quinta-feira, 14 de abril de 2022

Introdução formativa ao anarquismo

Bandeira anarquista com legenda: “Comunismo Vencerá!”.

Apresentação


Este texto foi escrito para fins de formação e instrução sobre o anarquismo. A proposta é abordar em linhas gerais o movimento anarquista em seus fundamentos históricos e sociais. O objetivo não é esgotar as discussões sobre o assunto, apenas oferecer uma introdução ao estudo do anarquismo a partir de uma perspectiva libertária.

Nesta síntese sobre o anarquismo, utilizamos como critério de análise as condições reais da experiência histórica e social dos seres humanos. Nesse sentido, o anarquismo será compreendido como um movimento coletivo, construído por pessoas que vivem em determinadas condições e não como uma ideia inventada por indivíduos isolados de sua situação histórica.

Portanto, a presente exposição difere e também rejeita aquelas interpretações que são baseadas numa “história das ideias”. A divergência com relação a esses estudos consiste no fato de que o anarquismo precisa ser entendido como uma realidade social: algo almejado e praticado por seres humanos que fazem e são feitos pela sua história e socialidade.

Espera-se que esta contribuição possa ajudar a superar equívocos e noções falsas que são espalhadas sobre o anarquismo com o propósito ideológico de difamar esse movimento.

1. O que é anarquismo?


Provavelmente o leitor já deve ter ouvido falar em “anarquismo” ou em “anarquia” em algum lugar. Talvez tenha associado isso à bagunça e desordem social, uma vez que essas são noções do senso comum ao se referir aos “anarquistas”. Não obstante, se realizar uma breve pesquisa na web, talvez possa se deparar com algo diferente do que essa noção mais banal do senso comum. Por exemplo, se pesquisares por “significado de anarquismo” no Google, encontrará a seguinte definição extraída do Oxford Languages:

Teoria social e movimento político, presente na história ocidental do [século] XIX e da primeira metade do [século] XX, que sustenta a ideia de que a sociedade existe de forma independente e antagônica ao poder exercido pelo Estado, sendo este considerado dispensável e até mesmo nocivo ao estabelecimento de uma autêntica comunidade humana.

Embora essa definição se aproxime de alguns elementos presentes no movimento anarquista, ela ainda é insuficiente, pois o anarquismo não é apenas uma crítica ao Estado (não se reduz ao antiestatismo). É importante destacar também que o movimento anarquista tem uma existência geográfica que vai muito além da história ocidental, tendo incidência em todo o mundo. Além disso, continua existindo atualmente, ou seja: também é um fenômeno do século XXI.

Acontece que o inconveniente desses significados presentes em dicionários ou em resumos de páginas da web consiste precisamente no fato de que eles ignoram o que os anarquistas afirmaram e fizeram concretamente na história. Então as informações acabam sendo dispersas e não sistemáticas, pois não envolvem uma explicação suficientemente abrangente do movimento anarquista.

Levando isso em consideração, vamos partir de nosso posicionamento anarquista para apresentar uma definição que leve em consideração a produção teórica e prática dos militantes históricos de nosso movimento e tentaremos suprir uma parte dessa lacuna. Essa definição estará fundamentada em uma avaliação e apropriação crítica de nossa própria concepção sobre o anarquismo, uma vez que não lidamos com essa questão como algo puramente formal, mas sim como a realidade de nossa luta social existente em ato e da qual somos uma parte autoconsciente desse movimento.

1. 2. O anarquismo é uma forma de socialismo:


O anarquismo faz parte do socialismo e historicamente já teve os seguintes nomes: socialismo libertário, comunismo libertário, socialismo anarquista, comunismo anarquista, etc. Essas expressões podem parecer “estranhas” para alguém que está começando a estudar o movimento anarquista, mas elas foram e são realmente utilizadas por anarquistas ao redor do mundo.

Talvez o estranhamento dessas noções esteja associado a uma propaganda de deturpação promovida para distorcer os fundamentos socialistas do anarquismo, algo que ocorre recorrentemente na história. No entanto, qualquer estudo sério demonstra o caráter socialista do anarquismo [1]. O mesmo vale para o termo “libertário”, um neologismo cunhado pelo operário francês Joseph Déjacque (1821-1864) e utilizado em seu periódico [2] “Le Libertaire: Journal du Mouvement Social” (ativo entre 1858 e 1861).

Mas, para compreender o anarquismo, é necessário entender os fundamentos do próprio socialismo como um movimento real, ou seja: o socialismo como um processo emergente de condições sociais historicamente específicas. Portanto, vamos fazer uma explicação resumida das condições de emergência da luta socialista em geral e do anarquismo em particular.

Socialismo: é um movimento coletivo que surge historicamente a partir da revolta das classes exploradas e dominadas contra a exploração e a dominação. A luta dessas classes produz historicamente um interesse coletivo pela abolição da exploração e da dominação que é corporificado (ganha um corpus teórico-prático) em um programa emancipatório (que se traduz no socialismo).

As formas gerais de exploração e de dominação que emergem e se desenvolvem nas sociedades de classe são baseadas na distinção entre proprietários dos meios de produção econômica e despossuídos que são obrigados a trabalhar para esses proprietários (a exploração ocorre com a apropriação do sobreproduto do trabalho pelos proprietários). O socialismo expressa o desejo de libertação social dos explorados através do objetivo de abolição da propriedade privada, pois nesse processo se reestabeleceria o controle da produção econômica a todos, suprimindo as classes sociais.

Não obstante, é necessário distinguir entre o fato jurídico da propriedade privada do seu fundamento político-econômico. Compreendemos por propriedade privada um determinado modo de apropriação presente em formações sociais de classe onde existe uma classe dominante que controla os meios de produção (trata-se de um modo de apropriação privativo). Isso é diferente da propriedade em sentido jurídico que seria simplesmente a forma ideológica de justificação da apropriação privativa.

Portanto, para o socialismo se realizar, é necessário a abolição da apropriação privativa (da propriedade privada). Isso exige uma transformação revolucionária da sociedade.

Observação sobre o conceito de ideologia e a diferença entre justificação ideológica e movimento revolucionário: não consideramos que o anarquismo seja uma ideologia, pois compreendemos por ideologia um certo tipo de consciência dos interesses da dominação de classe vigente em uma determinada formação social. Nesse sentido, a ideologia não é um termo vago para qualquer “sistema de ideias e valores”, mas uma forma histórica de consciência social cuja gênese está associada com as relações de classe. Os processos ideológicos se manifestam através do conjunto dos valores, discursos, regras de conduta, saberes institucionais (como a administração), saberes científicos (quando os mesmos são reproduções de pressupostos ideológicos) e demais meios de subjetivação que consistem em regular a vida social no sentido da reprodução das relações de classe vigentes (não implica necessariamente uma concepção voluntária da parte da classe dominante, pois os processos ideológicos ocorrem espontaneamente como função de conservação da ordem social vigente). A característica peculiar da ideologia é “apresentar um interesse particular como geral” (MARX & ENGELS, 2007, p. 49), ou seja, questões particulares relacionadas ao domínio de um grupo social são apresentadas como uma generalidade para toda a sociedade. Isso também ocorre em função de uma sobreposição nas normas preexistentes, como descreve Kropotkin sobre a assimilação de costumes na forma de leis: “Os costumes (…) estão com habilidade misturados, no Código, às práticas impostas pelos dominadores, e aspiram ao mesmo respeito da multidão” (KROPOTKIN, 2009, p. 172). Nesse sentido, outro mecanismo sutil da ideologia é se confundir com os hábitos e o senso comum (formando um status quo). Além disso, justamente para “generalizar o particular”, será da natureza do discurso ideológico se apresentar como “a-ideológico”, como “puramente técnico” em certos casos, como “consenso científico” noutros, ou mesmo como idêntico à “moralidade” em si (dependendo da forma de assentimento que operar na sua reprodução).  Por outro lado, um movimento revolucionário é o fato social da existência de interesses antagônicos em uma formação social, assim como o desenvolvimento desse antagonismo sob a forma de uma luta de classes. Na medida em que o conflito social se agudiza, a sociedade se divide em uma posição revolucionária e uma posição reacionária que tendem a se anular mutuamente até que uma transformação radical mude essa situação histórica. Do lado da revolução social existe, como potenciais virtuais, o germe de formas sociais alternativas, portanto não se confundem com as justificativas ideológicas das formas atuais. É nesse sentido que o anarquismo não é ideológico, mas sim revolucionário.

Capitalismo e socialismo: A sociedade de classes contemporânea que se encontra o mundo inteiro atualmente é o capitalismo. Trata-se de um modo de produção baseado na exploração do trabalho daqueles que vendem sua força de trabalho para aqueles que a compram através do salário. Nesse modo de produção, os dominantes são os capitalistas (aqueles que personificam o capital) e os dominados são chamados de proletários, porque são obrigados pela sua condição social a vender sua capacidade de trabalhar (força de trabalho) para os capitalistas. Assim, a luta de classes da atualidade centra-se no antagonismo entre proletários e capitalistas, onde os primeiros são a classe revolucionária (portadores do socialismo) e os segundos a classe reacionária (defensores do capitalismo). Em suma, essas são as condições sociais reais da gênese do movimento socialista moderno.

Observação sobre o conceito de interesse de classe: Contra as objeções liberais a respeito da passividade e resignação dos dominados, afirmamos o seguinte: a ausência de ação coletiva de um grupo social indica justamente que esse grupo não age como grupo. A ideologia liberal costuma difundir a ideia de que se a maioria de um grupo social não se mobiliza, então qualquer ação de minorias ativas desse grupo não poderia expressar a vontade geral dessa coletividade (que seria indicada pela média), portanto não poderia se dizer que essa minoria age no interesse do grupo ao qual faz parte. No entanto, isso não faz o menor sentido do ponto de vista da compreensão das ações políticas. A defesa de um interesse geral de um determinado grupo social pode ocorrer por um conjunto extremamente minoritário de pessoas e, mesmo assim, não vai deixar de ser um interesse do grupo, precisamente porque o interesse expressa as necessidades coletivas do grupo independentemente das vontades particulares majoritárias estarem ou não mobilizadas para esse fim, pois o interesse tem uma natureza qualitativa e objetiva mais do que quantitativa e subjetiva (a maioria de um grupo pode almejar subjetivamente a própria ruína e nem por isso esse seria um interesse que expressa as necessidades coletivas reais do grupo).

Socialismo segundo o anarquismo: Um destacado militante anarquista que viveu no Brasil, Edgard Leuenroth (1881-1968), explica [3] que (1963, p. 64): “Socialismo, em sua legítima significação histórica, é a socialização da propriedade e dos meios de produção, isto é, a reversão dos bens sociais, à comunidade humana, para serem postos em proveito de todos, visto serem produto do esforço de todos”. Nesse sentido, o socialismo não é o mesmo do que “compartilhar a escova de dentes”, “deixar sua casa nas mãos do governo” e outras bobagens que usam para o difamar.

A socialização dos meios de produção significa que a organização da produção será responsabilidade de associações de produtores e consumidores sem a finalidade de lucrar, pois o lucro é baseado na exploração do trabalho alheio. O conjunto dos ramos da produção seriam administrados coletivamente pela comunidade humana em vez de serem bens exclusivos de patrões e burocratas, o processo econômico não ficaria mais a mercê das oscilações do mercado e do sistema de preços como ocorre atualmente. A socialização é o objetivo construtivo do socialismo, enquanto que a destruição da propriedade privada é o ponto de partida destrutivo.

