domingo, 23 de agosto de 2020

O contágio da revolta se espalha: lutas em todos os lugares! (28 de junho de 2020) – Proletarios Internacionalistas

Traduzimos essa publicação do site Proletarios Internacionalistas para contribuir nas discussões acerca de nossa atual situação histórica no modo de produção capitalista. As premissas desses camaradas se aproximam muito das nossas, uma vez que compartilham conosco um posicionamento internacionalista, tanto nas formulações práticas quanto nas discussões teóricas.

Como leitura complementar ao conceito de comunidade de luta utilizado no texto, sugerimos esse artigo de Harry Cleaver: Teses sobre a Crise Secular do Capitalismo: a Insuperabilidade dos Antagonismos de Classe. Apesar de desatualizado, o texto de Cleaver possui algumas premissas teóricas fundamentais para compreender a luta de classes como fato histórico mundial no capitalismo.

Fizemos algumas adaptações nessa tradução e optamos por ilustrar os fatos relatados, ao longo dessa versão do nosso blog, com prints de noticiários da mídia burguesa (chamamos a atenção para a nota 8 do texto, pois ela descreve a dinâmica desses noticiários) e de outras fontes (como, por exemplo, o CrimethInc).

As notas ao fim da publicação são originais e estão indicadas pelos colchetes numerados ao longo do texto.

Em nosso blog já havíamos discutido um pouco do que está sendo chamado por nossos camaradas de estado de alarme, portanto sugerimos como leituras complementares nossos dois textos sobre a conjuntura capitalista contemporânea:


***


Título do artigo (versão em pdf) dos Proletarios Internacionalistas, disponível em: link.


Desde que publicamos nosso texto anterior no final de março [1], o desenrolar dos acontecimentos apenas confirmou o que denunciamos ali: a guerra contra o coronavírus é uma guerra contra o proletariado mundial. A declaração de uma pandemia foi o bode expiatório, uma excelente oportunidade e uma forma de cobertura para se impor toda uma série de medidas brutais que a ditadura do lucro despoticamente exige. Trata-se de conectar todo tipo de medidas de austeridade ao proletariado, impondo jornadas de trabalho ainda mais intensas e extensas em troca de salários cada vez mais precários a uma fração da classe, facilitando as demissões de outra fração, exterminando as enormes faixas que sobram da população, garantindo sua implantação por meio do controle e do terror e detendo a onda de tumultos de 2019 para reiniciar com um novo ciclo de acumulação.

O isolamento que o capital tenta impor representa a negação do proletariado como classe revolucionária, a alienação de sua comunidade de luta, para destruir não só seu atual processo de associacionismo, mas seu poder futuro (que já se evidencia nas lutas atuais). Esse é o verdadeiro objetivo do Estado de alarme [2]: concretizar as necessidades intrínsecas da relação social capitalista.

Sugerimos esse artigo de Raúl Zibechi como leitura complementar para a caracterização do estado de alarme, disponível em: link.


Embora, a princípio, toda essa guerra tenha conseguido paralisar o proletariado, a verdade é que nossa classe logo entendeu na carne do que se tratava: as condições materiais ainda piores que sofreu em toda parte não foram devidas à “pandemia” [3], mas pelas necessidades de valorização do capital.

Os primeiros sinais de que o proletariado compreendeu esta realidade foram evidentes nas expressões de luta que saudávamos no nosso texto anterior. Os motins e revoltas nas prisões de muitos países, os protestos em Hubei, os saques e conflitos na Itália ou no Panamá, a propagação de atos de desobediência às medidas do Estado de alarme e confinamento… Eram as escaramuças que anunciaram que o proletariado se preparava para retomar a onda de lutas contra o capitalismo iniciada em 2019.

Imagem extraída de uma publicação do site CrimethInc, disponível em: link.

Dissemos também que as toneladas de capitais fictícios que mantiveram, com uma importância cada vez mais decisiva, os fluxos de capitais durante décadas, e que agora se injetam maciçamente na efetiva troca comercial, com uma criação massiva de signos de valor sem nenhum suporte nem limite, criariam uma desvalorização sem precedentes, uma destruição do capital com consequências imprevisíveis que levariam o proletariado ao limite. O Líbano, o primeiro país a ver uma revolta contra o estado de alarme espalhar-se por seu território, também foi o primeiro a ver sua moeda chegar ao fundo do poço. O Estado libanês, que havia declarado falência e considerado inadimplente sua dívida, viu como o impressionante aumento nos preços das mercadorias expressou uma redução drástica no valor que afirma representar a moeda (até dois terços). Os proletários que ainda tinham algumas contas miseráveis com as quais podiam cobrir parte de suas necessidades básicas (para a grande maioria nem isso) viram-nas evaporar.

