terça-feira, 2 de abril de 2019

Ensaio sobre a Fundação de Atendimento Socioeducativo


Como afirma Duarte (2014, p. 44): “A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, trazem [uma] nova concepção de atendimento da infância e da juventude, com ênfase na proteção integral e compartilhamento da gestão da infância entre estado, família e comunidade”. A Fundação de Atendimento Socioeducativo (FASE) surge nesse contexto, como um reordenamento institucional que deriva do ECA.

Segundo o “Histórico”i encontrado no site da instituição, a FASE teria rompido “com o paradigma correcional-repressivo que orientava a política do bem-estar do menor” que estava em vigor na ditadura. Ainda nesse texto lê-se que (grifos nossos): “Um dos mais importantes avanços trazidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente foi a distinção entre o tratamento a ser dispensado a crianças e adolescentes vítimas de violência e abandono e o tratamento a ser dispensado aos adolescentes autores de ato infracional. Com isso, foi alterada a lógica de atendimento direcionada a estes públicos, especializando-se a Fase no atendimento exclusivo a adolescentes autores de atos infracionais com medida judicial de internação ou semiliberdade”. Este atendimento é realizado através das, assim chamadas, “medidas socioeducativas”, baseadas num sistema de privação de liberdade. A lógica desta política expressa a concepção segundo a qual a ressocialização do delinquente deve ser feita através de seu isolamento da sociedade, ou seja, para reintegrá-lo na sociedade, é necessário criar um meio social para o infrator distinto do resto da sociedade.

Ainda que a FASE tenha rompido legalmente com o paradigma correcional-repressivo, a realidade para além do formalismo jurídico é bem outra. É necessário destacar que, “no caso brasileiro, o abismo existente entre a legislação formal e as práticas punitivas empregadas pelas agências repressoras têm sido uma característica que perdura desde o período colonial, atravessa o império e se prolonga pelo regime republicano” (SILVA, s.d.). A forma como esta contradição se expressa neste atual regime se verifica com “o crescimento do encarceramento em todo o país e a prevalência das medidas de internação sobre as medidas em meio aberto, muito embora as primeiras tenham sido pensadas no texto legal como medidas de exceção” (DUARTE, 2014, p. 42). A própria instituição é explícita quanto à segregação dos jovens infratores, uma vez que no Brasil “há uma ambiguidade na maneira de conceber os direitos da criança e do adolescente, em que o ‘outro’ a ser protegido só o é na medida em que permanece como vítima. Não é esse o caso dos jovens infratores, tidos como perigosos” (DUARTE, 2014, p. 42). A medida socioeducativa torna-se, na prática, uma forma de punição.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante direitos constitucionais voltados à infância e juventude considerados de um ponto de vista universalista. No entanto, a universalização jurídico-formal das categorias de “criança” e “adolescente” não expressa condições universais de acesso aos direitos compreendidos no Estatuto. Na prática, o Estatuto torna a criança e o adolescente sujeitos de direitos sem, no entanto, transformar as condições nas quais estes direitos podem ser realizados. Em certos casos, isso significa que o reconhecimento legal dessa universalidade das condições de criança e adolescente esconde o aspecto real da desigualdade social. Trata-se da igualdade formal diante da lei alinhada à desigualdade estrutural diante das condições objetivas de vida. “A transformação no discurso legal, se por um lado garante conquistas sociais objeto de disputas acirradas, por outro lado não resolve a questão das práticas sociais que geram desigualdades” (DUARTE, 2014, p. 42).

Ao mesmo tempo que ocorre uma preferência social dada à internação dos infratores a despeito da preferência constitucional dada às medidas de meio aberto, a prioridade dada ao caráter socioeducativo da medida pelos juízes e desembargadores entra em contradição com o caráter punitivo socialmente existente. Isso se verifica em uma reportagem da Zero Horaii (publicada em 12.03.2014), onde se diz que os gastos com os adolescentes da Fundação de Atendimento Socioeducativo no Rio Grande do Sul poderiam ser reduzidos em 75%, nos cálculos dos auditores do Tribunal de Contas do Estado, considerando um custo per capita de R$ 3.594 mensais, assim dividido: R$ 529 em educação, R$ 2,7 mil em restrição de liberdade e R$ 365 em saúde. Em outras palavras: a questão educativa e a própria assistência relacionada à saúde destes jovens fica em segundo plano, privilegiando-se a restrição da liberdade.

Como interpretar estes fatos do ponto de vista da situação histórica e social?

O processo que se encontra em curso no Brasil contemporâneo entra em ressonância com o que Loïc Wacquant chama de uma nova “administração da pobreza”, tendo como uma das suas instituições centrais a prisão. Em primeiro lugar, devemos destacar que o sistema de privação da liberdade nunca foi um mecanismo de “combate ao crime”, mas de distinção e gestão de determinadas formas de ilegalidades, conforme demonstrou Foucault (1999). Em segundo lugar, a prisão como administração dos ilegalismos modifica sua finalidade em correlação com as conjunturas histórico-sociais mais amplas. Em outras palavras: não se pode reduzir à análise apenas às determinações intrínsecas aos Códigos Penais e sistemas penitenciários (estudos feitos por juristas e criminólogos), uma vez que a realidade prisional está acoplada a determinações extrínsecas provenientes do campo social geral. Em terceiro lugar, este contexto mais amplo da sociedade no qual devemos observar essa metamorfose histórica diz respeito a “uma reformulação do perímetro e das funções do Estado, que resultou no enxugamento (downsizing) do seu componente de welfare e no inchaço (upsizing) dos seus setores policiais, jurídicos e correcionais” (WACQUANT, 2008, p. 10).