As sociedades de classe também são estruturadas a partir da dominação política, pois a proteção da propriedade exige meios de coerção (violência) e processos de controle ideológico (hegemonia cultural). Nesse sentido, as classes dominantes constroem uma organização coletiva para exercer um poder estrutural sobre os dominados: o Estado. Além do ordenamento coercitivo e jurídico do Estado, as classes dominantes também buscam impedir uma consciência autônoma dos dominados, portanto constroem uma ideologia, isto é, a subordinação da consciência social às relações de classe vigentes. Geralmente a ideologia funciona como uma forma de “naturalizar” (considerar “normal”) as relações sociais históricas e particulares de uma determinada sociedade (por exemplo: pressupor que sempre existiu mercado, algo que é falso quando se estuda a história humana).

Nesse sentido, é necessário reconhecer a indissociabilidade da propriedade privada com o monopólio da violência (Estado) usado para defendê-la, pois só existe controle exclusivo sobre meios de produção quando essa apropriação está protegida pelo aparato coercitivo do Estado. Nesse sentido, a realização da socialização implica na destruição de ambas as instituições. No entanto, é nesse ponto que alguns socialistas vão discordar entre si.

A questão do Estado criou uma controvérsia no movimento socialista, pois muitos acreditam na “utilidade” de um aparato estatal para suprimir a propriedade privada. Certas concepções defendem que seria necessário que os dominados e explorados construíssem seu próprio Estado como meio de defesa dos seus interesses de classe, buscando usar esse meio para atingir o objetivo final do socialismo (o Estado definharia no processo dessa luta coletiva e deixaria de existir, pois deixaria de ser “útil” quando o objetivo fosse atingido). Aqueles que rejeitaram essa posição foram os responsáveis pela proposta anarquista de socialismo.

Portanto, o anarquismo é a defesa da “coerência lógica de suas finalidades com os meios empregados para realizá-las” (FRANCO, 1962, p. 60) [4], pois considera-se que o processo revolucionário de transformação social precisa ser organizado a partir de formas políticas e econômicas próprias da classe dominada e que estejam de acordo com os objetivos inerentes do socialismo, sem reproduzir os modelos legados pelos dominadores. A crítica anarquista considera que os “meios incoerentes com os fins” são um desvio oportunista no socialismo cuja consequência prática acaba sendo a reprodução da dominação sob outras formas. Tanto que o termo “libertário” ou a designação de “anti-autoritário” tem a ver com essa rejeição do autoritarismo para o desenvolvimento coerente do socialismo.

A organização do poder político para construir o socialismo, segundo os anarquistas, ocorre a partir da anarquia: que significa tanto a auto-organização dos explorados quanto uma determinada situação social onde as pessoas se relacionam sem estruturas verticais de poder e autoridade, “o funcionamento harmonioso de todas as autonomias, resolvendo-se na igualdade de todas as condições humanas” [5], como afirma o anarquista espanhol Ricardo Mella (1861-1925).

Contudo, os anarquistas não negam a necessidade de “minorias revolucionárias” responsáveis por defender ativamente o programa revolucionário, nem tampouco o papel de liderança dessas minorias. O que os anarquistas negam é a institucionalização de privilégios para essa vanguarda revolucionária, pois a função de realizar a direção revolucionária do movimento socialista é um compromisso com a causa emancipatória e não uma forma de tirar vantagem oportunista do movimento.

No socialismo também existem controvérsias a respeito da forma social de produção na qual se fundaria a “nova sociedade”. Em termos gerais, as sociedades humanas possuem relações sociais de produção que se reproduzem e/ou se alteram no curso da história. Existem diferentes modos de produção que correspondem a distintas formações sociais. O socialismo anarquista defende como produção social a construção do comunismo, embora tenham ocorrido algumas divergências com relação a essa questão (como o caso de alguns autodenominados “coletivistas”). Segundo Leuenroth (1963, p. 64): “Por comunismo, também de acordo com sua significação histórica, os anarquistas entendem o sistema de convivência social que, dentro do socialismo, se estrutura de acordo com o princípio – ‘de cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo as suas necessidades’”. Em outras palavras: o comunismo seria um modo de produção onde as pessoas cooperam para realizar as necessidades uma das outras a partir das capacidades de que dispõem coletivamente.

O anarquismo é, portanto, fruto da união entre a luta pela socialização dos meios de produção com a luta por uma organização social libertária, isto é, onde cada um e todos tenham poder e influência sobre as decisões nos assuntos da comunidade humana.

Além disso, é importante destacar que o socialismo/comunismo/anarquismo não é um ideal abstrato com a qual se pretende moldar o mundo, mas sim um movimento real que surge de tendências sociais e históricas concretas nos seres humanos.

O anarquista russo Piotr Kropotkin (1842-1921), responsável por popularizar o termo “anarco-comunismo”, afirma nesse sentido que [6]:

Quanto ao método seguido pelo pensador anarquista, ele difere em grande parte do seguido pelos utópicos. (…) Ele estuda a sociedade e tenta descobrir suas tendências, passadas e presentes, suas necessidades crescentes, intelectuais e econômicas; e, em seu ideal, ele apenas aponta em que direção a evolução segue. (…) O ideal do anarquista é, portanto, um mero resumo do que ele considera ser a próxima fase da evolução. Não é mais uma questão de fé; é um assunto para discussão científica (1887, pp. 238-239).

O anarquismo, além de seus objetivos práticos, também possui uma teoria e um método revolucionário para realizar seu programa. Portanto, é como Luigi Fabbri (1877-1935), anarquista de origem italiana, escreveu certa vez [7]: “O que nos distingue, não só na teoria mas também na prática, dos outros partidos é que nós não somente temos um objetivo anarquista mas também um movimento anarquista, uma metodologia anarquista” (1921, p. 267).

E apesar de divergências entre as diferentes tendências no anarquismo, podemos destacar alguns métodos e princípios como: a ação direta, a organização autônoma dos explorados, o federalismo libertário (contestado em alguns casos), o sindicalismo revolucionário (rejeitado pelos críticos do sindicalismo, como os anarquistas insurrecionalistas), o internacionalismo proletário (a necessidade de articulação internacional das lutas), dentre outras práticas e métodos que serão discutidas mais adiante.

Em suma, como afirma o documento de proposta organizacional produzido em 1926 por militantes anarquistas exilados da Rússia (Dielo Truda, 2017, on-line) [8]:

A luta de classes, criada pela escravidão dos trabalhadores e suas aspirações por liberdade, gerou entre os oprimidos a ideia do anarquismo: a ideia da negação completa do sistema social de classes e de Estado, e de sua substituição por uma sociedade livre, sem Estado e de trabalhadores que administram a si mesmos.

Assim, o anarquismo não emergiu das reflexões abstratas de um cientista ou de um filósofo, mas da luta direta dos trabalhadores contra o capital, das suas necessidades e exigências, dos seus aspectos psicológicos, das suas aspirações à liberdade e à igualdade; de tudo aquilo que as massas trabalhadoras vivenciam nas melhores e heroicas épocas de suas vidas e lutas.

Os pensadores proeminentes do anarquismo – Bakunin, Kropotkin e outros – não criaram a ideia do anarquismo, mas, encontrando-a nas massas, ajudaram, pela força de seu pensamento e de seus conhecimentos, a precisá-la e a difundi-la

O anarquismo não é produto de criações ou de práticas individuais. (…)

O nascimento, o florescimento e a realização dos ideais anarquistas têm suas raízes na vida e na luta das massas trabalhadoras, e estão inseparavelmente ligados ao seu destino.

2. O que é anarquia?


Anarquia é auto-organização sem governo, simetria de poder.

Por muito tempo o senso comum e a mídia usaram a palavra “anarquia” como sinônimo de “desordem”, “bagunça”, uma situação caracterizada como uma “ausência de regras” (ou o desrespeito total delas). Assim, por tabela, o “anarquista” seria o indivíduo que se comporta de forma “antissocial” e o “anarquismo” seria uma situação caótica na sociedade. No entanto, essas noções são equivocadas, apesar de haver um motivo para serem difundidas assim. Antes de falar do sentido propriamente anarquista do termo, convém mencionar seu significado original.

Para fins de ilustração, pesquisamos em um dicionário e encontramos algo assim: anarquia [9] (do grego: αναρχία) é “1) falta ou ausência de chefia; 2) falta de autoridade, de direção; recusa de obedecer; 3) anarquia; 4) em Atenas, o ano sem arcontes; 5) falta de cargos” (MALHADAS et al., 2006, p. 66). O interessante dessa definição é a menção ao “arconte”: trata-se de um título dado aos membros de uma assembleia de nobres da Atenas durante a Grécia Antiga (o arcontado). O significado original da palavra pode ser resumido da seguinte forma: ausência ou recusa de governantes.

Se este já é o significado de anarquia para além do uso anarquista, então podemos presumir que as autoridades dissimulam que isso é sinônimo de “bagunça” justamente por se sentirem ameaçadas. Os governantes precisam dessa propaganda ideológica para fazer as pessoas acreditarem que não é possível organizar a vida social sem o uso de formas autoritárias de poder.

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Agora que sabemos o significado gramatical de anarquia, vamos verificar alguns usos históricos antes de sua apropriação pelos anarquistas. Serão apresentadas duas situações onde a anarquia se tornou um importante instrumento de acusação política na história moderna.

No século XVII, a palavra “anarquia” foi usada na Inglaterra durante a guerra civil que culminou na chamada “revolução puritana” que estabeleceu o primeiro governo republicano da história. Trata-se de um processo complexo de luta de classes que resultou no estabelecimento de condições mais favoráveis ao desenvolvimento do capitalismo. O conflito entre o Parlamento (puritanos) e Carlos I (realistas) representava a luta da burguesia aliada à nobreza progressista contra a aristocracia decadente. A conquista do poder político para a burguesia não foi possível sem a mobilização dos pequenos produtores e camponeses. O desfecho da vitória do Parlamento trouxe consigo reivindicações que iriam além das ambições de classe dos burgueses. Os que buscaram continuar o processo revolucionário foram reprimidos. Nessa ocasião, usaram como propaganda ideológica a acusação de que os radicais queriam promover a “anarquia”.

Durante a guerra civil inglesa, o líder militar Oliver Cromwell (1599-1658) construiu o “New Model Army” em 1645 para lutar contra as tropas realistas. Nesse exército, os soldados passaram a ser promovidos com base na competência e não mais pelo nascimento em uma família de prestígio e entre os recrutas se encontravam, muitas vezes, pessoas de classes intermediárias ou mesmo camponeses pobres. Depois da derrota de Carlos I, uma ala do exército composta por pequenos produtores começou a promover uma série de reformas para além daquelas que estavam previstas pelos puritanos. Esse agrupamento ficou conhecido como “levellers” (niveladores). Dentre as reivindicações estava o sufrágio universal, defendido pelos levellers constitucionalistas mais radicais, enquanto que os puritanos desejavam apenas o voto censitário (restrito a grandes proprietários).

O leveller Thomas Rainsborough (1610-1648) declarava no Debate de Putney [10] em 1647: “Acho que está claro que todo homem que deve viver sob um governo deve primeiro, por seu próprio consentimento, colocar-se sob esse governo”. Ao que Cromwell respondia: “a consequência desta medida tende à anarquia, deve terminar na anarquia”. Nesse sentido, mesmo que anarquia não tivesse relação com o sufrágio universal, nem pudesse ser provocada por isso, a propaganda puritana utilizava o termo como sinônimo de “desordem”. A oposição dos levellers foi reprimida por Cromwell, que chegou a impor uma ditadura para impedir a proliferação de movimentos subversivos que questionassem a nova ordem estabelecida.

