abandonados o mais tardar no início do século IV AC (Krausse, 2008a). As causas desses deslocamentos estruturais e mudanças na paisagem do poder ainda não são claras, mas pode-se supor que as transformações nem sempre ocorreram de forma pacífica (Pauli, 1985). Por exemplo, no Mont Lassois, as cabeças das duas estátuas humanas localizadas na entrada do recinto de Vix “Les Herbues” foram quebradas, aparentemente no final do período de Hallstatt como resultado da violenta destruição do santuário (Chaume et al., 2012; Chaume/Reinhard, 2007) (Figura 3). Uma situação amplamente semelhante também pode ser vista em Glauberg, onde três das quatro esculturas de pedra antropomórficas foram destruídas intencionalmente (Baitinger/Pinsker, 2002) (Figura 4). Essa destruição consciente de imagens ancestrais, provavelmente retratando ancestrais heroizados ou heróis fundadores, tem sido interpretada por alguns autores como uma reação contra as elites, o que pode ser resumido com a expressão “société contre les princes” usada por Jean-Paul Demoule (1999a) Fenômenos semelhantes aparecem na mesma época em outras partes da Europa da Idade do Ferro. O sudeste da Península Ibérica é um bom exemplo, pois várias esculturas antropomórficas pertencentes à cultura ibérica foram intencionalmente mutiladas, provavelmente em resultado de profundas transformações sociais como no caso das imagens de Porcuna (Chapa Brunet, 1993; Chapa Brunet/Zofío Fernández, 2005).


Junto com a destruição intencional de estátuas de pedra, outro fenômeno interessante é observado. Vários centros de poder da Europa Central dos séculos 6 e 5 aC foram quase completamente queimados por incêndios. Embora explicações alternativas, como incêndios acidentais causados por raios, não possam ser descartadas, pelo menos alguns desses eventos devem estar relacionados à violência (de dentro ou de fora). Um dos melhores exemplos é o Heuneburg (Fernández-Götz, 2014b; Krausse et al., 2016; consulte também Müller Scheessel neste volume). Um hiato significativo na história deste importante assentamento começou depois de meados do século 6 aC, quando um incêndio devastador ocorreu. O fato de que após este evento traumático a fortificação de tijolos de barro foi substituída por uma construção de madeira e terra mais tradicional, o layout do interior do planalto do topo da colina foi radicalmente alterado e a maior parte do assentamento externo foi abandonado sugere que um conflito violento ocorrendo em cerca de 540/530 aC foi a causa mais provável (Figura 5). Possivelmente, isso assumiu a forma de um ataque por um inimigo externo ou conflito interno entre facções rivais. Como a parede de tijolos nunca foi reconstruída após o incêndio, pode-se sugerir que houve uma reação genuinamente iconoclasta contra a exótica técnica de construção de inspiração mediterrânea (Arnold, 2010). Em qualquer caso, o fato de que a reconstrução tanto da fortificação quanto das estruturas de assentamento foi realizada de acordo com um padrão completamente diferente é sugestivo de profundas mudanças ideológicas. Aproximadamente três gerações depois, no final do Período 1 por volta de 450 aC, o destino do Heuneburg foi selado por um incêndio catastrófico que destruiu quase completamente a fortificação e os edifícios dentro da acrópole (Gersbach, 1996). O fato de o nível de destruição estar relativamente cheio de achados milita contra a ideia de que o abandono do local foi planejado.


Independentemente das interpretações, logo após 400 aC quase todos os primeiros centros de poder chegaram ao fim (Krausse, 2010). É provável que esta mudança esteja relacionada com os processos sociais que estiveram envolvidos na migração de grupos “celtas” para a Itália e posteriormente para os Bálcãs, que são mencionados em fontes históricas. Os fatores responsáveis pelo declínio do Fürstensitze provavelmente operaram em vários níveis, de modo que as explicações monocausais são insuficientes. Entre as várias interpretações, há indícios de que um dos catalisadores foi a mudança climática: análises de núcleos da calota glacial da Groenlândia indicam que já na primeira metade do século V aC as temperaturas caíram em todo o hemisfério norte, seguido por um rápido declínio climático por volta de 400 AC (Maise, 1998; Sirocko, 2009). No nível da macro-perspectiva, as principais fases climáticas do primeiro milênio aC correspondem, de fato, às etapas mais importantes dos processos de centralização e descentralização que ocorreram ao norte dos Alpes. Os processos que levaram ao estabelecimento do Tardio Hallstatt Fürstensitze ou do Tardio La Tène oppida coincidem com fases climáticas favoráveis, enquanto as migrações “celtas” do século IV aC ocorreram durante uma fase mais fria (Brun/Ruby, 2008; Fernández-Götz, 2014a) (Figura 6). No entanto, se olharmos a situação em detalhes, numerosas nuances e exceções devem ser levadas em consideração. Por exemplo, os indicadores ambientais não explicam realmente por que alguns Fürstensitze, como o Heuneburg ou Mont Lassois, foram abandonados em meados do século V aC, enquanto outros, como Breisacher Münsterberg ou Hohenasperg, continuaram a funcionar por algumas décadas durante a segunda metade do mesmo século.


Migrações como reação às crescentes desigualdades?


Dois estudos de caso interessantes para a questão das mudanças culturais, climáticas e dos movimentos populacionais são a cultura Aisne-Marne do Champagne francês e a cultura Hunsrück-Eifel da área do Médio Reno-Mosela. Ambas as regiões testemunharam um processo de crescente hierarquização social durante o século V aC, o que levou à construção de alguns dos túmulos mais notáveis do início do período La Tène e, no caso da cultura Hunsrück-Eifel, de uma série de importantes centros fortificados no topo das colinas (ver resumo em Fernández-Götz, 2014a com leituras adicionais).

Com mais de 200 exemplos correspondentes ao período inicial de La Tène, Champagne tem a maior concentração de sepulturas de carruagem de todo o mundo “celta” (Demoule, 1999b; Diepeveen-Jansen, 2001), incluindo alguns sepultamentos notáveis como Somme-Tourbe “La Gorge Meillet”, Somme-Bionne, “L'Homme Mort” ou o túmulo “principesco” recém-descoberto em Lavau. No entanto, por volta de 400 aC ou logo depois disso, um acentuado declínio demográfico ocorreu em Champagne, o que sugere um êxodo maciço da população local. As exaustivas tabelas publicadas por Jean-Jacques Charpy (2009) não deixam dúvidas sobre o declínio da população: excluindo-se os casos duvidosos, são conhecidos 162 depósitos que foram usados durante a segunda metade do século V aC, contra apenas 36 que contêm evidências relativas as primeiras décadas do século 4 aC. Essas mudanças geralmente têm sido associadas às chamadas “migrações celtas” descritas nas fontes clássicas (Kaenel, 2007; Tomaschitz, 2002) e, acima de tudo, ao movimento das populações transalpinas para a Península Itálica (Schönfelder, 2010; Vitali, 2007). Como Thomas L. Evans (2004, p. 227) bem resumiu: “o despovoamento da região pode estar diretamente ligado às migrações Galli/Keltoi discutidas nas histórias clássicas. A associação temporal é clara, estilos de artefatos semelhantes aparecem na península italiana quase ao mesmo tempo […], e é óbvio que as populações descritas pelos relatos clássicos vieram de algum lugar. A associação entre os dois eventos pode não ser absoluta, mas a correlação entre os eventos cria uma hipótese razoável”. O deslocamento de uma parte considerável da população do Champagne para novas terras pareceria assim certo: raramente na proto-história encontramos uma correlação tão clara entre as migrações mencionadas nas fontes escritas e os dados arqueológicos. No entanto, deve ser mencionado que os territórios de Aisne-Marne nunca foram completamente “desertos”, e alguma continuidade pode ser vista ocasionalmente nos cemitérios de áreas específicas, como Beine-Suippes.


Passando para a região de Hunsrück-Eifel, o processo de hierarquização e centralização chegou ao fim no decorrer do século IV aC. Embora seja ainda muito difícil estabelecer uma cronologia precisa para o ponto de inflexão, o número total de sítios documentados pertencentes a La Tène B2 e La Tène C é certamente muito menor do que nas fases imediatamente anteriores, o que se reflete no abandono de numerosos cemitérios e do declínio dos grandes centros no topo das colinas (Fernández-Götz, 2014a; Krausse, 2006; Krausse/Nakoinz, 2000) (Figura 7). O declínio da ocupação é atestado não só pelo registro arqueológico, mas também pelos dados polínicos do Eifel Maare, que são de grande importância para a explicação do fenômeno. Para o período de Middle La Tène, os diagramas de pólen testemunham uma redução incontestável na intensidade da agricultura e um aumento do pólen arbóreo (Dörfler et al. 2000). No entanto, como no caso do Champagne, nunca houve um vácuo demográfico completo na área de Hunsrück-Eifel, mas apenas uma diminuição demográfica. Pesquisas recentes no Ulmener Maar sugerem o mesmo processo – apenas parte da população abandonou a região. Assim, embora a emigração de alguns dos habitantes deva ser reconhecida, é igualmente verdade que foi um êxodo parcial, não total. Isso é consistente com as informações disponíveis sobre as migrações durante a Idade do Ferro, uma vez que na maioria dos casos conhecidos por nós (e com algumas exceções, como o dos Helvécios) apenas uma parte das comunidades saiu, enquanto o resto permaneceu em seus territórios originais [1] (Kaenel, 2007; Kristiansen, 1998).

Em relação ao tema aqui discutido, deve-se destacar que o clima piorou por volta de 400 aC; isso estava ligado a uma redução da atividade solar e parece ter ocorrido de forma relativamente abrupta (Maise 1998; Pare et al. 2009; Sirocko 2009). A correlação desse fenômeno com os movimentos dos povos gauleses que saquearam Roma em 387 aC é tão clara que não pode ser coincidência. Claro, este quadro geral aparentemente claro torna-se mais complicado quando entramos em detalhes e tentamos analisar a situação em regiões específicas. Por exemplo, enquanto o declínio da população na região de Champagne no início do século 4 aC parece coincidir bastante com as mudanças climáticas, no caso da área de Hunsrück-Eifel a correlação entre mudança cultural e clima não parece ter sido tão direto. Na região do Médio Reno-Mosela, a redução demográfica ocorreu no decorrer do século IV aC, e não no início desse século. Assim, o agravamento do clima não pode ser usado como uma explicação monocausal. De qualquer forma, o clima frio teria um efeito mais pronunciado nas zonas altas dos maciços de Hunsrück e Eifel, em geral já menos aptas para a agricultura, o que se coaduna bastante com o declínio da população sugerido pelos indicadores arqueológicos para essas áreas (Fernández-Götz, 2014a; Hornung, 2008; Krausse, 2006).

Tendo feito essas qualificações, devemos dar mais um passo e olhar para a questão das migrações de uma perspectiva um pouco mais ampla que leva em consideração tanto os possíveis motivos desencadeantes específicos, quanto os fatores culturais e ideológicos de um tipo mais estrutural que explicam por que uma determinada comunidade reage de uma maneira e não de outra. Em uma boa proporção dos casos, a emigração foi apenas uma das várias opções possíveis (Anthony, 1990; Burmeister 2000; Prien, 2005). Na verdade, as respostas das sociedades às mudanças climáticas variaram consideravelmente, então não podemos falar sobre determinismo ambiental. Entre os motivos de natureza sócio-ideológica que podem ter induzido ou contribuído para as migrações, pelo menos em alguns casos específicos, gostaria de chamar a atenção, a título de hipótese complementar, para uma ideia já levantada por Demoule (2006): o possível papel dos movimentos populacionais como mecanismos reguladores das relações de poder, no sentido de que contribuiriam para a redução dos níveis de desigualdade social [2]. Tanto na região de Champagne quanto nas áreas de Hunsrück-Eifel, o declínio demográfico causado pelo êxodo de alguns de seus habitantes reverteu a tendência de maior hierarquização ocorrida no período anterior. A cisão de parte de um grupo é uma solução frequentemente utilizada para contrariar o excessivo entrincheiramento de poderes coercitivos, pelo que esta possibilidade não deve surpreender nos casos acima mencionados.

Como vários antropólogos e historiadores afirmaram, o desenvolvimento de formações de estado não é inexorável e não deve ser visto como o resultado “lógico”, “inevitável” muito menos “desejável” para o qual as sociedades inexoravelmente se movem (Mann, 1986; Scott, 2009; Testart, 2005) Ao contrário, ao longo da história, inúmeras comunidades em todo o mundo empregaram várias estratégias para contrariar o desenvolvimento das formas políticas estatais, o que se reflete bem na expressão “sociedades contra o Estado” usada pelo antropólogo francês Pierre Clastres (1989; para uma abordagem da Idade do Ferro na Europa, ver Demoule 1999a; González-García et al. 2011). A separação de parte de um grupo é um mecanismo frequentemente utilizado neste processo e, no caso de algumas sociedades da Idade do Ferro da Europa temperada, também poderia ter servido como uma reação às crescentes desigualdades sociais do Hallstatt tardio e os primeiros períodos de La Tène.


Em linha com os dados arqueológicos e literários disponíveis, parece que para as sociedades temperadas europeias da Idade do Ferro, ou uma parte considerável delas em algum momento de sua história, a migração atuou como um mecanismo regulador fundamental que proporcionou uma saída para tensões internas, pressões externas, etc. Seguindo Patrice Brun (1995), tradicionalmente as duas soluções mais frequentemente utilizadas para reduzir as tensões que ameaçavam o equilíbrio das comunidades foram, por um lado, a cisão de parte do grupo (exemplos históricos incluem o início da Colonização grega ou assentamento Viking da Groenlândia) e, por outro lado, o reforço do poder político por meio do estabelecimento de uma hierarquia. Tudo sugere que, em geral, as sociedades da Idade do Ferro favoreciam a primeira opção em relação à segunda. Para muitos grupos proto-históricos, a emigração deve ter sido uma opção sempre presente, sendo um componente integrante da vida social (Figura 8).

É verdade que levantar estas questões pode ser um exercício algo especulativo, mas, ao mesmo tempo, é de grande importância para tentar compreender melhor a pré-história tardia europeia, uma vez que está relacionada com questões que são essenciais do ponto de vista das grandes narrativas. Como afirmou Kristian Kristiansen (1998, p. 13): “Uma vez que as chamadas sociedades bárbaras persistiram por milênios em contato com sociedades ou estados mais estratificados, isso levanta uma série de questões quanto às causas de tal aparente estabilidade. Foi imposto pelo domínio dos centros como uma forma de subdesenvolvimento ou é a situação oposta – que as sociedades bárbaras ou tribais exibem uma resistência inerente à hierarquia, sendo a formação do Estado um desenvolvimento anormal?”.

Embora a realidade não tenha que ser preta ou branca e a resistência à hierarquia não deve ser confundida com “estabilidade”, a segunda opção parece ser mais plausível do que a primeira. As primeiras formações de estado já existiam antes do período final de La Tène – há ampla evidência de seu desenvolvimento, pelo menos embrionário, em Hallstatt-D/La Tène-A em torno de assentamentos como Heuneburg e Bourges (FernándezGötz/Krausse, 2013; Krausse et al., 2016; Ralston, 2010) – mas não conseguiram consolidar-se e foram seguidas de uma fase de descentralização com menor hierarquização social; curiosamente, essa tendência quase sempre esteve associada ao declínio demográfico. Isso indica que existiam correntes conflitantes dentro das sociedades, o que revela tensão entre tendências que favoreciam o aumento da desigualdade e outras que tendiam a limitá-la e enfatizar valores mais igualitários. Mais do que uma revolta de “massas camponesas oprimidas”, devemos ver isso como a formação de diferentes facções ou grupos de interesse, alguns liderados por membros da própria elite, que se baseariam em critérios diacronicamente e sincronicamente muito díspares e variáveis (idade grupos, laços de parentesco, líderes carismáticos que defendiam um retorno aos valores “tradicionais”, etc.). Do ponto de vista da arqueologia das identidades, essas dinâmicas estariam também ligadas a uma dialética entre processos que levaram ao estabelecimento de identidades mais individualizadas (membros da elite que se distanciam dos demais membros de sua comunidade) e correntes que tentaram manter identidades menos desigualitárias e, portanto, mais relacionais (Fernández-Götz, 2014a; Hernando, 2002; 2012).

Em termos gerais, podemos distinguir entre sociedades com “economias políticas” que desenvolvem desigualdades e hierarquias e outras em que predominam “economias morais” que enfatizam valores igualitários. Tanto as “economias políticas” quanto as “economias morais” devem ser entendidas em um sentido foucaultiano como “economias de poder”, isto é, conjuntos historicamente específicos de relações de poder (González-Ruibal, 2012). A principal diferença entre as economias política e moral é que a primeira fornece a base para a geração estrutural de desigualdades, enquanto a segunda adota mecanismos para impedir seu desenvolvimento. Se as economias políticas são baseadas em ligações entre a economia e o poder que permitem o desenvolvimento de diferenças sociais, incluindo práticas como relações com clientes, cobrança de tributos, adoração de ancestrais aristocráticos ou banquetes competitivos (Earle, 2002; Feinman/Nicholas, 2004), economias morais – sem necessariamente tendo que apoiar sistemas políticos radicalmente igualitários – colocam a ênfase em valores coletivos e isonomia, por exemplo, por meio de estratégias como a posse e exploração comunal da terra, ou assistência mútua e reciprocidade entre famílias (Clastres, 1989; Scott, 1977).


De uma perspectiva de longo prazo, podemos afirmar que não houve um desenvolvimento evolutivo contínuo em uma escala europeia de formas simples a mais complexas de assentamentos e organização sócio-política durante a Idade do Ferro, mas sim ciclos multifacetados, mutantes e dinâmicos de centralização e descentralização. A cronologia dos lugares centrais e dos túmulos suntuosos permite que se observe certo “decalage” no desenvolvimento dos processos de centralização e hierarquização, que se iniciaram primeiro no sul e centro da Itália, um pouco mais tarde no sul da França e, por volta de 600 aC, nas regiões imediatamente ao norte dos Alpes, da Borgonha a Württemberg. Esse fenômeno já havia atingido a área entre a Boêmia e o Champagne no século V aC (Figura 9). Mas, ao contrário do que costumava acontecer nas regiões mediterrâneas (Garcia, 2013), na Europa temperada as fases de centralização e de aumento da hierarquização social duraram pouco e foram seguidas por períodos de regressão em que estruturas mais descentralizadas e aparentemente menos desiguais ganharam ascendência. Assim, o nível de complexidade dos assentamentos urbanos e proto-urbanos, como Heuneburg, Mont Lassois e Bourges, não foi atingido novamente até que a oppida do período La Tène tardio apareceu vários séculos depois (Fernández-Götz et al., 2014).


Embora os contatos com o mundo mediterrâneo tenham obviamente exercido uma influência e não possam ser negados, também devem ser rejeitadas excessivas visões mediterrânicas-centradas, pois para compreender a mudança é necessário reconhecer o papel essencial da dinâmica interna das várias sociedades. Como foi mencionado acima, um dos aspectos mais interessantes decorrentes do uso de uma macroescala é a descoberta de que ao norte dos Alpes os estágios de centralização eram geralmente seguidos por outros de descentralização. Foi o que aconteceu na área de Fürstensitze e também um pouco mais tarde nas culturas Aisne-Marne e Hunsrück-Eifel (Figura 10). Neste último caso, pelo menos, a descentralização e a redução da hierarquização social andaram de mãos dadas com a emigração parcial da população, pelo que nos devemos interrogar se este fenômeno também ocorreu na área dos ‘locais principescos’ de Late Hallstatt. A resposta é que essa é uma possibilidade muito plausível, pelo menos em alguns casos, embora possam não ter sido necessariamente migrações de longa distância. Convém lembrar que conhecemos as migrações dos séculos IV e III aC e dos Cimbri e Teutões no final do século II aC, pois incidiram diretamente no mundo grego e romano, cujos escritores deixaram um registro escrito. Mas não sabemos, com certeza, se movimentos semelhantes de população também foram comuns durante os séculos anteriores ou em áreas para as quais não temos registros escritos.

