Libelo escrito por membros da Internacional Situacionista & estudantes da cidade de Estrasburgo no ano de 1966 (1ª edição). Título original: De la misere en milieu étudiant considérée sous ses aspects économique, politique, sexuel et notamment intellectuel et de quelques moyens d’ y remédier. Versão em português disponível em: link. |
Proposta: Nessa publicação apresentaremos uma avaliação crítica da situação de enfrentamento aos cortes de verbas destinadas ao Ensino Superior. Em nossa perspectiva, o que está realmente em disputa não são “questões estudantis”, nem o “futuro da educação e da ciência do Brasil”, dentre outras fantasias ideológicas que apenas representam os interesses de diferentes frações burguesas nos quadros da reprodução social do capitalismo brasileiro. Buscamos romper com todas essas impressões para demonstrar que mesmo essa medida imediata de “corte de verbas” pode ser compreendida e explicada pela teoria revolucionária e combatida pela prática independente da luta autônoma proletária.
Observação: As notas estão ao final do texto e são sinalizadas por colchetes em negrito ([…]).
Introdução:
Às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais, um novo decreto do governo Jair Bolsonaro buscava contingenciar recursos das instituições de ensino públicas do Brasil. O bloqueio ocasionado pelo decreto 11.216/2022, publicado em 30 de setembro, afetava sobretudo as instituições de ensino superior federais que, juntas, perderiam R$ 328 milhões (ao longo do ano, o acumulado é de R$ 763 milhões retirados do orçamento das universidades).
Depois da péssima repercussão da medida, o governo federal reverteu o bloqueio. A informação do recuo do governo foi divulgada pelo ministro da Educação, Victor Godoy, em suas redes sociais.
No entanto, mesmo com esse recuo, o governo federal apenas mudou seu alvo para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). Uma publicação do dia 6 de outubro no Diário Oficial da União (DOU) mostra que o governo federal bloqueou R$616 milhões do orçamento da pasta destinados a atividades de pesquisa nas Universidades Públicas.
No esteira desses acontecimentos, a UNE (União Nacional dos Estudantes), a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e outras organizações institucionais convocaram uma mobilização nacional para o dia 18 de outubro. Em nota, a direção da CNTE afirmou que:
Não podemos tolerar e nem admitir mais tantos ataques à educação de nosso povo. O movimento estudantil, por meio da UNE e ANPG, convocou uma imediata manifestação nas ruas brasileiras no próximo dia 18 de outubro. Essa data foi imediatamente acolhida e, desde o dia de ontem, quando ocorreu uma reunião da Direção Executiva da CNTE, os educadores e as educadoras brasileiros/as se somarão à essa luta. Todos às ruas do país no próximo dia 18 de outubro! Em defesa do maior patrimônio que um país pode dar a seu povo, lutemos juntos/as por uma educação pública, gratuita, laica e socialmente referenciada! (Brasília, 07 de outubro de 2022, Direção Executiva da CNTE).
Como nos posicionamos, enquanto comunistas libertários, diante dessa situação de corte de verbas? Para responder essa questão, é necessário levar em consideração a situação atual da luta de classes brasileira, relativamente à polarização interburguesa da farsa eleitoral e o modo como o “movimento estudantil” tem transformado essa mobilização em uma mera campanha eleitoral passiva diante dos ataques.
1. Questões preliminares sobre o chamado “movimento estudantil”:
A ideologia burguesa [1] insiste em dissolver as posições de classe sob formas “neutras” que apagam as origens sociais das pessoas. Assim, não importa se o “jovem” ou a “estudante” tenha que vender sua força de trabalho para se sustentar ou contribuir com a renda de sua família, não importa se este ou aquele “discente” esteja desempregado ou mesmo quando só pode se manter com ajuda de seus familiares assalariados. Toda a vez que se tomam indistintamente as pessoas por classificações “neutras” como “jovem”, “estudante”, etc., ocorre um apagamento das condições de classe.
Não estamos dizendo, contudo, que “não existem estudantes” ou que “não existe juventude”, mas que essas classificações (uma relacionada aos níveis de escolaridade e a outra a faixa etária) não dizem respeito senão à administração e reprodução social do capitalismo, seja em termos jurídicos (“Estatuto da Juventude”, por exemplo), seja em termos empregatícios (“Diploma” como certificado de aptidão laboral num ramo restrito do mercado de trabalho – embora não seja certo que haja emprego para todos os “formados”).