Também ocorreu uma associação das ideias “niveladoras” com o “comunismo”, principalmente a partir da defesa de uma certa forma de “comunismo agrário” da parte dos autodenominados “levellers autênticos”. Também conhecidos como “diggers” (escavadores), esse outro movimento ocorreu por volta de 1649, liderado por Gerrard Winstanley (1609-1676), que afirmava que: “A liberdade é o homem que girará o mundo de cabeça para baixo, por isso não espanta que tenha tantos inimigos… A autêntica liberdade reside na comunidade em espírito e na comunidade das riquezas terrenas” (1649, pp. 316-317 apud HILL, 1987, p. 117) [11]. Em abril de 1649, os diggers apossaram-se de algumas terras desocupadas na Colina de São Jorge em Surrey para estabelecer uma comuna rural. Ela foi dissolvida em agosto do mesmo ano pelas autoridades locais e as pessoas dispersadas. Um ano depois o clérigo e teólogo milenarista Nathanael Holmes (1599-1678) afirmou que seu coração tremia só de pensar “em uma paridade popular; uma anarquia niveladora” (1650, p. 32) [12].

No século XVII, a anarquia seria utilizada novamente em contexto de turbulência social, durante a Revolução Francesa. A acusação de “anarquista” servia como propaganda difamatória contra os grupos radicais que buscavam dar continuidade ao processo revolucionário. Curiosamente, dizia-se que era necessário uma outra revolução para impedir a anarquia. Jacques-Pierre Brissot (1754-1793), líder político do partido girondino (ala moderada da revolução francesa), afirmava que [13]: “Três revoluções eram necessárias para salvar a França: a primeira derrubou o despotismo; a segunda aniquilou a realeza; a terceira deve abater a anarquia” (BRISSOT, 1792 apud KROPOTKIN, 1935, p. 355). Brissot definia a anarquia principalmente como um ataque à propriedade (BRISSOT apud KROPOTKIN, 1935, p. 360), perpetrada por grupos que “odiavam proprietários”. Novamente: a anarquia fora associada à negação da propriedade e à “desordem social” e usada pelos representantes da nova classe dominante para classificar as alas mais radicais da revolução.

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Somente no século XIX que a “anarquia” seria apropriada pelo movimento socialista, durante a emergência das organizações operárias na França. Para compreender essa gênese do sentido positivo de anarquia, é necessário recusar o mito de que existem “pais fundadores” no socialismo, pois como afirma Joseph Déjacque [14]: “O pensador que emite uma nova ideia, (…) apenas emite essa ideia (…) porque ele a desenhou da multidão no estado de elaboração (…). Ninguém pode afirmar ser o proprietário ou mesmo o produtor exclusivo de uma ideia” (1859). As condições sociais são a base real sobre a qual as pessoas formulam ideias, porque [15] “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” (MARX, 2008, p. 47).

Costuma-se considerar, mesmo equivocadamente, que o francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) seria o “primeiro anarquista”, apenas por ele ter afirmado que era anarquista no seu escrito “O que é a propriedade?”, publicado pela primeira vez em 1840. Mas o próprio Proudhon recusará essa denominação mais tarde, além de usar o sentido negativo de anarquia tanto antes (em 1839) quanto depois em suas obras [16]. No entanto, Proudhon exerce influência em militantes históricos do anarquismo como Mikhail Bakunin (1814-1876) e suas ideias mesmas emergem de um contexto de associações operárias na frança que vale a pena mencionar.

Ao se perguntar “O que é propriedade?” [17], Proudhon respondeu que ela era um roubo, que o proprietário é um ladrão que priva os outros dos bens socialmente produzidos, pois “toda a proeminência social, atribuída ou, melhor dizendo, usurpada sob o pretexto de superioridade de talento e serviço, é iniquidade e usurpação” (PROUDHON, 1975, p. 14). Nesse mesmo escrito ele se afirmou anarquista, mas ele queria dizer simplesmente que a anarquia é a liberdade na medida em que “não admite o governo da vontade, mas só da autoridade da lei, isto é, da necessidade” (PROUDHON, 1975, p. 243) e o anarquista é aquele que almeja esse estado de coisas a partir da “ordem natural” da sociedade. Sua primeira definição positiva de anarquia lembra a do filósofo alemão Immanuel Kant [18] (1724-1804): “Lei e liberdade sem poder (anarquia)” (KANT, 2006, p. 331).

Proudhon não defendeu em nenhum momento a abolição do Estado, apesar do espírito socialista de seu texto. Nem sequer participou da insurreição de junho de 1848 na França, chegando a se opor aos operários insurrectos. Ele chegou a ser eleito para a Assembleia Constituinte, embora tenha se desiludido com a mesma posteriormente.

No contexto da obra de Proudhon, haviam “patentes semelhanças” entre sua “ideia associativa” e “o programa dos Mutualistas de Lyon”, pois “o ideal socialista que ele perseguia já estava sendo realizado, em certo grau, por aqueles trabalhadores” (VICENT, 1984, p. 164) [19]. Isso porque as ideias de Proudhon correspondiam ao seu contexto e condição: ele era um operário da tipografia e estava em contato com as questões que permeavam sua classe social. Entretanto, o caráter revolucionário do socialismo não foi assumido por Proudhon, como atesta sua participação no governo francês em 1848. Suas incoerências e contradições correspondem à situação do próprio proletariado que oscila entre a ideologia da classe dominante e a autoconsciência revolucionária para se emancipar. Em função dessas inconsistências, não se deveria considerar Proudhon como anarquista, embora fosse um socialista que defendia o mutualismo e o federalismo.

Embora Proudhon não fosse anarquista, haviam tendências comunistas na França desse período que o eram. A “primeira publicação comunista libertária” da história, segundo Max Nettlau (2008, pp. 100-101) [20], teria sido o jornal “L'Humanitaire, Organe de la Science Sociale”, publicado em Paris no ano de 1841. Segundo seus redatores, o objetivo deles era desenvolver um “plano de uma organização social onde toda dominação do homem pelo homem seja inteiramente abolida” (julho de 1841) [21]. Entre os responsáveis por L'Humanitaire se encontravam “artesãos, operários ou lojistas da velha Paris” (PARIS, 2014) [22]. Eles diziam se identificar com Sylvain Maréchal (1750-1803) em função de suas ideias “anti-políticas ou anarquistas”, mas rechaçavam deste último sua aversão à libertação social das mulheres. Eles ficariam conhecidos na França da época como “comunistas materialistas” e também influenciaram os operários na insurreição de 1848. Não obstante, a repressão dissolveu o grupo ainda em 1842, antes de desenvolverem o “plano” que apenas esboçaram. Apesar da conotação positiva dada ao termo anarquia, eles não deixaram uma definição precisa para o termo.

Somente trinta anos depois, no contexto da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1876) que o termo retorna ao vocabulário do movimento socialista. Marx e Engels, durante uma controvérsia com Bakunin, afirmaram que: “Todos os socialistas entendem por Anarquia isto: o objetivo do movimento proletário, uma vez alcançada a abolição das classes” (março de 1872) [23], ou seja: a anarquia seria apenas a forma de organização social do futuro (onde as funções governamentais desaparecem e dão lugar à administração direta), mas não era considerada um meio de luta. Bakunin respondia, em seu “Estatismo e Anarquia” [24] (1873), que a anarquia também era o meio para a construção da sociedade futura durante o processo revolucionário, a forma de uma “livre organização das massas operárias, de baixo para cima” (2003, p. 214). No entanto, seria necessário uma seção inteira para discutir a controvérsia por trás dessas afirmações, então vamos apenas ficar com as definições de “anarquia” aqui oferecidas.

Os socialistas libertários consolidaram a definição positiva de “anarquia” durante um congresso da federação do Jura em 1880, remanescente da Associação Internacional dos Trabalhadores. Nessa ocasião, em La Chaux-de-Fonds na Suíça, o comunicado “Anarchie et communisme” (“Anarquia e Comunismo”) de Carlo Cafiero (1846-1892) foi lido e aprovado pelos participantes. Este documento foi publicado em L'Avant-Garde e em Le Révolté, em Genebra, no mesmo ano. A síntese foi o anarco-comunismo, que se tornaria o programa majoritário do anarquismo. Esse documento define anarquia durante a luta revolucionária e depois da organização libertária da sociedade (e faz o mesmo com o comunismo) [25]:

Hoje, a anarquia é ataque, a guerra contra toda autoridade, contra todo poder, contra todo Estado. Na sociedade futura, a anarquia será a defesa, a prevenção contra o reestabelecimento de toda autoridade, de todo poder, de todo Estado (…).

O comunismo atualmente ainda é ataque; é a destruição da autoridade, mas é a tomada de posse, em nome de toda humanidade, de toda riqueza existente no mundo. Na sociedade futura, o comunismo será o gozo de toda riqueza existente por todos os homens e segundo o princípio: de cada um segundo suas faculdades, para cada um segundo suas necessidades.

Vale destacar que atualmente os anarquistas compreendem que não se trata de uma “rejeição do poder”, mas de sua distribuição simétrica entre as pessoas para que não haja poder de uns sobre os outros, mas de todos e por todos, sem subjugação.

3. A revolução social segundo o anarquismo (Bakunin, Malatesta e Makhno)


É importante destacar que essa abordagem formativa não tem a intenção de ser exaustiva e adentrar os pormenores de cada discussão realizada. Isso é enfatizado novamente nessa seção, pois a questão da revolução social é uma das mais fundamentais e mais complexas do anarquismo. Nesse sentido, não se pretende oferecer uma “solução final” aqui que deveria ser seguida dogmaticamente, mas sim apresentar um resumo do nosso legado, isto é, da contribuição histórica do anarquismo enquanto movimento de luta em prol da revolução social.

Para essa discussão, deve-se analisar as “orientações programáticas” e a teoria revolucionária que as constituem, assim como as realizações práticas e suas respectivas composições sociais. Convém enfatizar que não se trata aqui de fazer um “culto” às personalidades históricas, mas de extrair diretrizes que fundamentam a conduta revolucionária dos anarquistas.

3. 1. Mikhail Bakunin (1814-1876):



A luta revolucionária não é um palco para eufemismos, mas um processo sério e violento pelo qual necessariamente se deve passar para se conquistar a emancipação humana integral. Conforme Bakunin afirmou certa vez (1870):

As revoluções não são uma brincadeira de crianças, nem um debate acadêmico em que unicamente as vaidades se matam mutuamente, nem um torneio literário em que nada além de tinta é derramada. Revolução é guerra, e quem diz guerra diz destruição de homens e coisas. É, sem dúvida, uma pena para a humanidade que ainda não tenha inventado um meio de progresso mais pacífico, mas até o presente toda novidade na história não foi realizada senão depois de ter recebido o batismo do sangue. Por outro lado, a reação nada tem a censurar a revolução a esse respeito. A reação sempre derramou mais sangue do que a revolução. Como prova, há os massacres de Paris em junho de 1848 e em dezembro de 1851; como prova, estão aí as violentas repressões dos governos despóticos de outros países da mesma época e depois, para não falar das dezenas, das centenas de milhares de vítimas que custam as guerras, que são a consequência necessária e a febre periódica desse estado político e social que se chama reação [26].

Em “Estatismo e Anarquia”, Bakunin compreendia a “consciência do caráter universal da revolução social e da solidariedade do proletariado de todos os países” (BAKUNIN, 2003, p. 40), portanto “para o proletariado, quaisquer tropas, nacionais ou estrangeiras, são da mesma forma inimigas” (BAKUNIN, 2003, p. 41). “Assim, hoje, existe, para todos os países do mundo civilizado, um único problema universal, um único ideal: a emancipação total e definitiva do proletariado da exploração econômica e do jugo do Estado” (BAKUNIN, 2003, p. 73). E, “por natureza, esta revolução é internacional” (BAKUNIN, 2003, p. 74). Mas “os Estados não desmoronam por si mesmos; só a revolução social (…) em todos os países do mundo, é capaz de destruí-los” (BAKUNIN, 2003, p. 70). Portanto, torna-se necessário: “Organizar as forças populares para realizar esta revolução” (idem).