A oppida da idade do ferro tardia como tecnologia de poder:


Na área imediatamente ao norte dos Alpes, uma nova tendência de centralização pode ser observada no final dos séculos III e II aC, levando ao surgimento das grandes aglomerações abertas e da oppida fortificada do período La Tène tardio (Collis, 2014; Fichtl, 2012; 2013) (Figura 11). Em termos gerais, os principais processos que teriam motivado esta nova tendência de centralização foram os seguintes: 1) A intensificação das atividades produtivas e comerciais; 2) Crescimento demográfico e ressurgimento da hierarquização social; 3) Um aumento na ‘densidade social’, ou seja, a frequência das comunicações e interações entre indivíduos e grupos; e 4) O estabelecimento em larga escala e/ou reforço da integração político-religiosa e estruturação do território. Evidentemente, nem todos esses elementos estiveram necessariamente presentes em todos os casos ou na mesma proporção. O leque de situações foi obviamente muito diverso, embora exista um denominador comum, que se destaca nas diferenças. Se adotarmos uma perspectiva foucaultiana (Foucault, 1980), a oppida representou uma nova tecnologia de poder, que possibilitou a articulação de uma ideologia mais hierárquica e centralizadora. Deste ponto de vista, e em consonância com o conceito de materialidade, o seu aparecimento também pode ser visto como uma forma de reforço da coesão social e do controlo político: os oppida são a expressão de sociedades mais desiguais e, ao mesmo tempo, contribuem para a construção dessas desigualdades (Brun, 2001; Fernández-Götz, 2014c). Em um nível mais geral, os processos de centralização pré-histórica tardia – dos Mega-sítios Trypillia da Europa Oriental do 4º milênio aC até Fürstensitze e oppida da Idade do Ferro – também podem ser interpretados como gatilhos de controle social (Müller, 2016) e, portanto, são diretamente relacionadas às relações de poder, crescentes desigualdades, tensões sociais e controle.


A estrutura interna da oppida final da Idade do Ferro geralmente indica planejamento prévio e uma manifestação dos princípios de ordem social que governam as comunidades. Na maioria dos casos, sua fundação foi uma resposta deliberada a uma decisão política, que deve ter sido iniciada pela aristocracia na Gália (Buchsenschutz/Ralston, 2012). Citando algumas palavras de Vladimir Salač (2012, 338) como minhas: “Uma vez que motivos econômicos não são necessariamente a razão primária para o surgimento de oppida, é mais provável que a mudança nos laços de poder e, portanto, as necessidades da elite ou de povos inteiros de manifestar seu poder, seja a causa. Eles também podem ser a manifestação de crescentes tensões sociais, conflitos entre elites, povos, etc.”.

Uma pergunta final que merece investigação se concentra nas condições que levaram ao surgimento de entidades estatais na Gália após o estágio de descentralização que caracterizou o período das “migrações celtas”. Embora nunca possa ter havido um único motivo e cada caso específico necessite de numerosas qualificações, de uma perspectiva macro pode-se arriscar que com a conquista de Cisalpina e posteriormente da Gália Transalpina por Roma foi mais difícil exportar conflitos internos usando a fórmula da fissão. Além disso, em algumas áreas provavelmente houve movimentos de “refluxo”, especialmente de mercenários, que voltaram não só trazendo novas experiências, mas também tensões sociais. Uma combinação de fatores – incluindo o crescimento demográfico progressivo, um aumento da demanda no mundo mediterrâneo e a introdução de novas técnicas que permitiram o aumento da produção agrícola e industrial – teria levado a um aumento da “densidade social” e a uma hierarquização crescente, o que já não podia ser reduzido tão facilmente recorrendo à migração como em épocas anteriores. O resultado foi o desenvolvimento de sociedades com tendências não igualitárias mais elevadas e a integração das comunidades em maior escala, um processo que, em alguns casos, levou à constituição dos primeiros estados (Brun, 2001; Brun/Ruby, 2008; FernándezGötz, 2014a).

Conclusão: conflito e resistência na idade do ferro europeia


Numa perspetiva de longo prazo, verifica-se uma tendência para o desenvolvimento de estruturas sociais mais hierarquizadas e centralizadas, mas este não foi um processo teleológico nem linear (Fernández-Götz, 2014a; Krausse, 2008a; Salač, 2012). Em vez disso, o cronograma discutido incluiu ciclos de regressão, crise, tempos de hierarquização reduzida e diminuição demográfica. Além disso, deve-se presumir que as mudanças nem sempre ocorreram de forma pacífica e que o conflito – interno ou externo – estava frequentemente envolvido. É claro que essas dinâmicas não afetaram necessariamente todas as sociedades da Idade do Ferro, nem o fizeram com a mesma intensidade em todas aquelas onde estavam presentes. Mas embora eles não expliquem, por si próprios, toda a extensão da “história da pré-história posterior”, eles constituem uma parte importante da história. Por esse motivo, independentemente de até que ponto os argumentos expostos acima possam precisar ser qualificados ao analisar os detalhes, vale a pena tirar algumas conclusões gerais:

  1. Os processos de hierarquização e centralização podem ser revertidos, quer por fatores externos, como as alterações climáticas (Maise, 1998), quer por causas internas de natureza sócio-ideológica (Clastres, 1989), ou, mais frequentemente, por uma combinação dos dois.
  2. O desenvolvimento de formas de organização estatal não constitui necessariamente o fim “desejável” ou “óbvio” para o qual as sociedades se desenvolvem (Clastres, 1989; Testart, 2005).
  3. As migrações – em suas múltiplas modalidades – desempenharam um papel importante nas mudanças culturais que ocorreram durante a Idade do Ferro na Europa temperada (Kristiansen, 1998; Tomaschitz, 2002).

Como observação final, podemos subscrever as seguintes reflexões de Kristiansen (1998, 417): “Temos que abandonar o mito liberal modernista de que a mudança e o progresso foram sempre realizados de forma pacífica e livre, e que o conflito, a ruptura e a migração não ocorreu na Pré-história”.

Notas:


[1] – Algo que já é visto no relato de Lívio (V, 33-35) sobre a chegada dos povos “celtas” na Itália: “[Bellovesus] Levando consigo o excedente populacional de suas tribos, os Bituriges, Arverni, Senones, Haedui, Ambarri, Carnutes e Aulerci […]”.

[2] – “À hipótese clássica das migrações causadas por uma crise econômica interna e pela atração das civilizações mediterrâneas, podemos tanto acrescentar, senão substituir, a hipótese de movimentos que tiveram o efeito de reduzir a pressão demográfica, para reduzir ainda mais desigualdade social nas áreas de partida. […] E pudemos ver nessas migrações um daqueles mecanismos que permitem lutar contra o desenvolvimento de desigualdades sociais muito fortes” (Demoule, 2006, 26).

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segunda-feira, 1 de março de 2021

O que foi a Rebelião de Kronstadt? (2009) – An Anarchist FAQ

“A revolta de Kronstadt de 1921”.

Publicamos a tradução de “O que foi a Rebelião de Kronstadt?”, um texto de “The Anarchist FAQ Editorial Collective” publicado originalmente em 2009. Essa tradução foi feita pelo Projeto Periferia. Revisamos e modificamos algumas partes, atualizando a ortografia e adicionando aspas nos termos “comunismo” e “comunista” quando se referem ao governo bolchevique (que de comunista não tinha nada), pois pensamos que é uma forma mais adequada de se referir a uma autodenominação equivocada.

***


A rebelião de Kronstadt ocorreu nas primeiras semanas de março no ano de 1921. Kronstadt foi (e é) uma fortaleza naval em uma ilha no golfo da Finlândia. Tradicionalmente, tem servido de base à frota russa no Báltico e escudo protetor da cidade de São Petersburgo (que durante a primeira grande guerra foi renomeada como Petrogrado, depois Leningrado, e atualmente de São Petersburgo novamente) a trinta e cinco milhas dali.

Foram os marinheiros de Kronstadt que tomaram a iniciativa nos eventos revolucionários de 1905 e 1917. Nas palavras de Trotsky, eles foram “orgulho e glória da Revolução Russa”. Os habitantes de Kronstadt foram os primeiros a apoiar e a praticar o poder dos sovietes, formando uma comuna livre em 1917 que foi relativamente independente das autoridades. No centro da fortaleza um enorme parque público funcionava como fórum popular onde cabia mais de 30.000 pessoas.

A Guerra Civil Russa terminou no Oeste da Rússia em novembro de 1920 com o rendimento do general Wrangel na Crimeia. As manifestações populares na Rússia eclodiram tanto no campo como em pequenos municípios e grandes cidades. Levantes camponeses irromperam por toda a Rússia contra o confisco de grãos ordenado pelo Partido Comunista (a diretriz política de Lenin e Trotsky argumentava que foram forçados a fazer isso, na verdade essas ações envolveram uma bárbara e intensa repressão). Nas áreas urbanas, ocorreu uma onda de greves espontâneas até que finalmente em fevereiro eclodiu uma quase greve geral em Petrogrado.

Em 26 de fevereiro, em resposta a esses eventos de Petrogrado, a tripulação dos navios militares Petropavlovsk e Sevastopol convocou uma reunião de emergência e decidiu enviar uma delegação para a cidade para observar e trazer informações sobre o movimento grevista. Ao retornar, a delegação informou seus companheiros marinheiros sobre as greves (com as quais foram inteiramente simpáticos) e sobre a repressão governamental dirigida contra ela. Os presentes neste encontro no interior do Petropavlovsk aprovaram uma resolução onde apresentavam 15 exigências que incluíam eleições livres para os sovietes, liberdade de expressão, imprensa, assembleia e organização pelos trabalhadores, camponeses, anarquistas e socialistas de esquerda (veja seção H.5.2 para mais detalhes). Das 15 exigências, apenas duas estavam relacionadas com aquilo que os marxistas qualificavam de “pequeno-burgueses” (os camponeses e os artesãos) onde exigiam “completa liberdade de ação” para todos os camponeses e artesãos que não possuíssem mão de obra contratada [assalariada]. Da mesma forma que os trabalhadores de Petrogrado, os marinheiros de Kronstadt exigiam a equalização dos salários e o fim dos destacamentos de bloqueio que restringiam o deslocamento e a possibilidade dos trabalhadores trazerem alimentos para a cidade.

Cinquenta a sessenta mil pessoas afluíram ao encontro na Praça Anchor em 1º de março onde foi constatado como “fato consumado” todo o relato feito pela delegação do Petropavlovsk. Apenas dois oficiais bolcheviques votaram contra o que foi chamado posteriormente de “Resoluções de Petropavlovsk”. Neste encontro também foi decidido enviar outra delegação até Petrogrado para explicar aos grevistas e às tropas sobre as exigências de Kronstadt e solicitar a vinda de uma delegação de trabalhadores de Petrogrado para informar de primeira mão o que estava acontecendo lá. Esta delegação de trinta membros foi aprisionada pelo governo bolchevique.

Como os termos do documento do soviete de Kronstadt não foram atendidos, o encontro decidiu chamar uma “Conferencia de Delegados” para o dia 2 de março. Nesse encontro se discutiria como seriam efetuadas as eleições. Esta conferência consistiria de dois delegados da tripulação dos navios, unidades do exército, docas, oficinas, sindicatos e instituições de sovietes. Este encontro de 303 delegados endossou as Resoluções de Petropavlovsk e elegeu cinco pessoas para compor o “Comitê Revolucionário Provisório” (que foi ampliado para 15 membros dois dias depois em uma outra conferência de delegados). Este comitê ficou encarregado de organizar a defesa de Kronstadt, uma decisão tomada devido às ameaças dos oficiais bolcheviques e aos infundados rumores de que os bolcheviques tinham enviado forças para atacar o encontro. Os vermelhos de Kronstadt se opuseram ao governo “comunista” sob o slogan da revolução de 1917 “Todo Poder para os sovietes”, acrescentando “e não para os partidos”.

O Governo “Comunista” respondeu com um ultimatum no dia 2 de março. Esse documento dizia que a revolta fora “sem dúvida preparada pela contrainteligência na França” e que as Resoluções de Petropavlovsk não passavam de resoluções tomada pelas “Centenas Negras-SR” (SR significando “Socialistas Revolucionários”, um partido com uma tradicional base camponesa e cuja ala direita havia feito uma composição com os brancos; os reacionários “Centenas Negras” eram protofascistas que já atuavam antes da revolução atacando judeus, militantes operários, radicais e aí por diante). Eles argumentavam que a revolta havia sido organizada pelos ex-oficiais czaristas a mando do ex-general Kozlovsky (considerado por Trotsky como um perito militar). Esta foi a versão oficial que prevaleceu com relação à revolta.

Durante a revolta, Kronstadt começou a se auto reorganizar a partir da base. Os comitês sindicais foram reeleitos e um Conselho de Associações Sindicais foi formado. A Conferência de Delegados encontrava-se regularmente para discutir assuntos ligados ao interesse de Kronstadt e à luta contra o governo bolchevique. Fileiras e destacamentos abandonaram o partido aos montes, expressando apoio e auxílio à revolta engrossando o coro de “todo o poder para os sovietes, não para os partidos”. Cerca de 300 comunistas foram presos e tratados humanamente na prisão (para efeito de comparação, pelo menos 780 comunistas deixaram o partido).

O governo comunista atacou Kronstadt em 7 de março. A fortaleza caiu em 17 de março. Dezesseis dias depois, mesmo com muitas unidades do Exército Vermelho passando para o lado dos rebeldes, a revolta de Kronstadt acabou esmagada pelo Exército Vermelho. Apesar do caráter não violento da revolta de Kronstadt, a atitude das autoridades desde o princípio descartou qualquer seriedade nas negociações impondo obediência incondicional ao seu ultimatum. Quem não obedecesse sofreria as consequências. Os revoltosos foram cercados e não receberam nenhum apoio externo. Em 17 de março, as forças bolcheviques finalmente ocuparam a cidade de Kronstadt após sofrerem mais de 10.000 baixas (existem inúmeros documentos confiáveis que relatam as perdas no campo rebelde, inclusive demonstrando a quantidade de fuzilados ou enviados aos campos de prisioneiros). Como uma ironia da história, no dia posterior, os bolcheviques celebraram o quinquagésimo aniversário da Comuna de Paris.

Assim foi, resumidamente, a “Revolta de Kronstadt”. Obviamente é impossível relatar todos os mínimos detalhes, contudo recomendamos aos leitores a consulta de livros e artigos relacionados no final desta seção para um acompanhamento mais completo de tudo que aconteceu. Todavia, estes são os pontos chaves da rebelião.

Em seguida iremos nos concentrar numa análise desta revolta indicando porque ela é tão importante do ponto de vista político na avaliação daquilo que representou o bolchevismo enquanto teoria revolucionária.

Nesta seção de nosso FAQ apresentaremos e discutiremos as exigências de Kronstadt, sua origem radical na rebelião da classe trabalhadora (veja seções 1 e 2). Relataremos as mentiras que os bolcheviques espalharam sobre a rebelião através do tempo (seção 4) e indicaremos suas reais ligações com os brancos (seção 5). Também discordamos das alegações trotskistas de que os marinheiros em 1921 eram diferentes dos de 1917 (seção H.5.8) ou de que suas perspectivas políticas haviam fundamentalmente sido alteradas (seção H.5.9). Discutiremos os argumentos de que o país estava, por demais, exaurido para consentir uma democracia soviética (seção H.5.12) ou que a democracia soviética resultaria na derrota da revolução (seção H.5.10). Neste processo, também mostraremos a forma como os defensores do leninismo passaram a defender seus heróis, (particularmente, veja a seção H.5.15).

Demonstraremos que Kronstadt foi um levante popular que surgiu de baixo para cima dos mesmos marinheiros, dos mesmos soldados e dos mesmos trabalhadores que fizeram a revolução de outubro de 1917. A repressão bolchevique à revolta pode ser justificada somente em termos de defesa do poder do estado bolchevique, mas jamais pode ser defendida nos termos da teoria socialista. Na verdade, ela indica que o bolchevismo é um monumental engodo enquanto teoria política e que jamais poderia desaguar em uma sociedade socialista, mas apenas e tão somente em um regime capitalista de estado baseado num partido ditatorial. É isto que Kronstadt mostra acima de tudo: optar entre o poder dos trabalhadores ou o poder do partido, o bolchevismo destruirá o primeiro para implementar o segundo. Nesse aspecto, Kronstadt não é um evento isolado (conforme indicaremos na seção H.5.13).

Existem muitas importantes fontes históricas disponíveis sobre a revolta. O que existe de melhor para estudos sobre a revolta é o trabalho de Paul Avrich (“Kronstadt 1921”) e Israel Getzler (“Kronstadt 1917-1921: The Fate of a Soviet Democracy”). As obras anarquistas incluem Ida Mett em seu livro “The Kronstadt Uprising” (o melhor trabalho político sobre o tema), Alexander Berkman escreveu “The Kronstadt Rebellion” (também consta uma boa introdução na obra “A Tragédia Russa”), Voline em “The Unknown Revolution” dedica todo um excelente capítulo sobre Kronstadt (onde apresenta uma grande quantidade de citações retiradas de documentos de Kronstadt) o volume dois de “No Gods, No Masters” de Daniel Guerin apresenta uma excelente seção sobre a rebelião (incluindo um detalhado relato de Emma Goldman, extraído da sua autobiografia “Living my Life”, sobre os eventos de Kronstadt, baseando-se em documentos do período). Anton Ciliga (um libertário socialista/marxista) em seu livro “Kronstadt Revolt” também apresenta uma boa introdução aos temas relacionados com o levante.

Do ponto de vista da análise leninista, a antologia Kronstadt contem artigos de Lenin e de Trotsky relacionados à revolta, uma espécie de ensaio suplementar “refutando” a versão anarquista. Este trabalho é recomendado para aqueles que querem saber qual foi a versão trotskista dos eventos por conter todos os documentos relevantes emitidos pelos líderes bolcheviques. Emma Goldman em seu trabalho “Trotsky Protests Too Much” é uma grande resposta aos comentários de Trotsky e de seus seguidores.

Seção 1: Qual a importância da rebelião de Kronstadt?


A rebelião de Kronstadt é importante porque, conforme Voline observou, ela foi “a primeira tentativa popular completamente independente de autolibertação do jugo e da opressão através da Revolução Social, uma tentativa feita direta, resoluta, e corajosamente pelos próprios trabalhadores sem guia político, líderes, nem tutores. Foi o primeiro passo em direção à terceira revolução social” [The Unknown Revolution, pp. 537-8, veja-se: link].

Os marinheiros de Kronstadt em 1917 foram um dos primeiros grupos a apoiar o slogan “Todo poder aos Sovietes” e um dos primeiros grupos a colocar isso em prática. O foco da revolta de 1921 – os marinheiros dos navios Petropavlovsk e Sevastopol – representaram, em 1917, o principal suporte dos bolcheviques. Os marinheiros eram considerados, até os fatídicos dias de março de 1921, o “orgulho e a glória da revolução”, e reconhecidos por todos como completamente revolucionários em espírito e em ação. Eles eram leais defensores do sistema dos sovietes mas, como a revolta mostrou, se opunham à ditadura de qualquer partido.

Para todos os efeitos, Kronstadt é importante para avaliar a honestidade (ou desonestidade) dos leninistas quando se afirmavam favoráveis ao poder e à democracia dos sovietes. Embora a guerra civil efetivamente tivesse terminado, o regime não mostrava nenhum sinal no sentido de interromper a repressão contra as manifestações e protestos da classe trabalhadora. Opondo-se às reeleições nos sovietes, o regime bolchevique passou a reprimir greves em nome do “poder soviético” e “do poder político do proletariado”. No campo, os bolcheviques continuaram sua fútil, miserável e contraprodutiva política contra os camponeses (os bolcheviques no governo assumiram o papel do Estado, submetendo a seus pés trabalhadores e camponeses).

Os eventos de Kronstadt não devem ser observados isoladamente, mas como parte de uma luta geral do povo trabalhador russo contra seu governo. Na verdade, conforme indicaremos na próxima seção, esta repressão após o fim da Guerra Civil seguiu o mesmo modelo da implementada antes dela. Os bolcheviques reprimiram a democracia soviética em Kronstadt em 1921 em favor da ditadura do partido, como vinham fazendo regularmente desde o princípio de 1918.