Mesmo o mais vulgar senso comum parece ter noção disso intuitivamente quando ouvimos frases como “estude para conseguir um emprego decente”, embora isso também não passe de outra forma de “seduzir” ideologicamente membros do proletariado com a ilusão de que podem “escolher sua própria profissão” ao se “dedicarem aos estudos” (a cenoura que mantém muitos resignados ao sobre-esforço enquanto sonham com um futuro ilusório).
Não obstante, os efeitos ideológicos mais nocivos surgem quando as necessidades práticas que levam o proletariado a se revoltar são cooptadas para o chamado “movimento estudantil”, quando começam a agir politicamente como “estudantes” (como vinculados a uma instituição de ensino específica da sociedade burguesa) no lugar de cometerem a subversão de agirem autonomamente a partir de seus interesses de classe.
A experiência histórica da luta de classes nos legou o seguinte aprendizado: as lutas estudantis servem para impedir uma parte considerável do proletariado (geralmente os “jovens”) de lutar em prol da libertação de sua condição de classe e colocar a outra parte do proletariado (que está fora das instituições de ensino) contra esses “estudantes”, difamando-os como “jovens vagabundos” [2].
No entanto, podem nos objetar que existem “interesses específicos” dos “estudantes” que justificam um “movimento específico”, porém é precisamente esse isolamento em especificidades funcionais ao sistema que marca o caráter ideológico desse “movimento” (cuja premissa oculta é: “o estudante deve se interessar e defender coisas de estudantes sem contestar a sociedade em que vive”). O mesmo vale para aquilo que os teóricos liberais chamam de “grupos de pressão” da “sociedade civil organizada”: são meras formas de enquadrar aos conformes jurídicos burgueses (como “cidadãos”), toda e qualquer luta que possa emergir contra as precárias condições de vida no capitalismo.
Mas isso não acaba por tornar toda e qualquer mobilização impossível, dado que “lutar contra o corte de verbas” se torna “apenas mais um momento de reprodução da sociedade capitalista”? Essa é uma falsa conclusão que parte de falsas premissas. Em outras ocasiões, tratando de outras questões particulares, demonstramos como um disparador imediato de revolta poderia ser conectado com as questões gerais da luta de classes [3]. Portanto, a questão é saber como fazer a mediação da tentativa de corte de verbas para financiamento do Ensino Superior com a luta de classes em seu conjunto.
2. Os cortes de verbas no Ensino Superior como continuidade da política dos setores exportadores da classe dominante brasileira:
Para compreender os interesses por trás da tentativa de corte de verbas, mesmo que o governo já tenha recuado diante da ameaça de revolta, é necessário compreender essa medida no quadro do projeto político-econômico de classe ao qual se situa.
Em primeiro lugar, é necessário pensar a organização social do ensino em sua forma historicamente específica atual (ou seja, no modo de produção capitalista). Nesse sentido, não vamos defender um “modelo ideal de ensino”, porque é necessário compreender como é o ensino que existe efetivamente, qual a posição social das instituições de ensino nesse modo de produção e qual o verdadeiro motivo nos cortes de verbas.
Vamos recorrer a um dos economistas e ideólogos mais importantes no que diz respeito à consciência do papel do ensino no capitalismo: Theodore W. Schultz (1902-1998), que foi professor do departamento de economia da Universidade de Chicago, participando da fundação da disciplina de Economia da Educação em meados de 1950. Ele também é considerado o principal formulador da teoria do capital humano. Tanto a disciplina de economia da educação quanto a ideia de capital humano surgiram da preocupação em explicar os ganhos de produtividade gerados pelo “fator humano” na produção. Assim emergiu a concepção de que o trabalho humano, quando qualificado por meio do ensino, se tornava um importante meio para a ampliação da produtividade econômica, e, portanto, das taxas de lucro do capital.