Embora Bakunin só tenha militado efetivamente como “socialista revolucionário” entre 1868 e 1872, suas concepções sobre militância revolucionárias podem ser encontradas de forma incipiente em seus escritos de antes (na fase das “organizações secretas”). Nesse sentido, em “Sociedade Internacional Secreta da Revolução – Programa provisório convencionado pelos irmãos fundadores” [27], ele apresenta a proposta de uma organização secreta criada em 1864 que indica sua concepção organizacional. Portanto, apesar dos apelos para a “organização de baixo para cima, da circunferência para o centro”, Bakunin também considerava que era necessário que “a organização revolucionária secreta chegue a um centro único, o qual ligará os esforços parciais dos revolucionários de todos os países a um Plano geral de ação e de movimento” (BAKUNIN, 2014, p. 141, grifos nossos).

A implicação disso é a seguinte: a teoria anarquista da revolução, por mais que esteja baseada nas forças imanentes da classe revolucionária, não rejeita uma direção revolucionária no sentido de uma centralização de minorias revolucionárias que defendem o programa geral da revolução de forma unitária e coesa.

Não obstante, Bakunin não derivava desta necessidade prática qualquer privilégio para os militantes da organização. Trata-se tão somente de uma união geral de militantes anarquistas, na medida em que precisam agir de forma coordenada através de uma estratégia em comum para atingirem seus objetivos.

Bakunin permanecia um crítico feroz de toda e qualquer ingerência impositiva sobre as massas proletárias. Por isso ele defendia, paralelamente a essa coordenação, a autonomia das organizações proletárias, pois deve-se evitar a todo custo o aparelhamento burocrático das organizações parciais do proletariado, para que elas permaneçam na anarquia (na “organização de baixo para cima, da circunferência para o centro”). É neste sentido que ele critica o “dirigismo impositivo” dos chamados “socialistas autoritários”.

A conciliação entre a proposta de organização autônoma “de baixo para cima” com a direção da revolução social impulsionada pela “organização secreta revolucionária” se expressa na concepção de uma “ditadura invisível” (que recebe esse nome não apenas pela defesa do caráter secreto da organização revolucionária, como também pela ausência de personificação pública). Tal proposta estará presente em sua “Carta a Albert Richard” [28] (12 de março de 1870):

E quando a hora da revolução tiver soado, teremos a liquidação do Estado e da sociedade burguesa, incluindo todas as relações jurídicas. A anarquia, quer dizer, a verdadeira, a franca revolução popular a anarquia jurídica e política, a organização econômica de baixo para cima e da periferia ao centro, o mundo triunfante dos trabalhadores.

E, para salvar a revolução, para conduzi-la a um bom fim, no meio mesmo desta anarquia, é necessária a ação de uma ditadura coletiva, invisível, não revestida de uma força qualquer, mas, sim, eficaz e possante, ação natural de todos os revolucionários socialistas, enérgicos e sinceros, disseminados sobre toda a superfície do país, mas unidos fortemente por um pensamento e por uma vontade comum (grifos nossos).

Bakunin explica melhor essa concepção na sua “Carta a Serguey Guennadevich Nechayev” [29] (2 de junho de 1870):

Com que autoridade, com que força vamos administrar a revolução popular? Mediante uma força invisível que não terá nenhum caráter público e que não se imporá a ninguém; mediante a ditadura coletiva de nossa organização que será tanto mais poderosa quanto ficar invisível (…).

Imagine, em meio desta anarquia popular, uma organização secreta que dispersa seus membros em grupos pequenos por toda a superfície (…), mas estão firmemente unidos, animados por uma mesma ideia e um mesmo objetivo (…). Tais grupos, que não buscam nada para eles próprios, nem proveitos, nem honras, nem autoridade, estarão capacitados para dirigir o movimento popular contra todos os ambiciosos, desunidos e opostos uns aos outros, e encaminhar-los para a realização tão integral como seja possível do ideal social e econômico, e para a organização da liberdade popular mais completa. É o que chamo a ditadura coletiva da organização secreta.

Esta ditadura não conhece nem ganância, nem vaidade, nem ambição, porque é impessoal, invisível e porque não fornece a ninguém daqueles que compõem os grupos, tampouco aos próprios grupos, nem proveitos, nem honras, nem reconhecimento oficial de um poder qualquer. (…)

A associação inteira forma um corpo, um todo sólido unido, dirigido pelo Comitê Central e leva uma guerra subterrânea permanente contra o Governo e contra as organizações que a combatem (grifos nossos).

Tal é, segundo nosso entendimento, a forma como Mikhail Bakunin resolveria o problema do caráter que deveria assumir a ditadura do proletariado (embora não tenha utilizado esse conceito de forma explícita). A invisibilidade dessa ditadura consiste no fato de que os dirigentes não adquirem nenhum privilégio diante das massas proletárias e não aplicam qualquer ingerência impositiva nas organizações parciais do proletariado. A tarefa desses militantes consistiria na coordenação das associações de luta da classe proletária mediante a influência de um plano geral encabeçado pelo Comitê Central. Em suma, se trata de uma concepção de partido revolucionária adaptada aos princípios libertários do anarquismo.

3. 2. Errico Malatesta (1853-1932):




Errico Malatesta dedicou 60 anos da sua vida à militância revolucionária, se tornando anarquista por influência da Comuna de Paris (1871). Atuou junto com Carlo Cafiero (1846-1892) na Federação Italiana da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), onde conheceu Mikhail Bakunin (1814-1876) que foi decisivo para sua formação anarquista. As concepções dele representam distintas formas de atuação presentes no anarquismo como um todo, portanto uma análise de seus posicionamentos também pode contribuir para pensar o movimento anarquista me conjunto.

Malatesta foi simultaneamente insurrencionalista, defensor da organização política do anarquismo e da distinção entre agrupamento parcial e geral do proletariado. Ele participou de tentativas insurrecionais dos anarquistas italianos do final do século XIX, contribuiu para organizar os anarquistas em partido e também foi crítico da absorção do anarquismo ao sindicalismo no contexto das suas discussões com os propositores da Carta de Amiens da CGT francesa.

Também foi defensor do abstencionismo libertário, do antimilitarismo, do derrotismo revolucionário e do anti-democratismo (mantinha uma forte coerência de princípios na sua militância). Além de ter sido partidário convicto do internacionalismo revolucionário, tendo defendido, no Congresso Anarquista de Londres de 1881, a criação de uma Internacional Anarquista.

No entanto, consideramos que Malatesta apresentou certos equívocos em determinados momentos e posições da sua militância. Destacamos os seguintes pontos: 1) a rejeição do “anarquismo científico” (caso do seu Ciência e reforma social, publicado em 1913) como expressão teórica revolucionária; 2) os desentendimentos relativamente à questão organizativa e da responsabilidade coletiva em sua controvérsia com Nestor Makhno (1888-1934).

Um dos momentos da sua militância reflete os limites de todo o “dualismo organizacional” imputado ao movimento anarquista, pois demonstra-se como a separação entre instâncias “econômicas” e “políticas” na organização proletariado tende a enfraquecer seu movimento de luta. Esse é o caso da situação revolucionária do Biênio Vermelho (1919-1920) na Itália.

Nesse período revolucionário houve a situação da criação de duas formas de agrupamento para organizar a luta do proletariado, mas a organização portadora do programa hesitou em exercer seu papel de direção revolucionária no momento em que era necessário coordenar as ações coletivas da classe para efetivar a ditadura invisível da qual falava Bakunin.

Malatesta ajudou a fundar a União Anarquista Italiana (UAI), organização responsável por unir as forças revolucionárias do proletariado italiano segundo o programa anarquista e também participou da União Sindical Italiana (USI), organização baseada nos princípios do sindicalismo revolucionário (que partia do princípio de neutralidade doutrinária dos sindicatos, isto é, a ideia de que as associações sindicais não deveriam ter uma proposta definida).

No entanto, em vez de contribuir para que a UAI desse objetivos programáticos explícitos para a a USI, Malatesta considerou mais adequado não “interferir” no sindicalismo revolucionário para “não confundir” a “doutrina social” do agrupamento anarquista específico (da UAI) com o agrupamento operário supostamente “sem doutrina oficial” (da USI). Trata-se do equívoco do “dualismo organizacional”. Neste caso, a difusão das forças pela falta de coesão e coordenação facilitou a derrota do processo revolucionário pelos reformistas.

A ausência de organizações de coordenação independente entre as distintas fábricas do ramo industrial fez que os trabalhadores dependessem dos burocratas dos sindicatos para obter informações sobre o que se passava em outras cidades. As burocracias sindicais da Confederazione Generale del Lavoro (CGL), dirigidas pelo Partido Socialista Italiano (PSI), usaram essa vantagem das informações centralizadas para isolar as fábricas e as cidades entre si. A confederação local de uniões sindicais não conseguiu proporcionar as condições necessárias para um movimento de ocupação de fábricas coordenado de forma coesa e unitária (dado que a CGL e PSI que mantinham controle sobre as instâncias de coordenação). Portanto, embora os anarquistas constituíssem uma grande maioria, se viram impedidos por uma minoria reformista.

Na prática, isso demonstra que não existe “ausência de doutrina” em nenhuma organização na luta de classes, pois os proletários sofrem influências de diferentes tendências ideológicas além do programa revolucionário do comunismo anarquista no antagonismo social. Malatesta poderia ter defendido uma posição de maior ruptura com o sindicalismo da CGL e contra sua direção pelo PSI, mas não deu esse passo adiante por confundir direção revolucionária com tentativa de vanguardismo/dirigismo (que são duas coisas diferentes: a direção é o sentido que damos a um movimento com determinados objetivos, o dirigismo é a cooptação do movimento em proveito de uma organização formal oportunista – que certamente não teria sido o caso da parte dos anarquistas).

Esses dilemas das lutas do Biênio Vermelho ocorreram antes da proposta da Plataforma (1926), portanto Malatesta ainda não tinha entrado em contato com a solução desse problema que teria sido proposta pelo Dielo Truda.

No entanto, Malatesta não percebeu, em sua controvérsia posterior com Makhno, que o princípio da responsabilidade coletiva e a orientação da União Geral proposta pela Plataforma eram justamente o que faltava para ter garantido a coesão e coordenação unitária na experiência revolucionária da qual tinha participado. Nesse sentido, parece realmente adequado concluir que Malatesta teve essa lacuna no conjunto das contribuições que legou ao movimento libertário.

O movimento anarquista acabou caindo em equívocos semelhantes durante a guerra civil espanhola. Isso ficará evidente na controvérsia ente Los Amigos de Durruti contra o colaboracionismo da CNT, onde Jaime Balius (1904-1980) tinha a posição mais adequada para enfrentar a reação (uma posição que lembra muito as contribuições de Makhno).

3. 3. Nestor Makhno (1888-1934):



Podemos verificar em Makhno o encontro de praticamente todas as tendências da anarquia que foram importantes para a construção do movimento libertário: de origem camponesa, lutou desde muito jovem na luta de classes, participando da greve do dia 22 de fevereiro de 1905 na fábrica Kerner quando era operário (com apenas 17 anos, enquanto trabalhava para conseguir uma renda extra para a família camponesa). Depois ele acabou se unindo à “União dos Livre Agricultores” em 1906, um grupo anarco-comunista que praticava assaltos ao estilo “Robin Hood” usando os espólios para distribuir entre os pobres e para financiar uma rebelião camponesa. Trata-se, nesse momento de sua vida, do terrorismo de inspiração narodinik, legado do insurrencionalismo no anarquismo.

No entanto, ele foi preso e condenado a prisão perpétua em 1910 (teria sido condenado à morte, não fosse a falsificação do documento de registro civil dele pelos pais que colocava ele como menor de idade). Na prisão conheceu Piotr Arshinov que lhe orientou na sua formação militante e proporcionou uma série de estudos no anarco-comunismo que renderam uma base intelectual mais sólida.

