Neste texto nós vamos discutir brevemente a inserção do contexto brasileiro na revolta internacional do proletariado contra a constante precarização da vida no capitalismo.
Havíamos publicado em nosso blog a tradução que realizamos do texto “O contágio da revolta se espalha: lutas em todos os lugares!” dos camaradas do site Proletarios Internacionalistas. Nesta publicação, temos uma análise conjuntural da luta internacional do proletariado na primeira metade do ano de 2020. Eles demonstraram como as revoltas espalhadas e difusas ao redor do mundo constituíam uma comunidade de luta unitária, pois expressa em todos os lugares os anseios da nossa classe social (o proletariado) contra esse modo de produção parasitário que consome nossas vidas para se reproduzir como se fosse um “sistema viral” (o capitalismo).
Desde então, mais lutas se somaram à revolta mundial, das quais podemos destacar as seguintes:
- Na Bielorrússia, uma revolta contra o regime ditatorial e imperialista de Aleksandr Lukashenko se espalhou pelo país e este movimento tem contado com a organização e participação ativa da perspectiva anarquista do proletariado. Em 2017, o movimento anarquista bielorrusso já havia se insurgido contra uma lei que obrigaria os desempregados a pagar um imposto adicional ao governo (que é, sem sombra de dúvidas, capitalista como qualquer outro governo atualmente, desde a China até os EUA). A luta atual é um acúmulo histórico dos enfrentamentos precedentes e também se insere no levantamento mundial do proletariado em seu processo insurgente, ainda que existam muitos limites interclassistas em certas pautas, inclusive uma tentativa de desvio do movimento insurrecional para uma política democrático-identitária do “feminismo liberal”, com figuras como Svetlana Tikhanovskaya querendo se declarar “presidenta interina” do país. Para mais informações, veja-se a entrevista feita pelo coletivo CrimethInc com anarquistas bielorrussos, disponível em: link. Planejamos traduzir essa entrevista no futuro próximo.
- No Peru, uma onda de protestos tomou conta do país após o impeachment de Martín Vizcarra. Embora as manifestações estejam perpassadas de pautas interclassistas, dentre elas uma constituinte, o proletariado tem participado com suas próprias bandeiras e denunciado as medidas reformistas que apenas conservam o modo de produção que consome nossas vidas. A esse respeito, sugerimos duas publicações. Uma está disponível no site Panfletos Subversivos, neste link. A outra está no site Communia, disponível neste link. Infelizmente, nós ainda não temos versões em português, mas estaremos na tradução destas e outras publicações na medida de nossas capacidades.
- Na Guatemala recentemente ocorreu uma grande manifestação contra cortes nos gastos de saúde e educação e pela saída do atual presidente Alejandro Giammattei. O ato reuniu cerca de 7 mil pessoas e ocorreu dia 21 de novembro no centro da Cidade da Guatemala (capital do país). O proletariado em revolta chegou a colocar fogo no Congresso, evidenciando uma ruptura com a ideologia democratista de assimilação das demandas pelo Estado. Até o momento só encontramos notícias nas mídias burguesas de informação, portanto não vamos sugerir nenhuma leitura que certamente estará enviesada pela ideologia, principalmente quando afirmam coisas do gênero: “o protesto ocorria pacificamente, até um grupo começar um confronto e tocar fogo no Congresso do país”, buscando dividir a opinião pública e induzir a crer nas mentiras sobre “grupos infiltrados” com “interesses obscuros” que supostamente não refletem a “vontade geral” do movimento (que eles bem que gostariam que fosse pacífica não é mesmo?!).
Como já havia sintetizado o texto supracitado que traduzimos:
Assim poderíamos continuar, sublinhando como o proletariado procura afirmar as mesmas necessidades, os mesmos interesses, contra o mesmo inimigo, contra a mesma condição. A luta internacional do proletariado está assumindo vários níveis de cristalização e força, várias formas e lugares para se materializar. Nesta situação, e na perspectiva de consolidação e intensificação da guerra de classes, um dos aspectos fundamentais para o avanço do projeto comunista de abolição do capitalismo, do Estado, das classes sociais, do trabalho e do dinheiro, é a demolição as forças que impedem, desde o interior, o desenvolvimento da perspectiva revolucionária (O contágio da revolta se espalha: lutas em todos os lugares! – Proletarios Internacionalistas).