Confinados em suas casas, com a proibição de todo tipo de reunião e com os soldados andando pelas ruas, a situação tornou-se dramática. A perspectiva era abaixar a cabeça e aceitar o funeral que estava sendo preparado para ele ou apostar na vida. Mas, uma vez mais, o proletariado aposta na vida indo às ruas em massa. Desde então, a chama da revolta ilumina mais uma vez as trevas deste mundo, espalhando-se por várias regiões, rompendo o confinamento, as proibições de reuniões e mobilizações, a repressão e todo o pacote de medidas do estado de emergência. No Iraque, Irã, Panamá, França, Colômbia, Venezuela, EUA, etc., a onda de lutas que começou em 2019 é retomada, questionando-se os planos de reestruturação da burguesia e propondo fortemente um outro “novo normal” distinto do que a burguesia mundial quer impor.


Do Líbano aos EUA…


A “noite dos molotovs” foi o primeiro revés grave que o capitalismo mundial sofreu em sua “guerra ao coronavírus”. Em meados de abril, as principais cidades do Líbano experimentaram protestos e confrontos que foram recebidos com a habitual brutalidade por parte dos militares. Em 26 de abril, baleou-se uma manifestação, assassinando-se o jovem Fawaz Fouad e ferindo trinta manifestantes. Naquela mesma noite, desencadeou-se uma resposta impressionante do proletariado, no que foi chamado de noite dos molotovs. Os soldados foram surpreendidos pelo colapso geral do estado de emergência e pela chuva de coquetéis molotov que substituíram as pedras. Desde então, bancos, soldados, delegacias e outras expressões do capital têm sofrido diariamente o calor dos molotovs, enquanto que das janelas, aos gritos e panelaços, se apoiam cada incêndio e manifestação de nossa classe.

Notícia publicada em Aventuras na História, disponível em: link.

Apesar de o governo ter tentado desviar a atenção, anunciando um plano de cinco fases para sair do confinamento, proclamando o sucesso sanitário [4], os proletários não pararam de intensificar a revolta, denunciando que a vida miserável sob o capital que é a verdadeira pandemia. O Estado não pode oferecer senão tiros, mortes, amputações, torturas e miséria, aos quais se responde com a extensão de capuzes e molotovs, organizando-se ao mesmo tempo desapropriações e redes de apoio à distribuição de alimentos e produtos básicos.

Mas se a primeira revolta contra o estado de alarme mundial ocorreu no Líbano, isso nada mais foi do que a cristalização naquele território da luta internacional do proletariado contra as condições de vida impostas pelo capital [5]. Embora nossa luta sempre tenha começado a partir dessa realidade [local], que independente de onde se desenvolva, faz parte da mesma luta global, pelas mesmas necessidades e contra o mesmo inimigo, é verdade que a burguesia estende todos os tipos de recursos e ideologias para isolar, setorizar, particularizar, nacionalizar e apresentar como diferentes as várias expressões de uma mesma luta, como se fossem expressões independentes, como se fossem estranhas umas às outras e de diferentes naturezas ou origens. Mas o desenvolvimento da catástrofe capitalista não cessou de homogeneizar de forma cada vez mais brutal as miseráveis condições de existência do proletariado, dificultando as manobras da burguesia.

Com a imposição do estado de alarme mundial, o capital deu mais um salto qualitativo nessa homogeneização. Em todos os lugares, as mesmas medidas, os mesmos sacrifícios, o mesmo ataque terrorista. A pandemia foi a cobertura adequada para tentar ocultar a generalização deste ataque capitalista contra o proletariado [6], a homogeneização brutal das nossas condições de vida a nível internacional.

Foi a luta do proletariado que desmascarou a burguesia mundial e reconheceu a pandemia como a capa para fazer a guerra contra ele, para impor as necessidades econômicas exigidas pelo capital sobre as necessidades humanas mais básicas. Os proletários em luta expressam abertamente que as mortes que o capital atribui ao COVID-19 são uma anedota ao lado do massacre diário na vida capitalista e que as condições implantadas com o estado de alarme apenas as pioraram. Se, como dizemos, no Líbano se cristalizou a primeira revolta desde a imposição do estado de alarme, sintetizando e ampliando os protestos, oposições e atentados que antes ocorriam de várias formas em todo o mundo (nas prisões, com as greves – também internacionais como as de Glovo ou Amazon –, com saques, manifestações…), sua cristalização em muitos outros lugares expressa o desenvolvimento da luta internacional de nossa classe.