Em 1917 saía da prisão e se reuniria novamente com os anarco-comunistas dessa vez para construir um movimento revolucionário em prol da tomada das terras dos kulaks e dos grandes proprietários de terras para uma redistribuição destas para o uso direto das famílias camponesas (uma proposta mais avançada de integração das comunas agrícolas em coletividades tentou ser implementada, mas as circunstâncias da guerra civil unidas à uma baixa adesão camponesa não permitiu tal medida).

Durante a guerra civil russa, combateu a partir do Exército Insurgente Revolucionário da Ucrânia (conhecido como “exército negro”) o exército reacionário dos restauradores do czarismo (exército branco) e o exército nacionalista da Rada Central ucraniana (exército verde) sem se submeter ao exército pseudo-revolucionário dos bolcheviques (exército vermelho), que também foram obrigados a combater.

O exército negro formava uma coordenação e integração das forças anarquistas sob uma direção revolucionária do núcleo formado pelos anarco-comunistas liderados por Makhno, mas suas ações estavam submetidas ao Soviete Militar Revolucionário que era o órgão executivo do Congresso dos Sovietes dos Distritos do território controlado pelo proletariado revolucionário dos campos.

Portanto, a ditadura invisível da qual falava Bakunin foi posta em prática efetivamente: a influência dos anarco-comunistas ucranianos era suficiente para exercer a direção revolucionária sem uma ingerência impositiva através do aparelhamento do Soviete Militar Revolucionário.

O Exército Insurgente Revolucionário da Ucrânia estava armado com tachankas em carroças (uma invenção militar de Makhno), adaptada as conflitos sob a zona estepe-floresta ucraniana. Durante um tempo, conseguiram conquistar a cidade de Ekaterinoslav com uma estratégia furtiva de disfarçar sua cavalaria de tachankas com repolhos como se fossem comerciantes e pegaram de surpresa os nacionalistas. Nessa cidade, deixaram a melhor impressão na população comparativamente aos demais exércitos que passaram por lá durante guerra civil, demonstrando na prática que “a anarquia é a verdadeira ordem”.

No entanto, o exército negro acabou sendo derrotado por uma emboscada bolchevique que foi baseada numa confraternização de mentira após a vitória sob Wrangel (general dos brancos).

Durante seu exílio, na França, embora vivendo em péssimas condições, Makhno e companheiros fundaram o Grupo de Anarquistas Exilados da Rússia e redigiram o Dielo Truda, jornal de difusão das novas proposições organizativas que eles fizeram a partir da experiência revolucionária na Ucrânia. Assim surge a ideia de “Plataforma” que trouxe uma contribuição fundamental para a organização do movimento anarquista, embora ainda fosse portadora de alguns vícios federalistas e sindicalistas.

Uma das partes mais avançadas da proposta foi a ideia de “União Geral dos Anarquistas” que estabelecia os princípios de responsabilidade coletiva e unidade estratégico-teórico-prática do movimento. Outra questão de suma importância é a discussão sobre a “defesa da revolução”, onde Makhno propôs a organização de um “Estado Maior” (no sentido militar) anarquista para coordenar as tropas em uma “unidade de comando e operações” do exército revolucionário.

Em 1932 escreve uma critica ao movimento anarquista da Espanha que antecipou de forma visionária a traição da CNT durante a guerra civil espanhola [30]:

No que diz respeito aos anarquistas revolucionários, acredito que eles têm o que pensar aqui, se eles devem ser poupados no futuro [seja na Espanha ou em outro lugar] de uma repetição desses mesmos erros: encontrar-se nos postos avançados da revolução sem acesso aos recursos necessários para a defesa dos ganhos revolucionários das massas contra as violentas investidas de seus adversários burgueses e socialistas autoritários (“On the history of the spanish revolution of 1931: and the part played by the left- and right-wing socialists and the anarchists”, Probuzhdeniye Nº 30-31, janeiro-fevereiro de 1933, pp. 19-23).

4. Considerações finais:


Nossa introdução formativa sobre o anarquismo buscou tratar de uma série de questões que consideramos centrais para a luta libertária de outrora e de agora. Buscamos contribuir com uma perspectiva ampla sobre as proposições libertárias para o movimento revolucionário do comunismo. Para finalizar, gostaríamos de enfatizar novamente que essa introdução serve para fins formativos e que um trabalho mais amplo e mais profundo sobre o anarquismo ficará para outra ocasião. Não discutimos a experiência espanhola de 1936, pois seria necessário uma avaliação mais detalhada que poderia se desviar um pouco da proposta de introdução. De todo o modo, vamos dedicar uma publicação especial sobre essa questão no futuro.

Notas:


[1] – Veja-se, por exemplo: “Surgimento e breve perspectiva histórica do anarquismo” de Felipe Corrêa, disponível em: <https://ithanarquista.wordpress.com/2013/01/17/surgperspectlivro/>.

[2] – As publicações de “Le Libertaire” estão disponíveis de forma digital e podem ser encontradas no site do seguinte link: <http://joseph.dejacque.free.fr/libertaire/libertaire.htm>.

[3] – LEUENROTH, Edgard. O Anarquismo e as Demais Correntes Socialistas. In: LEUENROTH, Edgard (Org.). Anarquismo – Roteiro de libertação social. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1963.

[4] – FRANCO, Victor. A defesa da nova organização social. In: LEUENROTH, Edgard (Org.). Anarquismo – Roteiro de libertação social. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1963.

[5] – “Anarquia”, obra apresentada no II Concurso Socialista, realizado no Palácio de Belas Artes de Barcelona, em 11 de novembro de 1889. Extraído de “Forjando un mundo libre”, disponível em: <https://www.academia.edu/11446478/Forjando_un_mundo_libre_-_Ricardo_Mella_Cea>.

[6] – KROPOTKIN, Piotr. “The Scientific Basis of Anarchy”. The Nineteenth Century. 1887, XXI, February, pp. 238-52. Disponível em português em: <https://communismolibertario.blogspot.com/2020/01/as-bases-cientificas-da-anarquia-1887.html>.

[7] – FABBRI, Luigi. Dittatura e rivoluzione. Ancona: Libreria editrice internazionale G. Bitelli, 1921. Versão digitalizada disponível em: <https://www.liberliber.it/mediateca/libri/f/fabbri/dittatura_e_rivoluzione/pdf/fabbri_dittatura_e_rivoluzione.pdf>. Capítulo sobre O conceito anarquista de revolução disponível em português neste link.

[8] – A Plataforma organizacional da União Geral dos Anarquistas (Projeto) – Grupo de Anarquistas Russos no Estrangeiro, Dielo Trouda. Disponível em: <https://ithanarquista.wordpress.com/nestor-makhno-archive/nestor-makhno-archive-portugues/plataforma-organizacional-portugues/>. Acesso em: 7 dez. 2021.

[9] – MALHADAS, Daisi; DEZOTTI, Maria Celeste Consolin; NEVES, Maria Helena de Moura (Orgs.). Dicionário grego-português: DGP. Cotia, SP, Brasil: Ateliê Editorial, 2006.

[10] – Puritanism and Liberty, being the Army Debates (1647-9) | Online Library of Liberty. Disponível em: <https://oll.libertyfund.org/title/lindsay-puritanism-and-liberty-being-the-army-debates-1647-9>. Acesso em: 9 dez. 2021.

[11] – HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: ideias radicais durante a revolução inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

[12] – HOLMES, Nathaniel. A sermon, preached before the Right Honourable, Thomas Foote, Lord Maior, and the right worshipfull the aldermen, sheriffs, and severall companies of the City of London. London: Thomas Roycroft, 1650. Disponível em: <http://name.umdl.umich.edu/A86504.0001.001>. Acesso em: 9 dez. 2021.

[13] – KROPOTKIN, Piotr. A Grande Revolução (1789-1793). Rio de Janeiro: Athena, 1935.

[14] – Les Idées, in: Le Libertaire, Journal du mouvement social, Nº 18, 26 out 1859. Disponível em: <http://joseph.dejacque.free.fr/libertaire/n18/lib02.htm>. Acesso em: 22 dez. 2021.

[15] – MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

[16] – Sobre essa questão, consultar: RUGAI. Ricardo Ramos. Proudhon anarquista? Estado, mercado e o pensamento econômico proudhoniano. UNIFESP/Campus Guarulhos, 2018. Disponível em: <https://www.encontro2018.sp.anpuh.org/resources/anais/8/1530840057_ARQUIVO_RUGAI _Ricardo_Proudhon.pdf.>. Acesso em: 09 dez. 2021.

[17] – PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é propriedade. Lisboa: Estampa, 1975.

[18] – KANT, Immanuel. Antropologia de um ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006.

[19] – VINCENT, K. Steven. Pierre-Joseph Proudhon and the rise of French republican socialism. New York: Oxford University Press, 1984. Para mais informações, consulte (em inglês), do mesmo autor: <https://www.ohio.edu/chastain/ip/proudhon.htm>.

[20] – NETTLAU, Max. História da anarquia: das origens ao anarco-comunismo. São Paulo: Hedra, 2008.

[21] – Esse trecho foi extraído de uma tradução parcial realizada pelo blog Humanaesfera, disponível em: <http://humanaesfera.blogspot.com/p/blog-page_29.html>.

[22] – PARIS, Jean-Michel. L’Humanitaire (1841): naissance d’une presse anarchiste? Paris: L’Harmattan, 2014. Com uma parte disponível em português nesse link.

[23] – MARX & ENGELS. As Pretensas Cisões na Internacional. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/marx/1872/cisoes/index.htm>. Acesso em: 22 dez. 2021.

[24] – BAKUNIN, Mikhail. Estatismo e anarquia. São Paulo: Imaginário; Ícon, 2003.

[25] – CAFIERO, Carlo. Anarquia e Comunismo. 1880. Disponível em: <https://humanaesfera.home.blog/anarquia-e-comunismo-1880-carlo-cafiero/>. Acesso em: 23 dez. 2021.

[26] – BAKUNIN, Mikhail. Los osos de Berna y el oso de San Petersburgo (1870). Disponível em: <https://miguelbakunin.wordpress.com/2008/03/24/los-osos-de-berna-y-el-oso-de-san-petersburgo/>. Acesso em: 3 mar. 2022.

[27] – BAKUNIN, Mikhail. Sociedade Internacional Secreta da Revolução – Programa provisório convencionado pelos irmãos fundadores (1864). In: FERREIRA, Andrey Cordeiro; TONIATTI, Tadeu Bernardes de Souza. De baixo para cima e da periferia para o centro: textos políticos, filosóficos e de teoria sociológica de Mikhail Bakunin. Niterói: Alternativa, 2014 (Volume I – Coleção Pensamento Insurgente).

[28] – BAKUNIN, Mikhail. Carta a Albert Richard. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/bakunin/1870/03/12.htm>. Acesso em: 14 abr. 2022.

[29] – BAKUNIN, Mikhail. Carta a Serguey Guennadevich Nechayev. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/bakunin/1870/06/02.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2022.

[30] – MAKHNO, Nestor. On the History of the Spanish Revolution of 1931. Disponível em: <https://ithanarquista.wordpress.com/nestor-makhno-archive/nestor-makhno-archive-english/on-the-history-of-the-spanish-revolution-of-1931-nestor-makhno/>. Acesso em: 14 abr. 2022.

Referências adicionais:


KROPOTKIN, Peter. A Lei e a Autoridade. In: Palavras de um revoltado. São Paulo: Imaginário; Ícone, 2005.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Ensaio sobre a gênese das sociedades de classe

Comparação entre distintas formas de organização urbana de um período relativamente próximo. Ilustração de Talianki extraída de: link. Ilustração de Uruque extraída de: link. Informações usadas como referência: TaliankiUruque.