A revolta de Kronstadt foi um movimento popular nascido dos trabalhadores visando restaurar o poder dos sovietes. Conforme Alexander Berkman destacou, o “espírito da Conferencia [dos delegados que elegeram o Comitê Revolucionário Provisório] eram todos inteiramente sovietistas: Kronstadt exigia sovietes livres da interferência de qualquer partido político; eles desejavam sovietes não partidários que refletissem verdadeiramente as necessidades e expressassem a vontade dos trabalhadores e camponeses. A atitude dos delegados foi antagonizada pela determinação arbitrária dos comissários burocráticos, simpatizantes do Partido Comunista. Os delegados eram membros leais ao sistema soviético e procuravam encontrar, amigável e pacificamente, uma solução aos problemas prementes” que a revolução enfrentava [The Kronstadt Rebellion]. A atitude dos bolcheviques indicou que, para eles, o poder soviético só seria útil na medida em que confiasse seu poder ao partido e em caso de conflito apenas o partido deveria sobreviver sobre o cadáver de seus opositores. Nas palavras de Berkman:

“Mas o ‘triunfo’ dos bolcheviques sobre Kronstadt trouxe consigo a derrota do próprio bolchevismo. Colocou à mostra o verdadeiro caráter da ditadura ‘comunista’. Os ‘comunistas’ demonstraram por si próprios sua disposição em sacrificar o Comunismo, em troca de aproximações e compromissos com o capitalismo internacional, ao mesmo tempo que recusavam as justas exigências de seu próprio povo – exigências que ecoaram nos slogans de outubro entre os próprios bolcheviques: sovietes eleitos por voto direto e secreto, de acordo com a Constituição da R.S.F.S.R.; e liberdade de expressão e de imprensa aos partidos revolucionários” [Op. Cit.].

Uma investigação honesta e inteligente das forças revoltosas de Kronstadt coloca em cheque tanto a teoria quanto a prática bolchevique. Joga por terra o mito bolchevique do “Comunismo de Estado” sendo o “Governo dos Trabalhadores e Camponeses”. Os eventos de Kronstadt provaram que a ditadura do Partido “Comunista” e a Revolução Russa são polos opostos, contraditórios e mutuamente exclusivos. Embora procurem justificar a repressão dirigida pelos bolcheviques contra o povo trabalhador durante a guerra civil em virtude da guerra, o mesmo não pode ser dito com relação a Kronstadt. Da mesma forma, a justificação leninista para a força e ações levadas a efeito em Kronstadt teve implicações diretas nas atividades daquele momento e nas futuras revoluções. Conforme demonstraremos na seção H.5.15, a lógica desse argumento significa simplesmente que em nossos dias os leninistas desejam, dentro dessa mesma posição, destruir a democracia soviética para defender o “poder soviético” (na verdade, o poder de seu partido).

Com efeito, Kronstadt foi o choque da realidade do leninismo com sua imagem e retórica. Trouxe à tona temas importantes relativos ao bolchevismo e os “argumentos” que produziam para justificar certas ações. “A experiência de Kronstadt”, conforme os argumentos de Berkman, “provou mais uma vez que o governo, o Estado – seja lá qual for seu nome ou forma de atuação – é sempre inimigo mortal da liberdade e da auto-determinação popular. O estado não tem alma, nem princípios. E possui apenas um objetivo – assegurar poder e mantê-lo a qualquer custo. Esta foi a lição política de Kronstadt” [Op. Cit.].

Existe uma outra razão da importância do estudo de Kronstadt. Desde o esmagamento da revolta, tanto grupos leninistas como trotskistas justificam continuamente os atos dos bolcheviques. Além disso, permanecem seguindo Lenin e Trotsky em suas calúnias sobre a revolta, na verdade, mentem descaradamente sobre ela. Quando o trotskista John Wright afirma que “os defensores de Kronstadt distorcem fatos históricos, exageram monstruosamente cada assunto ou questão irrelevante… e obscurecem… sobre o real programa e objetivos do motim” ele está, de fato, descrevendo suas próprias atividades e as atividades de seus amigos trotskistas [Op. Cit., p. 102]. Na verdade, como demonstraremos a seguir, enquanto as considerações anarquistas são confirmadas por pesquisas posteriores, as asserções trotskistas, vez após vez, caem por terra. Na verdade, seria de muita utilidade escrever um livro para colocar ao lado da “Escola da Falsificação de Stalin” sobre as atividades de Trotsky e de seus seguidores em matéria de reescrever a história.

É necessário que fique bem claro nessa nossa discussão que os trotskistas se doutoraram na versão acadêmica que confirma sua versão ideológica do levante. A razão para isso é clara. Em termos simples, os defensores do bolchevismo não podem fazer outra coisa a não ser mentir sobre a revolta de Kronstadt uma vez que ela expõe claramente a real natureza da ideologia bolchevique. Em vez de apoiar o clamor de Kronstadt pela democracia soviética, os bolcheviques esmagaram a revolta, argumentando que fazendo isso estavam defendendo o “poder soviético”. Seus seguidores, vez após vez, repetem sempre esses mesmos argumentos.

Esta expressão do duplo pensar leninista (a habilidade de conhecer dois fatos contraditórios e sustentar ambos como verdadeiros) pode ser explicada. Procuram fazer com que “poder dos trabalhadores” e “poder soviético” signifique, na realidade, o poder do partido, dai que as contradições desapareçam. O poder do partido tem que ser mantido a todo custo, incluindo a destruição daqueles que desejam um verdadeiro poder soviético, um verdadeiro poder dos trabalhadores (portanto uma democracia soviética).

Por exemplo, Trotsky argumentou em 1921 que “o proletariado estava com o poder político nas mãos” enquanto que mais adiante os trotskistas passaram a argumentar que o proletariado estava muito exaurido, atomizado e dizimado  [Lenin e Trotsky, Kronstadt, p. 81]. Da mesma forma o trotskista Pierre Frank afirma que para os bolcheviques, “o dilema estava colocado nos seguintes termos: ou manter os trabalhadores sob controle, ou a contrarrevolução se ergueria, tanto o primeiro quanto o segundo disfarce político, teriam ao cabo o contrarrevolucionário reino do terror bem longe da democracia” [Op. Cit., p. 15]. Naturalmente que aquela “democracia” sob Lenin não é mencionada, nem tampouco o reino do terror que se desenvolveu sob Stalin através da repressão e da ditadura praticada em 1921.

A maioria dos leninistas argumentam que a supressão da rebelião deu-se essencialmente para defender as “conquistas da revolução”. Mas quais foram exatamente estas conquistas? Não foi a democracia soviética, nem liberdade de expressão, nem tampouco liberdade de reunião e de imprensa, ou mesmo liberdade de organização sindical. Ora, o povo de Kronstadt foi reprimido exatamente por exigir tais coisas. Não, aparentemente as “conquistas” da revolução foi pura e simplesmente um governo bolchevique. É necessário não esquecer do fato de que se tratava de um partido único ditatorial, com uma forte e privilegiada máquina burocrática. Uma situação onde não havia nenhuma liberdade de expressão, imprensa, associação ou assembleia do povo trabalhador. O fato de Lenin e Trotsky estarem no poder era suficiente para seus seguidores justificarem a repressão de Kronstadt e subscrever a noção de “estado dos trabalhadores” que exclui os trabalhadores do poder.

Este duplo pensar bolchevista é claramente visto nos eventos de Kronstadt. Por exemplo, os defensores do bolchevismo argumentam que Kronstadt foi reprimida para defender o poder soviético ao mesmo tempo que argumentam que as exigências de Kronstadt reivindicando eleições livres no soviete eram “contrarrevolucionárias”, “retrógradas”, “pequeno-burguesas” e assim por diante. O que é que o poder soviético poderia fazer sem eleições livres nunca foi explicado. Similarmente, eles argumentavam que era necessário defender o “estado dos trabalhadores” assassinando aqueles que chamavam os trabalhadores porque tinham algo a dizer a eles, como, por exemplo, como é que o estado funciona. O papel dos trabalhadores em um estado de trabalhadores seria simplesmente obedecer ordens sem questioná-las (na verdade, Trotsky argumentou em 1930 que a classe trabalhadora na Rússia era a classe governante sob Stalin – “Todas as formas de propriedade que foram criadas pela Revolução de Outubro não foram subvertidas, o proletariado continua sendo a classe governante” [The Class Nature of the Soviet State]).

De que forma pode-se justificar a repressão bolchevique em termos de defender o poder dos trabalhadores suprimindo esse poder? Como é que o poder soviético pode ser protegido pelo governo quando os sovietes eram esmagados por esse próprio governo?

A lógica dos bolcheviques, seus apologistas e defensores a posteriori tem a mesma característica dos oficiais americanos durante a guerra do Vietnã que explicavam que para salvar o vilarejo eles tinham primeiro que destruí-lo. Para que pudessem salvar o poder soviético, Lenin e Trotsky tinham que destruir a democracia soviética.

Uma última observação. A revolta de Kronstadt foi um evento chave na Revolução Russa, inegavelmente significou seu fim. Não podemos nos esquecer também que foi apenas mais um evento de uma longa série de ataques bolcheviques contra a classe trabalhadora. Conforme indicamos na seção H.4 (e no resumo contido na seção H.4.1), o estado bolchevique por si só foi uma prova incontestável de sua natureza antirrevolucionária desde outubro de 1917. Portanto, Kronstadt é importante simplesmente porque contrapôs a democracia soviética ao “poder soviético” (isto é, a “ditadura do partido”) e isso ocorreu após o fim da guerra civil. Kronstadt se constituiu na pá de cal sobre a tumba da Revolução Russa. Kronstadt deve ser lembrada e relembrada, analisada e discutida por todos os revolucionários que procuram compreender o passado de forma a não repetir os mesmos erros novamente.

Seção 2: O que a rebelião de Kronstadt pretendia?


A revolta de Kronstadt não pode ser compreendida isoladamente. Na verdade, fazer isso significa perder o fio da meada, a real razão que mostra porque Kronstadt é tão importante. Kronstadt foi o resultado final de quatro anos de revolução e guerra civil, o produto da debilidade da democracia soviética combinada com os bolcheviques e a guerra. A atitude dos bolcheviques e a justificação ideológica para suas ações (justificações, naturalmente, retiradas de mentiras sobre a revolta – veja a seção H.5.14) – onde meramente reproduzem de forma resumida o que ocorreu a partir do momento em que eles tomaram o poder.

Diante disso, elaboramos pequeno sumário das atividades bolcheviques antes dos eventos de Kronstadt (veja seção H.4 para mais detalhes). Complementando, apresentamos um quadro de como se desenvolveu o fenômeno da estratificação social sob Lênin e os eventos imediatos antes da revolta que serviram de estopim (especialmente a onda de greves em Petrogrado). Analisando tudo isso com cuidado veremos que Kronstadt não foi um evento isolado, mas uma tentativa de salvar a Revolução Russa da ditadura e da burocracia “comunista”.

A oposição bolchevique à democracia soviética revelada pela revolta de Kronstadt teve uma longa linhagem. Iniciou alguns meses após a tomada do poder em nome dos sovietes. Após uma manifestação favorável à Assembleia Constituinte ser reprimida pelos bolcheviques em meados de janeiro de 1918, muitas fábricas foram convocadas para novas eleições no soviete. “A despeito dos esforços dos bolcheviques e dos Comitês de Fábrica por eles controlados, o movimento por novas eleições no soviete se espalhou por mais de vinte fábricas no princípio de fevereiro e resultou na eleição de cinquenta delegados: trinta e seis SRs, sete mencheviques e sete delegados sem partido”. Não obstante, os bolcheviques, “relutaram reconhecer as eleições e indicaram novos delegados pressionado um grupo de socialistas para… articular um fórum alternativo de trabalhadores” [Scott Smith, “The Social-Revolutionaries and the Dilemma of Civil War”, in: The Bolsheviks in Russian Society, pp. 83-104, Vladimir N. Brovkin (Ed.), pp. 85-86]

Em Tula, os bolcheviques locais reportaram ao comitê central bolchevique que os “deputados bolcheviques estão sendo substituídos um a um… nossa situação torna-se debilitada a cada dia que passa. Fomos forçados a impedir novas eleições para o soviete e até mesmo não reconhecê-las quando o resultado não nos fosse favorável” [citado por Smith, Op. Cit., p. 87]. Finalmente, os líderes locais do partido foram forçados a abolir o soviete da cidade e investir poder em um Comitê Executivo Provincial. A proibição da realização da plenária do soviete da cidade durante mais de dois meses, demonstrou que os novos delegados eleitos eram não-bolcheviques [Ibid.].

Em Yaroslavl, o soviete reuniu-se em 19 de abril de 1918, e quando o novo soviete elegeu um presidente menchevique, “a delegação bolchevique se retirou e declarou o soviete dissolvido. Em resposta, os trabalhadores da cidade entraram em greve, os bolcheviques reagiram prendendo o comitê de greve, ameaçando os grevistas de demissão e substituindo-os por trabalhadores desempregados”. Nada disso funcionou e os bolcheviques foram forçados a convocar novas eleições, nas quais foram novamente derrotados. Após “dissolveram este soviete os bolcheviques colocaram a cidade sob lei marcial”. Um evento semelhante ocorreu em Riazan (novamente em abril) e, mais uma vez, os bolcheviques “prontamente dissolveram o soviete e decretaram uma ditadura sob um Comitê Militar Revolucionário” [Op. Cit., pp. 88-9].

Estes são apenas alguns poucos exemplos daquilo que acontecia na Rússia no início do ano de 1918. É importante destacar que a Guerra Civil Russa começou em maio de 1918. O efeito imediato disto foi, naturalmente, levar muitos trabalhadores dissidentes apoiar os bolcheviques durante a guerra. Por exemplo, os mencheviques “possuíam uma política consistente de oposição pacífica ao regime bolchevique, uma política conduzida por meios estritamente legais” e os “mencheviques que se juntassem a organizações almejando derrotar o Governo Soviete” eram expulsos do Partido Menchevique [George Leggett, The Cheka: Lenin’s Political Police, pp. 318-9 e p. 332]. Isto, contudo, não estancou a repressão bolchevique sobre eles.

De forma semelhante, os bolcheviques atacaram os anarquistas em Moscou de 11 a 12 de abril de 1918, fazendo uso de um destacamento armado da Cheka (a polícia política). O soviete de Kronstadt votou uma resolução condenando a ação.

Esse fato, incidentalmente, responde à questão retórica de Brian Bambery “por que será que a maioria dos militantes da classe trabalhadora no mundo, detentores de um poderoso coquetel de ideias revolucionárias, tendo já efetuado duas revoluções (em 1905 e em fevereiro de 1917), permite a um punhado de pessoas alçar ao poder às suas custas em outubro de 1917?” [“Leninism in the 21st Century”, in: Socialist Review, nº 248, January, 2001]. Mais uma vez os trabalhadores russos perceberam que um punhado de pessoas tinha tomado o poder e eles passaram a se manifestar contra a usurpação de seu poder e de seus direitos, contra a destruição da democracia soviética pelos bolcheviques. Os bolcheviques os reprimiram. Com o início da Guerra Civil, os bolcheviques jogaram sua carta mais alta – “Nós ou os Brancos”. Isto significava que para os bolcheviques o poder dos trabalhadores se restringia em escolher entre um ou outro. Na verdade, isso explica porque os bolcheviques finalmente acabaram eliminando os partidos e grupos de oposição somente após o fim da Guerra Civil, limitando-se a apenas reprimi-los enquanto ela durou. Com os brancos fora da parada, a oposição passaria a exercer sua influência novamente.

Com a dispersão dos sovietes os bolcheviques criaram um poder sobre os sovietes na forma de um Conselho de Comissários do Povo. Esta corporação se constituía numa elite executiva que atuava representando os sovietes. Em outras palavras, Lênin argumentou em “The State and Revolution” que, da mesma forma que na Comuna de Paris, o estado dos trabalhadores seria baseado na fusão da função administrativa, legislativa e executiva representado por delegações de trabalhadores.

No apogeu da guerra civil o Comitê Executivo Central do congresso de sovietes da Rússia não se reuniu sequer uma vez em uma sessão completa desde o fim de 1918 e durante todo o ano de 1919. No primeiro ano da revolução, apenas 68 dos 480 decretos do Conselho do Comissariado do Povo (o governo “Comunista”) foram realmente submetidos ao Comitê Soviético Executivo Central (alguns elaborados por eles mesmos). As tendências oligárquicas aumentaram no pós-outubro, com “o poder efetivo dos sovietes locais inflexivelmente gravitando em torno dos comitês executivos”. Os sovietes locais tinham “pouca influência na formação da política nacional”. Eles rapidamente foram esmagados pelo governo comunista quando não eram dispersos pelas forças comunistas (“o partido muitas vezes dispersava os congressistas que se opunham aos aspectos da política dominante” [C. Sirianni, Workers’ Control and Socialist Democracy, p. 204 and p. 203]). Na verdade, a Constituição Soviética de 1918 codificou seu poder centralizado, com os sovietes locais regulamentados no sentido de “assumir todas as ordens do órgão respectivamente superior do poder soviético” (isto é, obedecer ao comando do governo central).

Economicamente, o regime bolchevique impôs mais tarde uma política denominada “Comunismo de Guerra” (com relação a isso, Victor Serge observou, “qualquer um que, como eu, considerasse aquilo como sendo puramente temporário estava possuído pela arrogância” [Memoirs of a Revolutionary, p. 115]. O regime caracterizou-se por uma tendência extremamente hierárquica e ditatorial. A direção exercida pelo Partido “Comunista” expressava-se na natureza do regime “socialista” por eles desenhado. Trotsky, por exemplo, manifestava ideias de uma certa “militarização do trabalho” (conforme exposto em sua infame obra “Comunismo e Terrorismo”). Por exemplo, ele argumentou:

“O princípio verdadeiro do serviço do trabalho compulsório é inquestionável para o comunista… Mas até o momento ele nunca passou de um mero princípio. Sua aplicação sempre teve um caráter acidental, parcial, episódico. Apenas agora, quando em toda parte se discute a questão do renascimento econômico em nosso país, os problemas do trabalho compulsório vem a tona diante de nós da maneira mais concreta possível. A única solução para as dificuldades econômicas que seja correta tanto do ponto de vista dos princípios como da prática é considerar toda a população do país como um reservatório necessário de força de trabalho… para introduzir ordens estritas de registro, mobilização, e utilização no trabalho”.

“A introdução do serviço de trabalho compulsório é impensável sem a aplicação, em maior ou menor grau, de métodos de militarização do trabalho”.

“Por que falamos em militarização? Naturalmente trata-se apenas de uma analogia – mas uma analogia muito rica em conteúdo. Nenhuma organização social exceto o exército por si só justifica-se em subordinar cidadãos para si mesmo, para poder controlá-los à vontade de todas as formas e graus, como o Estado da ditadura do proletariado justifica-se a si mesmo praticando, e fazendo”.

“Tanto a compulsão econômica quanto a política não passam de formas de expressão da ditadura da classe trabalhadora em dois campos interligados… sob o socialismo não existem aparatos por si só compulsórios, principalmente, o Estado: para ele haverá comoção inteiramente contraria a uma comuna que produz e consome. O caminho do Socialismo passa, precisamente, por um período da mais alta intensificação possível do princípio do Estado… Como uma lâmpada, atrás de nós, projetando uma luz brilhante, assim é o Estado, antes de desaparecer, assumindo a forma de ditadura do proletariado, isto é, a mais cruel forma de Estado, que abraça a vida dos cidadãos autoritariamente em cada aspecto… Nenhuma organização exceto o exército controla o homem com uma coerção mais severa, tornando possível a organização do Estado da classe trabalhadora no período mais difícil da transição. É exatamente por esta razão que falamos em militarização do trabalho”.

Essas considerações foram escritas como uma política a ser seguida agora quando a “guerra civil interna chegava a seu fim”. Isto não foi tido como uma política temporária imposta pelos bolcheviques em função da guerra, pelo contrário, tanto quanto se pode perceber, foi uma expressão de “princípio” (será que isto tem relação com o que Marx e Engels escreveram sobre o “estabelecimento de exércitos industriais” no Manifesto Comunista? [Selected Writings, p. 53]).