Notícia publicada pelo G1 (site de notícias da Globo), disponível em: link.

Sem dúvida, o Iraque é outro lugar onde a luta assumiu níveis formidáveis. Lembremos que esta região tem sido um dos bastiões da luta nos últimos meses. Após um primeiro impasse causado pelo estado de alarme e algumas concessões do Estado (libertação de presos, investigação de abusos policiais…), os protestos recomeçaram no início de abril. Nessas datas, várias cidades da região começaram a desafiar o estado de alarme. Bagdá, Diwaniya, Bassora, Nassiruya e Kout foram algumas das cidades onde ocorreram fortes confrontos com a polícia. Logo os protestos se transformaram em revoltas por todo o território, chegando até o ponto em que haviam sido abandonadas [em 2019] antes da imposição do estado de emergência. A Praça Tahrir de Bagdá foi mais uma vez um dos centros de organização da luta na região. As tentativas de assalto à “Zona Verde” (local estratégico para a burguesia), as barricadas nos pontos de acesso à zona da ponte (al-Jumhuriyah), as pedras e os molotovs voando sobre as cabeças dos soldados e explodindo em bancos, residências dos burgueses, etc., voltou a preocupar a burguesia.

Sobreposição de imagens usando duas notícias: uma do G1, link e outra do Expresso, link.

Como lhe a preocupa que, na França, os protestos também se espalharam, especialmente nos subúrbios. Em Oise, Amiens, Yvelines, Elbeuf, Compiègne…, os proletários confrontam a polícia com barricadas, molotovs e foguetes. Em Mulhouse, a rua foi tomada depois que a tropa de choque feriu um adolescente de dezesseis anos. Como em Ile-de-France, onde a raiva explodiu porque um carro da polícia atropelou e matou um jovem de dezoito anos. Em outros lugares, como em Seine-St. Denis, se organizaram emboscadas contra os policiais e atacaram-se os símbolos do capital. Para tentar acalmar as coisas, o Estado francês decidiu retirar temporariamente a polícia dos subúrbios mais quentes.

Mas não apenas os subúrbios vivem jornadas de luta. Greves ocorrem em diversos setores e empresas (Amazon, Nancy, Deliveroo, lixões, trabalhadores da saúde…), algumas expropriações se repetem em Marselha e Lille, prisões e centros de detenção de migrantes sofrem protestos e motins, como Uzerche, em Rennes ou Correze, onde os prisioneiros destruíram e queimaram diferentes partes da prisão e escalaram o telhado.

Mesmo em Mayotte (departamento francês no Oceano Índico), onde os proletários recusam o isolamento e o confinamento e violam o toque de recolher, os policiais enviados para impor o confinamento são constantemente recebidos com barricadas e pedras. Na Bélgica, o Estado está violento nos subúrbios para conter a fúria do proletariado, especialmente após os tumultos pela morte de um jovem em um posto de controle da polícia.

Com a chegada da revolta nos Estados Unidos, a luta internacional ganhou novo vigor. O assassinato de George Floyd em 26 de maio pela polícia de Minneapolis foi a gota d'água. Como um vulcão em erupção, os proletários liberaram sua fúria contida e satisfizeram as necessidades que o capital lhes reprimia. Gritando “Eu não consigo respirar!” nossa classe ecoou as palavras de Floyd, enquanto expressava a impossibilidade de viver nas condições sociais impostas pelo capital. O que começou em Minneapolis logo se espalhou pelos Estados Unidos e além de suas fronteiras. Ataques à polícia, incêndio e assalto a várias esquadras, saques, destruição de bancos e outras entidades do capital… Símbolos e estátuas de personagens da classe dominante foram golpeados, como as estátuas de Churchill, Cristóvão Colombo, etc., destruídas ou decapitadas em várias cidades, não apenas nos Estados Unidos, mas em regiões como o Reino Unido ou a Bélgica. Nesta última, protestos e manifestações se espalharam por cidades como Bruxelas e Liège, deixando destruídos e decapitados monumentos históricos em homenagem ao rei Leopoldo II.