Proposta de discussão: o objetivo desse texto é questionar toda e qualquer teoria teleológica da história que explica a gênese das sociedades de classe a partir de um processo inexorável do “progresso humano” (seja através de pressupostos baseados na “evolução cultural”, seja através de princípios a-históricos baseados no “desenvolvimento das forças produtivas”). Neste sentido, criticaremos as teorias neoevolucionistas e suas hipóteses uniformitaristas sobre população e “estresse escalar”, bem como o “pseudo-marxismo” da social-democracia e a fetichização das forças produtivas como “motor da história”. Essas ideologias não explicam as causas reais da emergência das classes sociais, apenas fazem uma apologia dos supostos benefícios coletivos que eles imaginam para a humanidade. Ao final deixaremos uma possível alternativa teórica para o estudo da gênese das sociedades de classe.

  • Observação: esse ensaio trata de questões mais teóricas e não tem a pretensão de ser um estudo aprofundado da questão. Desenvolveremos numa publicação futura uma perspectiva mais abrangente sobre esse assunto.

Textos relacionados publicados no blog: os dois textos que traduzimos sobre “comunismo primitivo” do grupo Emancipação (texto 1, texto 2), o texto que traduzimos de Bernhard Brosius sobre a revolução social na Anatólia Oriental que gerou a transição de Çayönü para Çatalhöyük (link), o texto que traduzimos de Manuel Fernández-Götz sobre os ciclos de mudança entre centralização e descentralização política que ocorreram durante o primeiro milênio a.C. nas sociedades eurasianas da Idade do Ferro (link) e o texto que traduzimos de Stella Souvatzi demonstrando que a complexidade social não implica necessariamente em hierarquia institucional (link).

Publicações atuais sobre o assunto: o trabalho de David Graeber e David Wengrow: The Dawn of Everything: A New History of Humanity (2021) e Power from Below in Premodern Societies: The Dynamics of Political Complexity in the Archaeological Record (2021) organizado por Tina L. Thurston e Manuel Fernández-Götz. O livro de Graeber e Wengrow se encontra disponível neste link. Ainda não temos acesso ao “Power from Below”. Também sugere-se a leitura de Cities before the State in Early Eurasia (2015) de Wengrow (link), o artigo de Wengrow e Graeber Como mudar o curso da história humana (2019) (link) e Killing the Priest-King: Addressing Egalitarianism in the Indus Civilization (2021) de Adam S. Green (link).

***


Introdução


Antes de mais nada, é necessário explicar o que significa rejeitar a teleologia na história, uma vez que, para explicar as causas reais que provocaram as transformações sociais na história humana, precisamos superar os modelos finalistas. Nesse sentido, o que negamos é toda narrativa baseada em uma estrutura discursiva que projeta as próprias expectativas sobre o processo histórico nos modelos explicativos. Esse tipo de discurso é baseado na imaginação de que o processo histórico é formado por “linhagens”, onde cada evento seria um “descendente” do que existe atualmente.

Em termos mais gerais, o modelo finalista de história (ou “teleologia na história”) é a historiografia que explicaria o processo histórico supondo um fim (telos) como “ponto de chegada” e uma “origem” como “ponto de partida”, onde seria necessário apenas demonstrar a conexão entre uma coisa e outra. No entanto, o ponto de partida é tão arbitrário quanto o fim, pois o modelo finalista condiciona de antemão a organização dos dados empíricos. Portanto, esse discurso simplesmente encaixa os eventos numa progressão linear, abstraindo quaisquer vias alternativas de desenvolvimento do processo histórico. Não importa a riqueza da diversidade empírica que esse discurso possa abranger, pois as explicações já foram estabelecidas de antemão no “quebra-cabeça” do modelo.

Consideramos que esses discursos teleológicos podem ser explicados pela necessidade das classes dominantes de justificarem a linhagem de sua dominação, tomando os interesses particulares de sua coletividade como se fossem os interesses gerais da humanidade. São uma forma de controle ideológico, mas isso não necessariamente ocorre de modo consciente. Na verdade, outra forma de manifestação desse discurso consiste nisso: a ilusão de que a justificação da dominação não seria uma apologia, mas sim a “própria realidade em si”. Nesse sentido, precisamente porque a classe dominante é socialmente constrangida a impor seu interesse particular como se fosse geral que eles tomam sua imaginação por realidade (enquanto não forem submetidos à crítica da própria existência, pelo antagonismo de classes que produz interesses contrários aos grupos sociais hegemônicos).

Podemos ilustrar a construção de um desses mitos de linhagem histórica usando como exemplo as “filosofias da história” que recorrentemente colocam a “civilização europeia” como o “destino” do apogeu humano e medem as outras culturas pelo grau de proximidade ou distância desse “ideal da humanidade”. Segundo a teoria de Claude-Adrien Helvétius (1715-1771), haveriam tipos humanos que se diferenciariam como se fossem faixas etárias da humanidade. Os africanos e caraíbas seriam “indolentes”, representando a inércia e a infantilidade, os europeus representariam a civilização em sua maturidade e os asiáticos representariam a decadência humana na velhice. Essa narrativa funcionava como justificação, na época de Helvétius, do colonialismo (BOULLE, 1988).

Portanto, precisamos nos questionar o seguinte: seria possível uma análise histórica capaz de superar os modelos finalistas? Se somos condicionados ideologicamente a reproduzir os interesses da classe dominante, como poderíamos romper com isso? Consideramos que podemos superar tanto a teleologia na história de forma mais geral (enquanto problema epistemológico), quanto as ideologias que surgem da hegemonia das classes dominantes.

Fazemos as seguintes ponderações gerais a esse respeito: 1) levar em consideração o conflito, o antagonismo de interesses como parte do processo histórico (superação do paradigma consensualista); 2) não abstrair a possibilidade de múltiplos desenvolvimentos históricos apenas porque uma das várias possibilidades se realizou (a convergência das séries causais não estava predestinada a ocorrer tal como ocorreu); 3) o estudo das formas de evolução social precisa ser baseado em pressupostos empíricos, pois, conforme Marx, nunca se chegará na explicação histórica “mediante o passaporte universal de uma teoria histórico-filosófica geral cuja suprema virtude consiste em ser suprahistórica” (1877).

Não obstante, usar “pressupostos empíricos” como base não significa que a explicação seja empirista. A diversidade empírica é apenas o conjunto dos dados disponíveis e levados em consideração pelo estudo. Esses dados não explicam nada por si só, os eventos que analisamos que devem ser explicados por nós. Nesse sentido, convém fazer uma discussão metodológica antes.

1. Breve comentário sobre o método da crítica da economia política:


A superação da teleologia na história é parte fundamental da “crítica da economia política”, pois o movimento anarco-comunista é baseado em uma crítica imanente do processo histórico contra as fetichizações transcendentes que se fazem deste. Assim, aquilo que ficou conhecido por “materialismo histórico” corresponde ao conjunto de princípios metodológicos de nossa análise.

No segundo Prefácio de “O Capital”, Marx afirma que a dialética (1996, p. 141): “apreende cada forma existente no fluxo do movimento”. Nesse sentido, para que possa ocorrer a apreensão do “movimento real”, é necessário “analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima” (MARX, 1996, p. 140). As conexões entre as formas e seus desenvolvimentos no fluxo do movimento real correspondem ao que Marx chamará de “concreto real” na “Introdução à contribuição à crítica da Economia Política” (uma introdução que ele não publicou conjuntamente com a Crítica em 1859, mas que foi publicada postumamente em edições futuras da Crítica).

O “movimento real” é considerado como o “concreto real” a ser reconstituído pelo pensamento como “concreto pensado”. Entre o processo do “concreto real” e o processo de reconstituição ideal (“concreto pensado”), é necessário um esforço ativo do intelecto para gerar a unidade sistemática do conhecimento. Como nosso objeto de estudo são as sociedades humanas, a unidade de análise consiste na produção social, que começa pela abstração da “produção em geral”, de modo que: “As determinações que valem para a produção em geral têm de ser corretamente isoladas de maneira que, além da unidade (…), não seja esquecida a diferença essencial” (MARX, 2011, p. 56 do pdf).

Nesse sentido, a cognição dialética da “crítica da economia política” não parte do pressuposto da divisão entre sujeito e objeto, onde o primeiro abstrai a realidade do segundo com “tipos ideais” previamente definidos. E também rejeita o contrário: um indutivismo dos dados empíricos do objeto. No primeiro caso, o processo histórico seria deduzido de um “modelo ideal”, no segundo caso se cairia no mito da “experiência direta” (como se o empírico tivesse conteúdo epistêmico intrínseco).

Como alternativa epistemológica e metodológica, Marx assume a seguinte perspectiva:

O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação (MARX, 2011, pp. 77-78 do pdf).

Enquanto “ponto de partida efetivo”, o concreto é o Real (ou “realidade efetiva”) como uma multiplicidade já constituída (independentemente de nossa apreensão). É o ponto de partida da intuição e da representação na medida em que gera o dado sensível e o fenômeno (essa efetividade é a razão do diverso qualitativo para qualquer cognição possível). A apreensão imediata do concreto real é: 1) a abstração indiferente às múltiplas determinações (dedução abstrata) e 2) as múltiplas determinações abstraídas de sua unidade concreta (indução abstrata). A superação dessa oposição é uma obra intelectual do pensar se apropriando do real. Isso significa que o concreto real não se apresenta tal como é efetivamente, mas sim como consequência separada das premissas e isso tanto na intuição como na representação, pois a apreensão na imediaticidade abstrai a “conexão íntima” que envolve as formas no “fluxo do movimento”.

O estudo do “materialismo histórico” consiste na superação da oposição entre o abstrato e o concreto, pois não parte da forma fragmentária dos dados (ausência de unidade teórica) nem da forma indiferenciada da abstração (teorização sem diversidade empírica).

O materialismo histórico, como apropriação do movimento imanente das formas sociais na história, é o concreto pensado: não designa diferenças conceituais (diferenças específicas de um termo médio), mas uma diferenciação interna do próprio conceito de produção social (como foi dito acima: a unidade e a diferença essencial na história). Isso decorre da atividade sensível do ser humano, ou seja: o gênero humano realiza na prática a produção de si na transformação do mundo e a cognição desse processo não é senão a autoconsciência de seu devir. Pensar o movimento real é: pensar a si na duração como processo de diferenciação (do gênero humano), como formas particulares emergentes da universalidade do conceito da diferença que designa a produção social.

Nesse sentido, a crítica imanente do materialista histórico é um processo de apropriação do real mediante a formalização teórica da unidade do objeto de estudo. Portanto, ocorre um co-engendramento do sujeito e do objeto cujo resultado é o retorno ao “ponto de partida efetivo” como: “uma rica totalidade de muitas determinações e relações”.

A totalidade do concreto pensado é um produto do pensamento, mas somente porque o concreto real é, ele mesmo, um produto real ao qual o pensar deve se apropriar: a totalidade real efetiva.

1. 1. Definição do objeto de estudo:


Nossa tarefa consiste no estudo da gênese real das sociedades de classe. Para apreender adequadamente o movimento real dessa gênese, é necessário uma apropriação do movimento histórico imanente das condições que produziram as classes sociais. Aquilo que buscamos analisar (a emergência da dominação de classe) não foi o “destino humano”, mas um resultado histórico de determinadas condições sociais que precisamos explicar.

2. Crítica dos modelos teóricos hegemônicos:


Os modelos teóricos hegemônicos da atualidade nem sempre são finalistas de forma explícita, alguns até imaginam que superaram a teleologia da história a partir de ideias mais sofisticadas sobre a evolução social. No entanto, enquanto houver uma concepção de transição progressiva entre formas sociais distintas, então haverá teleologia.