É necessário destacar, entretanto, que não se aplica à realidade brasileira (e demais países de capitalismo subdesenvolvido) a tese da deterioração de um “Estado de Bem-Estar Social”, pois nunca o vivemos de fato. Até 2013, segundo Vladimir Safatleiii, o que tivemos era um pacto social de duplos freios da Constituição de 88, que garantia privilégios aos militares e, em contrapartida, freava a plena aplicação do neoliberalismo, qual seja: pulverização dos serviços públicos, desregulamentação trabalhista unida a desagregação da Seguridade Social e a atomização social das pessoas (processo de dessocialização).

De todo o modo, a desindustrialização que ocorre entre os anos de 1990 até 2000 (BENJAMIN, 2001, p. 19) criou as condições nais quais o encarceramento em massa se afirmou como consequência da marginalização social de massivas populações que descendem do êxodo rural e que agora estão sendo cooptadas pelo trabalho varejeiro que deriva do narcotráfico. As circunstâncias que podemos delinear dizem respeito aos fatores mutuamente implicados do desemprego estrutural, e da falta de investimento em educação (enquanto qualificação da força de trabalho) e em infra-estrutura (que, em certos casos, também impedem a atração de empresas transnacionais), bem como a crescente precarização do trabalho e das condições de vida. Não queremos dizer que as condições sociais determinam mecanicamente as pessoas, pois isso seria um absurdo. Mas podemos fazer um quadro geral de alguns condicionamentos que tendem a estreitar as condições de vida destes sujeitos.

Neste caso, o aumento exponencial do aprisionamento constitui-se como nexo entre os seguintes fatores: 1) “construção de um Estado reformado capaz de impor requerimentos econômicos e morais adstringentes do neoliberalismo após o descarte do pacto social fordista-keynesiano” (WACQUANT, 2008, p. 19) e 2) a desagregação de laços de solidariedade social nas favelas brasileiras pela racionalidade neoliberal unida a um ostracismo social de uma população marginalizada (negros de periferia). O lugar da prisão é redefinido e sua tarefa passa a ser “vigiar e subjugar, e se necessário reprimir e neutralizar, as populações refratárias à nova ordem econômica que segue uma divisão do trabalho por sexo, com o seu componente penal voltando-se sobretudo aos homens e o componente assistencial exercendo sua tutela sobre as mulheres e crianças (desses mesmos homens)” (WACQUANT, 2008, p. 15)

Ainda conforme o paralelo que podemos fazer com as contribuições de Wacquant, a política de encarceramento em massa atual reflete uma “política de criminalização da pobreza, que é o complemento indispensável à imposição de ofertas de trabalho precárias e mal remuneradas” (WACQUANT, 2008, p. 11, grifos do autor), uma vez que “as porções decadentes da classe trabalhadora e dos negros pobres ficaram presos aos centros das cidades, um dia industrializados, agora degradados” (idem). Enquanto a prisão imprime um estigma ao sujeito, pode-se considerar que “o sistema penal contribui diretamente para a regulamentação dos segmentos mais baixos do mercado de trabalho” (idem, grifos do autor).

Neste sentido, a Fundação de Atendimento Socioeducativo, apesar de sua relativa independência em relação ao sistema penitenciário brasileiro, funciona socialmente no mesmo registro das prisões. A diferença realmente existente é de grau e não de natureza. Trata-se, na expressão de Foucault, de uma “instituição de sequestro” engendrada num processo social e histórico mais amplo de desagregação dos serviços voltados a produção de bem-estar da parte do Estado. Bem-estar esse que nunca entrou em vigor efetivamente, diga-se de passagem.

Referências:


BENJAMIN, César. Educação e desenvolvimento sustentável. In: 2º Encontro Estadual das Escolas Técnicas. Porto Alegre, SEDUC/RS, vol01, 2001.

DUARTE, Sabrina. Linhas de fuga, sujeitos e devires: o olhar dos jovens selecionados pelo sistema socioeducativo. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFRGS, Porto Alegre, 2014, 103p.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1999.

SILVA, Dinis Carla Borghi da. A história da pena de prisão. Monografias Brasil Escola. Disponível em: <http://brasilesco.la/m15078>. Acesso em: 11 nov. 2015.

WACQUANT, Loïc. O lugar da prisão na nova administração da pobreza. Novos estud. - CEBRAP, São Paulo, n. 80, p. 9-19, mar. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002008000100002&lng=pt&nrm=iso>. acessos em: 14 dez. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002008000100002.

Notas:

i         Disponível em: <http://www.fase.rs.gov.br/wp/institucional/historico/>. Acesso em: 15 dez. 2018.

ii       Apesar de queda no número de internos, Fase tem alto índice de reincidência”. Disponível em: <http://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/noticia/2014/03/apesar-de-queda-no-numero-de-internos-fase-tem-alto-indice-de-reincidencia-4443603.html>. Acesso em: 15 dez. 2018.

iii  Safatle: “Há um golpe militar em marcha no Brasil hoje”, Disponível em: <https://youtu.be/BwLg13hSkRk>. Acesso em: 15 dez. 2018.

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