Na mesma obra, Trotsky justifica a eliminação do poder soviético e da democracia pelo poder do partido e pela ditadura (veja as seções H.5.14 e H.5.15). Assim, vemos a aplicação da servidão pelo estado através do bolchevismo (na verdade, Trotsky pretendia aplicar suas ideias de militarização do trabalho na construção de ferrovias).

Esta visão de rígida centralização e estruturas militares topo/base serviu de esqueleto para a construção da política bolchevique desde os primeiros meses após a revolução de outubro. As tentativas dos trabalhadores de “autogestão” organizados através dos comitês de fábricas foram combatidas em favor de um sistema centralizado de capitalismo de estado. Lênin nomeava administradores com poderes “ditatoriais” (veja: The Bolsheviks and Workers’ Control de Maurice Brinton para mais detalhes).

No Exército Vermelho e Marinha, princípios anti-democráticos foram novamente impostos. Dois meses antes da Guerra Civil, Trotsky nomeou elementos para atuarem ao lado de conselhos eleitos de soldados e de oficiais. Nos finais de março de 1918, Trotsky reportou ao Partido “Comunista” que o “o princípio da eleição é politicamente inútil e tecnicamente inadequado, o que significa, na prática, sua abolição por decreto”. Os soldados não tinham o que temer desse sistema piramidal de topo/base pois “o poder político está nas mãos da mesma classe trabalhadora de onde as tropas do Exército foram recrutadas” (isto é. nas mãos do partido bolchevique). Não poderia haver “nenhum antagonismo entre o governo e as massas de trabalhadores, da mesma forma que não poderia haver nenhum antagonismo entre a administração de um sindicato e a assembleia geral de seus membros, portanto, não poderia haver nenhum espaço para temer as determinações dos membros da cúpula de comando dos órgãos do Poder Soviético” [Work, Discipline, Order]. Naturalmente, conforme qualquer trabalhador em luta poderia dizer para você, ele muitas vezes entra em conflito com a burocracia do sindicato.

Na Marinha, ocorreu um processo semelhante – o que provocou o descontentamento e a oposição de muitos marinheiros. Conforme Paul Avrich destacou, “Os esforços bolcheviques para liquidar os comitês navais e impor sua autoridade através de comissários nomeados provocou uma tempestade de protestos na Frota Báltica. Para os marinheiros, cuja aversão a autoridades externas era proverbial, qualquer tentativa de restaurar disciplina significava supressão da liberdade pela qual tinham lutado em 1917” [Kronstadt 1921, p. 66].

No campo, o confisco de grãos resultou em um levante camponês pois o alimento era tomado dos camponeses através da força. Destacamentos armados foram “instruídos a tomar dos camponeses o suficiente para suprir suas necessidades pessoais, era comum o confisco por parte de pequenos pelotões armados que se apropriavam de grãos sob a força das armas visando consumo pessoal ou estabelecendo uma reserva para a próxima colheita”. Os trabalhadores nos vilarejos naturalmente faziam uso de táticas evasivas omitindo a quantidade de terras que possuíam ou mesmo praticando a resistência aberta [Avrich, Op. Cit., pp. 9-10].

Assim, antes do início da Guerra Civil, o povo russo passou a ser, de fato, paulatinamente eliminado de qualquer processo participativo no que diz respeito ao desenvolvimento da revolução. Os bolcheviques debilitaram (quando não aboliram) a democracia dos trabalhadores, a liberdade e os direitos onde trabalhavam, nos sovietes, nos sindicatos, no exército e na marinha. Previsivelmente, a ausência de qualquer controle real a partir da base desencadeava os efeitos corruptores oriundos do poder. Desigualdade, privilégios e abusos proliferavam por toda parte onde estava o partido e a burocracia governante.

Com o fim da Guerra Civil em novembro de 1920, muitos trabalhadores esperavam uma mudança de política. Todavia, os meses se passaram e a política continuou a mesma. Finalmente, em meados de fevereiro de 1921, desencadeou-se “uma febre de encontros espontâneos dentro das fábricas” em Moscou. Os trabalhadores passaram a ser convocados para uma imediata avaliação do arrocho provocado pelo Comunismo de Guerra. Tais encontros foram “sucedidos por greves e manifestações”. Os trabalhadores tomaram as ruas reivindicando “livre comércio”, mais rações e “a abolição do confisco de grãos”. Alguns exigiam a restauração dos direitos políticos e das liberdades civis. Foi aí que as tropas foram chamadas para restaurar a ordem [Paul Avrich, Op. Cit., pp. 35-6].

As mais sérias ondas de greves e manifestações ocorreram em Petrogrado. A revolta de Kronstadt é um incêndio que vai surgir do pavio destes protestos. Como em Moscou, aquelas “manifestações nas ruas anunciavam a proliferação de encontros e manifestações em muitas fábricas e lojas em Petrogrado”. Como em Moscou, oradores “exigiam o fim do confisco de grãos, a remoção dos bloqueios nas estradas, a abolição de rações privilegiadas, e permissão para a troca de possessões de caráter pessoal por alimento. Em 24 de fevereiro, um dia após um encontro no local de trabalho, os trabalhadores da fábrica Trubochny abandonaram as máquinas e saíram para fora da fábrica. Outros trabalhadores das fábricas adjacentes se juntaram a eles. Uma aglomeração de 2.000 trabalhadores foi dispersa por cadetes militares armados. No dia seguinte, os trabalhadores da Trubochny novamente tomaram as ruas e visitaram outros pontos de trabalho, conclamando-os para que também se juntassem à greve” [Avrich, Op. Cit., pp. 37-8].

O governo nomeou um Comitê de Defesa liderado por Zinoviev e composto por mais três pessoas que “proclamou lei marcial” em 24 de fevereiro [Avrich, Op. Cit., p. 39]. Foi proclamado toque de recolher às 23 horas e todos os encontros e reuniões (internos e externos) foram proibidos, exceto se aprovados pelo Comitê de Defesa e todos aqueles que desobedecessem às ordens “seriam punidos de acordo com a leis militares” [Ida Mett, The Kronstadt Uprising, p. 37].

Como parte desse processo, o governo bolchevique confiou ao kursanty (escritório de cadetes “comunistas”) a função de polícia local por terem ficado à margem das agitações e pela obediência às ordens governamentais. Centenas de kursanty foram chamados das academias militares vizinhas para patrulhar a cidade. “Petrogrado tornou-se durante a noite um campo de guerra. Em cada quarteirão os pedestres eram revistados e seus documentos checados… o toque de recolher [era] rigidamente controlado”. Enquanto isso a Cheka de Petrogrado efetuava inúmeras prisões [Avrich, Op. Cit., pp. 46-7].

Aos trabalhadores “foi ordenado retornar para suas fábricas, sob a ameaça de que seriam retiradas suas rações. Embora estas ameaças não provocassem nenhum impacto nos trabalhadores, alguns sindicados se dispersaram e seus líderes e grevistas que insistiam em permanecer em greve foram lançados em prisões” [Emma Goldman, No Gods, No Masters, vol. 2, p. 168].

Os bolcheviques também fizeram uso de sua máquina de propaganda. Os grevistas eram alertados para que não caíssem nas mãos dos contrarrevolucionários. Fazendo uso da imprensa, os membros dos partidos populares passaram a agitar nas ruas, fábricas e oficinas. Houve uma série de concessões como a distribuição de rações extras. Em primeiro de março (após a revolta do Kronstadt haver começado) o soviete de Petrogrado anunciou a retirada de todos bloqueios e desmobilizou os soldados do Exército Vermelho para exercerem funções produtivas em Petrogrado [Avrich, Op. Cit., pp. 48-9].

Dessa forma, utilizou-se uma combinação de força, propaganda e concessões para enfraquecer as greves (que rapidamente tendiam a se generalizar). Contudo, conforme Paul Arvich destaca, “não havia nenhuma proibição com relação ao uso de forças militares e da proliferação de prisões, sem falar da incansável propaganda implementada pelas autoridades que se tornaram indispensáveis para restaurar a ordem”. Nesse aspecto, foi particularmente interessante a disciplina mostrada pelos organismos partidários locais. “Atuando à parte de suas disputas internas, os bolcheviques de Petrogrado rapidamente cerraram fileiras e se apressaram em executar a vergonhosa tarefa de reprimir com eficiência e presteza” [Op. Cit., p. 50].

Isto indica o contexto imediato da rebelião de Kronstadt. Por seu turno o trotskista J. G. Wright escreveu sobre o papel de Kronstadt, “mentiram desde o primeiro momento… e inseriram uma manchete sensacional: ‘Insurreição Geral em Petrogrado’” e prossegue afirmando que as pessoas “espalhavam… mentiras sobre uma insurreição em Petrogrado” [Lênin e Trotsky, Kronstadt, p. 109]. Sim, é normal que a eminência de uma greve geral seja acompanhada de encontros de massa e manifestações, e que sejam reprimidas pela força e por lei marcial, isto é uma ocorrência corriqueira que nada tem a ver com uma “insurreição”! Mas se tais eventos tivessem acontecido em um estado que não fosse dirigido por Lênin e Trotsky é improvável que o Sr. Wright teria alguma dificuldade em reconhecer o significado de Kronstadt (quatro anos antes, protestos semelhantes foram reprimidos pelo Czar).

Foram exatamente estes protestos de trabalhadores e sua repressão que desencadearam os eventos em Kronstadt. Na medida em que muitos ouviam as reclamações de seus parentes e amigos pelos vilarejos vizinhos e se juntavam aos protestos contra as autoridades soviéticas, as greves de Petrogrado tornaram-se catalisadoras da revolta. Todavia, eles tinham outras razões políticas para protestar contra a postura do governo. A democracia na Marinha havia sido abolida por decreto e o soviete tinha se transformado em um penduricalho da ditadura do partido.

Previsivelmente, a tripulação dos navios de guerra Petropavlovsk e Sevestopol decidiram agir diante das “notícias de greves, locautes, prisões em massa e lei marcial” que vinham de Petrogrado. Em “função daqueles protestos eles convocaram uma reunião de emergência, repreenderam seus comissários… [e] elegeram uma delegação de trinta e dois marinheiros que, em 27 de fevereiro, dirigiu-se a Petrogrado. Percorrendo as fábricas… eles encontraram os trabalhadores que procuravam e fizeram perguntas apesar do temor dos bandos de guardas comunistas nas fábricas, dirigentes de sindicatos oficiais, homens do comitê dos partidos e membros da Cheka” [Gelzter, Kronstadt 1917-1921, p. 212]

A delegação retornou no outro dia e fizeram o relato do que viram na reunião geral dos marinheiros do navio. Nessa reunião foram adotadas as resoluções que serviram de base à revolta (veja a próxima seção). Começava a revolta de Kronstadt.

Seção 3: Qual era o programa de Kronstadt?


É raro em nossos dias ver um trotskysta descrever integralmente as reais reivindicações de Kronstadt. John Rees, por exemplo, não proporciona nem mesmo um resumo dos 15 pontos do programa. Ele apenas afirma que “os marinheiros expressaram o desespero dos camponeses com o regime Comunista de Guerra” ao mesmo tempo em que apresenta a desculpa esfarrapada de que “nenhuma outra insurreição camponesa reproduziu as reivindicações de Kronstadt” [“In Defence of October”, pp. 3-82, International Socialism, no. 52, p. 63]. Similarmente, elas constam apenas no “Prefácio Editorial” na obra trotskista sobre Kronstadt que apresenta apenas um resumo das exigências. Eis o resumo:

“A resolução reivindicava eleições livres nos sovietes com a participação de anarquistas e revolucionários sociais de esquerda, legalização dos partidos socialistas e anarquistas, abolição dos Departamentos Políticos [nas frotas] e dos Destacamentos com Propósitos Especiais, remoção do zagraditelnye ottyady [tropas armadas utilizadas para impedir comércio sem autorização], restauração do livre comércio, e liberdade aos presos políticos” [Lenin e Trotsky, Kronstadt, pp. 5-6].

No “Glossário” declaram que “exigiam mudanças econômicas e políticas, muitas das quais foram logo atendidas com a adoção do NPE [Nova Política Econômica]” [Op. Cit., p. 148] Isso, ironicamente, contradiz Trotsky quando ele afirma ser “ilusão” pensar “que bastaria informar aos marinheiros sobre o decreto do NPE para pacificá-los”. Além disso, os “insurgentes não tinham um programa consciente, e nem poderiam tê-lo por causa de sua real natureza pequeno burguesa. Eles mesmos não tinham clareza de que seus pais e irmãos queriam acima de tudo comercializar livremente” [Op. Cit., p. 91-2].

Assim, temos um levante que foi camponês em sua natureza, mas cujas exigências não possuíam nada de comum com outras revoltas camponesas. Que aparentemente exigia liberdade de comércio mas não a reivindicava. Era semelhante ao NPE, mas o decreto do NPE não satisfazia. Produziu uma plataforma de exigências políticas e econômicas mas, aparentemente, não tinha um “programa consciente”. As contradições são abundantes. Essas contradições se tornam ainda mais evidentes quando observamos a relação das 15 exigências (coisa que os trotskistas nunca revelam).

A lista completa dessas reivindicações são as seguintes:

“1. Novas e imediatas eleições para os Sovietes. Os atuais Sovietes não mais expressam a vontade dos trabalhadores e camponeses. As novas eleições devem ser efetuadas pelo voto secreto, e precedidas por propaganda eleitoral livre.

2. Liberdade de expressão e de imprensa para trabalhadores e camponeses, para anarquistas e partidos socialistas de esquerda.

3. Direito de assembleia, liberdade sindical e liberdade de organização camponesa.

4. Organização, para o próximo 10 de março de 1921, da Conferência dos trabalhadores não-partidários, soldados e marinheiros de Petrogrado, Kronstadt e Distrito de Petrogrado.

5. Libertação de todos os prisioneiros políticos dos partidos socialistas, e de todos os trabalhadores e camponeses, soldados e marinheiros pertencentes à classe trabalhadora e organizações camponesas.

6. Eleição de uma comissão para observar os dossiês de todos aqueles que estão detidos em prisões e campos de concentração.

7. Abolição de todas as seções políticas das forças armadas. Nenhum partido político poderá ter privilégios para a propagação de suas idéias, ou receber subsídios estatais para esse fim. Essas seções políticas serão substituídas por vários grupos culturais, subsidiados com recursos do estado.

8. Imediata abolição dos destacamentos de milícia postados na cidade e no campo.

9. Equalização das rações para todos os trabalhadores, exceto aqueles engajados em trabalho perigoso e insalubre.

10. Abolição dos destacamentos de combate do Partido em todos os grupos militares. Abolição da guarda do Partido nas fábricas e empresas. Se a guarda for necessária, ela será formada, levando em conta o ponto de vista dos trabalhadores.

11. Garantia de liberdade de ação aos camponeses em suas próprias terras, e direito ao seu próprio rebanho, desde que eles mesmos se encarreguem disso e não empreguem trabalho assalariado.

12. Exigimos que todas as unidades militares e associações grupos treinados de oficiais acatem essa resolução.

13. Reivindicamos que a Imprensa divulgue apropriadamente esta resolução.

14. Reivindicamos a instituição de grupos móveis de supervisão de trabalhadores.

15. Exigimos que a produção artesanal seja autorizada desde que não utilize trabalho assalariado” [citado por Ida Mett, The Kronstadt Uprising, pp. 37-8].

Este foi o programa descrito pelo governo Soviete como sendo uma “resolução dos Centenas Negras-SR”! Este foi o programa que Trotsky sustentou como impregnado por “um punhado de camponeses e soldados reacionários” [Lênin e Trotsky, Kronstadt, p. 65 e p. 98]. Conforme pode ser visto, não existe nada disso. Na verdade, esta resolução está integralmente dentro do espírito dos slogans políticos dos bolcheviques antes deles subirem ao poder em nome dos sovietes. Além do mais, ela reflete os ideais delineados em 1917 e formalizados na Constituição do Estado Soviético em 1918. Nas palavras de Paul Avrich, “Com efeito, as Resoluções de Petropavlovsk foram um apelo ao governo soviético para que cumprisse sua própria constituição, uma clara manifestação daqueles justos direitos e liberdade que o próprio Lênin professou em 1917. Em espírito, ela foi uma ressonância de outubro, evocando o velho lema leninista de ‘Todo poder aos sovietes’” [Op. Cit., pp. 75-6].

Um triste exemplo de “reacionarismo” político, a menos que os slogans da constituição da RSFRS em 1918 também fossem “reacionários”. A questão agora vem à tona, tanto quanto as implicações contidas naquelas exigências. Na visão dos trotskistas, foram os interesses dos camponeses que as motivaram. Para os anarquistas elas expressam os interesses de todo povo trabalhador (proletariado, camponês e artesão) contra aqueles que pretendiam explorar seu trabalho e governá-los (sejam eles capitalistas privados, capitalistas estatais ou um “estado burocrático”). Discutiremos este assunto na próxima seção.

Seção 4: Até que ponto a rebelião de Kronstadt refletiu “o desespero dos camponeses”?


Este é um argumento comum entre os trotskistas. Embora nunca tenham atendido as reivindicações de Kronstadt, sempre declaram que (usando as palavras de John Rees) aqueles marinheiros “representavam o desespero dos camponeses com o regime Comunista de Guerra” [“In Defence of October”, International Socialism, nº 52, p. 63].

Para Trotsky, as ideias da rebelião “foram profundamente reacionárias” e “refletiam a hostilidade do camponês obtuso para com o trabalhador, a autovalorização do soldado e marinheiro em relação aos ‘civis’ em Petrogrado, a aversão do pequeno burguês à disciplina revolucionária”. A revolta “representou as tendências dos camponeses proprietários de terras, o pequeno especulador, o kulak” [Lenin e Trotsky, Kronstadt, p. 80 e p. 81].

Até que ponto isso é verdade? Basta uma análise ligeira dos eventos ligados à revolta e às Resoluções de Petropavlovsk (veja a última seção) para desmentir esta afirmação de Trotsky. Primeiramente, de acordo com a definição de “kulak” fornecida pelos próprios trotskistas, descobrimos que Kulak se refere ao “camponês abastado dono de terra e que contrata camponeses pobres para trabalhar para ele” [Op. Cit., p. 146]. Ora, o ponto 11 das reivindicações de Kronstadt explicita claramente sua oposição ao trabalho rural assalariado. Como poderia Kronstadt representar o “kulak” proclamando a abolição do trabalho contratado na terra? Claramente, a revolta não representava “o pequeno especulador, o kulak”. Ela representava o camponês dono da terra? Retornaremos a esse assunto mais abaixo. Em segundo lugar, os revoltosos do Kronstadt enviaram delegados para investigar a condição dos trabalhadores em greve em Petrogrado. Suas ações foram inspiradas pela solidariedade para com aqueles trabalhadores e civis. Isto mostrava claramente que a afirmação de Trotsky de que ela “refletia a hostilidade do camponês obtuso para com o trabalhador, a autovalorização do soldado e marinheiro em relação aos ‘civis’ em Petrogrado” é integralmente um total nonsense.

Se essa afirmação de Trosky é “profundamente reacionária”, as ideias que motivaram a revolta certamente não o foram. Elas foram a consequência da solidariedade com os trabalhadores em greve e uma chamada à democracia soviética, à liberdade de expressão, de assembleia e de organização dos trabalhadores e camponeses. Elas expressavam as necessidades da maioria, se não todos, dos partidos marxistas (incluindo o bolchevique em 1917) antes de tomarem o poder. Eles simplesmente repetiram as aspirações e os fatos do período revolucionário de 1917 e a Constituição Soviética. Conforme Anton Ciliga argumentou, esses desejos estavam “impregnados pelo espírito de outubro; e nenhuma calúnia do mundo pode colocar em dúvida a íntima conexão existente entre esta resolução e os sentimentos que guiaram as expropriações de 1917” [“The Kronstadt Revolt”, The Raven, nº 8, pp. 330-7, p. 333]. Considerar as ideias da revolta de Kronstadt reacionárias é o mesmo que considerar o slogan “todo poder aos sovietes” reacionário.

