domingo, 3 de julho de 2022

Considerações sobre a luta contra a privatização da Corsan e do DMAE

Foto de nosso próprio acervo (28.06.22). Porto Alegre, RS.

Proposta: Neste texto vamos abordar a questão da intenção de privatização do Departamento de Água e Esgotos (DMAE) de Porto Alegre e da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan).

1. Considerações históricas sobre os processos de privatização em curso:


Em nosso texto sobre a CEEE-D (Crítica da privatização da CEEE-D e sua venda para o Grupo Equatorial), demonstramos algumas das questões em jogo em relação aos processos de privatização contemporâneos. Neste sentido, a discussão aqui deve ser pensada como complementar.

O Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE) é uma autarquia da prefeitura de Porto Alegre (criado pela Lei nº 2.312, em dezembro de 1961). A Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) foi criada em 21 de dezembro de 1965 e oficialmente instalada em 28 de março de 1966. Portanto, ambas as fundações remetem aos anos 60, durante os últimos anos de crescimento econômico do pós-guerra.

Na época de fundação da Corsan e do DMAE, a classe capitalista especificamente brasileira tinha interesse em um desenvolvimento independente do capital nacional, pois a situação econômica global favorecia esse processo. Mas esse projeto não se conciliava com uma forma de gestão democrático-popular, menos ainda com os aumentos salariais ocasionados durante o governo de Goulart.

No entanto, o desenvolvimentismo da época da ditadura civil-militar durou apenas até meados dos anos 70, quando eclodiu a crise do petróleo e o crescimento econômico mundial foi abalado. A crise econômica que se seguiu deu origem às políticas econômicas chamadas de “neoliberais”.

No final dos anos 80 temos o “Consenso de Washington” e o projeto de difusão da política econômica neoliberal para a América Latina. Nos governos brasileiros, isso se traduziu na flexibilização das relações trabalhistas e em privatizações. O governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) será decisivo nesse processo através de seu Plano Nacional de Desestatização (PND).

A nível internacional, o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) se tornaram responsáveis por formar quadros administrativos para uma gestão eficiente dos estados capitalistas ao redor do mundo [1]. A nível nacional, o órgão local que corresponde a esses interesses financeiros é o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) [2].

Durante boom das commodities que coincidiu com os governos petistas, houve um breve retardamento desse processo até a próxima crise (de 2008, que afetou progressivamente os países importadores até culminar na recessão econômica de 2014 no Brasil).

A esquerda social-democrata costuma afirmar que nessas circunstâncias o correto é adotar “políticas econômicas anticíclicas”, mas o heterodoxismo na economia é apenas a gestão de um estado de emergência para transitar novamente para a “ortodoxia” (neo)liberal. De todo o modo, este não parece ter sido o caso, nem mesmo com o governo Dilma, dado que este havia promovido o chamado “Ajuste Fiscal”.

A partir de 2016 entra em curso um processo acentuado de políticas econômicas chamadas “neoliberais”. A mudança institucional (impeachment de Dilma) foi apenas a formalização de uma mudança de postura da classe dominante e de suas relações internacionais. Os governos de direita que se sucederam na realidade brasileira são uma forma de gestão da conjuntura econômica atual e não simplesmente uma “vontade política pura”. Eles favorecem os interesses dos exportadores de produtos primários desvalorizando a moeda nacional e também adotam a agenda do capital financeiro, portanto são meros fantoches que personificam publicamente aquilo que os capitalistas querem manter em segredo privadamente (esconder que é a classe dominante e o capitalismo como um todo que é o problema).