Agora vamos diretamente aos dois atuais focos de revolta que temos no Brasil.
Lutando à luz de chamas: Revolta no Amapá
Há vinte dias, o estado do Amapá está enfrentando uma situação de penúria provocada pelo colapso do seu sistema de energia. A grande maioria da população do estado, um pouco menos de 800 mil pessoas, sofre com a falta de luz, de água e outros serviços básicos.
A mídia burguesa tem afirmado que o início da crise coincide com o 3 de novembro, após uma explosão que causou um incêndio na principal subestação energética do estado que destruiu um dos transformadores da rede, localizada na capital (Macapá). No entanto, isso é consequência de um processo de longo prazo que precisamos destrinchar aqui se quisermos compreender o que está acontecendo.
Trata-se da constante precarização das condições de vida da classe proletária, algo diretamente relacionado com a necessidade do Capital em desvalorizar a força de trabalho de todas as formas possíveis. E uma das formas de desvalorização da força de trabalho é a redução dos custos de sua manutenção. Nesse caso, abre-se margem para iniciativa privada começar a gerir certos serviços como forma de diminuir a participação do setor público que seria mais custosa para a classe dominante (embora continue sendo um mecanismo de reprodução social do capitalismo). Aqui se insere, portanto, o fato de que o transformador que pegou fogo era um ativo da Gemini Energy.
A redução de custos é notável em vários fatores, dentre eles o seguinte: para as estações sob gerenciamento público, é necessário um equipamento de reposto e backup de segurança. Mas para as empresas privadas isso não é exigido.
A instalação que foi destruída pelo incêndio era gerida pela transnacional de origem espanhola Isolux Corsán, que havia adquirido uma concessão em 2008 para assumir a responsabilidade da subestação, fundando a Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE). Mas de 2015 para 2016 a empresa começou a definhar em prejuízos e começou perder contratos, além de tentar vender tudo que não fosse linha de transmissão. Já em 2019, a Isolux havia passado o controle da subestação para a Gemini Energy, controlada por dois fundos de investimentos geridos por Starboard e Perfin (responsáveis por assumir situações de dificuldades e riscos financeiros).
Não se trata, portanto, de um acidente meteorológico, mas de uma gestão cada vez mais precária que reflete o corte de custos que havíamos mencionado acima. Vale destacar que a empresa dispunha de três transformadores, mas dois deles estavam inoperantes desde 2019, uma vez que o preço da manutenção deles afetaria no “uso eficiente dos recursos” (isto é, nos lucros).
O colapso causou um blecaute em 13 dos 16 municípios do Amapá. Durante cinco dias a população teve que sobreviver sem energia elétrica. Depois disso, um regime de abastecimento parcial foi adotado (com 6h de eletricidade e 6h sem).
Somente no dia 21 de novembro que foi reconhecida a situação de calamidade pública no estado.
Mas o proletariado não aguentou essa atrocidade calado enquanto já estava sofrendo com a pandemia no agravamento da precarização das suas condições de vida no capitalismo.
Toda essa situação desencadeou uma profunda indignação no proletariado que se insurgiu numa onda massiva de protestos pelo estado. Um levante perpassado pela livre iniciativa e ações mais bem espalhadas pelo território. Em vários bairros de várias cidades, os moradores ergueram barricadas usando pneus e colchões em chamas, além de realizarem uma série de passeatas pelas ruas da capital (Macapá). No 15º dia do apagão, a Polícia Militar já havia registrado 110 manifestações diferentes.
Podemos destacar aqui um fato importante: o governo do Amapá é gerido por Waldez Góes do Partido Democrático Trabalhista (PDT), parte da oposição de esquerda ao Bolsonaro. Atualmente a social-democracia tem ganhado simpatizantes às custas do fantasma do bolsonarismo que supostamente seria “o mais brutal dos brutais”. Mas como reagiu o governo diante da revolta social do proletariado? Reagiu da forma mais previsível possível, bem como esperado de uma gestão do Estado: contra as manifestações se acionou uma colossal repressão com requintes de crueldade. Por exemplo: em um ataque policial a um protesto que ocorria no bairro pobre de Congós, a polícia atirou no olho de um adolescente de 13 anos que corre risco de perder a visão.