Segundo Schultz (1971, pp. 42-43), os cinco fatores mais importantes do capital humano são:
(1) recursos relativos à saúde e serviços, concebidos de maneira ampla de modo a incluir todos os gastos que afetam a expectativa de vida, o vigor e a capacidade de resistência, e o vigor e a vitalidade de um povo; (2) treinamento realizado no local do emprego, incluindo-se os aprendizados às velhas maneiras organizadas pelas firmas; (3) educação formalmente organizada nos níveis elementar, secundário e de maior elevação; (4) programas de estudos para os adultos que não se acham organizados em firmas, incluindo-se os programas de extensão, notadamente no campo da agricultura; e (5) migração de indivíduos e de famílias, para adaptar-se às condições flutuantes de oportunidades de empregos.
Não obstante, o que o ganhador do Nobel de Economia não leva em consideração é que esse “fator humano” do capital não é um “investimento do trabalhador sobre si mesmo e seus filhos” como ele sugere. O capital humano é parte do capital variável na composição orgânica de capital (capital constante + capital variável) e cujos rendimentos são explorados pelo capitalista (que é quem se beneficia do “papel das capacidades adquiridas
dos agentes humanos como uma fonte importante dos ganhos de
produtividade”) [4].
Portanto, os investimentos em ensino decorrem da reprodução ampliada do capital em sua composição orgânica, derivando do processo de acumulação como um todo. No entanto, como viemos argumentando em nossos textos sobre a dominação do agronegócio e dos extrativistas no que diz respeito à determinação exportadora do eixo dinâmico da economia brasileira [5], tanto a qualificação da força de trabalho quanto a própria superpopulação relativa (o chamado “exército industrial de reserva”) se tornaram supérfluos e estão sendo destruídos.
O excedente populacional proletário tem sido destruído pela gestão da pandemia, conforme argumentamos em “As vicissitudes da luta de classes brasileira na pandemia capitalista”, assim como também se destroem as condições de qualificação da força de trabalho ao se sabotar as instituições de ensino, ambas formas de desvalorização da força de trabalho, como modo de reduzir os custos de empregabilidade (rebaixamento salarial, etc.) e ampliar a exploração bruta da força de trabalho.
Nesse sentindo, o disparador imediato da atual revolta contra os cortes de verba ao Ensino Superior é o processo generalizado de desvalorização da força de trabalho. Esse ponto de partida está sendo distorcido pelo conjunto de interesses burgueses que buscam tirar proveito da disposição para a mobilização: 1) para reforçar a confiança nas instituições de ensino da burguesia com apelos ao “futuro da educação e da ciência do Brasil”; 2) para enquadrar as forças de luta nos quadros da polarização interburguesa do processo eleitoral em curso (a disputa para a presidência entre Lulalckmin e Bolsonaro).
O campo realmente autônomo da luta proletária revolucionária está além e aquém da polarização eleitoral burguesa entre o projeto neoliberal progressista de Lulalckmin e o projeto neoliberal reacionário de Bolsonaro.
2. 1. A luta contra os cortes de verbas segundo a concepção da autonomia proletária:
Qual a tarefa dos militantes revolucionários para enfrentar a política que caracterizamos na seção anterior? Compreendemos que temos uma tarefa positiva na luta contra a desvalorização da força de trabalho na medida em que agrava as condições de exploração e embrutecimento de nossa classe proletária.
No entanto, devemos lutar pela unidade de classe do proletariado diante desse ataque, denunciando essa política de corte de verbas nas pesquisas em ciência e tecnologia como mais uma medida que busca brutalizar e precarizar a força de trabalho, para uma exploração cada vez mais intensa do proletariado.
Diante desse quadro, defendemos as seguintes medidas imediatas: Contra o desemprego, o arrocho salarial e os cortes em Ciência e Tecnologia! Revogação imediata do Teto de Gastos (Emenda Constitucional n.º 95)!
Embora os cortes que financiam o Ensino Superior e as pesquisas (que são majoritariamente realizadas por Universidades Públicas no Brasil) tenham iniciado muito antes do Teto de Gastos, exigir a revogação da Emenda 95 eleva o nível de mobilização e alcance do movimento ao núcleo jurídico ao qual os governos estão se reportando atualmente ao administrarem o orçamento público.