A revolta nos Estados Unidos adquiriu rapidamente tal magnitude que temos de recuar várias décadas para relembrar, naquele território, alguma afirmação semelhante do proletariado contra o capital. O estado teve que declarar toque de recolher em várias cidades e soldados da Guarda Nacional foram mobilizados para intervir. O número de feridos e mortos pela repressão continua aumentando, como em Atlanta, onde a polícia atirou em Rayshard Brooks pelas costas, mas os proletários, longe de recuar, respondem de forma decisiva a cada golpe do Estado.

Recorte que extraímos de uma publicação do site CrimethInc, disponível em: link.


… indo a todos os lugares


Hoje podemos dizer, apesar do fato de que em muitas regiões nossa classe ainda está atordoada e submetida a toda a paranoia de medo espalhada pelos vários aparatos do Estado, que as lutas que nós, proletários, estamos desenvolvendo de um lugar para outro estão retornando ao nível de confronto internacional que havia iniciado antes da imposição do estado de alarme mundial. O proletariado defende suas necessidades contra as do capital, opondo-se às suas medidas: enfrentando o estado de alarme, às suas medidas excepcionais, ao confinamento, aos “ajustes”, ao que a burguesia chama em algumas regiões de “novo normal” [7], etc.

Embora tenhamos desejado sublinhar alguns dos lugares onde a revolta do proletariado está sendo especialmente importante, de forma alguma queremos minimizar a forma como o proletariado está expressando a luta em outros lugares, tentando generalizar a revolta.

Por exemplo, na Venezuela ou na Colômbia, o proletariado expressa sua recusa em se sacrificar às necessidades do capital por meio da extensão de protestos, bloqueios de estradas e saques de mercados ou caminhões de alimentos, ataques a agências bancárias… No Panamá, barricadas e incêndios enfrentam o exército nas ruas. No Chile, os proletários gradualmente retomaram a luta que havia passado por um refluxo e que agora emerge por meio de distúrbios como os de Antofagasta ou Valparaíso. Na Itália, as expropriações foram reproduzidas a ponto de a polícia patrulhar os supermercados. Grupos organizados de proletários expropriam e reivindicam expropriações porque “o dinheiro para comprar acabou”. Greves também acontecem, como a recente em Whirlpool, em Nápoles. Bem como manifestações de solidariedade com os presos e contra as políticas carcerárias. Na Alemanha, protestos e manifestações contra as medidas implementadas vêm ocorrendo desde o final de março, assim como no Irã e grande parte do Oriente Médio. No Uruguai houve manifestações durante e contra o confinamento, como a grande manifestação em frente ao Palácio Legislativo, e todo tipo de resistência de vários bairros acompanhada de slogans “Eles não nos querem com saúde, nos querem escravos!”. Ou no México, onde acontecem os tumultos, depois da morte (mais uma) de Giovanni López, um jovem que um mês antes havia sido preso por não usar máscara e espancado até a morte pela polícia na cidade de Ixtlahuacán de los Membrillos. Os protestos começaram no dia 4 de junho em Jalisco e se espalharam pela capital e outras partes da região, incendiando patrulhas, delegacias, o Palácio do Governo de Guadalajara e outras manifestações na capital gritando “Ele não morreu, eles o mataram!”.

Assim poderíamos continuar, sublinhando como o proletariado procura afirmar as mesmas necessidades, os mesmos interesses, contra o mesmo inimigo, contra a mesma condição. A luta internacional do proletariado está assumindo vários níveis de cristalização e força, várias formas e lugares para se materializar. Nesta situação, e na perspectiva de consolidação e intensificação da guerra de classes, um dos aspectos fundamentais para o avanço do projeto comunista de abolição do capitalismo, do Estado, das classes sociais, do trabalho e do dinheiro, é a demolição as forças que impedem, desde o interior, o desenvolvimento da perspectiva revolucionária.

Estamos nos referindo às forças que, vestidas com falsos trajes de combate, nos desviam de nossos objetivos, conduzindo-nos por caminhos que perpetuam este mundo de morte, canalizando nossa potência. Essas forças se desenvolvem e se consolidam a partir de nossas próprias fragilidades, nos próprios limites que as lutas contêm. Criticar, denunciar e ultrapassar esses limites é condição imprescindível para a afirmação revolucionária. Este não é o lugar para aprofundar e desenvolver esses limites de modo completo que, por outro lado, vínhamos abordando para vários camaradas e minorias revolucionárias nos últimos anos, expressando-os em numerosos materiais, mas acreditamos ser necessário fazer uma breve referência a alguns dos que ostentam um papel de protagonismo na atualidade.