Até que ponto aquelas aspirações representavam os interesses dos camponeses? Para responder isso precisamos verificar se elas representavam os interesses dos trabalhadores industriais ou não. Se as exigências estavam, de fato, em harmonia com as aspirações dos trabalhadores em greve e outros setores do proletariado, então podemos facilmente descartar essa afirmação. Além do mais, se as reivindicações da rebelião de Kronstadt refletiram as aspirações dos proletários então é impossível dizer que elas refletiam simplesmente as necessidades dos camponeses (naturalmente, os trotskistas argumentarão que aqueles proletários eram também “obtusos” mas, com efeito, o que eles queriam dizer mesmo é que qualquer trabalhador que não obedecesse cegamente às ordens bolcheviques não passava de “obtuso”!).

Basta uma passada de olhos para perceber que aquelas exigências já vinham ecoando desde Moscou e Petrogrado nas greves que precederam a revolta de Kronstadt. Por exemplo, Paul Avrich destaca que as exigências apresentadas nas greves de fevereiro incluíam “remoção dos bloqueios, permissão para efetuar colheitas no campo e para comercializar livremente nos vilarejos [e a] eliminação das rações privilegiadas para categorias especiais de homens trabalhadores”. Os trabalhadores também “pediam que a guarda especial armada bolchevique, restringisse suas atividades à função meramente policial, saindo fora das fábricas” e [estavam] “apelando pela restauração dos direitos civis e políticos”. Um certo manifesto que surgiu (anônimo mas com marcas de origem menchevique) argumentava, “os trabalhadores e camponeses necessitam de liberdade. Eles não querem decretos dos bolcheviques. Querem controlar seus próprios destinos”. Coisas assim levaram os grevistas a exigir libertação de todos os presos socialistas e trabalhadores apartidários, abolição da lei marcial, liberdade de expressão, de imprensa, de assembleia para todos os trabalhadores, eleições livres dos comitês de fábricas, sindicatos, sovietes [Op. Cit., pp. 42-3]. [Vale destacar que as greves de Petrogrado eram espontâneas e a atuação menchevique eram meramente oportunista diante da situação das exigências do proletariado].

Nas greves de 1921, de acordo com Lashevich (um comissário bolchevique) as “exigências básicas são sempre as mesmas: liberdade para comercializar, liberdade para trabalhar, liberdade de ir e vir, e assim por diante”. Duas outras exigências chaves nas greves datam de antes de 1920. Elas pediam “pelo livre comércio e pelo fim dos privilégios”. Em março de 1919, “Os operários da fábrica de carroçarias de veículos motorizados e vagões de trem de Rechkin exigiam rações iguais para todos os trabalhadores”, uma das “exigências mais típicas dos trabalhadores em greve naquele tempo era a liberdade de providenciar seu próprio alimento” [Mary McAuley, Bread and Justice, p. 299 e p. 302].

Conforme pode ser visto, a maioria dessas exigências estão relacionadas diretamente com os pontos 1, 2, 3, 5, 8, 9, 10, 11 e 15 das reivindicações de Kronstadt. Conforme Paul Avrich argumenta, as exigências de Kronstadt “ecoam não apenas o descontentamento da Frota Báltica mas também o descontentamento das massas russas nas vilas e cidades através do país. Da mesma forma que o povo comum, os marinheiros estavam preocupados com a situação dos seus parentes camponeses e trabalhadores. Na verdade, daqueles 15 pontos da resolução, apenas um – a abolição dos departamentos políticos na frota – tinha uma aplicação específica à sua própria condição. As demais… eram reclamações visando a política de guerra ‘comunista’, a justificação de que, aos olhos dos marinheiros e da população como um todo, [todas aquelas restrições à liberdade] tinham que desaparecer imediatamente”. Avrich argumenta que muitos dos marinheiros que, retornando para casa e vendo as más condições dos vilarejos pelos seus próprios olhos, resolveram tomar a iniciativa formalizando uma resolução (particularmente no ponto 11, o único que menciona especificamente as exigências dos camponeses) [sobre a política bolchevique com relação ao campo], mas “nessa mesma direção, a viagem de inspeção dos marinheiros nas fábricas de Petrogrado resultou na inclusão de suas principais exigências no programa – a abolição dos bloqueios nas estradas, o fim das rações privilegiadas, e dos esquadrões armados dentro das fábricas” [Op. Cit., pp. 74-5].

Ida Mett observa que a rebelião de Kronstadt não clamava simplesmente por “livre comércio” da forma como os trotskistas argumentam:

“O levante de Kronstadt em 14 de março foi marcado pelo seu principal objetivo. Os rebeldes proclamaram que Kronstadt não estava pedindo simplesmente por liberdade de comércio mas pelo genuíno poder dos sovietes. Os grevistas de Petrogrado exigiam a reabertura dos mercados e a abolição dos bloqueios nas estradas implementados pelas milícias armadas. Suas exigências deixaram claro que a liberdade de comércio por si só não resolveria seus problemas” [Op. Cit., p. 77].

Assim verificamos que os trabalhadores de Petrogrado (e de outros lugares) exigiam “livre comércio” (procurando, presumivelmente, expressar seus interesses econômicos tanto quanto os de seus pais e irmãos) ao passo que os marinheiros de Kronstadt reivindicavam acima de tudo o poder soviético! Seu programa exigia “Garantia de liberdade de ação aos camponeses em suas próprias terras, e direito ao seu próprio rebanho, desde que eles mesmos se encarreguem disso e não empreguem trabalho assalariado”. Este foi o ponto 11 das 15 reivindicações, que mostrava o grau de importância diante de seus olhos. Esta reivindicação se baseava no comércio efetuado entre a cidade e os povoados, mas tratava-se de comércio entre trabalhadores e não entre trabalhadores e kulak.

Mencionando “livre comércio” em sentido abstrato (como os trabalhadores fizeram) o povo de Kronstadt (refletindo as necessidades tanto dos trabalhadores quanto dos camponeses) se referia à livre troca de produtos entre trabalhadores, não entre trabalhadores e capitalistas rurais (isto é, camponeses que contratavam escravos assalariados). Isto indica seu alto grau de consciência política, a consciência do fato de que trabalho assalariado é a essência do capitalismo. Conforme disse Ante Ciliga:

“Muitas pessoas acreditaram que foi Kronstadt que forçou a introdução da Nova Política Econômica (NPE) – um profundo erro. A resolução de Kronstadt pronunciou-se em favor da defesa dos trabalhadores, não apenas contra o capitalismo burocrático do Estado, mas também contra a restauração do capitalismo privado. Esta restauração foi exigida – com a oposição de Kronstadt – pelos sociais-democratas, que combinavam esta aspiração com um regime político democrático. Tanto Lênin quanto Trotsky em grande parte realizaram isso (mas sem a política democrática) na forma da NPE. As resoluções de Kronstadt [por sua vez] declarou-se inteiramente oposta ao emprego de trabalho assalariado na agricultura e na pequena indústria. Esta resolução, e os movimentos subjacentes, procuravam estabelecer uma aliança revolucionária entre os trabalhadores proletários e os camponeses, os setores mais pobres entre os trabalhadores do país, de modo que a revolução pudesse se desenvolver em direção ao socialismo. O NPE, por outro lado, representava a união dos burocratas com os mandatários dos povoados contra o proletariado; o NPE representou a aliança do capitalismo de Estado com o capitalismo privado contra o socialismo. O NPE em muito se opõe às exigências de Kronstadt da mesma forma que, por exemplo, o programa socialista de vanguarda dos trabalhadores europeus pela abolição do sistema de Versalhes se opunha à anulação do Tratado de Versalhes desenvolvido por Hitler” [Op. Cit., pp. 334-5].

Com relação ao ponto 11, Ida Mett destacou, “ele reflete as exigências dos camponeses com os quais os marinheiros de Kronstadt tinham estreitas ligações – da mesma forma que tinham, e isso é um fato, com todo o proletariado russo…  Em sua grande maioria, os trabalhadores russos tiveram uma origem camponesa. E isso precisa ser levado em consideração. Os marinheiros do Báltico no ano de 1921 estavam, sem sombra de dúvida, estreitamente ligados com os camponeses. Eles eram, nada mais nada menos, os mesmos marinheiros de 1917”. Ignorar os camponeses em um país onde a vasta maioria veio do campo é uma atitude insana (como os bolcheviques provaram). Mett destaca isto quando argumenta que “[o bolchevismo] foi um regime baseado exclusivamente na mentira e no terror e que nunca levou em conta as aspirações dos trabalhadores e dos camponeses” [Op. Cit., p. 40].

Uma vez que a classe trabalhadora industrial russa estava também exigindo liberdade de comércio (e sem as clausuras políticas, anticapitalistas acrescentadas por Kronstadt) soa desonesto afirmar que os marinheiros expressavam puramente os interesse dos camponeses. Talvez isso explique porque os 11 pontos acabaram resumidos em “restauração do livre comércio” pelos trotskistas no “Prefácio Editorial” de Lênin e Trotsky. [Kronstadt, p. 6]. John Rees não menciona sequer uma das reivindicações (o que é surpreendente em uma obra que, em parte, tenta analisar a rebelião).

A natureza dessas resoluções passou pelo crivo da classe trabalhadora para que pudesse concordar com ela. Passou pelos marinheiros nos navios de guerra, pelos encontros de massa, pelo encontro de delegados de trabalhadores, soldados e marinheiros. Em outras palavras, pelos trabalhadores e pelos camponeses.

J.G. Wright, acompanhando seu guru Trotsky (utilizando-o como única referência para seus “fatos”, como um cego guiado por outro), mencionou “o fato incontestável” dos “marinheiros engrossando as forças insurgentes” enquanto que “a guarnição e a população civil permaneciam passivos” [Op. Cit., p. 123]. Dessa forma estaria caracterizada, aparentemente, a natureza camponesa da revolta. Vamos pois contestar esse “fato incontestável” (isto é as afirmativas de Trotsky).

O primeiro fato que é necessário mencionar é que afluíram ao encontro de 1º de março “entre cinquenta e sessenta mil marinheiros, soldados e civis” [Getzler, Op. Cit., p. 215]. Isto representava mais de 30% da população total de Kronstadt. O que dificilmente indica uma atitude “passiva” por parte dos civis e soldados.

O segundo fato é que a conferência de delegados teve uma “participação em cerca de duas ou três centenas de marinheiros, soldados, e trabalhadores”. Esta composição permaneceu existindo durante toda a revolta da mesma maneira que seu equivalente soviete de 1917, inclusive com delegados sovietes de Kronstadt representando “unidades militares e fabris”. Na verdade, tudo aquilo representava, com efeito, um “protótipo dos ‘sovietes livres’ pelos quais os insurgentes se levantaram em revolta”. Além disso, um novo Conselho Sindical acabara de ser formado, livre da dominação “comunista” [Avrich, Op. Cit., p. 159, p. 157 e p. 157]. Será que Trotsky esperava que acreditássemos que os soldados e civis que elegeram estes delegados fossem “passivos”? O simples ato de eleger tais delegados envolveu discussão, tomada de decisão, além de uma ativa participação. Como é possível qualificar soldados e civis revoltosos de “apáticos e apolíticos”?

Isto foi confirmado posteriormente pelos historiadores. Baseado em tais fatos, Paul Avrich destaca que a população da cidade “ofereceu suporte ativo” e que as tropas do Exército Vermelho “logo se posicionou em linha” [Op. Cit., p. 159]. Getzler por sua vez, destaca que as eleições foram defendidas também pelo Conselho de Sindicatos em 7 e 8 de março e que “o comitê do conselho era formado por representantes de todos os sindicatos”. Ele confirmou que a Conferência de Delegados “havia sido eleita pelos grupos políticos de Kronstadt para que pudesse funcionar em unidades armadas, fábricas, lojas e instituições sovietes”. Além disso, destaca que os revolucionários troikas (equivalente às comissões do Comitê Executivo do Soviete em 1917) foram também “eleitos pela base das organizações”. O mesmo aconteceu com, “o secretariado dos sindicatos e o recém-fundado Conselho de Sindicatos, ambos eleitos pelo conjunto dos membros dos sindicatos” [Op. Cit., pp. 238-9 e p. 240]. É muita atividade para ser implementada por pessoas “passivas”.

Em outras palavras, as Resoluções de Petropavlovsk não apenas refletiam as exigências do proletariado de Petrogrado, como também ganhou apoio dos proletários de Kronstadt, da frota, do exército e dos trabalhadores civis. Aquele que, mesmo diante de todas essas evidências, ainda insiste na afirmação de que as resoluções de Kronstadt refletiram puramente os interesses dos camponeses, assemelha-se a uma avestruz que enterra a cabeça no chão na recusa de enxergar a realidade.

Conforme vimos, o povo de Kronstadt (assim como os trabalhadores de Petrogrado) efetuaram exigências políticas e econômicas em 1921 da mesma maneira como fizeram, quatro anos antes, quando enfrentaram o Czar. Fato que, novamente, refuta a lógica dos defensores do bolchevismo. Por exemplo, Wright supera a si mesmo quando argumenta que:

“A suposição de que soldados e marinheiros poderiam aventurar-se em uma insurreição sob o abstrato slogan de ‘sovietes livres’ é por si só absurdo. E é duplamente absurdo diante do fato [!] de que o restante da guarnição de Kronstadt consistia de pessoas passivas e obtusas que não poderiam ser utilizadas em uma guerra civil. Tais pessoas só participariam de uma revolução se movidos por profundas necessidades e interesses econômicos. Eles representavam os interesses e necessidades dos pais e irmãos daqueles marinheiros e soldados, ou seja, de camponeses e comerciantes de produtos alimentícios e de matéria prima. Em outras palavras aquela multidão era a expressão da pequena burguesia reagindo contra as dificuldades e privações impostas pela revolução proletária. Ninguém pode negar esses traços característicos desses dois setores” [Op. Cit., pp. 111-2].

Naturalmente, dentro dessa perspectiva, nenhum trabalhador ou camponês participaria de um sindicato conscientemente pelos seus próprios esforços, conforme Lênin refletidamente argumentou em “What is to be Done?”. Nem a experiência das duas revoluções poderia exercer impacto em ninguém. Estariam todos indiferentes à extensiva política de agitação e de propaganda de anos de luta? Seriam os marinheiros tão estúpidos a ponto de não ter nenhuma “profunda necessidade ou interesse econômico” próprios, adotando os interesses de seus pais e irmãos!? Na visão de Trotsky, eles “não podiam compreender por si próprios que seus pais e irmãos queriam acima de tudo liberdade de comércio” [Op. Cit., p. 92]. Era este o conceito dos bolcheviques sobre os marinheiros que formavam a tripulação de alguns dos navios de guerra mais avançados do mundo?

Essas lamentáveis asserções históricas de Wright revelam em cada palavra um gritante equívoco. Ora, o povo trabalhador constantemente apresenta exigências políticas que estão muito à frente das apresentadas pelos revolucionários “profissionais” (como aquele alemão que, com a Comuna de Paris na mente, pouco ligava para aquela Rússia com seus sovietes). A verdade é que os marinheiros de Kronstadt não apenas “se aventuraram em uma insurreição sob o abstrato slogan por ‘sovietes livres’” como realmente criaram um (a conferência de delegados), coisa que Wright não menciona. Acima de tudo, como provaremos na seção H.5.8, os marinheiros de 1921 foram virtualmente idênticos àqueles de 1917. Aqueles marinheiros não poderiam ser substituídos com tanta rapidez e facilidade devido à tecnologia requerida para operar as defesas e os navios de guerra de Kronstadt.

Considerando “a influência dos marinheiros de origem camponesa nas tropas do Exército Vermelho contra o governo” é possível que os trotskistas argumentem que isso se dava devido aos “soldados rasos do Exército Vermelho… relutantes e desconfiados, que resistiam lutar contra o Kronstadt Vermelho, embora apontassem suas armas contra eles durante a batalha”, isso também prova a natureza camponesa da revolta? [Sam Farber, Op. Cit., p. 192; Israel Getzler, Kronstadt 1917-1921, p. 243]. A fragilidade dos argumentos apresentados pelos trotskistas com relação a Kronstadt é tal que não resistem a qualquer análise séria!

Por exemplo, é evidente que os trotskistas sabiam da natureza não-camponesa das reivindicações de Kronstadt (conforme indicamos na última seção). Foi isto que John Rees pateticamente reconheceu quando afirmou que “nenhuma outra insurreição camponesa reproduziu as exigências de Kronstadt” [Op. Cit., p. 63]. Conforme indicamos acima, tanto greves, resoluções como também as atividades proletárias, todas elas produziram exigências similares ou idênticas às exigências do Kronstadt. Tais fatos, por si só, revelam a verdade (ou mentira) das asserções trotskistas nesse assunto. Vasculham greves no passado, mas falham não reconhecendo que as exigências surgiram após a delegação de marinheiros retornar de Petrogrado. Em vez de “motivação ligada aos camponeses” e de “insatisfação com as classes trabalhadoras urbanas” os fatos revelavam exatamente o oposto (conforme pode ser visto quando as reivindicações vieram à tona) [Op. Cit., p. 61]. O motivo das resoluções teve suas origens nas greves em Petrogrado, incluindo naturalmente também a insatisfação dos camponeses (exposta no ponto 11). Para o povo de Kronstadt, a revolta dizia respeito a todos os trabalhadores e a resolução refletia tanto as necessidades e as exigências dos trabalhadores quanto dos camponeses.

Agora, afirmar que Kronstadt refletia unicamente as condições e os interesses dos camponeses revela-se um monumental nonsense. Aliás, não foram as exigências econômicas que alarmaram as autoridades bolcheviques. Zinovioev estava para remover os destacamentos de bloqueio das estradas (ponto 8) enquanto que o governo desenhava aquilo que mais tarde tornou-se conhecido como Nova Política Econômica (NPE) que, diga-se de passagem, atendia parcialmente o ponto 11 (a NPE, diferentemente do que desejava o povo de Kronstadt, além de não abolir o trabalho assalariado, ironicamente, atendia aos interesses dos Kulaks!). O problema estava nas exigências políticas. Elas representavam um claro desafio ao poder bolchevique pela proclamação do “poder soviético” (isto é, o poder do partido deles contra o proletariado).

Seção 5: Que mentiras os bolcheviques espalharam sobre Kronstadt?


Desde o começo os bolcheviques mentiram sobre o levante. Na verdade, Kronstadt proporciona um clássico exemplo de como Lênin e Trotsky utilizavam a difamação e calúnia para destruir seus oponentes. Ambos procuraram pintar a revolta como sendo organizada e conduzida pelos brancos. Em cada um dos estágios da rebelião, eles faziam questão de afirmar que ela fora organizada e dirigida por elementos da guarda branca. Conforme Paul Avrich escreveu, “fizeram de tudo para que os rebeldes fossem desacreditados” quando o “o principal objetivo da propaganda bolchevique era mostrar que o motim não foi uma explosão espontânea das massas em revolta, mas uma nova conspiração contrarrevolucionária, seguindo o modelo estabelecido durante a Guerra Civil. De acordo com a imprensa soviética (governo), os marinheiros, influenciados pelos mencheviques e pelos SRs, tinham desavergonhadamente se vendido aos ‘guardas brancos’ subordinando-se a um general do Czar chamado Kozlovksy… Tomando parte em uma cuidadosa conspiração de desmantelamento [da Revolução] desenvolvida em Paris por emigrantes russos em conexão com a contrainteligência francesa” [Op. Cit., p. 88 e p. 95].

Lênin, por exemplo, argumentou no Décimo Congresso do Partido Comunista em 8 de março que “Generais da Guarda Branca tiveram uma participação bastante ativa ali. Existem muitas provas disso” e que ela foi “obra de Socialistas Revolucionários [SRs de direita] e emigrantes da Guarda Branca” [Lenin e Trotsky, Kronstadt, p. 44].

O primeiro comunicado do governo sobre os eventos do Kronstadt trazia o título de “A Revolta do Ex-General Kozlovsky e o Navio de Guerra Petropavlovsk” declarando, em parte, que a revolta foi “determinada, e  indubitavelmente preparada pela contrainteligência francesa”. A descrição continua, afirmando que, pela manhã do dia 2 de março, “o grupo dirigido pelo ex-general Kozlovsky… entrou em ação… [ele] juntamente com três de seus oficiais… assumindo a direção dos insurgentes. Sob seu comando… uma quantidade de… indivíduos responsáveis, foram presos… Na retaguarda dos SRs havia um general czarista” [Op. Cit., pp. 65-6].