No entanto, o movimento estudantil está desmobilizando a revolta, conduzindo as massas a lutar pela eleição de Lula, em prol da frente eleitoral antifascista. Isso fica perceptível numa nota da Rede Estudantil Classista e Combativa (RECC) sobre a tentativa de ocupação da reitoria da Universidade Federal do Ceará (UFC) que foi frustrada pela UNE.
No dia 07 de outubro ocorreu uma plenária de mobilização contra os cortes de verba pelo Centro Acadêmico Frei Tito de Alencar (CAFTA), do curso de História da UFC. Durante a plenária, houve a proposição de ato na reitoria, assim como propostas de ocupação (lembrando que a UFC tem um reitor interventor, diretamente colocado por Bolsonaro). No entanto, a UNE buscou conduzir o ato para a avenida da universidade, pois almejavam evitar a todo o custo o conflito aberto com a reitoria.
Durante o percurso do ato, os estudantes se deparam com os portões da reitoria fechados, então a base dos estudantes revoltada com a situação derruba os portões, assumindo a direção do ato a despeito da UNE buscar desmobilizar os estudantes.
Entretanto, mesmo com os coros em prol da ocupação, as dirigências da UNE insistiram em suas manobras e começaram a afirmar que solicitariam a vinda do interventor para dialogar com os estudantes. A RECC denunciou dessa forma essa atitude:
Frente a isto, a UNE deixa muito claro seu posicionamento: precisamos garantir a eleição de Lula, ainda que isto custe podar a legítima revolta dos estudantes contra Bolsonaro. Ainda que Bolsonaro pise nas nossas cabeças, não é do interesse da UNE radicalizar a luta nesse período próximo ao segundo turno. Seu interesse está em criar comitês eleitorais e realizar passeatas de rua ao invés de ocupações, promovam ainda mais seu candidato (sic).
Em resumo: a UNE conseguiu desmobilizar os estudantes nessa ocasião, com a promessa de diálogo, boicote da ocupação e desvio do ato para a avenida da universidade na esquina com a rua 13 de maio.
Isso demonstra como a socialdemocracia (a partir de órgãos de controle como a UNE) tem feito de tudo para impedir a generalização da revolta proletária, para cooptar todas as energias para a farsa eleitoral burguesa. Isso nos coloca diante da segunda necessidade perante a atual mobilização.
3. Contra a farsa eleitoral: o antifascismo constrói as bases da vitória reacionária
O título dessa seção não é uma provocação, mas um ensinamento legado pela experiência histórica da luta de classes. As frentes antifascistas historicamente tem conduzido o proletariado à derrotas e ao abandono de sua autonomia de classe na medida em que o enquadram em oposições interburguesas como: “democracia” contra “ditadura”, “Estado democrático de direito” contra “Estado policial de ajuste”, “civis” contra “militares”, “regime constitucional” contra “regime ditatorial”, etc…
A experiência dos anos 30 até a segundo guerra mundial nos demonstra que todas as frentes populares antifascistas serviam apenas para: 1) transformar os proletários em bucha de canhão da guerra interimperialista; 2) impedir toda e qualquer independência de classe e ações autônomas do proletariado. Além disso, nas situações onde a frente popular enfrentou as forças fascistas, a frente geralmente é derrotada (como no caso da vitória de Franco na Espanha).
A direção das frentes populares antifascistas é realizada pelo partido socialdemocrata hegemônico da situação histórica. Mas antes mesmo de um movimento reacionário se formar, é a socialdemocracia que reforça as instituições que serão usadas contra o proletariado (como o caso dos governos petistas terem inaugurado o uso de medidas como a Garantia da Lei e da Ordem ou aprovado a Lei Antiterrorismo).
A primeira tarefa da socialdemocracia, conforme já demonstramos noutras ocasiões, é enquadrar o proletariado nos quadros da reprodução reformista do capitalismo: seja institucionalmente através de reformas progressistas (identitarismo, assistencialismo, etc.), seja através do aumento da produtividade da força de trabalho para ampliar a exploração de mais-valia relativa através de políticas desenvolvimentistas, ou simplesmente favorecendo a conciliação de classes através do controle sindical sobre a classe trabalhadora.
Para aplicar essas políticas (na parte ou no todo), será necessário combater a autonomia proletária, portanto “é a socialdemocracia que desarma, ideológica e materialmente o proletariado, e reprime militarmente suas insurreições” (Askö #9, 08/1998).