2. Panorama do processo de privatização da Corsan:


Vamos resumir em linhas gerais o discurso do governo (de acordo com o documento “Impactos do Marco do Saneamento sobre a Corsan”):

  • Com a Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020, o governo federal regularizou o Novo Marco Legal do Saneamento (NLS). A partir desse marco, a Corsan precisaria investir R$ 10 bilhões até 2033, como parte do Programa de Investimentos para realizar as metas de universalização dos serviços de abastecimento e saneamento. A Corsan tem, em sua média histórica, um investimento de 300 milhões ao ano. Para cumprir as metas do marco, seria necessário investir R$ 1 bilhão por ano. Assim, com base no NLS, o governo estadual passou a justificar a “desestatização” da Corsan, possibilitando a Abertura de Capital (IPO) com capitalização (o Estado do RS deixaria de ser controlador para ser apenas o acionista de referência).

O governo de Eduardo Leite (PSDB) havia decidido atingir esse objetivo até fevereiro de 2022, mas acabou postergando isso para julho de 2022. Em resposta, o Conselho Superior da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (Agergs), declara que a Corsan tem capacidade econômico-financeira para o cumprimento da universalização do abastecimento de água e esgotamento sanitário [3].

O diretor de comunicação do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto do Estado do Rio Grande do Sul (Sindiágua/RS), Rogério Ferraz, afirmou ao jornal Brasil de Fato [4], que a Corsan faturou, em 2020, R$ 3,2 bilhões. Ele questiona o motivo pela qual uma empresa que lucrou, em valores brutos, mais de R$ 3 bilhões em um ano, precisaria vender ativos para conseguir investir R$ 1 bilhão por ano.

Além dessas inconsistências no plano que alegam supostos motivos de insuficiência financeira, existe também um processo de sucateamento em curso na Corsan. O presidente da Sindiágua, Arilson Wünsch, afirma que o déficit de servidores passa de 1300, comprometendo serviços e suspeita que seja um sucateamento intencional para forçar a privatização [5].

Neste caso, é evidente que o governo está dissimulando as reais intenções por trás da privatização como se fossem questões meramente técnicas. Na verdade, o que está em jogo é o favorecimento dos interesses especulativos do capital financeiro sobre a Corsan.

3.  Panorama do processo de privatização do DMAE:


O discurso dos governos de Porto Alegre seguem o mesmo padrão:

  • Em 2017, o prefeito recém eleito (com mandato de 2017 até 2021), Nelson Marchezan Júnior (PSDB), já havia anunciado seus planos de privatização do DMAE com a justificativa de que não haveriam recursos financeiros suficientes, que a prefeitura precisava “buscar concessões, permissões, locações de ativos, parcerias público-privadas, subcontratos” [6] para cumprir as metas da outra lei federal que estavam se baseando naquela época (Lei Federal 13.334, de 13 de setembro de 2016). Assim, a prefeitura decidiu recorrer ao agente ideológico do capital financeiro no Brasil para embasar seu discurso, ou seja, buscou contratar um serviço do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES): o Contrato de Estruturação de Projeto nº 19.2.0506.1 (5.12.19) [7]. No entanto, o Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS), em um Relatório de Inspeção, demonstrou uma séries de irregularidades no processo, ocasionando na suspensão do contrato [8].

Apesar de não conseguir privatizar o DMAE, a gestão de Marchezan Júnior conseguiu legar um sucateamento para a próxima gestão (e mesmo o TCE-RS chegou a admitir isso em seu relatório), na medida em que o DMAE registrou um aumento de interrupções no fornecimento de água de mais de 40% em relação ao último ano do governo anterior e uma defasagem na contratação de serviços essenciais para a empresa (que foi ampliada com a decisão de Marchezan Júnior em negar a reposição de pessoal, bem como a retirada da autonomia do DMAE, para que o mesmo não pudesse fazê-lo) [9].

A continuidade do processo de privatização coube ao atual prefeito Sebastião de Araújo Melo (MDB) eleito em 2020 (com mandato de 2021 até 2025). Certamente se apoiando no sucateamento proposital da gestão anterior e na nova lei já mencionada acima no caso da Corsan. Além disso, também se vale do subterfúgio de uma suposta deficiência nos serviços de drenagem [10].

