Como
afirma Duarte (2014, p. 44): “A Constituição Federal de 1988 e o
Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, trazem [uma] nova
concepção de atendimento da infância e da juventude, com ênfase
na proteção integral e compartilhamento da gestão da infância
entre estado, família e comunidade”. A Fundação de Atendimento
Socioeducativo (FASE) surge nesse contexto, como um reordenamento
institucional que deriva do ECA.
Segundo
o “Histórico”i
encontrado no site da instituição, a FASE teria rompido “com o
paradigma correcional-repressivo que orientava a política do
bem-estar do menor” que estava em vigor na ditadura. Ainda nesse
texto lê-se que (grifos nossos): “Um dos mais importantes avanços
trazidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente foi a distinção
entre o tratamento a ser dispensado a crianças e adolescentes
vítimas de violência e abandono e o tratamento a ser
dispensado aos adolescentes autores de ato infracional. Com
isso, foi alterada a lógica de atendimento direcionada a estes
públicos, especializando-se a Fase no atendimento exclusivo a
adolescentes autores de atos infracionais com medida judicial de
internação ou semiliberdade”. Este atendimento é realizado
através das, assim chamadas, “medidas socioeducativas”, baseadas
num sistema de privação de liberdade. A lógica desta política
expressa a concepção segundo a qual a ressocialização do
delinquente deve ser feita através de seu isolamento da sociedade,
ou seja, para reintegrá-lo na sociedade, é necessário criar um
meio social para o infrator distinto do resto da sociedade.
Ainda
que a FASE tenha rompido legalmente com o paradigma
correcional-repressivo, a realidade para além do formalismo jurídico
é bem outra. É necessário destacar que, “no caso brasileiro, o
abismo existente entre a legislação formal e as práticas punitivas
empregadas pelas agências repressoras têm sido uma característica
que perdura desde o período colonial, atravessa o império e se
prolonga pelo regime republicano” (SILVA, s.d.). A forma como esta
contradição se expressa neste atual regime se verifica com “o
crescimento do encarceramento em todo o país e a prevalência das
medidas de internação sobre as medidas em meio aberto, muito embora
as primeiras tenham sido pensadas no texto legal como medidas de
exceção” (DUARTE, 2014, p. 42). A própria instituição é
explícita quanto à segregação dos jovens infratores, uma vez que
no Brasil “há uma ambiguidade na maneira de conceber os direitos
da criança e do adolescente, em que o ‘outro’ a ser protegido só
o é na medida em que permanece como vítima. Não é esse o caso dos
jovens infratores, tidos como perigosos” (DUARTE, 2014, p. 42). A
medida socioeducativa torna-se, na prática, uma forma de punição.
O
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante direitos
constitucionais voltados à infância e juventude considerados de um
ponto de vista universalista. No entanto, a universalização
jurídico-formal das categorias de “criança” e “adolescente”
não expressa condições universais de acesso aos direitos
compreendidos no Estatuto. Na prática, o Estatuto torna a criança e
o adolescente sujeitos de direitos sem, no entanto, transformar as
condições nas quais estes direitos podem ser realizados. Em certos
casos, isso significa que o reconhecimento legal dessa universalidade
das condições de criança e adolescente esconde o aspecto real da
desigualdade social. Trata-se da igualdade formal diante da lei
alinhada à desigualdade estrutural diante das condições objetivas
de vida. “A transformação no discurso legal, se por um lado
garante conquistas sociais objeto de disputas acirradas, por outro
lado não resolve a questão das práticas sociais que geram
desigualdades” (DUARTE, 2014, p. 42).
Ao
mesmo tempo que
ocorre uma preferência social dada à internação dos infratores a
despeito da preferência constitucional dada às medidas de meio
aberto, a prioridade
dada ao caráter socioeducativo da medida pelos juízes e
desembargadores entra em contradição com o caráter punitivo
socialmente
existente. Isso se verifica em uma reportagem da Zero Horaii
(publicada em 12.03.2014), onde se diz que os gastos com os
adolescentes da Fundação de Atendimento Socioeducativo no Rio
Grande do Sul poderiam ser reduzidos em 75%, nos cálculos dos
auditores do Tribunal de Contas do Estado, considerando um custo per
capita
de R$ 3.594 mensais, assim dividido: R$ 529 em educação, R$ 2,7 mil
em restrição de liberdade e R$ 365 em saúde. Em outras palavras: a
questão educativa e a própria assistência relacionada à saúde
destes jovens fica em segundo plano, privilegiando-se a restrição
da liberdade.
Como
interpretar estes fatos do ponto de vista da situação histórica e
social?
O
processo que se encontra em curso no Brasil contemporâneo entra em
ressonância com o que Loïc Wacquant chama de uma nova
“administração da pobreza”, tendo como uma das suas
instituições centrais a prisão. Em primeiro lugar, devemos
destacar que o sistema de privação da liberdade nunca foi um
mecanismo de “combate ao crime”, mas de distinção e gestão de
determinadas formas de ilegalidades, conforme demonstrou Foucault
(1999). Em segundo lugar, a prisão como administração dos
ilegalismos modifica sua finalidade em correlação com as
conjunturas histórico-sociais mais amplas. Em outras palavras: não
se pode reduzir à análise apenas às determinações intrínsecas
aos Códigos Penais e sistemas penitenciários (estudos feitos por
juristas e criminólogos), uma vez que a realidade prisional está
acoplada a determinações extrínsecas provenientes do campo social
geral. Em terceiro lugar, este contexto mais amplo da sociedade no
qual devemos observar essa metamorfose histórica diz respeito a “uma
reformulação do perímetro e das funções do Estado, que
resultou no enxugamento (downsizing) do seu componente de
welfare e no inchaço (upsizing) dos seus setores
policiais, jurídicos e correcionais” (WACQUANT, 2008, p. 10).