No dia 17, Góes emitiu um decreto que se apoiava no já denunciado estado de alarme da pandemia capitalista, proibindo a realização de protestos. Ele declarou a suspensão, “até a data de 02 de dezembro de 2020, em todo o território do Estado do Amapá, … [de] qualquer espécie de atividade política de pessoas em ruas, praças, ginásios, em ambiente público ou privado, mesmo que ao ar livre, que possa acarretar aglomeração de pessoas, tais como reuniões, caminhadas, carreatas, comícios, bandeiradas, etc”. Parece que alguns bolsonaristas ainda possuem muito a aprender com Góes e o PDT de modo geral, não é mesmo? Além do mais, haviam muitos que se preocuparam mais com a interrupção do processo eleitoral em curso nos municípios do que com a situação de penúria provocada pela crise! Essa é, em suma, a moral de toda a política eleitoreira, tanto de esquerda (social-democracia) quanto de direita.
A classe proletária de todo o país precisa se unir em luta e solidariedade com nossos camaradas amapaenses! A luta deles também é nossa, assim como a revolta no Brasil é apenas uma parte da revolta de nossa classe em nível mundial!
Classe dominante racista! O contexto por trás dos casos relacionados ao Carrefour
Na véspera do dia nacional da consciência negra (dia 19 de novembro), um homem negro foi assassinado por seguranças do supermercado Carrefour na cidade de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul. João Alberto Silveira Freitas (conhecido popularmente pelo apelido de Beto) se desentendeu com uma das funcionárias e estava sendo conduzido para um local conhecido como “salinha” (lugar sem câmeras, onde os seguranças praticam tortura contra clientes considerados problemáticos). Antes de chegar ao local, ele acertou um dos seguranças com um soco e, em seguida, foi agredido diversas vezes por eles, até ser imobilizado. O caso tem cenas que lembram o assassinato de George Floyd, pois a imobilização teria causado a asfixia responsável pelo óbito. Este teria sido o estopim para uma revolta antirracista em curso no Brasil que possui certas semelhanças com a revolta estadunidense do mesmo ano, principalmente no que se refere à denúncia de uma das forças de repressão centrais do capitalismo: a polícia.
Apesar de terem sido seguranças de loja cujo serviço era terceirizado, ambos tinham alguma relação com a Polícia Militar. Então não é possível compreender os nexos da revolta proletária sem fazer a associação com a violência policial, bem como o funcionamento essencialmente racista da corporação militar (inclusive: os gestores de empresas de segurança geralmente são PM's ou ex-PM's).
O proletariado brasileiro vive uma situação de genocídio nas periferias, uma vez que as estatísticas demonstram que o alvo das vítimas da polícia geralmente são os jovens negros. Um relatório produzido pela Rede de Observatórios da Segurança, grupo de estudos sobre violência nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará e Pernambuco, reuniu dados que demonstram como a população negra é a principal vítima da violência policial no país (veja-se: link). Segundo o estudo, os negros (pretos e pardos) constam como 75% dos mortos por policiais. Além disso, o mesmo relatório também demonstra que 61% das vítimas de feminicídio (morte de mulheres em função de seu próprio gênero) é negra.