A Gaúcha ZH, mídia aliada dos mesmos interesses que sustentam os governos (neo)liberais, chegou a publicar uma matéria a respeito do sub-aproveitamento dos investimentos do Projeto Integrado Socioambiental (Pisa), maior obra de saneamento da história de Porto Alegre [11]. O interessante dessa matéria é que ela pode servir justamente ao interesse contrário ao qual se propôs. O título já anuncia que “Porto Alegre trata menos esgoto do que em 2015”, o que denuncia de imediato que o problema pode estar relacionado com a conjuntura econômica e governamental do DMAE e não com sua estrutura autárquica e pública. Um dos motivos elencados é o seguinte: “Falta de manutenção e de pessoal no Dmae”, ou seja, algo que decorre diretamente das decisões governamentais (como vimos). Outro motivo muito interessante é a “Falta de energia”, onde lemos o seguinte: “a direção do Dmae relata que, nos últimos anos, sofreu frequentes quedas de energia elétrica. Todo o sistema de tratamento de esgoto de Porto Alegre funciona com o fornecimento da CEEE Equatorial”. Era o que já havíamos denunciado em nosso texto sobre a privatização da CEEE:

Em alguns lugares de Porto Alegre e região metropolitana, temos mais de uma semana sem eletricidade. A falta de luz afeta até mesmo o abastecimento de água de ao menos 20 bairros de Porto Alegre ao deixar o DMAE sem energia nessa região. No bairro Menino Deus, a Estação de Tratamento de Água (ETA) do DMAE chegou a ficar 14 horas sem eletricidade. O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), chegou a relativizar a situação afirmando que a relação entre ambas instâncias seria “muito boa” (Communismo Libertário, 19 de março de 2022).

Mais uma vez não nos resta dúvidas. É evidente que os governos estão dissimulando as reais intenções por trás da privatização do DMAE como se fossem questões meramente técnicas. Na verdade, o que está em jogo é o favorecimento dos interesses especulativos do capital financeiro sobre o DMAE da mesma forma como se sucede no caso da Corsan.

4. Protesto do movimento “RS pela Água”:


No dia 28 de junho estivemos presente no ato organizado pelo Sindiágua/RS em articulação com o Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa) e outras organizações de “movimentos sociais” (como o Levante Popular, o Movimento dos Atingidos por Barragens, dentre outros), em defesa do DMAE e da Corsan (o sindicato oficial dos trabalhadores do DMAE é o Simpa). A mobilização ficou chamada de “RS pela Água” e tinha como objetivo fazer uma caminhada do DMAE 24 de Outubro até a Corsan, com chegada na Assembleia Legislativa.

Imagem de divulgação do ato feita pelo Sindiágua/RS.

Em frente ao DMAE houve uma assembleia extraordinária do Sindiágua/RS que deliberou o estado de greve. É necessário destacar aqui que o fornecimento de água é considerado juridicamente como um “serviço essencial”, portanto existe muito engessamento burocrático da parte do Estado para impedir uma greve nesse setor [12].

A deliberação de uma greve efetiva pode ocorrer em qualquer momento durante um estado de greve, a depender dos eventos que são usados como justificativa e que demandam a reunião dos delegados sindicais eleitos pelas bases e a direção do sindicato. O que verificamos no momento da aprovação do estado de greve foi uma unanimidade dos trabalhadores que estavam mobilizados para o enfrentamento e que indica força efetiva para a realização de uma greve. Portanto, o quanto antes se organizar e declarar a greve, mais se poderá aproveitar essas energias.

Os sindicatos estavam coniventes com a participação discursiva de ex-prefeitos que teriam o suposto mérito de não terem privatizado a água em seus mandatos: João Antônio Dib, último prefeito da capital gaúcha indicado pelo regime militar, Raul Pont do PT (1997-2001) e José Fortunati do PDT (2005-2009). Eles participaram das falas através do carro de som após a assembleia extraordinária.