Alguns limites das lutas atuais


Se por um lado queremos divulgar a luta que os porta-vozes do capital tentam esconder por todos os meios [8], também queremos destacar algumas das fragilidades que esta contém. O objetivo não é outro senão fortalecer a direção revolucionária que contém nossa luta, defender a autonomia de classe em relação a todas as tentativas de enquadramento, divisão e frentismo. Só levando as lutas em curso às últimas consequências, derrubando todos os elementos de contenção, não só os mais evidentes, como a ação repressiva do Estado, mas os mais sibilinos e perigosos, como as ideologias que possibilitam o enquadramento e a neutralização burguesa, podemos avançar para a destruição do capitalismo.

A presença de ideologias fragmentadoras, que enfocam os problemas sociais como aspectos parciais que podem ser resolvidos independentemente da totalidade que os gera e os necessita, criando movimentos específicos para enfrentá-los, continua sendo um dos fardos do proletariado. Ao inclinar a luta para aspectos parciais, todas essas ideologias são um suporte para o capitalismo ao afastar a luta da raiz do problema. Anti-racismo, feminismo ou ambientalismo são algumas das ideologias fragmentadoras mais importantes. Todos eles movem a luta para questões interclassistas. No entanto, para muitos proletários, esses movimentos representam uma luta e um sentimento comum, seja contra o racismo, contra o sexismo ou contra a destruição do planeta. Porque partem de um problema concretamente existente, mas de forma isolada, sem entender que é o capital que organiza e gerencia essas questões. Embora o machismo, o racismo ou a destruição de uma floresta não sejam o objetivo [declarado] de nenhum burguês, são elementos inerentes à taxa de lucro e, portanto, necessários para o capital e para os burgueses como um todo [9].

A falta de demarcação de classe foi e é um problema para superar o atual estado de coisas e também para deixar para trás esses movimentos fragmentadores e reformistas que só veem no Capital, no máximo, um problema igual aos outros. Portanto, não é necessário somar a crítica anticapitalista a essas parcializações, não se trata de unir os separados, mas de perceber a dimensão total da sociedade capitalista em que vivemos.

Quando criticarmos esta ou aquela ideologia, haverá muitos camaradas que se sentirão atacados, que não entendem que o que estamos atacando é toda uma concepção alienante da luta. Em sua própria luta, o proletariado expressa suas próprias fraquezas por meio dessas questões ideológicas, interclassistas e imediatistas. Mas dessa mesma luta ele tira lições e diretrizes, das quais nossa crítica é apenas uma expressão. É o processo pelo qual o proletariado é delimitado de seu inimigo histórico e das ideologias que a própria vida capitalista afirma, é seu processo de constituição em classe.

Claro que a força dessas ideologias não se verifica no nível individual, mas no próprio movimento. Os proletários que lutam contra o capital são eles próprios movidos pelas suas próprias condições materiais e, na maioria dos casos, prisioneiros de várias ideologias. O decisivo na luta é se essas ideologias acabam dominando e canalizando o movimento ou são derrubadas em seu próprio desenvolvimento.

Nos Estados Unidos, temos sofrido essa ideologia fragmentadora na forma de anti-racismo, tentando liderar a luta em direção a uma questão racial. Mas qualquer questionamento do racismo que não ataca a base do capital só leva ao seu reforço, porque o racismo não pode ser combatido – nem podemos entender como ele funciona – se não partirmos de uma crítica profunda ao capital. O proletariado nos Estados Unidos abalou essa ideologia quando proletários de todas as raças saíram às ruas para questionar o capital, para impor suas necessidades, para dizer ao capital que não se pode respirar sob suas botas. No entanto, a força dessa ideologia ainda está presente.