Victor Serge, um anarquista francês que se tornou bolchevique, lembrou que ele foi a primeira pessoa a receber a notícia de que “Kronstadt estava nas mãos dos brancos” e que “pequenos cartazes pregados nos muros nas ruas proclamavam que o contrarrevolucionário general Kozlovsky submetera Kronstadt através de conspiração e traição”. Com o passar dos dias, a “verdade pouco a pouco começou a aparecer, diluindo a cortina de fumaça vinculada pela imprensa, um amontoado de mentiras” (na verdade, ele afirmou que a imprensa bolchevique “mentia sistematicamente”). Ele descobriu que a versão oficial bolchevique era “uma mentira atroz” e que, na verdade, “tratava-se de um motim de marinheiros, uma revolta naval dirigida pelo soviete”. Contudo, o “pior de tudo foi a paralisação provocada pela fraude oficial. Isso nunca havia acontecido antes, o Partido mentindo assim para nós. ‘Isto é necessário para o benefício do público’ alguém disse… a greve [em Petrogrado] agora é praticamente geral” (importante destacar que Serge, nas páginas anteriores, referindo-se a Nestor Makhno, menciona “a extrema calúnia vinculada pela imprensa comunista” sobre ele, “insistindo em acusá-lo de assinar pactos com os brancos num momento em que ele estava engajado em uma luta de vida ou morte contra eles”, sugerindo que Kronstadt foi desgraçadamente a primeira vez que o Partido mentiu para ele) [Memoirs of a Revolutionary, pp. 124-6 e p. 122].

Da mesma forma, Isaac Deutscher, o biógrafo de Trotsky, disse que os bolcheviques “acusaram os homens amotinados de Kronstadt de contrarrevolucionários conduzidos por um general branco. Uma denúncia que aparentava ser infundada” [The Prophet Armed, p. 511].

A afirmação de que a rebelião de Kronstadt era obra de brancos e conduzida por um general czarista branco foi uma mentira – uma mentira deliberada e conscientemente espalhada. Ela foi forjada visando enfraquecer o apoio à rebelião em Petrogrado e no Exército Vermelho, e para evitar que se espalhasse. O próprio Lênin admitiu em seu discurso em 15 de março na Décima Conferência do Partido que em Kronstadt (contrariando o que dissera em 8 de março) “eles não necessitavam dos guardas brancos, nem de nosso poder tampouco” [citado por Avrich, Op. Cit., p. 129].

Se você concordar com o marxista italiano Antonio Gramsci quando ele diz que “falar a verdade é um ato comunista e revolucionário” então fica claro que os bolcheviques em 1921 (e previamente) não foram nem comunistas nem revolucionários.

Os editores trotskistas de “Kronstadt” mostram a mesma versão dos bolcheviques como sendo expressão da verdade. Nesta obra, eles apresentam uma “introdução” de Pierre Frank que argumenta que os bolcheviques simplesmente “declararam que generais [brancos] contrarrevolucionários empenharam-se na manipulação de insurgentes” e que os anarquistas “por sua vez proclamavam que tais generais tinham dado início à rebelião e que Lenin, Trotsky juntamente com toda liderança do Partido sabiam que não se tratava de uma mera revolta de ‘generais’” [citado por Ida Mett]. Pelo que se pode apreender de tais autores, aparentemente, procuravam justificar que “alguma coisa tinha que ser feita diante desses fatos”. Ele declara que Mett e outros “simplesmente distorceram as posições bolcheviques” [Op. Cit., p. 22].

Esta mesma obra estabelece que aquilo que Lênin realmente queria dizer em 8 de março de 1921 era que, “a imagem familiar dos generais da guarda branca” veio “rapidamente à tona”, e que “os generais brancos eram muito ativos” ali, e que era “totalmente claro que aquilo era obra de Socialistas Revolucionários (SRs) e emigrantes da guarda branca” e que Kronstadt tinha “ligações” com “a guarda branca” [Op. Cit., pp. 44-5]. Isto foi declarado a despeito da presença das declarações governamentais que mencionamos acima em que o governo bolchevique claramente se refere à prisão de dois líderes comunistas sob o “comando” de Kozlovsky que, por sua vez, “demonstrava” apoio à direita dos SRs cujas movimentações originaram à revolta (de acordo com os bolcheviques).

Primeiramente, é incorreto associar Ida Mett às declarações de Lênin e Trotsky sobre o general que “iniciara” a revolta. Em segundo lugar, ela apenas repetiu a versão da rádio de Moscou sobre a revolta (“apenas mais uma insurreição da guarda branca”), que se tratava de “um motim do ex-general Kozlovsky e a tripulação do navio de guerra ‘Petropavlovsk’”. Uma trama organizada por espiões, enquanto os Socialistas Revolucionários (SRs) “preparavam” o terreno. Uma grande armação que tinha como real comandante um “general czarista”. Na página anterior mencionada por Frank, consta a versão bolchevique sobre quem teria iniciado a revolta. Estranho a queixa de Frank sobre outros “distorcendo” a posição bolchevique quando, além da pessoa que ele cita não ter feito isso, ele distorce seu real posicionamento [Mett, Op. Cit., p. 43].

Mett simplesmente tomou conhecimento das mentiras bolcheviques na medida em que a verdade com o tempo vinha à tona. O que ela disse foi que “Lênin, Trotsky juntamente com toda liderança do Partido sabiam que não se tratava de uma mera revolta de ‘generais’” [Op. Cit., p. 43]. Quem era esse tal general Kozlovsky que os bolcheviques tanto insistiam em apontar como o líder da revolta? O que teve a ver com tudo isso? Mett explica o que aconteceu:

Embora fosse um “general da artilharia, e o primeiro a desertar das linhas bolcheviques, parecia destituído de qualquer capacidade de liderança. Quando eclodiu a insurreição esperava-se que assumisse o comando da artilharia do Kronstadt, [pois] o comandante comunista da fortaleza havia desertado. De acordo com as regras que prevaleciam na fortaleza [quem] deveria substituí-lo [era] Kozlovsky”. Ele, na verdade, recusou o cargo, declarando que as velhas regras não poderiam mais ser aplicadas pois a fortaleza agora estava sob a jurisdição do Comitê Revolucionário Provisório. Kozlovsky permaneceu, e isto é verdade, em Kronstadt, mas apenas enquanto perito em artilharia. Todavia, após a queda de Kronstadt, em uma entrevista concedida à imprensa finlandesa, Kozlovsky acusou os marinheiros de gastarem um precioso tempo com outros assuntos em vez de defender a fortaleza. Ele explicou isso em termos de sua relutância em tomar parte de um eventual banho de sangue. Posteriormente, outros oficiais da guarnição também passaram a acusar os marinheiros de incompetência militar, e de mão darem a devida atenção a suas observações técnicas. Kozlovsky era o único general presente em Kronstadt. Isto foi suficiente para que o Governo fizesse uso de seu nome.

“Os homens de Kronstadt, até certo ponto, utilizaram os conhecimentos militares de alguns oficiais antigos da fortaleza. Alguns desses oficiais avisaram os homens de que seriam completamente hostilizados pelos bolcheviques. Mas em seu ataque a Kronstadt, as forças do Governo também utilizaram oficiais ex-czaristas. De um lado estavam Kozlovsky, Salomianov, e Arkannihov; do outro, também oficiais ex-czaristas e peritos do velho regime, tais como Toukhatchevsky, Kamenev, e Avrov. Em nenhum dos lados havia forças independentes” [Op. Cit., p. 44].

Todas as versões não-leninistas concordam com isso. Paul Avrich destacou que quando surgiu o nome de Kozlovsky “os bolcheviques passaram a denunciá-lo como o gênio do mal do movimento” transformaram-no num “proscrito” e passaram a hostilizar seus familiares. Ele confirmou que peritos militares “recebiam incumbências na tarefa de planejar operações militares em favor da insurreição”. Embora se recusando assumir o comando da fortaleza depois da fuga do oficial mais graduado para o continente, “os oficiais o consideravam um competente conselheiro para a rebelião… [mas no que diz respeito ao] início ou à direção da revolta, à construção de seu programa político, [todas estas coisas] estavam alienadas de sua maneira de pensar”. Sua função “se restringia em prover considerações técnicas, da mesma forma que procedera com os bolcheviques”. É necessário mencionar também, que “diante de todas as acusações de que Kronstadt era uma conspiração de generais de guardas brancos, os oficiais ex-czaristas exerceram uma importância maior no ataque do que na defesa da fortaleza” [Op. Cit., p. 99, p. 100, p. 101 e p. 203].

Contudo, nada disso é suficiente para os trotskistas. Wright, por exemplo, não toca nesse assunto. Ele apenas menciona a declaração de Alexander Berkman, sobre “um general, Kozlovsky, em Kronstadt. Nomeado por Trotsky como perito em artilharia. E que não exerceu nenhum papel nos eventos de Kronstadt” [The Kronstadt Rebellion]. Diante disso, Wright protesta dizendo não corresponder à verdade e, como prova, apela para a entrevista de Kozlovsky afirmando que “dos próprios lábios do general contrarrevolucionário… adquirimos uma declaração clara de que desde o primeiro dia, ele e seus colegas haviam se associado abertamente com os amotinados, tinham elaborado os ‘melhores’ planos para capturar Petrogrado… Se o plano falhasse teria sido apenas porque Kozlovsky e seus colegas foram incapazes de convencer os ‘líderes políticos’, isto é, seus aliados SR [!], e de que o momento era propício para expor os verdadeiros aspectos de seu programa” [Lenin e Trotsky, Kronstadt, p. 119].

Será que a recusa do Comitê Revolucionário Provisório em considerar os conselhos do perito militar seriam uma prova de que, de fato, eles tinham ligação entre si!? Isso é bastante comovente! Será que se o povo de Kronstadt tivesse aceito seu conselho isso provaria que eles não estariam ligados? O fato de Kozlovsky não assumir o comando da fortaleza se constitui numa prova de que ele tinha ligações com a revolta conforme a versão da rádio bolchevique!? Berkman estava certo? Kozlovsky foi o comandante da revolta?

Ora, a único vínculo de Kozlovsky com os rebeldes foi oferecer sua perícia aos amotinados de Kronstadt (da mesma forma que fizera com os bolcheviques) e desenvolver planos que foram rejeitados. Será que o simples fato de oferecer sua perícia e fazer planos que são rejeitados pelos envolvidos equaliza seu papel naquele evento? Se isso for verdade então o papel de Trotsky na revolução equivale ao papel de Durruti na revolução espanhola!

Na medida em que as óbvias falsificações em torno desse tema tornaram-se mais e mais conhecidas, Trotsky e seus seguidores apelaram para outros argumentos num contínuo processo de calúnia e difamação dos rebeldes. O mais famoso foi afirmar que os “marinheiros de Kronstadt eram completamente diferentes dos heroicos grupos revolucionários de 1917” [Wright, Op. Cit., p. 129]. Retornaremos a esta questão na seção H.5.8, refutando-a pelas evidências (e mostrando como os trotskistas abusam de pesquisas apresentando um quadro drasticamente falsificado dos fatos reais).

Seção 6: A revolta de Kronstadt foi um complô branco?


Os bolcheviques sempre retrataram a revolta de Kronstadt como um complô branco, organizado pela contrarrevolução (veja mais detalhes na última seção). Em particular, associavam a revolta a uma conspiração, dirigida por espiões estrangeiros e executada pelos SRs e pelos aliados da vanguarda branca.

Lênin, por exemplo, argumentou em 8 de março que “os generais da guarda branca eram muito ativos” em Kronstadt. “Existem amplas provas disso. Duas semanas antes do evento de Kronstadt, os jornais de Paris publicaram um motim em Kronstadt. É evidente que se trata da ação dos Socialistas Revolucionários e emigrantes da guarda branca” [Kronstadt, pp. 44].

Em 16 de março, Trotsky fez outra observação semelhante, destacando que,  “alguns jornais estrangeiros… noticiaram que haveria um levante em Kronstadt em meados de fevereiro… Como explicar isso? Muito simples… Os organizadores da Rússia contrarrevolucionária planejaram desencadear o motim no momento propício, enquanto que um impaciente jornal amarelo e a imprensa financeira branca publicam que ele já está acontecendo de fato” [Op. Cit., p. 68].

Estas parecem ser as grande s“evidências” de Lênin e Trotsky com relação à natureza branca-vanguardista da revolta. Na verdade, Trotsky com “base nesse despacho… enviou um aviso a Petrogrado para meus companheiros navais” [Ibid.].

Todavia, para averiguar a verdade (ou inverdade) dessas afirmações basta verificar como os bolcheviques reagiram ao anúncio do levante em Kronstadt. Eles não fizeram nada. Os próprios editores trotskistas de um livro produzido para justificar a repressão declararam que “o comando do Exército Vermelho foi apanhado de surpresa pela rebelião” [Op. Cit., p. 6]. J.G. Wright, defendendo a posição de Trotsky (uma defesa encomendada pelo próprio Trotsky), confessa que o “comando do Exército Vermelho” foi “pego de surpresa pelo motim” [Op. Cit., p. 123]. Isto mostra claramente a pouca importância que os jornais davam à situação antes da rebelião. Naturalmente, durante e depois a rebelião recebeu várias e diferentes abordagens que rapidamente se tornaram foco da sujeira bolchevique.

Agora, usar essas coisas como evidência de um complô branco, é simplesmente patético. Conforme Ida Mett argumentou, a “publicação de falsas notícias sobre a Rússia nada tinha de excepcional. Tais notícias eram [corriqueiramente] publicadas antes, durante e depois dos eventos de Kronstadt… Basear acusações em ‘provas’ dessa espécie é inadmissível e imoral” [Mett, Op. Cit., p. 76].

Trotsky, ao mesmo tempo em que admitia, por um lado, que “a imprensa imperialista… publicava… um grande número de reportagens fictícias sobre a Rússia” sustentava, por outro, que as reportagens sobre Kronstadt eram exemplos de “tramas” visando “provocar transtornos nos centros específicos da Rússia Soviética” (na verdade, aqueles “agentes jornalísticos do imperialismo apenas ‘adiantaram’ aquilo que estava sendo preparado para ser executado pelos outros agentes do imperialismo”) [Kronstadt, p. 69]. Lênin também observou, em um artigo intitulado “A Campanha das Mentiras”, que “a imprensa ocidental, nas duas últimas semanas, mergulhara em uma orgia de mentiras engajando-se na produção massiva de invenções fantásticas sobre a Rússia Soviética” e relatou coisas tipo “Petrogrado e Moscou nas mãos dos insurgentes” [Op. Cit., p. 50 e p. 51].

Ora, se essa imprensa não era confiável como é que podia ser utilizada como prova de uma conspiração branca em Kronstadt? A resposta é previsível. Conforme Mett observou, “em 1938 o próprio Trotsky fez esta acusação” [Op. Cit., p. 76]. Em outras palavras, num primeiro momento a imprensa é a mais pura expressão da mentira, num segundo momento aquela mesma imprensa torna-se o mais valoroso arauto da verdade, um documento incontestável. Algo milagroso, para não dizer patético! Contudo, nem isso impediu que seu leal seguidor John G. Wright se referisse a aquelas coisas como “fatos irrefutáveis” determinantes da “conexão entre a contrarrevolução e Kronstadt” [Op. Cit., p. 115]. Além disso, se há uma conspiração em curso, por que diabos esses conspiradores contrarrevolucionários divulgariam notícias antecipadas sobre seus planos? Isso também nunca foi explicado.

Como pode ser visto, em tempo algum nenhuma evidência foi apresentada provando que os brancos organizaram ou mesmo tomaram parte na revolta. Conforme Ida Mett argumenta:

“Se, o governo bolchevique tinham mesmo provas dessas supostas ligações entre Kronstadt e contrarrevolucionários porque não as apresentaram? Por que não mostraram às massas trabalhadoras da Rússia o ‘real’ motivo do levante? Se isso não foi feito é porque nunca houve qualquer prova” [Op. Cit., p. 77].

Todavia, décadas depois o historiador Paul Avrich acabou descobrindo um documento firmado como “altamente secreto” escrito a mão e intitulado “Memorândum sobre a Questão da Organização do Levante em Kronstadt”. O trotskista Pierre Frank considerou-o “tão convincente” que o “reproduziu integralmente” para provar que existiu uma conspiração branca por trás da revolta de Kronstadt. Na verdade, ele considerou isto uma “incontestável” revelação e que Lênin e Trotsky “não estavam errados em suas análises sobre Kronstadt” [Op. Cit., p. 26 and p. 32].

Contudo, uma rápida leitura do documento revela, de fato, que Kronstadt nada teve a ver com uma conspiração branca, e muito menos foi fruto dela. Pelo contrário o que o documento mostrou com clareza foi que o “Centro Nacional” branco tencionava experimentar e fazer uso de “levantes” espontâneos objetivando “eclodir eventos futuros” para poder atingir seus próprios fins. O documento relata que “podia ser observado nas massas e entre os marinheiros, numerosos e inconfundíveis sinais de insatisfação com a ordem vigente”. Na verdade, o “Memorândum” declarava que “não podemos esquecer que mesmo que o comando francês e as organizações anti-bolcheviques não tomem parte na preparação e na direção do levante, a revolta em Kronstadt será como as outras, depois de um breve período de sucesso estará condenada ao fracasso” [Kronstadt 1921, p. 235 e p. 240].

Conforme Avrich destaca, “o assunto fundamental do Memorândum é que a revolta não ocorreria antes do degelo da primavera, quando o gelo derrete e Kronstadt fica imune à uma invasão pelo continente” [Kronstadt 1921, pp. 106-7]. Voline dizia o óbvio quando argumentou que a revolta “eclodiu espontaneamente” pois se ela “fosse resultado de um plano concebido e preparado anteriormente, ela certamente não teria acontecido no começo de março, num momento desfavorável. Algumas semanas depois, com Kronstadt livre do gelo, teria se tornado uma fortaleza inexpugnável… A grande vantagem do governo bolchevique foi precisamente a espontaneidade do movimento e a ausência de qualquer organização prévia, qualquer cálculo, na ação dos marinheiros” [The Unknown Revolution, p. 487]. Conforme pode ser visto, o “Memorândum” também reconheceu a necessidade do gelo derreter e esta era a questão básica que estava por trás do documento. Em outras palavras, a revolta foi realmente espontânea e isto permeia todo o “Memorândum”.

Avrich rejeita a ideia de que o “Memorândum” explique a revolta:

“Nada vem à luz revelando que o memorando secreto tenha sido sequer posto em prática ou que havia alguma ligação entre os emigrantes e os marinheiros antes da revolta. Pelo contrário, o levante caracterizou-se pela espontaneidade… não havia nenhum traço no comportamento dos rebeldes que sugerisse qualquer cuidado maior nos preparativos da revolta. Se tivessem arquitetado um plano, os marinheiros certamente teriam esperado o gelo derreter… Além disso, os rebeldes autorizaram Kalinin [um líder comunista] retornar a Petrogrado, embora ele houvesse feito importantes ameaças. Mais adiante, não fizeram nenhuma tentativa no sentido de tomar a ofensiva… Também é muito significante, a grande quantidade de comunistas que tomaram parte no movimento…

Os marinheiros não necessitavam de nenhum incentivo externo para levantar a bandeira da insurreição… Kronstadt estava claramente pronta para a rebelião. E todas estas coisas nada tinham a ver com maquinações de emigrantes conspiradores e de agentes da inteligência estrangeira, mas com a onda de levantes camponeses através do país e com as movimentações dos trabalhadores na vizinha Petrogrado. Da forma como a revolta se desencadeou, ela seguiu o modelo das primeiras eclosões contra o governo central em 1905 através da Guerra Civil” [Op. Cit., pp. 111-2].

Avrich argumenta explicitamente que essa “antecipação” da revolta pelo Centro Nacional, na verdade “desmantelava os planos para ajudar organizá-la”, eles não dedicaram “nenhum tempo para por tais planos em prática”. A “eclosão ocorreu cedo demais, muitas semanas antes que as condições básicas da trama… se estabelecessem”. E ele continua destacando que “não foi verdade que emigrantes desenharam a rebelião”. A revolta foi “um movimento espontâneo e auto-controlado do começo ao fim” [Op. Cit., pp. 126-7].