Em diversas ocasiões era enfatizado que o movimento deveria ganhar a “opinião pública”, que não se tratava de um movimento restrito aos trabalhadores do serviço de abastecimento e saneamento, pois que era uma mobilização de interesse de “todo o povo gaúcho”. Destaca-se, portanto, a forte ideologia cidadanista do movimento que está correlacionada com um viés legalista [13]. Que esse movimento não se restringe aos trabalhadores da categoria, isso é evidente, mas essa luta não é de “todo o povo gaúcho”, senão sequer haveriam governos gaúchos interessados nas privatizações. Essa luta é do proletariado como classe e não do “povo gaúcho” em abstrato (falaremos mais a respeito disso depois).

Como já argumentamos no blog, os sindicatos servem para manter um movimento de luta dentro dos limites da institucionalidade burguesa, mas também é um espaço onde os trabalhadores se reúnem entorno dos interesses de sua categoria, portanto é possível que seja utilizado (apenas taticamente) como um ponto de partida para articular as lutas imediatas que participam do desenvolvimento da consciência coletiva da classe (que deve culminar na ruptura com o sindicalismo em direção aos métodos de luta mais combativos, despojados do invólucro institucional-burguês da onde emergiram).

Depois da assembleia teve início a caminhada. A manifestação se realizou de forma pacifista e mesmo em alguns momentos houveram aberturas na rua para a circulação de veículos, o que também demonstra o caráter legalista dessa mobilização.

Como essa foi nossa primeira aproximação do movimento, não chegamos a elaborar nada para contribuir e distribuir entre os trabalhadores ali presentes (haviam trabalhadores de 300 municípios que são cobertos pelos serviços da Corsan na manifestação). Além disso, essa também é nossa primeira publicação sobre esses processos em curso, portanto pensamos que nossa contribuição aqui tem um caráter mais informativo e crítico que deve continuar se desenvolvendo na medida em que essa luta passar por mais etapas pela frente que forem levadas em consideração em nossas análises.

5. Sobre nossa participação no processo de luta contra a privatização da Corsan e DMAE:


Nossas considerações, tanto nesse texto como no que falamos sobre a CEEE-D, não são nenhuma forma de defesa ingênua do serviço público do Estado Burguês. Sabemos dos limites intrínsecos do serviço público, mesmo que seja apenas ligeiramente melhor que o privado (principalmente quando se trata dos chamados recursos estratégicos como a água). Na verdade, não é nossa intenção defender simplesmente a manutenção do serviço público como se nos conformássemos com o mal menor (a questão não está na natureza pública ou privada das empresas, mas no desenvolvimento das lutas proletárias). O que está em jogo e que torna importante nossa intervenção é o desenvolvimento em ato da luta de classes e a possibilidade dessa experiência desenvolver a consciência dos interesses coletivos do proletariado. Portanto, nosso compromisso é defender, tanto nesse engajamento como noutros, os interesses gerais do proletariado do ponto de vista do movimento real que supera o estado de coisas atual: o comunismo/anarquismo.

No entanto, esse processo é contraditório e exige uma série de mediações sem as quais não ocorrem as rupturas necessárias com o reformismo e com a hegemonia que a socialdemocracia exerce sobre os proletários. É preciso que os militantes revolucionários travem uma intensa disputa contra as ideologias que buscam conformar a luta nos quadros da institucionalidade burguesa. Além desse papel negativo, cabe à militância papéis positivos, como construir junto à coletividade de massas da classe os meios de uma organização independente, assim como as táticas que correspondem aos objetivos específicos que devem romper efetivamente com a chamada política de demandas [14] da ideologia cidadanista.

6. Comentário anti-apologético do serviço público:


Vamos analisar a situação do DMAE relativamente à universalização do saneamento básico para ilustrar como o serviço público mantém as desigualdades endêmicas do capitalismo que são a consequência (o efeito inevitável) de uma contradição mais profunda do que as desigualdades: a divisão de classes na sociedade.