A frente antifascista nada mais é do que a segunda tarefa histórica da socialdemocracia: capturar toda a revolta do proletariado e usá-la para defender a democracia, os direitos, as instituições, isto é, um suposto “capitalismo mais humano” (e esse “humanismo capitalista” não hesitará em atirar contra proletários, em encarcerar e torturar aqueles que não seguirem a agenda da frente popular).
Tudo isso está registrado em nossa memória histórica da luta de classes. Nesse sentido, indicamos a tradução que nossos camaradas da editora Amanajé fizeram para contribuir nesse debate: 1936: Como a “Frente Popular” na França e na Espanha mobilizou a classe trabalhadora para a guerra (2006).
Em nossa avaliação, o bolsonarismo é um movimento reacionário com pretensões de exercício aberto e deliberado do terrorismo de classe contra o proletariado, mas isso significa justamente a necessidade imediata de romper com as frentes antifascistas de toda a natureza. Isso porque:
Os partidos reacionários representam a radicalização da ditadura burguesa quando o “pacto democrático” entra num processo de “crise orgânica” (quando se fala em “instabilidade das instituições”), tornando necessário uma reforma ainda mais autoritária para reforçar a dominação de classe (recuperar a “estabilidade política” do regime). Para isso é necessário: 1) que o movimento reacionário tenha uma base de massas e uma mobilização permanente dessas bases em uma postura bélica e beligerante frente a inimigos públicos que personificam os ressentimentos dos setores mais conservadores da sociedade (em conspiração constante contra o chamado “progressismo”); 2) processo de consolidação desse bloco de poder da ala reacionária da burguesia com o “fechamento do regime” (no pior dos casos, quando a pretensão do uso reacionário da violência se funde com as instituições oficiais do Estado que legitimam essa violência) ou senão através de operações de violência paralelas aos órgãos oficiais da democracia (através de milícias, “gabinetes ocultos”, “narcopolítica”, etc.); 3) processo de concentração de poder para exercício do terror aberto (caso do “fechamento do regime”) ou através da terceirização desse poder (caso da cobertura institucional via aparelhamento governamental dos abusos de milícias, jagunços de fazendeiros, etc.); 4) difusão ideológica do anticomunismo em estado paranoico (caso em que toda adversidade é projetada sobre a figura do inimigo público nº 1 da burguesia: o comunismo) e reforço do discurso de unidade e lealdade nacional e 5) a parte mais importante e decisiva de todo o processo: a colaboração passiva dos socialdemocratas que possuem a tarefa de manter o proletariado organizado em frentes populares inofensivas até que não sejam mais necessários e possam ser também eliminados.
No caso brasileiro, o partido socialdemocrata hegemônico que está dirigindo as frentes antifascistas é o Partido dos Trabalhadores (PT). Sua tarefa histórica tem sido cumprida com êxito: o “Fora Bolsonaro” de 2021 (ano passado) conseguiu reverter a revolta proletária contra o massacre pandêmico em uma antecipação de campanha eleitoral em prol do PT e da eleição de Lula (veja-se parte desse processo em nosso texto: “As vicissitudes da luta de classes brasileira na pandemia capitalista”).
Vimos que o resultado do primeiro turno confirmou uma ascensão generalizada dos reacionários no Senado e na Câmara dos Deputados. No entanto, a campanha socialdemocrata conseguiu transformar o Lulalckimin em favorito para as eleições presidenciais. O segundo turno é a continuidade da cooptação eleitoral da disputa entre as facções burguesas brasileiras. Nesse sentido, o “Fora Bolsonaro” ainda representa a capitulação do proletariado para a socialdemocracia e, pior ainda, os “votos críticos” ou a campanha eleitoral aberta (acriticamente) para Lulalckimin representam um retrocesso ainda maior!
Em outras palavras: diante de um aumento considerável das forças reacionárias, a socialdemocracia ampliou ainda mais o controle da revolta proletária, fazendo a classe desertar de sua luta autônoma e enquadrando-a no eleitoralismo burguês mais tacanho possível (beirando ao puro moralismo individualista de que clicar uns botões numa urna é “fazer sua parte”).