2. 1. Crítica da psicologia evolutiva como forma de neoevolucionismo:


A teoria do “estresse escalar” (JOHNSON, 1982) da psicologia evolutiva pressupõem algo como uma “proporção direta” entre variáveis do poder político com o crescimento populacional. Esses modelos afirmam que grupos humanos de até 150 indivíduos – ou seja, aproximadamente do tamanho de uma aldeia neolítica – não teriam necessidade de sistemas administrativos para controlar suas transações. As predisposições de nossa capacidade cognitiva social seriam suficiente para manter a coesão dos grupos por meio de interação face a face, pressão moral e redistribuição local de dívidas e obrigações. 

Geralmente o discurso funciona assim: “a partir do momento em que se supera as relações face a face da comunidade, surge um problema de escala que a sociedade precisa resolver, onde a alocação mais eficiente dos recursos só poderia se realizar mediante a centralização de poder em figuras de autoridade”. Portanto, estamos diante de um “mito de origem” que tem o seguinte postulado: a única via possível de resolver um problema de escala nas relações humanas é através de autoridades em instâncias centrais de comando. Aqui vemos também o apagamento dos conflitos a partir de um paradigma consensualista (que sempre aparece disfarçado de: “a sociedade precisa resolver, etc.”).

Não obstante, a existência de administração em escala de aldeia na pré-história não corrobora a ideia de que a burocracia é uma resposta funcional ao “estresse escalar”, tanto que existem pesquisas que indicam que: “a administração especializada é um fenômeno da aldeia, não um fenômeno urbano” (WENGROW, 2015, p. 9).

Se, por um lado, a burocracia pode surgir no nível de aldeia, por outro existem sociedades de larga escala sem administração burocrática, como no caso das formações urbanas da Cultura Cucuteni-Tripiliana (de 5500 a 2750 a.C.), localizadas nos interflúvios do Bug com o Dnieper na Ucrânia. Essas sociedades tinham os maiores assentamentos contíguos do mundo na época delas. Mas, diferentemente do que supõe os modelos teóricos usados para analisar sociedades complexas, não haviam classes nem autoridades centrais, uma vez que: “Bairros de elite e grandes cemitérios não podem ser encontrados em lugar nenhum. Faltam instalações de armazenamento central, assim como evidências de administração especializada ou outros sistemas de registro” (WENGROW, 2015, p. 13). Para mais informações sobre essa cultura, recomendamos esse ensaio: link.

É notável a incapacidade dos modelos teóricos do neoevolucionismo em lidar com essas evidências arqueológicas. A correlação entre crescimento populacional absoluto com centralização política é uma abstração sem fundamento. Essa ideia só existe atualmente para reproduzir uma ideologia pró-estatismo que busca justificar a necessidade de controle burocrático das relações humanas (embora, como dissemos acima, isso não implica que a ideologia seja conscientemente planejada para manipular, mas sim a consequência da afirmação de uma posição de classe).

Também não se sustenta a noção romântica [1] das sociedades caçadoras e coletoras do paleolítico (uma forma social de pequena escala) como restritamente igualitárias, pois temos evidências de possíveis desigualdades sociais no Paleolítico Médio-Superior a partir da descoberta de enterros suntuosos como: os do sítio arqueológico de Sungir [2], a “Dama Vermelha” de Paviland [3], da Dama de Saint-Germain-La-Rivière [4], o cemitério da Ilha do Veado Vermelho na Carélia [5] e a Dama Vermelha de El Mirón [6]. O estudo desses casos demonstra que pode haver autoridade em sociedades de pequena escala, mesmo que as relações socioeconômicas permaneçam baseadas em poucas distinções além das de parentesco, etárias e de gênero.

2. 2. Crítica do pseudo-marxismo da social-democracia e sua apologia do progresso:


Também é necessário criticar a “teoria da história” esquematizada pela social-democracia em nome de um pretenso “marxismo” que seria fundamentado na apologia do progresso. 

Segundo essa outra ideologia, a mudança dos modos de produção ocorreria pelo desenvolvimento progressivo das forças produtivas, pois as relações de produção se tornam obsoletas diante de novas forças produtivas que se desenvolveram no seio das relações antigas. Portanto, as relações de produção que eram progressivas se tornam um entrave que precisa ser derrubado para possibilitar a continuidade do desenvolvimento das forças produtivas (e assim teleologicamente).

Essa versão do “marxismo” surge de uma interpretação limitada de Marx baseada em apenas um parágrafo do Prefácio da “Contribuição da crítica da economia política” (1859), onde ele fala do “resultado geral” dos estudos dele até o momento da publicação daquela obra. Diga-se de passagem (e apenas por curiosidade) que Marx mudou de ideia ao se aprofundar nesse assunto, algo que podemos verificar nos manuscritos do “Velho Marx” sobre “etnologia”, na troca de cartas com Vera Zassulich e na “Carta ao Diretor da Revista Russa Otiechéstvennie Zapiski”.

Em suma, o esquema da social-democracia considera que a diversificação produtiva (que implica em certa divisão social do trabalho) da “revolução neolítica” teria desencadeado a necessidade de centralização política e apropriação privada econômica como meio de alocar socialmente os excedentes de produção. No entanto, isso não passa de uma ideologia apologética para justificar que a emergência da propriedade privada teria sido uma “fatalidade histórica positiva para o avanço da humanidade” (um absurdo).

Podemos citar um caso que é ilustrativo da falência metodológica da social-democracia: Göbekli Tepe, um sítio arqueológico considerado como “primeiro templo do mundo” construído há cerca de 11.500 anos, localizado em Şanlıurfa, sudeste da Anatólia. Essa edificação foi construída por reuniões sazonais de sociedades de caça e coleta que passaram a usar esse lugar como centro de encontro de vários grupos que ali cruzavam. Esse local tornou-se palco cerimonial de redistribuição dos produtos de diferentes sociedades entre si, além de servir de abrigo para membros enfermos se recuperarem. A descoberta de cubas de fermentação em Göbekli Tepe passou a apoiar a hipótese de que a agricultura foi um subproduto da necessidade de produzir bebidas alcoólicas para as celebrações periódicas. No entanto, não existem registros arqueológicos que indicam qualquer forma de desigualdade social entre as pessoas que participaram da construção (EMANCIPAÇÃO, 2020).

Não que a transição neolítica tenha sido um fenômeno homogêneo, pelo contrário, é justamente as distintas vias de desenvolvimento histórico que não podemos abstrair. Acontece que houveram outras formas de desenvolvimento da agricultura, com distinções tanto nas técnicas (o arado Eurasiano e a enxada Africana, por exemplo), quanto nas formas sociais emergentes. Assim, a Cultura Natufiana conduziu esse processo de forma diferente dos construtores de Göbekli Tepe. Essa cultura era formada pelos caçadores-coletores sedentários do paleolítico tardio que viviam na região do Levante, no oriente próximo, entre cerca de 12.500 e 10.200 anos atrás. Eles desenvolveram a agricultura durante a ocupação prolongada dos assentamentos, diante de condições ecológicas mais adversas para o nomadismo contínuo de outrora. No entanto, provavelmente eram não-igualitários e possivelmente tinham hereditariedade de status, embora não houvessem classes sociais no sentido de apropriadores privados dos meios de produção (FINLAYSON, 2020, p. 33).

3. Hipótese teórica sobre a gênese real das sociedades de classe:


Para explicar a gênese das classes sociais, é necessário definir o que se entende por “classe social”. Portanto, antes de analisar o processo por meio do qual emergem as sociedades de classe, vamos discutir de forma geral a natureza das relações de classe.

3. 1. Sobre as sociedades de classe:


Em uma discussão sobre o mundo antigo a partir do materialismo histórico, Geoffrey Maurice de Sainte Croix proporciona avanços na compreensão da natureza das sociedades de classe em geral. Portanto, vamos nos apropriar de suas contribuições e adicionar novas reflexões a partir delas.

Sainte Croix estabelece uma definição geral de classe (compreendida de forma relacional) e das classes em particular: “Classe (essencialmente uma relação) é a expressão social coletiva do fato da exploração, a maneira através da qual a exploração é corporificada em uma estrutura social” (SAINTE CROIX, 1981, p. 43). A exploração “é a apropriação de parte do produto do trabalho alheio” (idem). E uma “classe em particular” é um “grupo de pessoas em uma comunidade identificada por sua posição no sistema social de produção como um todo”, definidas acima de tudo “por sua relação (principalmente em termos do grau de propriedade ou controle) com as condições de produção (isto é, os meios e o [material de trabalho]) e com outras classes” (idem).

Ainda conforme Sainte Croix, “um traço essencial de uma sociedade de classes é que uma ou várias classes minoritárias sejam capazes de explorar, em virtude do controle que exerçam sobre as relações de produção (…) a outras classes mais numerosas” (SAINTE CROIX, 1981, p. 44). Esse grupo social se constitui, portanto, como uma classe “superior econômica e socialmente (e, portanto, com toda a probabilidade, também politicamente)” (idem).

O termo “luta de classes” é empregado pelo autor para expressar “a relação fundamental existente entre as classes (…) envolvendo essencialmente a exploração ou a resistência a ela” (idem). A luta “não supõe necessariamente uma ação coletiva por parte de uma classe como tal, e pode incluir ou não uma atividade no plano político, embora tal atividade política torne-se cada vez mais provável à medida que se agudiza a tensão da luta de classes” (idem). É provável que uma classe que explore outras “empregará contra elas formas de dominação política e opressão sempre que tenha essa possibilidade” (idem).

Podemos acrescentar aqui, de nossa parte (e aprofundando a análise), que todo fato social da exploração implica necessariamente no exercício de formas de domínio político e controle ideológico da parte da classe dominante e, portanto, interesse de classe sendo realizado coletivamente. Além disso, a emergência do Estado é um fato social dessa dominação, uma parte inerente desse processo, pois o Estado é a organização do monopólio do exercício socialmente sancionado da violência em um determinado território (WEBER, 1997). Essa organização não está assentada sob um interesse geral abstrato de uma determinada comunidade, mas sim no interesse da classe dominante (cujo domínio está pressuposto na reprodução social e, portanto, assume a forma ideológica de um interesse geral). Todo estatismo possui esse mesmo fundamento, mas existem diferenças historicamente específicas entre os Estados (principalmente entre Estados pré-modernos e os modernos).

E a consciência de classe não necessariamente implica na consciência do grupo socioeconômico como classe social, mas nas formas ideológicas pelas quais os grupos socioeconômicos adquirem consciência dos seus interesses coletivos no processo social de produção.

Nesse sentido, a luta das classes exploradas também não precisa ser autoconsciente para existir. A ideia de comunidade de bens do cristianismo primitivo em seu viés comunista, por exemplo, já expressa em alguma medida os interesses e objetivos específicos dos explorados na antiguidade.

Portanto, nas sociedades de classe o antagonismo de interesses implica na existência de extremos latentes na realidade social: a defesa reacionária da dominação e a possibilidade de luta revolucionária emancipatória. Assim, por exemplo, o fenômeno da Revolta de Espártaco na Roma Antiga não foi excepcional, mas condicionado pela realidade da luta de classes (veja-se: link).

3. 2. Hipótese de estudo sobre a transição para as sociedades de classe:


Do que foi exposto na subseção anterior, fica evidente que uma classe dominante é o grupo social que realiza a apropriação do sobreproduto do trabalho alheio por meio da apropriação privada das “condições objetivas da produção” (que recebem o nome geral de “meios de produção”). A exploração ocorre tanto por meios extraeconômicos (violência, controle ideológico), quanto por meios econômicos (restringir os meios de subsistência). Essa caracterização exclui as desigualdades sociais onde não se identifica a exploração no sentido econômico, ou seja: embora possa existir acúmulo de status, de prestígio, de poder, esses atributos não se traduzem em “controle sobre o excedente de produção” [7] (no sentido privativo que conhecemos).