Como se sabe, o abastecimento de água de Porto Alegre é de responsabilidade do DMAE. Este Departamento é uma autarquia municipal que cuida da captação, tratamento e distribuição de água, bem como pela coleta, condução e tratamento do esgoto sanitário na cidade.

Um dos motivos de Porto Alegre possuir uma autarquia municipal para lidar com a administração dos recursos hídricos, do esgotamento sanitário, dentro outros serviços, é a hidrografia e geomorfologia singular da cidade [15].

Em um estudo sobre o “acesso desigual ao saneamento básico” publicado em 2021 no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), temos a seguinte tabela de desigualdades [16]:

Extraído de (SILBERMANN, Dany et al., 2021, p. 68).

As conclusões do estudo e os dados apresentados, por mais que sejam analisados do ponto de vista reformista, já nos dá o indicativo de que as diferenças de classes são duplicadas nas desigualdades socioespaciais do espaço urbano:

Conclui-se que Porto Alegre, apesar de munida de órgãos destinados a encontrar soluções referentes ao saneamento básico, ainda sofre com as desigualdades inerentes aos grandes centros latino-americanos: a concentração das benfeitorias em locais específicos da cidade – via de regra, sítios de inserção das populações abastadas –, relegando as mazelas às populações carentes. A ausência de saneamento básico, portanto, está intrinsecamente relacionada à emergência de problemas de saúde à população afetada (SILBERMANN, Dany et al., 2021, p. 74).

Nesse sentido, a superação desses problemas socioeconômicos implica na construção do socialismo pela luta proletária revolucionária. A noção de “democratização universal” dos serviços públicos da socialdemocracia é apenas uma consciência ideológica da questão que toma o efeito pela causa. Isso também ocorre quando imaginam que a escolaridade poderia modificar a situação de classes das pessoas, enquanto que ocorre justamente o contrário: a escolarização consagra com seus aparatos classificatórios as desigualdades de classe, duplicando o abismo que separa os dominantes dos dominados. Isso também ocorre com os demais serviços públicos: seja no transporte coletivo, na saúde, no saneamento, no abastecimento de água, na energia elétrica, etc. Todos esses serviços são desigualmente distribuídos para desfavorecer os desfavorecidos e favorecer os favorecidos pela condição de classe.

7. Conjecturas de uma possível ação subversiva:


Na seção acima demonstramos como os serviços públicos duplicam as desigualdades, mas isso não significa que esse processo seja responsabilidade dos trabalhadores empregados nesses serviços (pelo menos não são responsáveis autonomamente, embora possam reproduzir ideologicamente isso, agindo heteronimamente).

As decisões, mesmo em uma empresa pública, estão submetidas às hierarquias institucionais do Estado Burguês. Por mais que se diga que a participação cidadã seja possível na elaboração dos projetos, o que ocorre na prática (para manter o exemplo do saneamento) é a definição da política e do Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) dirigida e encabeçada pelo poder executivo municipal. Mesmo as condições técnicas para a construção dos Planos estão desigualmente distribuídas e a disparidade de expertise sancionada pelos diplomas na sociedade burguesa exclui aqueles com graus menores de formação na administração direta dos recursos hídricos. Em suma, toda uma série de mecanismos institucionais burocráticos são construídos para separar as pessoas das efetivas decisões coletivas quanto à alocação e uso de suas forças produtivas sociais.