Essa condição de um terrorismo de Estado no cotidiano das periferias é um fator multiplicador da miséria latente que incide sobre o proletariado e seus contingentes de força de trabalho marginalizados. Trata-se de uma política de criminalização da pobreza conjuntamente com a hierarquização racial da força de trabalho e do exército industrial de reserva (além do extermínio dos excedentes como corte de custos, conforme atesta o último parágrafo). Mas também podemos acrescentar aqui o aumento constante do sistema carcerário brasileiro como um processo intimamente relacionado com essa questão. Ou seja: mais uma forma de desvalorização da força de trabalho, conforme havíamos discutido a partir das contribuições da sociologia da prisão:
a política de encarceramento em massa atual reflete uma “política de criminalização da pobreza, que é o complemento indispensável à imposição de ofertas de trabalho precárias e mal remuneradas” (WACQUANT, 2008, p. 11, grifos do autor), uma vez que “as porções decadentes da classe trabalhadora e dos negros pobres ficaram presos aos centros das cidades, um dia industrializados, agora degradados” (idem). Enquanto a prisão imprime um estigma ao sujeito, pode-se considerar que “o sistema penal contribui diretamente para a regulamentação dos segmentos mais baixos do mercado de trabalho” (idem, grifos do autor). O trecho foi extraído de: Communismo Libertário, Ensaio sobre a Fundação de Atendimento Socioeducativo (a referência citada está no texto do link).
Pois bem, o que aconteceu no Carrefour não pode ser dissociado do que está ocorrendo, de modo geral, com a população negra que faz parte do proletariado. Mas sempre é necessário frisar a questão de classe por trás dessas dinâmicas, senão corremos o risco de cair numa ideologia identitária que serve apenas para fragmentar a unidade da classe social proletária. A racialização da força de trabalho é obra da classe dominante e serve aos seus interesses!
Se “relembrar é viver” como dizem, então vamos relembrar alguns precedentes da multinacional Carrefour para a nossa discussão a seguir. Utilizaremos uma série de prints que são evidentes por si mesmos:
Em nenhum desses casos a multinacional foi criminalizada pelo que fez, justamente porque a justiça está a seu favor (o ordenamento jurídico é tão somente um mecanismo de reprodução social do capitalismo).
A extrema direita foi verificar a ficha criminal do homem assassinado para tentar justificar sua morte, mas obviamente que nenhum dos assassinos que o matou estava pensando na ficha criminal, isso não faz o menor sentido. Não obstante, os casos do Carrefour que expomos acima (e muitos outros que não são divulgados) sempre ficaram impunes e nunca alguém da extrema direita denunciou ou disse qualquer coisa, justamente porque eles não se importam nenhum pouco com isso, apenas estão fazendo um jogo sujo de manipulação ideológica de seu rebanho.
De todo o modo, a situação é muito nítida: essa multinacional foi tão explícita em sua brutalidade que dificilmente uma ideologia poderia conter o estouro de uma revolta que finalmente começou a incendiar.
E não é somente uma luta contra o Carrefour, pois esse apenas foi um estopim de uma série de atrocidades pelas quais o proletariado brasileiro vinha sofrendo, como já afirmamos acima.
O preço dos bens de consumo continuam subindo, conjuntamente com o desemprego. O pauperismo se torna um horizonte cada vez mais latente para o conjunto da classe.
Neste caso, nossa classe é levada a se radicalizar, a organizar saques, ainda que de forma difusa e improvisada, pois passamos a impor nossas próprias necessidades contra a ditadura do Capital!
Muitos se perguntavam sobre as revoltas violentas da América Latina o seguinte: “quando será a vez do Brasil?”. Nos parece que está se abrindo uma oportunidade nessa conjuntura que esboçamos acima.
A tarefa das minorias conscientes e autônomas do proletariado é incentivar a revolta, radicalizando-a para direcioná-la em função de nossos interesses de classe. Devemos denunciar o oportunismo de esquerda que busca privilegiar a agenda eleitoral. Precisamos declarar solidariedade para nossos companheiros do Amapá que já estavam lutando contra as iniquidades desse sistema antes desse outro foco de revolta se iniciar. É necessário repetir mais uma vez: a conjuntura de revoltas é internacional e não um fenômeno local brasileiro.
Neste sentido, precisamos fazer convergir nossas lutas e demonstrar o caráter de classe de nossa revolta: trata-se de uma insurreição do proletariado, desiludido com promessas eleitorais e enfurecido pela violência estrutural do capitalismo.
Precisamos promover nessa revolta social a única mudança que podemos impor para lutar autenticamente contra essas iniquidades: a revolução social. Nosso trabalho de agitação e propaganda é direcionar essa luta antirracista para um objetivo concreto: a construção de um mundo sem dominação, ou seja, a construção do comunismo por meio do anarquismo.
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