É
necessário destacar, entretanto, que não se aplica à realidade
brasileira (e demais países de capitalismo subdesenvolvido) a tese
da deterioração de um “Estado de Bem-Estar Social”, pois nunca
o vivemos de fato. Até 2013, segundo Vladimir Safatleiii,
o que tivemos era um pacto social de duplos freios da Constituição
de 88, que garantia privilégios aos militares e, em contrapartida,
freava a plena aplicação do neoliberalismo, qual seja: pulverização
dos serviços públicos, desregulamentação trabalhista unida a
desagregação da Seguridade Social e a atomização social das
pessoas (processo de dessocialização).
De
todo o modo, a desindustrialização que ocorre entre os anos de 1990
até 2000 (BENJAMIN, 2001, p. 19) criou as condições nais quais o
encarceramento em massa se afirmou como consequência da
marginalização social de massivas populações que descendem do
êxodo rural e que agora estão sendo cooptadas pelo trabalho
varejeiro que deriva do narcotráfico. As circunstâncias que podemos
delinear dizem respeito aos fatores mutuamente implicados do
desemprego estrutural, e da falta de investimento em educação
(enquanto qualificação da força de trabalho) e em infra-estrutura
(que, em certos casos, também impedem a atração de empresas
transnacionais), bem como a crescente precarização do trabalho e
das condições de vida. Não queremos dizer que as condições
sociais determinam mecanicamente as pessoas, pois isso seria um
absurdo. Mas podemos fazer um quadro geral de alguns condicionamentos
que tendem a estreitar as condições de vida destes sujeitos.
Neste
caso, o aumento exponencial do aprisionamento constitui-se como nexo
entre os seguintes fatores: 1) “construção de um Estado reformado
capaz de impor requerimentos econômicos e morais adstringentes do
neoliberalismo após o descarte do pacto social fordista-keynesiano”
(WACQUANT, 2008, p. 19) e 2) a desagregação de laços de
solidariedade social nas favelas brasileiras pela racionalidade
neoliberal unida a um ostracismo social de uma população
marginalizada (negros de periferia). O lugar da prisão é redefinido
e sua tarefa passa a ser “vigiar e subjugar, e se necessário
reprimir e neutralizar, as populações refratárias à nova ordem
econômica que segue uma divisão do trabalho por sexo, com o seu
componente penal voltando-se sobretudo aos homens e o componente
assistencial exercendo sua tutela sobre as mulheres e crianças
(desses mesmos homens)” (WACQUANT, 2008, p. 15)
Ainda
conforme o paralelo que podemos fazer com as contribuições de
Wacquant, a política de encarceramento em massa atual reflete uma
“política de criminalização da pobreza, que é o complemento
indispensável à imposição de ofertas de trabalho precárias e mal
remuneradas” (WACQUANT, 2008, p. 11, grifos do autor), uma vez
que “as porções decadentes da classe trabalhadora e dos negros
pobres ficaram presos aos centros das cidades, um dia
industrializados, agora degradados” (idem). Enquanto a prisão
imprime um estigma ao sujeito, pode-se considerar que “o sistema
penal contribui diretamente para a regulamentação dos segmentos
mais baixos do mercado de trabalho” (idem, grifos do autor).
Neste
sentido, a Fundação de Atendimento Socioeducativo, apesar de sua
relativa independência em relação ao sistema penitenciário
brasileiro, funciona socialmente no mesmo registro das prisões. A
diferença realmente existente é de grau e não de natureza.
Trata-se, na expressão de Foucault, de uma “instituição de
sequestro” engendrada num processo social e histórico mais amplo
de desagregação dos serviços voltados a produção de bem-estar da
parte do Estado. Bem-estar esse que nunca entrou em vigor
efetivamente, diga-se de passagem.
Referências:
BENJAMIN,
César. Educação e desenvolvimento sustentável. In: 2º
Encontro Estadual das Escolas Técnicas. Porto Alegre, SEDUC/RS,
vol01, 2001.
DUARTE,
Sabrina. Linhas de fuga, sujeitos e devires: o olhar dos jovens
selecionados pelo sistema socioeducativo. Monografia (Graduação
em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
UFRGS, Porto Alegre, 2014, 103p.
FOUCAULT,
M. Vigiar e punir: nascimento da prisão.
Petrópolis: Vozes, 1999.
SILVA,
Dinis Carla Borghi da. A história da pena de prisão.
Monografias Brasil Escola. Disponível em:
<http://brasilesco.la/m15078>. Acesso em: 11 nov. 2015.
WACQUANT,
Loïc. O lugar da prisão na nova administração da pobreza.
Novos estud. - CEBRAP, São Paulo, n. 80, p. 9-19, mar. 2008.
Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002008000100002&lng=pt&nrm=iso>.
acessos em: 14 dez. 2018.
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002008000100002.
Notas:
i Disponível
em: <http://www.fase.rs.gov.br/wp/institucional/historico/>.
Acesso em: 15 dez. 2018.
ii “Apesar
de queda no número de internos, Fase tem alto índice de
reincidência”. Disponível em:
<http://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/noticia/2014/03/apesar-de-queda-no-numero-de-internos-fase-tem-alto-indice-de-reincidencia-4443603.html>.
Acesso em: 15 dez. 2018.
iii Safatle:
“Há um golpe militar em marcha no Brasil hoje”, Disponível em:
<https://youtu.be/BwLg13hSkRk>. Acesso em: 15 dez. 2018.
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