Não obstante, temos uma proposta que poderia unificar tanto a luta dos trabalhadores do DMAE e da Corsan, quanto as massas proletárias que necessitam dos serviços fornecidos por essas empresas. Talvez uma forma de realmente conectar a luta desses trabalhadores com a luta pela supressão das desigualdades socioespaciais dos bairros proletários seja através da apropriação dos instrumentos dessas empresas para inverter a agenda de obras e desprivilegiar os privilegiados e favorecer os desfavorecidos. Isso poderia ser construído com a formação de comitês de bairro (por exemplo: em Sarandi e Rubem Berta) conectados diretamente com os comitês de luta dos trabalhadores dessas empresas, coordenando o processo em direção a uma unificação da luta pelo poder proletário sobre os meios de produção em prol da realização das suas necessidades. No entanto, esse engajamento só seria possível com uma radicalização das lutas que, entretanto, não parece ser uma tarefa tão distante caso a direção do movimento de lutas seja bem organizada (seria oportuno um estudo aprofundado da guerra pela água na Bolívia para extrair ensinamentos daquela experiência histórica e evitar a cooptação reformista e socialdemocrata que se sucedeu por lá).

Essa proposta ainda está no estágio de uma pequena conjectura, portanto não podemos ainda oferecer nada de concreto. No entanto, levaremos adiante essa reflexão em nossas análises e ações para verificar como esse tipo de engajamento poderia ser operacionalizado. No mais, as linhas gerais de nossa orientação programática ainda correspondem às projeções que realizamos na seção 3 (Qual o nosso posicionamento diante desses problemas?) de nosso texto sobre a CEEE-D, bastando apenas trocar o nome das empresas e os bens que competem à elas.

Notas:


[1] – Esse estudo interessante traz informações sobre o papel do Banco Mundial na formulação política e ideológica de quadros administrativos em prol do interesse do capital financeiro: PEREIRA, João Márcio Mendes. As ideias do poder e o poder das ideias: o Banco Mundial como ator político-intelectual. Revista Brasileira de Educação, v. 19, n. 56, p. 77–100, 2014. Disponível em: <link>. Acesso em: 2 jul. 2022. Recomendamos a leitura de mais trabalhos desse pesquisador que podem ser encontrados aqui: link.

[2] – Esse outro estudo trata do papel específico do BNDES para a realização dos interesses do capital financeiro: WERNER, Deborah; HIRT, Carla. Neoliberalização dos Serviços Públicos: o papel do BNDES no Saneamento Básico pós-2000. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, v. 13, p. e20200078, 2021. Disponível em: <link>. Acesso em: 2 jul. 2022.

[3] – Ver: Privatização da Corsan está prevista para ocorrer até julho. Jornal do Comércio (18.03.2022). Disponível em: <link>. Acesso em: 2 jul. 2022. O estudo da Agergs se encontra disponível aqui: link.

[4] – Ver: Corsan tem capacidade financeira para cumprir metas do Marco Legal do Saneamento, diz sindicato. Brasil de Fato, Rio Grande do Sul. Disponível em: <link>. Acesso em: 2 jul. 2022.

[5] – Ver: Sindiágua denuncia falta de funcionários na Corsan para tratamento da água e esgoto. SINDIAGUA. Disponível em: <link>. Acesso em: 27 jun. 2022.

[6] – Ver: Marchezan quer privatizar serviços de água e esgoto em Porto Alegre. GZH (31.07.2017). Disponível em: <link>. Acesso em: 2 jul. 2022. É possível acessar essa notícia através do Google Translate, aqui: link.

[7] – Prefeitura de Porto Alegre assina contrato com BNDES para estudar PPP do Saneamento. GZH (11.12.19). Disponível em: <link>. Acesso em: 2 jul. 2022.

[8] – Ver: TCE e MPC pedem fim do contrato com BNDES para privatizar Dmae. Matinal (10.02.21). Disponível em: <link>. Acesso em: 2 jul. 2022. Veja também a liminar do TCE-RS: link.

[9] – Ver: Marchezan sucateou o Dmae porque queria privatizá-lo, conclui TCE-RS. Matinal (10.02.21). Disponível em: <link>. Acesso em: 2 jul. 2022.

[10] – Ver: NASCIMENTO, Fernanda. ‘Falar em privatização da drenagem em Porto Alegre é um engodo’. Sul21, . Disponível em <link>. Acesso em: 27 jun. 2022.