Tentativas de repolarização burguesa


A burguesia sempre procura enquadrar a luta do proletariado em dois campos que só aspiram a objetivos burgueses e reformistas. Não serve apenas a esta ou aquela fração torcer a luta do proletariado em favor de seus interesses particulares, mas também ao capital em geral para neutralizar a luta revolucionária. O gancho por excelência sempre foi o falso dilema fascismo-antifascismo. A região espanhola dos anos trinta do século passado nos deu a lição mais clara dessa polarização quando o proletariado revolucionário, que questionava todas as formas adotadas pelo Estado, foi finalmente espartilhado nessa dicotomia complicada, e crivado entre (e por) ambos os lados. A chamada Segunda Guerra Mundial foi o corolário desse enquadramento, dinamizando o capital com o sacrifício da vida de milhões de proletários. Hoje, nos Estados Unidos, o Estado tenta mais uma vez canalizar a luta sob esses rótulos, definindo a “Antifa” como uma organização terrorista. Tenta enquadrar os manifestantes nesta velha polarização em trajes modernos, enquanto os criminaliza. Embora o nome “Antifa” não se refira a nenhuma organização formal específica e o antifascismo como movimento é atualmente uma expressão parcial e minoritária dos proletários em luta, não podemos deixar de apontar esta tentativa de enquadramento do Estado burguês.

Mas a polarização que se constitui com maior influência no horizonte, empurrada pela burguesia de todos os países, é a luta entre as frações do capital que estão se exacerbando, com a guerra comercial em segundo plano, principalmente entre o Estado estadunidense e China. Tenta-se enquadrar o proletariado em um dos campos burgueses: os estados chinês e russo se definem contra o poder dos financistas ocidentais; Os Estados ocidentais denunciam a China como o criador do coronavírus, etc.

Trata-se de fazer-nos acreditar, por um lado, que a produção material capitalista se realiza para as nossas necessidades e que deve ser defendida do parasitismo das finanças que a oprime, dos bancos, da elite, do 1%; de outro, tentam nos vender que a produção material de nossas necessidades precisa de dinheiro das finanças, que o dinheiro é uma ferramenta que pode ser usada para as necessidades humanas. Mas os dois lados são meras alternâncias burguesas. Ambas as frações (que, por outro lado, estão interconectadas) nada mais são do que duas expressões do capital, duas formas sob as quais o capital transita em sua existência.

Temos certeza de que o capital não é apenas o banco ou o dinheiro, Rockefeller ou Bill Gates, da mesma forma que não é apenas a fábrica, a empresa ou a mercadoria, o chefão ou o pequeno. Acreditando que algumas de suas expressões, por mais centrais que possam ser em certas situações ou por mais poder e pressão que possam exercer sobre outras, são a personificação exclusiva do capital, nos tira do terreno revolucionário ao considerar que o capitalismo seria suprimido simplesmente pela eliminação dos patrões, ou das “grandes famílias” ou mesmo de toda a atual elite financeira global. Claro, devemos enfrentá-los todos, mas seu poder social vem do Capital, que é uma relação social, ainda mais, um sujeito que domina e engloba toda a atividade humana e se materializa e personifica de múltiplas formas e níveis. Por isso, o comunismo é um movimento de transformação social, de supressão e superação das condições existentes.


Perspectiva e necessidade de estruturação internacional


Na situação atual que sofremos e que o capital nos preparou, e na que está por vir, um dos grandes limites que temos é a fragilidade para estruturar e centralizar o combate internacionalmente, organizando e estendendo as associações proletárias e, sobretudo, organizando o poder da revolução que tem que se opor e quebrar o poder do capital. Este aspecto central da luta proletária já supõe, agora mais do que nunca, nossa maior necessidade e sua afirmação contém a cristalização de nosso poder revolucionário.

O capital está se organizando, se estruturando, não apenas para obter o máximo de benefício extraindo até a última gota de fôlego de nossas vidas, mas também preparando os mecanismos legais, policiais, sociais, etc., para reprimir nossa raiva e nossas lutas. A ditadura democrática do capital se apresenta hoje com uma transparência extraordinária que mostra, mais uma vez, as críticas que nós revolucionários sempre fizemos e aprofundamos [10].

A única alternativa ao presente e ao futuro que a burguesia nos oferece é a resposta internacional e revolucionária que o proletariado tenta concretizar, mas que precisa se afirmar como força unitária organizada que se opõe ao poder burguês.