A produção social anterior ao fato coletivo da exploração geralmente é baseada em “relações domésticas de produção” e/ou na “comunalidade”. Para ser mais preciso: a produção social se desenvolve sob uma economia doméstica que pode ser ampliada sob a forma de uma economia comunalista (mas isso não significa perder os traços domésticos, embora novas distinções baseadas na especialização e divisão do trabalho possam emergir). O pressuposto é a co-propriedade comunitária das linhagens e alianças que formam uma comunidade [8]. Nesse “modo de produção comunal”, as pessoas podem estar vinculadas entre si por um sistema de parentesco (que é formado por obrigações mútuas dos parentes e dos grupos de parentes vinculados por alianças matrimoniais) e/ou pelo pertencimento à coletividade englobante da comunidade como um todo (cuja coesão geralmente é formada por alguma identidade coletiva emulada sob formas religiosas que simbolizam a comunidade). Nestas condições, existem uma série de entraves que impedem a exploração alheia, mas não constrangem a desigualdade de status, de prestígio, etc., que são atributos pessoalizados dos valores culturais (até porque são relações de produção pessoalizadas).

Segundo demonstra os estudos antropológicos, as pessoas vinculadas entre si em “relações de parentesco” e/ou em “comunalidades” não podem romper suas obrigações mútuas e coletivas [9]. A comunidade como um todo impede sua autodissolução (SAHLINS, 1972). Mesmo se ocorre a produção de excedentes, como foi o caso das sociedades neolíticas, esses excedentes eram gastos em grandes celebrações ou mesmo destruídos pelo simples fato de não haver nenhum impulso interno de apropriação privada (é o caso do fenômeno da “burned house horizon” na Cultura Tripiliana, por exemplo [10]).

O limite da reprodução social comunitária são as relações territoriais, pois a terra é um monopólio natural e não pode ser ampliada a não ser com uma extensão maior de território. Esse pressuposto tem a capacidade de transformar progressivamente as relações entre as comunidades em relações belicosas em certas condições (como no caso do cenário belicoso da Amazônia Central pré-colonial). Assim se forma um sistema regional baseado em conflitos e alianças matrimonias (conexão exogâmica entre grupos sociais distintos). Esse tipo de interação pode, no máximo, produzir a organização social de Cacicados (quando chefes indígenas se tornam autoridades fixas na interação competitiva entre diferentes povos [SCHAAN, 2010]), mas os Cacicados não tendem necessariamente a se transformar em Estados, até porque um sistema regional desse tipo condiciona os povos a manterem um relativo equilíbrio de poder em situação de interação competitiva (MACHADO, 2006, p. 776) contra o qual são incapazes de romper (pois todos perseguem a vantagem e nenhum deles adquire a superioridade).

Somente em uma relação onde não há parentesco, não existe vínculo comunitário e nem rivalidade aproximadamente equitativa entre os povos que é possível de assentar a exploração (CAMPAGNO, 2006). Entra em jogo o papel das grandes migrações, pois somente com a invasão de um povo de outro sistema regional de outra área geo-histórica que é possível romper com o sistema de alianças, o vínculo comunitário e a capacidade relativamente equitativa diante dos demais.

A base material do limite da extensão da terra e seu monopólio como fundamento das relações belicosas, só pode gerar um movimento de “guerra de conquista” quando um povo geograficamente distante é deslocado para fora de seu território de rivalidades para explorar territórios longínquos.

Ilustração de um cenário histórico possível (aproximativo): A história das cidades mesopotâmicas começa por volta de 5500 e 4000 a.C., através de um povo não semítico que se estabeleceu nessa região. Atualmente eles são chamados de proto-eufrateanos ou ubaidianos (em função de Tell el-Ubaid, um sítio arqueológico da região). Considera-se que eles teriam vindo do norte da Mesopotâmia em busca de novas condições de vida (KRAMER, 1969) e que tiveram uma convivência e mistura pacífica com os Halafianos.

Os ubaidianos encontraram nos interflúvios dos rios Tigre e Eufrates uma série de diques produzidos por processos naturais da hidrografia da região do Levante que facilitaram a drenagem, o plantio e o cultivo através de uma agricultura rudimentar combinada com atividades de pesca e caça. Além da drenagem e o cultivo, os ubaidianos desenvolveram indústrias de tecelagem, couro, metais, alvenaria e cerâmica. Se disseminaram através de aldeias e pequenas cidades, construídas de adobe (dada a escassez de pedra da região).

No entanto, as condições relativas de prosperidade não perduram, uma vez que: “Pelo fim do Quinto Milênio antes de Cristo, algumas das hordas de nômades semitas que habitavam o deserto da Síria e a península da Arábia, a oeste, começaram a infiltrar-se nas povoações ubaidianas, ora como conquistadores com propósitos de pilhagem” (KRAMER, 1969, p. 33).

Se nossa hipótese estiver correta, a gênese das classes sociais ocorre nessa espoliação territorial que incidiu sobre os ubaidianos. Ela foi complementada pela invasão suméria que ocorre “por volta de 3.500 anos antes de Cristo, vindos provavelmente da Ásia Central, através do Irã” (idem).

Os Sumérios eram um dos povos nômades que viviam pelo planalto iraniano e no alto dos Montes Zagros, como sugerem as evidências linguísticas (OPPENHEIM, 1998, p. 50) e genéticas (AL-ZAHERY et al., 2011). Sugere-se que foram empurrados pela escassez de recursos até a região do Levante onde se estabeleceram. As cadeias montanhosas da região mesopotâmica garantia certa estabilidade política contra ataques de outros povos que faziam parte do território de rivalidades dos Sumérios e dava aos mesmos a capacidade de imperar sob os recursos da região.

Portanto, os dois processos de pilhagem que incidiram na Mesopotâmia indicam que é necessário o encontro de duas séries de causalidade: um povo territorializado e um povo desterritorializado (impulsionado por conflitos de um território de rivalidades) que toma o desenvolvimento histórico do primeiro (realizando uma reterritorilização complementar no processo de espoliação). Isso está de acordo com o que afirmaram certa vez Marx e Engels (2008, p. 70): “Não há nada mais comum do que a noção de que na história, até agora, tudo se reduziu ao ato de tomar. Os bárbaros tomam o império romano e, com esse fato, explica-se a passagem do mundo antigo à feudalidade”. De nossa parte, dizemos: os Semitas tomam os Ubaidianos que são tomados pelos Sumérios e, com esse fato, explica-se a passagem das sociedades sem-classe para as sociedades com classe (embora isso seja apenas uma analogia que aplicamos para uma área geo-histórica específica).


O fenômeno social da colonização está nas bases da dominação de classe. A espoliação de um território terá como butim as próprias pessoas derrotadas (as primeiras formas de escravização ocorrem geralmente por sequestro ou derrota na guerra – só depois de haver a transição para as sociedades de classe que começam as escravizações por dívida). Enfim, podemos dizer que a gênese das classes sociais emerge, portanto, de uma desterritorialização de um sistema regional por um povo com capacidade bélica suficiente para uma conquista. Geralmente esse povo provém de outra área geo-histórica e toma progressivamente as terras e pessoas da região.

Essa hipótese está mais de acordo com o Marx das Formen que dizia: “As dificuldades encontradas pelo sistema comunitário só podem provir agora de outros sistemas comunitários que ou já ocuparam o território, ou perturbam a comunidade em sua ocupação” (MARX, 2011, p. 390).

Portanto, nenhum papel sobrenatural deve ser dado para as forças produtivas como se elas tivessem uma função teleológica de fazer a história humana, nem tampouco podemos imaginar que as classes sociais surgem internamente de uma comunidade. A gênese das classes sociais ocorre quando o conquistador se torna a classe dominante que imperou sobre os derrotados.

Segundo Marcelo Campagno (2003), a gênese de um Estado é a imposição de um aparato de monopólio da violência para realizar a apropriação privada e o fundamento dessa relação só pode ser uma guerra de conquista na qual o butim espoliado é dominado.

  • Curiosidade: teóricos como Carl Schmitt também admitem que o Estado está fundado no estado de exceção, no arbítrio contra o inimigo público, que nada mais é, em nossa análise, do que uma organização da violência repressiva para manter os dominados sob dominação, constranger e impedir a rebelião (que eles chamam de guerra civil).

Consideramos que nossa hipótese está mais próxima do processo histórico real sem pressupor uma “teoria da história”, pois apreende do movimento imanente as condições de uma transformação qualitativa das relações sociais de produção: a gênese das sociedades de classe como fato social da espoliação e imposição da exploração do humano sobre o humano.

Notas:


[1] – Para uma crítica da romantização do “Éden primitivo”, veja-se a resposta de David Graeber e David Wengrow (2019) à Francis Fukuyama, Jared Diamond, Kent Flannery, Joyce Marcus e Ian Morris. Também recomendamos a crítica de Alain C. à John Zerzan (2000) e “A reinvenção da sociedade primitiva” de Adam Kuper (2008).

[2] – Descoberto na década de 1950 na Rússia, se atribui a uma sociedade de caçadores de mamutes. Um estudo de datação por radiocarbono com um esqueleto de um homem com idade estimada de 50-55 anos considera que se trata de um registro arqueológico de aproximadamente 30 mil anos. Veja-se: (NALAWADE-CHAVAN; MCCULLAGH; HEDGES, 2014).

[3] – Trata-se de um esqueleto humano parcial, denominado de “Dama Vermelha”, encontrado em Paviland, no sul do País de Gales por William Buckland em 1823. Um estudo de datação por radiocarbono atribui esse achado ao Paleolítico Superior. Veja-se: (JACOBI; HIGHAM, 2008).

[4] – Estima-se que a Dama de Saint-Germain-la-Rivière tenha 16.000 anos (período Magdaleniano Médio). Veja-se: (VANHAEREN; D’ERRICO, 2005).

[5] – As análises sugerem que a sociedade mesolítica que produziu sítio arqueológico de “Oleneostrovski mogilnik” era maior e mais diferenciada internamente do que se acreditava, com um sistema complexo de hierarquização social que incluía posições sociais hereditárias e distinções de classe econômica. Veja-se: (OSHEA; ZVELEBIL, 1984).

[6] – Também do período magdaleniano. Veja-se: (ROMÁN; RUIZ; JUAN-JUAN; BAÑÓN; STRAUS; MORALES, 2019).

[7] – Maurice Godelier sobre a sociedade sem classes (o povo Baruya) relativamente isolada na Nova Guiné: “un rasgo chocante de la organizacion social baruya es la ausencia entre ellos de la existencia de un lazo directo entre el poder y la riqueza. La riqueza no da poder y el poder no aporta riquezas” (GODELIER, 2005, p. 9).

[8] – Segundo Marx, a pessoa singular nessas comunidades (2011, p, 388): “relaciona-se com os outros como coproprietários, como tantas encarnações da propriedade comum”. Nesse caso, a comunidade “não aparece como resultado, mas como pressuposto da apropriação (temporária) e utilização coletivas do solo” (MARX, 2011, p. 388-389).

[9] – Talvez o caso mais notável seja a chefia indígena das terras baixas da América que Pierre Clastres (2004) analisou. Trata-se de uma chefia indígena que é esvaziada de poder coercitivo, funcionando como um portador dos interesses coletivos da sociedade que tinha o compromisso de expressá-los por meio da fala (que não precisava ser ouvida ou obedecida), a necessidade de ser generoso para com o restante da coletividade (o chefe produzia excedentes para os demais de sua comunidade) e ser liderança militar (único momento em que era obedecido).

[10] – Burned house horizon. In: Wikipedia. [s.l.: s.n.], 2022. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Burned_house_horizon&oldid=1065224441>. Acesso em: 24 mar. 2022.

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