[11] – Ver: Mesmo com maior obra de saneamento da história, Porto Alegre trata menos esgoto do que em 2015; entenda. GZH (30.05.22). Disponível em: <link>. Acesso em: 2 jul. 2022.

[12] – Em outra ocasião vamos fazer considerações mais gerais sobre a história dessa classificação das atividades consideradas “essenciais” para demonstrar que tal regulação é apenas um artifício para desmobilizar os trabalhadores e não tem nada a ver com a necessidade humana do serviço.

[13] – Como afirmam os camaradas do Cuadernos de Negacíon: “A cidadania é a consagração do proletário transformado em indivíduo ideologicamente burguês (porque sua condição econômica permanece a mesma). O cidadanismo também se desenvolve como ideologia própria de uma sociedade que não concebe a superação desse sistema” (Nº 2: Clases sociales o la maldita costumbre de llamar a las cosas por su nombre).

[14] – O grupo CrimethInc, apesar de sua guinada ao defensismo patriótico no que diz respeito à guerra na Ucrânia, tem uma contribuição muito interessante acerca do funcionamento da chamada “política de demandas”. O grupo caracteriza essa política dessa forma:

Fazer exigências [na forma de demandas] coloca algumas pessoas como representantes do movimento, criando uma hierarquia interna e dando a elas incentivo para controlar os outros membros. 
Na prática, unificar um movimento em torno a demandas específicas geralmente significa designar porta-vozes para negociar por ele. Mesmo se estes forem escolhidos “democraticamente”, sob a base de seu comprometimento e experiência, eles não podem fazer outra coisa a não ser desenvolver interesses diferentes dos outros membros como consequência de representarem este papel. 
Com o objetivo de manter a credibilidade do seu papel de negociadores, estes porta-vozes devem ser capazes de pacificar ou isolar qualquer pessoa que não esteja disposta a apoiar os acordos que eles fizerem. Isto dá a aspirantes a líderes um incentivo para reinar em um movimento, na esperança de conquistar uma cadeira à mesa de negociação. As mesmas almas corajosas cujas ações inflexíveis granjearam ao movimento sua posição altiva subitamente encontram ativistas de carreira que surgiram mais tarde lhes dizendo o que fazer – tentando impedir que eles sequer façam parte do movimento (Porque Não Fazemos Demandas).

Vale destacar que é precisamente através desse tipo de política que o sindicalismo mantém conformados os proletários aos quadros institucionais e jurídicos da burguesia, impedindo “greves selvagens” em prol dos interesses efetivos da classe.


[15] – A cidade está situada na bacia hidrográfica do lago Guaíba. O lago, a nível de Porto Alegre, contém a vazão correspondente a seis rios a montante: os rios Jacuí, Caí, Gravataí, Taquari e dos Sinos. Não obstante, a capital é subdividida em outras 21 microbacias hidrográficas e é banhada por 27 arroios. Na cidade, as regiões de baixa altitude contêm cerca de 35% da área urbanizada abaixo da cota 3 (3 metros acima do nível do mar). Nesse sentido, essas parcelas da capital localizam-se praticamente ao nível dos rios, estando suscetíveis a alagamentos e inundações. Além disso, essas áreas de baixa altitude são divididas praticamente ao meio, dentro dos limites geográficos do município, por uma cadeia de morros graníticos. Assim, a parcela final da Serra do Mar divide Porto Alegre em duas depressões (a norte e a sul).

[16] – As informações da nota 15 também possuem como referência o mesmo estudo: SILBERMANN, Dany et al. Acesso Desigual ao Saneamento Básico em Porto Alegre (p. 65-76). In: OLIVEIRA, Carlos Wagner de A (Ed.). Boletim regional, urbano e ambiental, nº 25, Janeiro/Junho de 2021. Brasília: Ipea, 2021. Disponível em: <link>. Acesso em: 3 jul. 2022.

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