Por outro lado, é fundamental para o movimento reacionário se colocar supostamente “contra” as instituições (por exemplo: “contra o TSE”), pois é uma reação para solucionar a própria crise política através da conservação autoritária dessas mesmas instituições. Aqui temos uma complementaridade, uma necessidade recíproca do reformismo diante do reacionarismo: de um lado a socialdemocracia impede a subversão proletária para dar mais tempo aos reacionários (além de aumentar a confiança na legitimidade do regime burguês, o que significa, para o proletariado, permanecer desarmado enquanto confia sua segurança ao Estado), de outro lado os reacionários assentam ainda mais os discursos de ódio anticomunista nas suas bases e tentam garantir mais condições de exercício da violência.
4. Compromisso das minorias revolucionárias: em prol da autonomia proletária!
Diante desse quadro, qual a tarefa dos militantes revolucionários? A resposta não poderia ser mais evidente: promover a ruptura total com essa polarização interburguesa, em prol da reconstrução dos meios de luta e objetivos específicos do proletariado na luta de classes. Esse objetivo específico do movimento comunista libertário pode ser sintetizado pelo seguinte lemas Abaixo à farsa eleitoral! Ação direta contra o Capital!
Compreendemos que é necessário sabotar tanto o reformismo socialdemocrata quanto o reacionarismo conservador, denunciando a cumplicidade desses dois lados da mesma moeda (pois ambos buscam conservar o capitalismo, seja reformando, seja com uma reação conservadora). Qualquer objeção de que esse posicionamento radical “faz o jogo da direita” não passa de uma falsificação histórica e uma manipulação para impedir a autonomia revolucionária do proletariado.
É por isso que não podemos ser tolerantes e passivos com o avanço de qualquer um dos lados dessa oposição, pois os reacionários são uma ameaça a nossa subversão por serem ativamente anti-anarquistas e anticomunistas, enquanto que os reformistas estão a todo custo impedindo a única via de combate efetivo que poderia enfrentar a reação, pois impedem a auto-organização e direção revolucionária do proletariado (e também entregam os revolucionários para a polícia, disseminam conspiração de que existem “infiltrados” no movimento agindo como “provocadores”, dentre outras falsificações para criminalizar os militantes autônomos).
Por isso também discordamos da passividade resignada dos especifistas que defendem manter compromissos com a mesma frente antifascista que acorrenta o proletariado, como declararam nesse texto publicado na Jacobin:
estamos e estaremos, sem sectarismo, ao lado de outras companheiras e companheiros que – independentemente de sua posição política frente às urnas – constroem esses movimentos populares no dia a dia, para além das eleições. Essa será a maior contribuição à derrota do bolsonarismo: uma forte unidade de luta popular por direitos e contra os setores reacionários (O anarquismo frente ao fascismo e ao debate eleitoral).
Ao mesmo tempo em que criticam acertadamente os pseudo-anarquistas que declararam voto em Lula na mesma revista [6] (veja-se: Anarquistas em defesa do voto em Lula), eles dizem defender “uma forte unidade de luta popular por direitos e contra os setores reacionários”, o que, na prática, é o mesmo do que fortalecer a frente popular (apesar e aquém das urnas). Nossa unidade não deve ser “popular” (outro termo a-classista), mas sim uma unidade de classe do proletariado, em prol da luta autônoma e revolucionária pelo comunismo.
O bolsonarismo só pode ser derrotado se o proletariado rompe a unidade antifascista e constrói sua própria política independente de classe, a partir de seus próprios objetivos e meios autônomos de luta. O bolsonarismo só será derrotado por um movimento que já não mira apenas num governo particular da sociedade burguesa, mas luta diretamente pela organização do proletariado a partir de seus próprios interesses com objetivos revolucionários de longo prazo.