Além disso, mesmo se o memorândum tivesse alguma ligação com algum aspecto da revolta seria em conexão com a reação do “Centro Nacional” branco. Em primeiro lugar, nem eles nem os franceses proporcionaram qualquer tipo de ajuda aos revoltosos. Em segundo lugar, o professor Grimm, agente chefe do Centro Nacional em Helsingfors e os oficiais representantes do general Wrangel na Finlândia, declararam para um colega, depois da revolta ter sido esmagada, que se ocorresse uma nova eclosão o grupo não seria pego de surpresa novamente. Avrich também afirma que a revolta “pegou os emigrantes num ponto de desequilíbrio” e que “nada… tinha sido feito para implementar um Memorândum Secreto, e que as admoestações do autor eram altamente recomendáveis” [Paul Avrich, Op. Cit., p. 212 e p. 123].

Com efeito, as tentativas encaminhadas por certos trotskistas de última hora para justificar as difamações e calúnias de seus heróis contra Kronstadt são patéticas. Nunca houve nenhuma evidência da existência de um plano por parte da vanguarda branca. Quando, em 1970, Paul Avrich divulgou suas pesquisas sobre a revolta, o único documento em questão claramente não sustentava qualquer hipótese sobre brancos organizando a revolta. Pelo contrário, os brancos queriam mesmo era se aproveitar do “levante” dos marinheiros em proveito próprio, o “levante” por eles prognosticado ocorreria na primavera (com ou sem eles). A revolta de fato ocorreu mais cedo do que eles esperavam e não foi produto de uma conspiração. Na verdade, a história revelada por este documento não comprova outra coisa a não ser que a revolta foi espontânea.

Portanto, a afirmação de que Kronstadt foi um complô branco é destituída de qualquer base lógica ou documental. Não existe nenhuma evidência que sustente tal afirmação.

Seção 7: Qual foi o real comprometimento de Kronstadt com os brancos?


Conforme demonstramos na última seção, a revolta de Kronstadt não foi uma conspiração branca. Desde o princípio foi uma revolta popular. Apesar disso, alguns trotskistas ainda tentam manchar a revolta argumentando que ela foi, de fato, real ou “objetivamente” pró-brancos. Vamos analisar essa questão agora.

Primeiramente, devemos destacar que o povo de Kronstadt assumira uma postura de completa rejeição a qualquer oferta ou ajuda que viesse do Centro Nacional e, obviamente, de qualquer outro grupo pró-branco (aceitaram ajuda da Cruz Vermelha Russa já no fim da rebelião quando a situação alimentar se tornara crítica). Historiadores como Israel Getzler destacam que “o povo de Kronstadt encarou como um profundo insulto todos os gestos de simpatia e de promessas de ajuda oriundos dos emigrantes das guardas brancas” [Getzler, Op. Cit., p. 235]. Avrich relata o “profundo ódio” que o povo de Kronstadt nutria pelos brancos e que “tanto antes quanto depois no exílio” eles “rejeitaram indignados todas as acusações governamentais de colaboração com grupos contrarrevolucionários domésticos ou externos”. Conforme os próprios comunistas puderam constatar, não veio nenhuma ajuda externa para os insurgentes [Op. Cit., p. 187, p. 112 e p. 123].

Em outras palavras, não há nenhuma relação entre a revolta e os brancos.

É evidente que os brancos ficaram extremamente felizes com a revolta do povo de Konstradt. Ninguém pode negar isso. Mas daí afirmar que a revolta em si foi estruturada por reacionários contra as lutas sociais não possui nenhum fundamento político. Na verdade, a verdadeira contrarrevolução estava latente dentro do partido bolchevique e revelou-se integralmente com a subida do stalinismo em 1929 que representou a mais feroz supressão das forças populares que se posicionavam contra uma forma específica de capitalismo (sabidamente o capitalismo de estado). Indo mais fundo veremos que muitos trotskistas ortodoxos assumiram essa posição reacionária (apoiando a seção da burocracia stalinista, reforçando sua ditadura).

Na verdade, o próprio povo de Kronstadt sabia que os brancos estavam dispostos a apoiar suas ações (quaisquer ações contra os bolcheviques), mas este apoio nada tinha a ver com aquilo que motivava a população, vinha por razões diferentes daquelas pelas quais o povo lutava:

“Vocês,… marinheiros e trabalhadores de Kronstadt tomaram na marra o leme das mãos dos comunistas e assumiram a direção… Camaradas, não se descuidem desse leme pois os inimigos tentarão retomá-lo novamente. Ao menor descuido reassumirão a direção, e tudo isso provocará triunfantes gargalhadas nos lacaios czaristas e nos seguidores da burguesia”.

“Camaradas, neste momento vocês estão alegres pela grande e pacífica vitória sobre a ditadura dos ‘comunistas’. Contudo, nossos outros inimigos também celebram”.

“O motivo da alegria deles, [no entanto] é completamente diferente dos motivos de nossa alegria”.

“Vocês foram movidos pelo ardente desejo por restaurar o autêntico poder dos sovietes, pela nobre esperança de ver o trabalhador exercendo livremente seu trabalho e o camponês alegrando-se pelo direito de dispor, em sua terra, do produto de sua labuta. Enquanto que eles sonham em recuperar o chicote czarista e os privilégios de seus generais”.

“Seus interesses são diferentes. Eles nunca foram seus companheiros de jornada”.

“Sua ação foi para libertar-se do poder dos ‘comunistas’ para poderem desenvolver seu trabalho fecundo de paz construtiva. Ao passo que eles desejam forçar os trabalhadores e camponeses a voltar a ser seus escravos”.

“Vocês estão à procura de liberdade. Eles querem submetê-los a correntes. Estejam vigilantes! Não permitam que retomem o leme das tuas mãos” [No Gods, No Masters, vol. 2, pp. 187-8].

Claro que isso não é suficiente para os seguidores de Lênin e Trosky. John Rees, por exemplo, menciona Paul Avrich em defesa de sua asserção de que a revolta de Kronstadt foi, de fato, pró-brancos. Ele argumenta o seguinte:

“Paul Avrich… disse que é uma ‘evidência inegável’ que a liderança da rebelião resultou de um acordo com os brancos após eles [os rebeldes] terem sido esmagados e que ‘não pode ser desconsiderada a possibilidade de que isso tenha sido continuidade de um relacionamento anterior’” [Op. Cit., p. 64].

O que Rees esquece de mencionar é aquilo que Avrich acrescenta em seguida, “contudo, uma cuidadosa análise não fornece nenhum fundamento a essa crença”. Ele próprio afirma que “nada veio à luz no sentido de mostrar que… houvesse qualquer ligação entre emigrantes e marinheiros antes da revolta” [Avrich, Op. Cit., p. 111]. Notável essa falha na citação de Rees ou mesmo em mencionar a conclusão de Avrich sobre suas próprias especulações! Rees simplesmente isolou a situação pós-revolta fora do contexto geral e passou a sugerir ligações entre “lideranças” da rebelião e os brancos. Avrich corretamente argumenta que “não há nenhuma prova que revele que havia alguma ligação entre o Centro [Nacional] e o Comitê Revolucionário tanto antes como depois da revolta. Em vez disso, tudo que se constatou foi uma experiência mútua de amargura e frustração. E isso, mesmo que tivessem, no calor da batalha, em um momento ou outro juntado forças contra o regime bolchevique” [Op. Cit., p. 129]. O desespero em ver nossos amigos e companheiros sendo assassinados por ditadores pode perfeitamente afetar nosso julgamento, isso é previsível e compreensível.

Vamos supor, por um momento, que certos elementos na “liderança” dos revoltosos fossem, de fato, patifes. Qual o peso que isso representa na avaliação da revolta do Kronstadt? Primeiramente, precisamos destacar que esta “liderança” havia sido eleita pela e sob o controle da “conferência de delegados”, que foi por sua vez eleita por e sob controle de marinheiros e soldados rasos, junto a gente comum do povo. Este grupo se reunia durante a revolta “para receber e debater as informações que vinham do Comitê Revolucionário e para propor medidas e providências” [Getzler, Op. Cit., p. 217]. As ações das “lideranças” não se processaram de uma forma independente do conjunto da população, indiferente à sua agenda, elas funcionavam sob o controle da base. Em outras palavras, a revolta não estava subordinada ao resultado de discussões entre “lideranças” fossem elas “homens maus” ou não. Na realidade, esse tipo de atitude apenas reflete o elitismo da história da burguesia.

Em segundo lugar, a questão que se coloca é se os trabalhadores estavam participando da luta e o que desejavam conquistar, e definitivamente não se os “líderes” eram honrados cidadãos. Ironicamente, Trotsky indicou o porquê. Em 1934, ele argumentou, “qualquer um que diga que não apoiamos os mineiros britânicos na greve de 1926 ou nas recentes grandes greves nos Estados Unidos com todos os meios que tínhamos à nossa disposição será um traidor dos trabalhadores britânicos e americanos, embora os líderes das greves tenham sido em sua maior parte patifes” [No Compromise on the Russian Question].

O mesmo se aplica a Kronstadt. Mesmo se assumíssemos a ligação de alguns dos “líderes” da revolta com o Centro Nacional (uma mera hipótese sem base consistente), isso de forma alguma invalida a revolta de Kronstadt. O movimento não foi produzido por assumidos “líderes” na revolta, pelo contrário, surgiu da base e refletiu as exigências e a política de todos aqueles que estavam envolvidos. Afirmar que o movimento estava nas mãos de “líderes”, conforme a Cheka e outras fontes bolcheviques argumentaram, é o mesmo que dizer que alguns “líderes” do levante húngaro de 1956 tinham ligações como a CIA ou com agitadores plantados pela CIA, tornando aqueles que fizeram a revolução em conjunto com os conselhos de trabalhadores um amontoado de coisas sem valor. Claro que não foi assim. Se alguns dos “líderes” foram patifes, conforme Trotsky argumentou, isso por si só não invalida a revolta. O fator chave aqui é o critério da classe trabalhadora.

(Como esclarecimento, queremos destacar que Trotsky estava argumentando contra aqueles que afirmavam que para defender incondicionalmente a União Soviética tinham que dar apoio ao Stalinismo. Ele afirmou imediatamente em seguida as palavras que citamos acima: “Exatamente a mesma coisa se aplica à URSS!”. Contudo, existem algumas óbvias diferenças que invalidam sua analogia. Primeiro, as lideranças stalinistas estavam explorando e oprimindo os trabalhadores através do poder do estado. Burocratas sindicais, apesar de todas suas falhas, não eram carniceiros assassinos nas mãos de ditadores sob a cobertura de tropas e da polícia secreta. Em segundo lugar, as greves são exemplos da ação direta do proletariado que podem fugir e escapar do controle das estruturas e burocracias sindicais. Elas podem se tornar o ponto focal na criação de novas formas de organização e de poder da classe trabalhadora que pode dar um fim no poder e nas burocracias sindicais e substituí-los por greves e conselhos autogeridos. O regime stalinista era integralmente organizado no sentido de reprimir qualquer tentativa de desmontá-lo e não uma forma de defesa da classe trabalhadora, o mesmo se pode dizer com relação à sua organização sindical submetida a ferros).

John Rees continua argumentando que:

“Com o isolamento da revolta, Petrichenko foi forçado a reconhecer a realidade do balanceamento das forças de classe. Em 13 de março Petrichenko telegrafou a David Grimm, o chefe do Centro Nacional e representante oficial do general Wrangel na Finlândia, para ajudá-lo enviando alimento. Em 16 de março Petrichenko aceitou a oferta da ajuda do Barão P. V. Vilkin, um sócio de Grimm que os bolcheviques acertadamente chamavam de agente branco. As tropas foram esmagadas antes que qualquer ajuda chegasse, mas no desenrolar dos eventos chegaram armas dos brancos para as mãos dos marinheiros, como sempre se suspeitou que estava ocorrendo” [Op. Cit., p. 64].

Diante da repressão que a ditadura bolchevique implementava contra a classe trabalhadora de Petrogrado, o povo de Kronstadt não teve outra opção a não ser aceitar ajuda. O argumento de Rees lembra a “lógica” da direita em seus argumentos com relação à Guerra Civil Espanhola e às Revoluções Cubana e Sandinista. Isoladas, cada uma dessas revoltas estava inclinada a aceitar auxílio da União Soviética revelando aquilo que a direita “sempre sabia desde o começo”, ou seja, sua objetiva “natureza comunista” e suas ligações com uma “Conspiração Comunista Internacional”. Poucos revolucionários avaliariam estas lutas em bases tão estreitas e ilógicas, mas é isso que Rees faz com relação a Kronstadt.

Além do mais, a lógica desses argumentos de Rees foi posteriormente utilizada pelos stalinistas. Na verdade, sua concordância com os stalinistas, no que diz respeito à revolução húngara de 1956 é bastante esclarecedora. Bastou os revoltosos húngaros pedirem auxílio ao Ocidente contra o Exército Vermelho, para que Rees qualificasse esse ato como objetivamente contrarrevolucionário e pró-capitalista, exatamente como os burocratas do Partido “Comunista” haviam argumentado. O fato de chegarem muitas mensagens de apoio aos rebeldes durante a revolta, de acordo com a lógica de Rees, era uma prova de que todos os revoltosos estavam impregnados de valores burgueses, condenando a revolta aos olhos de todos os socialistas. Similarmente, o fato do sindicato polonês Solidariedade ter recebido apoio Ocidental contra o regime stalinista não significa que sua luta foi contrarrevolucionária. Assim, os argumentos usados por Rees são idênticos àqueles utilizados pelos stalinistas para apoiar a repressão que dirigiram contra a classe trabalhadora no Império Soviético. Na verdade, os trotskistas ortodoxos também chamaram a  “Solidarnosc” de uma corporação ligada à CIA, banqueiros, Vaticano, Wall Street, capitalistas contrarrevolucionários na Polônia, e responsável pela queda da União Soviética em prejuízo da classe trabalhadora e do socialismo, em outras palavras, uma contrarrevolução. Como prova para essas argumentações eles apontam a alegria e a disposição generalizada de apoio nos círculos de elite Ocidentais (ignorando completamente a natureza popular daquela revolta).

Na realidade, o fato de que outros se aproveitem tomando vantagem dessas (e de outras) situações é inevitável e irrelevante. O que importa mesmo é se a classe trabalhadora detém o controle da revolta e quais são seus principais objetivos. Por este critério de classe, é claro que a revolta de Kronstadt foi uma revolta revolucionária, como também o foi na Hungria em 1956, onde o miolo da revolta estava na classe trabalhadora e em seus conselhos. Eles tanto controlavam quanto davam o ritmo. A vantagem que os brancos tentaram tirar dela é tão irrelevante na avaliação da revolta de Kronstadt quanto a tentativa stalinista de tirar vantagem da luta espanhola contra o fascismo.

Por fim, é bom não esquecer o fato de que os membros do comitê revolucionário de Kronstadt se refugiaram na Finlândia com “cerca de 8.000 pessoas (alguns marinheiros e a parte mais ativa da população civil)” [Mett, Op. Cit., p. 57]. Foi assim que os bolcheviques vaticinaram o dia 5 de março (“No último minuto, todos aqueles generais, Kozlovskvs, Bourksers, e toda aquela ralé, Petrichenkos, e os Tourins voaram para a Finlândia, para as guardas brancas” [citado por Mett, Op. Cit., p. 50]). Contudo, isto não indica nenhuma conexão com “guardas brancas”. Afinal das contas, para onde mais eles poderiam ter ido? Qualquer um deles que permanecesse na Rússia Soviética restava apenas uma prisão bolchevique ou a morte. O fato de que ativos participantes na revolta tivessem um único refúgio para ir para evitar a morte não tira o mérito da natureza da revolta nem pode ser usado como “evidência” de uma “conspiração branca”.

Em outras palavras, a tentativa dos trotskistas de manchar os marinheiros de Kronstadt acusando-os de ligações com os brancos é simplesmente falsa. As ações de alguns rebeldes depois que os bolcheviques esmagaram a revolta não podem ser usadas para desmerecer a revolta em si. A real relação da revolta com os brancos claramente foi ódio e oposição.

Seção 8: A rebelião envolveu novos marinheiros?


A desculpa trotskista mais usada para justificar a repressão à revolta de Kronstadt é a do próprio Trotsky. Afirmar que os marinheiros em 1921 eram diferentes dos marinheiros de 1917. Trotsky declara que em 16 de março a Frota do Báltico estava “destituída de seu pessoal” e que “muitos dos marinheiros revolucionários” de 1917 tinham sido “transferidos” para outros locais. “Por questões acidentais foram substituídos em larga escala”. Isto “facilitou” o trabalho da “organização contrarrevolucionária” que “escolheu” Kronstadt [Kronstadt, pp. 68-9].

Ele repetiu este argumento em 1937 e 1938. [Op. Cit., p. 79, p. 81 e p. 87]. Seus discípulos repetiram suas afirmações. Wright argumenta que “o pessoal da fortaleza não pode ter permanecido estático durante todo o período entre 1917 e 1921”. Duvidando que aqueles marinheiros revolucionários de 1917, aqueles bravos camaradas que enfrentaram os brancos, eram “os mesmos que estavam por trás da revolta de 1921” [Op. Cit., pp. 122-3]. John Rees argumenta que como “a composição da guarnição havia mudado… tudo indica que os camponeses concentraram seus esforços em Kronstadt, conforme Trotsky sugeriu” [Op. Cit., p. 61].

Como pode ser visto, essa alegação de que os marinheiros de Kronstadt constituíam uma “massa amorfa” cuja composição social se modificara é muito comum nos círculos trotskistas. O que fazer com alegações como estas?

Primeiramente, vamos averiguar os fatos relacionados com a composição social e a rotação do pessoal em Kronstadt. Depois, veremos como os trotskistas abusam destas alegações para distorcer a verdade.

Graças às modernas pesquisas, é fácil constatar que a composição social dos trabalhadores e camponeses não se modificou. Em Kronstadt 20.000 marinheiros compunham a Frota Báltica, uma mão de obra que preenchia os requisitos tecnológicos necessários para a operação daqueles modernos navios. Desse total, 31% vieram das fábricas entre 1904 e 1916 [The Truth About Kronstadt]. Em 1921 mais de três quartos dos marinheiros eram de origem camponesa [Avrich, Op. Cit., p. 89]. Em outras palavras, o “peso” dos camponeses em Kronstadt aumentou cerca de 10% comparado com 1917 (isto é, para entre 5 e 7 pontos percentuais acima dos 71% em 1917). Em outras palavras, o aumento foi irrisório. O mesmo aconteceu no que diz respeito à composição de classe. A maioria dos marinheiros em 1921, tanto quanto em 1917, eram de origem camponesa.

Como saber se aqueles marinheiros camponeses eram novos recrutas ou veteranos de 1917? A resposta é que os veteranos predominavam. O acadêmico Israel Getzler investigou os registros soviéticos do período e constatou que daqueles que serviram nos navios do Báltico em janeiro de 1921 pelo menos 75,5% foram recrutados antes de 1918. Mais de 80% vieram de áreas da Grande Rússia, 10% da Ucrânia e 9% da Finlândia, Estônia, Letônia e Polônia. Ele concluiu que o “os politizados veteranos marinheiros vermelhos predominavam em Kronstadt no final de 1920” e baseia tais conclusões na “frieza dos dados estatísticos” acima citados. Ele investigou a tripulação dos dois maiores navios de guerra, o Petropavlosk e o Sevastopol (ambos de renome desde 1917 pelo zelo revolucionário e pela fidelidade aos bolcheviques, nas palavras de Paul Avrich, “o terror do levante” [Avrich, Op. Cit., p. 93]). Suas descobertas são conclusivas:

“Dos 2.028 marinheiros alistados, nada menos que 1.904 ou 93,9% foram recrutados na marinha antes e durante a revolução de 1917. O grupo maior, 1.195, se agregou em 1914-16. Apenas 137 marinheiros ou 6.8% foram recrutados nos anos de 1918-21, incluindo três que foram recrutados em 1921, e eles foram os únicos que não estavam lá durante a revolução de 1917” [Kronstadt 1917-1921, pp. 207-8].