Apesar das diferenças existentes em nossa comunidade de luta, apesar da heterogeneidade existente em vários aspectos da luta, a base de nossas ações é a luta contra as condições impostas pelo capital, contra o estado de alarme, contra as necessidades de sua economia, de seus bancos, das suas empresas… É nesta área que as várias heterogeneidades podem e devem ser tratadas, discutidas, confrontadas. E é aí, no confronto com a ordem existente, onde o proletariado extrai sua unidade, onde a comunidade de luta tem o ecossistema a partir do qual se desenvolve e se fortalece. Existem muitas formas de expressar posições de classe, e também diferentes formas de perceber os momentos históricos e o nosso papel neles, mas, como sempre, o fundamental e do qual partimos para a organização é o que fazemos, é a prática que levamos adiante. Partimos da luta contra as condições a que nos submetem, contra as medidas do Estado repressor e sugador, partimos da negação, do confronto direto com o Capital.

Hoje podemos ver um exemplo claro de tudo isso na luta que o proletariado está cristalizando contra o estado de alarme mundial e as diferenças em torno da importância dada ao vírus entre as distintas expressões que lutam. Vemos expressões da nossa classe em luta que evidenciam os dados que o Estado nos dá e denunciam que é um aspecto central da catástrofe capitalista e do agravamento das nossas condições materiais – dando também muita relevância à origem do vírus –, mas isso não os leva a negar o verdadeiro objeto que determina o estado de alarme [11]. Vemos outras expressões que denunciam que tudo isso é um exagero do Estado [12] para impor uma nova volta do parafuso do capital, que o eixo deve ser colocado sobre as medidas que são protegidas após a declaração da pandemia e não sobre a própria pandemia. Mas para além das diferenças, o importante é que as posições se elevem da luta, das necessidades, da oposição ao capital, do confronto ao estado de alarme, ao confinamento e a todas as medidas do capital. Porque é necessário assumir que o estado de alarme (reclusão e outras medidas) é um estado de guerra contra o proletariado. Independentemente dessas diferenças, essas expressões entendem, mais ou menos claramente, que tudo o que os Estados reuniram é para as necessidades da valorização e deve ser combatido.

Portanto, nos encontramos juntos lutando na rua, conspirando, rompendo o confinamento, desobedecendo, discutindo, questionando as necessidades da economia e tentando impor as humanas. É neste terreno que o proletariado sempre organizou e desenvolveu a sua luta, mas também as polêmicas e discussões necessárias. Como estamos tentando fazer hoje, apesar das muitas dificuldades que existem. É neste terreno que o proletariado mais uma vez lança as bases para se afirmar como classe revolucionária a nível internacional. Sejamos coerentes com isso e vamos impulsionar em todos os níveis a estruturação internacional do proletariado para abolir este velho mundo.


LUTAS EM TODA PARTE… QUE ESSA SEJA A NOVA NORMALIDADE!

CONTRA O ESTADO DE ALARME, CONTRA O CONFINAMENTO, CONTRA A NOVA NORMALIDADE, CONTRA O CAPITAL E O ESTADO.

VAMOS IMPOR NOSSAS NECESSIDADES HUMANAS!


Proletários Internacionalistas.

28 de junho de 2020.



Notas:


[1] – Veja “Contra a pandemia do capital, revolução social!” em nosso site. Disponível em: <https://es.proletariosinternacionalistas.org/contra-la-pandemia-del-capital/>.

[2] – Sob o rótulo de estado de alarme, emergência, etc. referimo-nos, evidentemente, a todas as medidas implantadas pelo Estado: reclusão, demissões, reajustes, despejos, terror médico e científico, máscaras, vacinas, multas, prisões, tiroteios, desaparecimentos, prisões, injeções de capital…

[3] – Queremos especificar que o termo “pandemia” já é uma armadilha. Faz parte da linguagem científica e se baseia em assumir um aspecto biológico, como a existência de um vírus, como fator essencial de uma doença. A ciência, a partir de sua lógica de separação, vê o vírus como uma ameaça ao homem, aos animais e ao ambiente. Sua compreensão do mundo, que parte da racionalidade capitalista, não pode perceber o ecossistema como um todo orgânico, mas como seres isolados que agem por conta própria. Mas um vírus estudado em laboratório não tem nada a ver com o mesmo vírus nesta ou naquela cidade. Um vírus se desenvolvendo e coexistindo como uma parte equilibrada de uma sociedade nada tem a ver com o que aquele vírus faria em outro lugar, em outra sociedade… Sob a lupa científica, elementos muito mais decisivos que o vírus são borrados, como a maneira como os seres humanos vivem e interagem. Tendo isso em mente, em nossos materiais usamos o termo pandemia de forma intercambiável com ou sem aspas, com ou sem nuance. Não se trata de entrar no campo científico para discutir o uso correto dessa terminologia, questionando os critérios científicos usados para definir algo como uma pandemia, mas entender que o próprio termo é uma interpretação burguesa da realidade. Na história, essa terminologia tem sido usada para atribuir responsabilidade exclusiva a um vírus deste ou daquele mal que afligia a humanidade, escondendo os verdadeiros fatores decisivos.