Notas:
[1] – Observação sobre o conceito de ideologia: compreendemos por ideologia a consciência dos interesses que são congruentes com a reprodução social de uma determinada sociedade de classes. Nesse sentido, não compreendemos pela noção de ideologia qualquer “sistema de ideias e valores” como, por exemplo, o antropólogo Louis Dumont: “Chamo de ideologia o conjunto de ideias e valores em uma sociedade” (2000, p. 19). Em nossa perspectiva, as ideologias são formas históricas de consciência social que estão diretamente associadas com as relações de classe. Os processos ideológicos se manifestam em qualquer forma de ação e intelecção: na moralidade (sistema dos valores e costumes), no saber (qualquer forma de conhecimento), nas crenças (fé, superstição), etc. No entanto, é necessário enfatizar que a ideologia não implica necessariamente uma concepção voluntarista da classe dominante, onde as instituições sociais são deliberadamente “manipuladas” pelos dominantes (essa seria uma forma maniqueísta de compreender as coisas). Os processos ideológicos ocorrem espontaneamente na ausência de crítica revolucionária, pois correspondem a uma consciência conservadora da ordem social vigente, enquanto fetichização dessa ordem. A característica peculiar da ideologia é “apresentar um interesse particular como geral” (MARX & ENGELS, 2007, p. 49), ou seja, questões particulares relacionadas ao domínio de um grupo social são apresentadas como uma generalidade para toda a sociedade (ou, dito de outra forma: na medida em que uma sociedade de classes é uma sociedade baseada na dominação de uns sobre outros, toda consciência que supõe a continuidade inexorável dessa situação é, na prática, uma apologia). Outro mecanismo sutil da ideologia é sua aparição imediata na forma de hábitos e do senso comum (formando um status quo). Além disso, justamente para “generalizar o particular”, será da natureza do discurso ideológico se apresentar como “a-ideológico”, como “puramente técnico” em certos casos, como “consenso científico” noutros, ou mesmo como idêntico à “moralidade” em si (como dever ético “puramente formal”).
[2] – No momento não é nosso objetivo aprofundar essa discussão, mas noutra ocasião vamos abordar essa questão em mais detalhes e com exemplos.
[3] – É necessário relembrar uma importante tese revolucionária já expressa no “Manifesto do Partido Comunista” (1848) que está dividida em duas premissas fundamentais: 1) “Os comunistas não constituem, em face dos outros partidos operários, nenhum partido particular” (MARX & ENGELS, 1998, p. 20) e 2) “Eles não possuem interesses separados dos interesses do conjunto do proletariado” (idem). Os revolucionários defendem, portanto: a formação de uma organização geral da luta proletária que leve em consideração os “interesses do conjunto do proletariado”, portanto as chamadas “especificidades” e “necessidades particulares” são apenas as pontas do iceberg geral da luta de classes, cuja função das minorias revolucionárias é fazer a conexão da totalidade da luta com seus disparadores imediatos.
[4] – Essa questão mesma já havia sido abordada por Marx nas discussões relativas à necessidade de qualificação da força de trabalho no chamado trabalho complexo relativamente ao avanço técnico-científico, mas preferimos mostrar a consciência fetichizada dos economistas como exemplo de que estão parcialmente conscientes disso quando não estão falando da necessidade de “formação cidadã”. Na verdade, a face socialdemocrata do ensino é a “formação cidadã” (ideologia do integralismo democrático), enquanto que a face liberal é a “pura qualificação da força de trabalho” (ideologia da concorrência mútua entre vendedores de força de trabalho).
[5] – Sugerimos a leitura da seção 5 (“A social-democracia brasileira contemporânea”) de nosso texto: “Notas sobre o partido social-democrata brasileiro” (28 de agosto de 2020). Também sugerimos os textos em que abordamos questões específicas relacionadas a processos de privatização e lutas por terra que também tangenciam a mesma discussão: “Crítica da privatização da CEEE-D e sua venda para o Grupo Equatorial”, “Considerações sobre a mobilização nacional dos povos indígenas contra o Marco Temporal” e “Considerações sobre a luta contra a privatização da Corsan e do DMAE”.
[6] – Uma crítica mais contundente foi publicada por nossos camaradas da Amanajé: Notas acerca da farsa eleitoral: anarquistas votam em Lula?.
Referências:
DUMONT, Louis. Homo aequalis: gênese e plenitude da ideologia econômica. Bauru: EDUSC, 2000.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. Disponível em: link.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Estudos avançados, São Paulo, v. 12, n. 34, p. 7-46, dez. 1998. Disponível em: link.
SCHULTZ, Theodore W. O Capital Humano. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. Disponível em: link.
Nenhum comentário:
Postar um comentário