Além do mais, a maioria dos comitês revolucionários eram veteranos do soviete de Kronstadt e da revolução de outubro [Ida Mett, Op. Cit., p. 42]. “Em virtude de sua maturidade e experiência, sem falar de sua profunda desilusão enquanto participantes na revolução, era natural que aqueles marinheiros sazonais estivessem à frente do levante” [Avrich, Op. Cit., p. 91]. Em outras palavras, a magnitude dos marinheiros em 1921 permaneceu sendo a mesma que em 1917.

Os resultados dessa pesquisa refutam as afirmações de trotskistas como Chris Herman. Da mesma forma que Trotsky ele argumentou que “A Kronstadt de 1921 não era a mesma de 1917, pois a composição de classe de seus marinheiros havia mudado. Os melhores elementos socialistas dos velhos tempos haviam parado de lutar na linha de frente do exército e foram substituídos principalmente por camponeses cuja devoção à revolução era a mesma de sua classe” [citado por Sam Farber, Before Stalinism, p. 192]. Contudo, como é fácil verificar, a composição de classe não mudou em sua essência e a tripulação dos navios permaneceu praticamente inalterada durante o período em questão. Retomaremos estas questões mais tarde de forma a demonstrar a estreiteza que permeia os círculos trotskistas.

Herman, fervoroso discípulo de Trotsky, escreveu em 1937 que Kronstadt estava “completamente destituída dos elementos proletários” devido a “todos os marinheiros” que compunham a tripulação dos navios “terem se tornado comissários, comandantes, presidentes de sovietes locais”. Posteriormente, renunciando à estupidez de sua afirmação, ele deu uma guinada qualificando Kronstadt como “privada de suas forças revolucionárias” desde “o inverno de 1919”. Embora admitindo “um certo número de trabalhadores qualificados e peritos” que permaneceu para “cuidar do maquinário” conclui que eles eram “politicamente não confiáveis” pelo fato de não terem sido escolhidos para lutar na guerra civil [Lenin e Trotsky, Kronstadt, p. 87 e p. 90].

Como prova, ele menciona um telegrama seu solicitando “no final de 1919, ou em 1920, licença para transferir um grupo de marinheiros de Kronstadt” ao que foi respondido: “licença negada” [Op. Cit., p. 81]. Ora, nessa linha de raciocínio o comando comunista em Kronstadt deveria deixar a fortificação totalmente desprovida de tripulação! O bom senso é deploravelmente deficiente em Trotsky, tanto quanto em seus discípulos.

Wright, pondera que era “impossível” acreditar que os marinheiros de 1917 pudessem ser aqueles mesmos camaradas que lutaram contra os brancos em Kronstadt. Isso teria sido um argumento válido se as forças armadas soviéticas fossem democraticamente constituídas. Contudo, conforme indicaremos na seção H.5.13, ela fora tipicamente organizada sob o modelo burguês. Trotsky aboliu os conselhos democráticos de soldados e marinheiros da mesma forma que aboliu a eleição de oficiais em favor da indicação de oficiais dentro de estruturas militares hierárquicas piramidais. O fato de terem que defender Petrogrado e o nível técnico de conhecimento requerido para operar os navios de guerra e as defesas de Kronstadt implica que os marinheiros de 1917 eram insubstituíveis e tinham que permanecer em Kronstadt. E foi isso o que, de fato, ocorreu. Nas palavras de Israel Gelzter:

“Uma razão para a permanência em Kronstadt desses veteranos marinheiros, embora em número bem reduzido, foi precisamente a dificuldade em treinar, devido às condições impostas pela guerra, uma geração nova e competente. A operação dos ultramodernos navios da frota russa requeria em geral tanto destreza como técnicas sofisticadas” [Op. Cit., p. 208].

Trotsky, em sua afirmação de que foram os guardas brancos que organizaram a revolta, obviamente percebeu que aquele argumento (agora refutado) de mudança na composição social dos marinheiros faria água rapidamente. E continuou enveredando por outros caminhos:

“Os melhores, os mais dedicados marinheiros estavam ausentes de Kronstadt, por exercerem um importante papel nos fronts e nos sovietes locais pelo país afora. Aquilo que pudemos observar foi uma pretensiosa massa amorfa (‘Somos de Kronstadt’), mas sem educação e preparação política para o sacrifício revolucionário. O país estava faminto. Enquanto que povo de Kronstadt exigia privilégios. O levante foi ditado pelo desejo de obter rações alimentares privilegiadas” [Kronstadt, p. 79].

Este primeiro comentário de Trotsky diante do levante contém uma mentira. Conforme Ida Mett escreveu, “tal exigência nunca foi feita pelos homens de Kronstadt”. Trotsky “deu início a suas acusações públicas através de uma mentira” [The Kronstadt Uprising, p. 73]. Ele repetiu essa mesma afirmação novamente, seis meses depois [Op. Cit., p. 92]. Na verdade, o que aconteceu foi exatamente o contrário. O ponto 9 das reivindicações de Kronstadt se referia explicitamente ao fim dos privilégios pedindo “equalização das rações para todos os trabalhadores”. [Trotsky literalmente “reclamando de barriga cheia” com suas rações sempre em dia no Kremlin, enquanto aqueles marinheiros passavam fome!].

No que se refere à “ausência de educação política”, a resolução dos 15 pontos votados pelos marinheiros expõe o nonsense desta afirmação. Isso fora o fato dos marinheiros enfrentarem o Exército Vermelho para alcançar esse objetivo. Eles estavam preparados para morrer pelos seus ideais. Continuando em suas ambiguidades Trotsky argumenta que “em 1917-18, ganhavam consideravelmente bem mais que a média do Exército Vermelho” mas que em 1921 eles passaram a “receber, geralmente… um índice consideravelmente menor, que a média do Exército Vermelho”. Na realidade, conforme indicaremos na seção H.5.12, o programa político da revolta foi fundamentalmente o mesmo da democracia soviética de 1917 e, conforme podemos observar, se opunha à introdução de trabalho assalariado, uma ideia basicamente socialista (ideia ausente na política bolchevique do NPE). Além do mais, foram encontros em massa que chegaram a essa resolução e, por unanimidade, significando que tanto os velhos como os novos marinheiros concordaram com ela. Totalmente diverso das asserções de Trotsky.

É patente a debilidade dos argumentos de Trotsky inclusive quando se referem à alteração da natureza dos marinheiros. Considerando a avaliação de Emma Goldman com relação às afirmações de Trotsky, veremos que ele apenas fazia uso de meros expedientes (que absolutamente nada tinham a ver com a revolta):

“Não me atrevo argumentar quem foram os marinheiros de 1918 ou 1919. Até janeiro de 1920 eu não estava na Rússia. Naquele tempo [contudo], Kronstadt, que havia ‘liquidado’ os marinheiros da frota do Báltico, era considerado o glorioso exemplo do valor e da coragem inabalável. Naquele tempo eu ouvia não apenas de anarquistas, mencheviques e socialistas revolucionários, mas também de muitos comunistas, que a verdadeira espinha dorsal da Revolução foram os marinheiros. Em 1º de maio de 1920, durante a celebração e outras festividades organizadas pela primeira Missão de Trabalhadores Britânicos, os marinheiros de Kronstadt receberam um grande contingente de homenagens, que os colocava como grandes heróis, que haviam salvo a Revolução de Kerensky e Petrogrado de Yudenich. Durante o aniversário de outubro os marinheiros foram novamente para a frente dos soldados, representaram a tomada do Palácio de Inverno e foram vividamente aclamados pela multidão”.

“Será que os membros da direção do partido, inclusive Leon Trotsky, tinham consciência da imagem de corruptos e desmoralizados que Kronstadt fazia deles? Acredito que não. Contudo, duvido que o próprio Trotsky tenha exercido qualquer controle sobre os marinheiros de Kronstadt até março de 1921. Sua história [posterior] foi, portanto, uma tardia reflexão, uma racionalização para justificar a estúpida ‘liquidação’ de Kronstadt” [Trotsky Protests Too Much].

Ante Ciliga menciona o testemunho a respeito de Kronstadt prestado por um companheiro prisioneiro político na Rússia Soviética:

“‘É um mito [considerar], do ponto de vista social, que Kronstadt de 1921 tivesse uma população completamente diferente de 1917’. Essas foram as palavras de D., um homem de Petrogrado, para mim na prisão. Em 1921 ele pertenceu à juventude comunista e em 1932 foi preso como ‘decista’ (membro do grupo dos Centralistas Democráticos de Sapronov)” [Op. Cit., pp. 335-6].

Desde então, tanto Paul Avrich quanto Israel Gelzter tem analisado esta questão. A outra razão relacionada a esse assunto, ou seja, o abuso destes argumentos para defender sua causa, que revelam com perfeição a natureza da ética bolchevique. “Distantes dos revolucionários”, declara Ciliga, “eles não ficaram apenas nas palavras, e tornaram realidade as tarefas da reação e da contrarrevolução, [após isso] passaram, inevitavelmente, a fazer uso do recurso da mentira, da calúnia e da falsificação” [Op. Cit., p. 335]. Defender tais atos é pagar tributo àqueles que seguem sua tradição.

Desnecessário dizer que tal evidência é raramente mencionada pelos defensores do bolchevismo. Todavia, ao mesmo tempo que ignoram novas evidências, os trotskistas, surpreendentemente, procuram utilizá-las à sua maneira, em seu próprio benefício, para seus próprios propósitos. Cada nova obra sobre Kronstadt passa a ser seletivamente citada pelos trotskistas para apoiar seus argumentos, sempre desprezando a verdade. Podemos destacar duas obras, Kronstadt 1921 de Paul Avrich e Kronstadt 1917-1921 de Israel Getzler, que, surrealisticamente, foram utilizadas pelos trotskistas para apoiar as conclusões bolcheviques quando, na realidade, elas concluem o oposto. A distorção de tais referências chega às raias do absurdo e mostra a natureza da mentalidade trotskista.

Pierre Frank argumenta que a obra de Paul Avrich possui “conclusões” que são “similares às de Trotsky” e que “confirmam as alterações na composição das guarnições de Kronstadt que se processaram durante a guerra civil, embora faça isso com algumas reservas” [Op. Cit., p. 25]. Basta uma rápida olhadela para estas reservas para a falsidade de Frank vir à tona. Vamos ler novamente esta passagem de Avrich:

“Não há nenhuma dúvida de que durante os anos da Guerra Civil ocorreu uma grande rotatividade na Frota Báltica, e que muitos dos veteranos foram substituídos por recrutas dos distritos rurais que trouxeram consigo o profundo sentimento de descontentamento do camponês russo. Em 1921, de acordo com dados oficiais, mais de três-quartos dos marinheiros tinham origem camponesa, uma proporção substancialmente mais alta que em 1917… Contudo isto não significa necessariamente que o comportamento padrão da frota tivesse sofrido alterações fundamentais. Pelo contrário, pelo que se pode observar tanto pelo uso da técnica como da estatística…, o traço rebelde do camponês que sempre prevaleceu entre os marinheiros… Na verdade, em 1905 e 1917 foram aqueles muitos jovens oriundos do interior que deram a Kronstadt sua reputação de cadeira quente do extremismo revolucionário. E através da Guerra Civil o povo de Kronstadt manteve sua independente e obstinada sina, difíceis de controlar e arredios em dar apoio ao governo. Foi por esta razão que muitos deles… acabaram transferidos para novos postos longínquos dos centros de poder bolchevique. Daqueles que permaneceram, muitos anelavam pela liberdade alcançada em 1917 antes do novo regime começar a estabelecer-se como ditadura do partido único através do país.
Verdadeiramente, há pouca diferença entre os veteranos e os recrutas. Ambos em grande parte tiveram origem camponesa… Não surpreende que quando a rebelião eclodiu, foram os velhos homens do mar, veteranos de muitos anos de serviço (datando em alguns casos de antes da Primeira Grande Guerra Mundial) que tomaram a iniciativa… Diante da maturidade e experiência, sem falar de sua profunda desilusão enquanto efetivos partícipes da revolução, era natural que esses marinheiros sazonais estivessem à frente do levante… Além disso, a proximidade de Petrogrado, com sua intensa vida intelectual e política, contribuiu para aguçar sua perspicácia política, fazendo com que muitos se engajassem em atividades revolucionárias durante o ano de 1917 e posteriormente…” [Op. Cit., p. 25].

Conforme verificamos, as “reservas” de Avrich são tais que deixam claro ele não chegou às mesmas conclusões que Trotsky com relação à atuação da classe trabalhadora de Kronstadt e, na verdade, isto é percebido pela orientação ideológica desta “explanação”.

Contudo, o pior exemplo da deslealdade trotskista para com a verdade é providenciada por John Rees. Essa evidente revisão de Rees afirmando que a “alteração” na “composição” dos marinheiros de Kronstadt “havia mudado” entre 1917 e 1921, em muito se assemelha ao método do general leninista quando ele se refere à revolução russa. Rees argumenta o seguinte:

“Em setembro e outubro de 1920 o escritor e conferencista do partido bolchevique Ieronymus Yasinksky foi até Kronstadt para dar uma preleção para 400 recrutas ‘honrados pelo arado’. Yasinksky revelou-se chocado por encontrar tantos, ‘inclusive uns poucos membros de partidos, iletrados politicamente, bem distantes daqueles veteranos marinheiros altamente politizados de Kronstadt que lhe impressionara tão profundamente no passado’. Yasinsky estava preocupado pela substituição daquele vigor de fogo revolucionário por aqueles ‘inexperientes recém-recrutados jovens marinheiros’” [p. 61].

Esta passagem é citada por Israel Getzler em Kronstadt 1917-1921. A narrativa de Rees é uma acabada versão da primeira metade do relatório de Yasinskys. Contudo, a passágem continua exatamente como vemos a seguir:

“Yasinsky estava apreensivo quanto ao futuro quando, ‘cedo ou tarde, os marinheiros veteranos de Kronstadt, aquele vigor de fogo revolucionário, seriam substituídos por aqueles inexperientes recém-mobilizados jovens marinheiros’ Contudo ele estava esperançoso de que os marinheiros de Kronstadt gradualmente voltassem a ser possuídos por aquele ‘nobre espírito de dedicação revolucionária’ tão caro à União Soviética. Mas ele se sentia tranquilizado ‘pelo predomínio dos marinheiros vermelhos em Kronstadt’” [Op. Cit., p. 207].

Rees habilmente ‘editou’ aquela passagem de forma a parecer que, três meses antes do levante, Kronstadt estava destituído de seu espírito revolucionário devido à substituição das tropas.

Rees tentou produzir “evidências de alteração na composição de classe”. Todavia, acabou tropeçando em suas próprias contradições. Na página 61 ele expõe a composição do partido bolchevique em 1921 da seguinte forma: “28,7% camponeses, 41% trabalhadores e 30,8% colarinhos brancos e outros”. Na página 66, todavia, ele descreve a composição no final da guerra civil (inclusive 1921), 10% nas fábricas, 25% no exército e 60% no “governo ou na máquina do partido”. Uma observação ao lado classifica também como trabalhadores aquela “maioria [que ocupava] postos de administração”. Aqueles primeiros dados são os mais utilizados para atacar Kronstadt.

Qual é a base de Rees para suas “provas adicionais”? Simplesmente que em “setembro de 1920, seis meses antes da revolta, os bolcheviques tinham 4.435 membros em Kronstadt. Cerca de 50% deles eram camponeses [mais precisamente, de famílias camponesas], 40% trabalhadores e 10% intelectuais… Este percentual de camponeses no partido era consideravelmente mais alto que o nacional…” [p. 61]. Assim, com base nessa asserção, ele conclui que “provavelmente” Trotsky estava correto!

Ora, vemos que essa “evidência” de mudança na composição de classes não tem utilidade alguma porque não estabelece comparações entre os bolcheviques em Kronstadt em 1917 e em 1921. Se Kronstadt sempre teve um alto percentual de camponeses em sua composição, conclui-se apenas que em 1917 o percentual de bolcheviques de origem camponesa era mais alto que o normal.

Seria muito mais fácil para Rees informar seus leitores dos fatos reais relativos à alteração da composição da guarnição de Kronstadt. Ele poderia ter mencionado o trabalho de Getzler sobre esse tema, que demonstra que os navios de guerra Petropavlovsk e Sevastopol constituíram o miolo do levante.

Ele poderia, também, ter mencionado o resumo de Samuel Farber sobre as provas de Getzler (e outros). Em vez disso Rees erradamente afirma que Getzler “não observou os números da composição bolchevique” [Op. Cit., p. 62]. Mas o que Rees fez quando teve diante de si os números apropriados que revelavam a composição dos marinheiros? Veja o que Farber diz a respeito disso:

“esta interpretação é falha diante do análise histórica do crescimento e das lições proporcionadas pela Revolução Russa… Na realidade, em 1921, uma pequena proporção de marinheiros de Kronstadt de origem social camponesa fazia parte das tropas do Exército Vermelho que apoiavam o governo… dados publicados recentemente revelam que a composição de classe nos navios e na base naval tinha provavelmente permanecido inalterada desde antes da Guerra Civil. Sabemos que as dificuldades provocadas pela guerra praticamente impediam o treinamento de novos contingentes para que se tornassem capacitados e habilitados nas técnicas requeridas para operar os navios ultramodernos da frota russa. Houveram muito poucas substituições em Kronstadt. Exceto aquelas para substituir marinheiros mortos ou feridos. Assim, no final da Guerra Civil por volta de 1920, verificamos que nada menos que 93,9% dos membros das tripulações do Petropavlovsk e do Sevastopol… foram recrutados pela marinha antes e durante a revolução de 1917. Na realidade, 59% daquela tripulação entrou para a marinha nos anos 1914-16, ao passo que apenas 6,8% foram recrutados nos anos 1918-21… dos aproximadamente 10.000 recrutas admitidos para ser treinados para preencher as vagas na guarnição de Kronstadt, apenas pouco mais de 1.000 permaneceram até o fim de 1920, e aqueles que foram aceitos não foram para Kronstadt, mas para Petrogrado, onde continuaram o treinamento” [Before Stalinism, pp. 192-3].

E Rees ainda lamenta que Farber não notasse os números bolcheviques! Ora, hipóteses e conclusões “prováveis” que surgem de hipóteses seriam mais importantes que evidências? Rees ainda tenta salvar sua causa afirmando que a posição de Farber “só teria validade se considerássemos as estatísticas isoladamente… Particularmente, os marinheiros de Kronstadt haviam recebido licença pela primeira vez desde a guerra civil. Muitos retornaram para suas vilas e deram de cara com as condições no interior do país, como a situação enfrentada pelos camponeses com os destacamentos que lhes retirava o alimento” [p. 62]. Naturalmente, tal argumento nada tem a ver com a questão original de Rees. Não podemos esquecer que ele armentava, como Trotsky, que “a composição da guarnição havia se alterado” não sua composição política. Diante da esmagadora evidência contra sua causa, ele não apenas negou aqueles informes aos seus leitores, como fez alterações no argumento original!

Afinal, qual era seu argumento?

A revolta foi uma resposta à onda de greves em Petrogrado, não a uma revolta camponesa. Além disso, as exigências da revolta refletiam as exigências dos trabalhadores, não as exigências dos camponeses (o próprio Rees reconheceu que as exigências de Kronstadt não foram reproduzidas por nenhuma outra insurreição “camponesa”). Os aspectos políticos dessas ideias refletiram as tradições políticas de Kronstadt, que não foram, na essência, bolcheviques. Os marinheiros apoiaram o poder soviete em 1917, não o poder do partido, e eles novamente levantaram essa exigência em 1921 (veja a seção H.5.3 para detalhes). Em utras palavras, a composição política da guarnição foi a mesma de 1917.

Diante do fato de que a composição de classe dos marinheiros era similar em 1917 e 1921 e de que a tripulação era composta por veteranos de 1917, os trotskistas passaram a tropeçar em suas definições de classe, envolvendo a definição de uma específica posição política “proletária” (isto é, a política do bolchevismo). Passaram a argumentar que qualquer um que não subscrevesse sua posição seria um “pequeno-burguês” revelando sua posição real na sociedade (isto é, sua posição de classe).