[4] – O Estado libanês oficializou apenas 30 mortes associadas ao COVID-19, um fato que também deixa claro o quão insustentável é justificar todas as medidas de alarme terrorista em alguns lugares sob o pretexto da pandemia.

[5] – Lembremo-nos que o Líbano já foi um dos lugares onde a revolta proletária do outono de 2019 agiu com mais força. A revolta se opôs tanto ao Hezbollah, que veio para reprimir-lhes, quanto à canalização militar e religiosa que o proletariado da região vem sofrendo há décadas.

[6] – Existem estados, como as Filipinas, que dificilmente mantêm as aparências. Nesse Estado acaba de ser aprovada uma lei antiterrorista em que qualquer pessoa com uma simples suspeita, por parte de uma autoridade policial ou militar, de estar envolvida em atividades terroristas pode ser detida por dois meses sem mandado de prisão e pode ser monitorada por mais dois meses ao nível digital e telefônico, o que significa que qualquer dispositivo ligado à Internet, como um telefone, um computador, etc… serão inspecionados. A formulação jurídica é de tal magnitude que tudo o que os suspeitos fizerem pode ser considerado “ato terrorista” e estará sujeito aos meios e formas extrajudiciais do Estado.

[7] – Como se alguma vez tivéssemos abandonado a normalidade capitalista pela irrupção do estado de alarme, quando na realidade não vivemos mais do que uma reviravolta da ditadura da economia contra nossas vidas. Por sua vez, o “novo normal” representa o consequente desenvolvimento do estado de alarme que, longe de melhorar as condições materiais de vida, é o resultado direto de tudo o que a guerra contra o coronavírus está implicando. Em outras palavras, condições materiais de sobrevivência ainda piores para os proletários de todo o mundo. Tudo se apresenta como o lógico desenvolvimento capitalista da “velha normalidade” que almeja a ideologia do mal menor, apresentando-se como realidades para escolher o que nada mais é do que momentos da mesma existência miserável.

[8] – O encobrimento da nossa luta pela mídia não consiste apenas em tentar não mencionar esta ou aquela revolta, mas também consiste, principalmente quando essa revolta ou protesto não pode ser ignorado por sua repercussão, em distorcê-la, fragmentá-la, encobrir sua raiz comum.

[9] – A escravidão e o tráfico de escravos visam o lucro, mas o racismo é um elemento inerente à sua materialização. A destruição do planeta também não é um objetivo em si, mas a maximização do lucro só pode ser alcançada por esse meio. O sexismo também não é um objetivo em si, mas sim a forma como o capital consegue se reproduzir com eficácia. O fato de todas essas realidades se desenvolverem como aspectos da vida do capital obviamente implica que elas se materializem, se expandam e se expressem em todas as relações humanas de maneiras muito diferentes. O crucial é que a crítica não permaneça apenas em algumas dessas materializações, mas que alcance a fonte, a raiz, que seja radical.

[10] – A democracia não é uma forma política, é o modo de vida típico do mundo mercantil generalizado e sua essência é a ditadura do capital, independentemente de se cristalizar no plano político como governo militar, república, monarquia, etc. Recomendamos a leitura do livro “Contra a Democracia” de Miriam Qarmat.

Imagem do documento citado, disponível em: link.



[11] – Ou seja, fazem parte da verdadeira comunidade de luta que peleia contra o capital, contra o Estado, contra suas medidas. Queremos esclarecer este ponto porque nos opomos e denunciamos todos aqueles pseudo-revolucionários que não só reproduzem em seu ser o pânico que o Estado semeia, mas também colaboram com ele ou dão apoio crítico, difundindo o terror do Estado e favorecendo a repressão. Alegando comunismo ou anarquia, esses pseudo-revolucionários seguem à risca os ditames do Estado, defendem o confinamento e outras medidas de controle, olhando para os proletários que se recusam a se submeter, se posicionando contra quem se reúne para lutar, taxando de suspeitos aqueles que desobedecem ao Estado.

[12] – O que mostra nossa incapacidade de corroborar ou refutar essas perguntas e mostra como nossas vidas estão ficando fora de controle.

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