domingo, 22 de dezembro de 2019

Baruch de Spinoza e a crítica da servidão afetiva

Resumo: neste texto vamos explorar os modos pelos quais o governo das paixões é realizado pelos Estados segundo as formulações de Baruch de Spinoza.

Introdução


Em primeiro lugar, recomendamos ao leitor que leia primeiramente nosso texto que trata da questão da socialidade como engendrada pelos afetos.

A pergunta central do presente texto é a seguinte: Quais afetos nos tornam passivos e obedientes? Essa pergunta parece ter ecoado na mente do filósofo holandês que pensou a afetividade humana em sua “ética geométrica”. Consideramos o estudo de suas perspectivas adequado no sentido de contribuir para uma crítica afetiva da autoridade e da dominação. Neste sentido, vejamos como podemos compreender essas questões a partir de sua obra. Começaremos pela sua definição de servidão e iremos relacioná-la com a questão da obediência à autoridade, em seguida abordaremos alguns modos de existência passionais.

Servidão


Spinoza chama de servidão “a impotência humana para regular e refrear os afetos” (Ética, IV parte, prefácio). Essa impotência significa que o agente não está sob posse de sua própria potência de agir, ou seja: não é causa adequada das consequências que envolvem sua existência (veja-se nosso texto sobre essa questão, disponível neste link).

A servidão pode se manifestar em distintos modos de existência passionais. Vamos tratar de alguns desses modos que envolvem os afetos-paixões.

Superstição


Spinoza considera, no prefácio de seu Tratado Teológico-Político, que a superstição está assentada na inconstância de ânimo e, portanto, na servidão às paixões e na credulidade, ou seja, no conhecimento confuso que envolve as imagens das coisas como aparecem para quem vive restritamente ao primeiro gênero de conhecimento (trata-se do conhecimento imaginário, sobre o qual já tratamos também, num texto disponível neste link). Usaremos algumas contribuições de André Menezes Rocha na interpretação dessa questão (ROCHA, 2008, pp. 81-99).

Para Spinoza, a “causa que faz surgir, que conserva e promove a superstição é, pois, o medo” (SPINOZA, 1986, p. 63, tradução livre). Com efeito: “os homens apenas sucumbem à superstição, enquanto sentem medo” (idem, tradução livre). Mas não se trata de qualquer medo. Trata-se do medo provocado por uma situação de adversidade na vida, o que leva as pessoas à incerteza quanto à permanência da ordem habitual das coisas com a qual se conformaram. Além disso, é necessário acrescentar que tal situação se intensifica durante os períodos de crise, portanto:
todos os objetos que [os homens] tenham adorado alguma vez sem fundamento, nada mais são que fantasmas e delírios de uma alma triste e temerosa; e, finalmente, que os adivinhos apenas instigam o máximo de respeito pela plebe e o medo máximo dos reis nos momentos mais críticos para um Estado (idem, tradução livre).
Neste caso, Spinoza está correlacionando a superstição com uma situação de instabilidade política (criticando abertamente, em certas passagens, a monarquia – e isso em 1670) e, ao mesmo tempo, coloca a superstição como um mecanismo que assegura a ordem que fora perturbada.

Durante o período de prosperidade, a situação de estabilidade de um Estado não é necessariamente mantida pela superstição e sim por certa “vaidade”:
Não há, com efeito, ninguém que tenha vivido entre os homens e não percebido que a maior parte deles, se estão em maré de prosperidade, por mais ignorantes que sejam, ostentam uma tal sabedoria que até se sentem injuriados se alguém quiser dar um conselho. Todavia, se estão na adversidade, já não sabem para onde se virar, suplicam o conselho de quem quer que seja e não há nada que se lhes diga, por mais frívolo, absurdo ou vazio, que eles não sigam (SPINOZA, 1986, pp. 63-64, tradução de Rocha).
Essa adaptação das pessoas aos períodos de prosperidade com o regime político vigente tem relação com a servidão para com a fortuna, no sentido de dependerem de seu status garantido socialmente, pois amam passionalmente sua posição social, uma vez que esta lhes garante privilégios. De modo que a ameaça de desagregação dessa condição lhes causa o medo da perda de suas vantagens pessoais e, portanto, reagem com desespero tanto mais as coisas tornem-se instáveis e de futuro incerto.

A condução das massas pela superstição é feita através da ambivalência do par esperança/medo. No entanto, a correlação entre esperança e medo ultrapassam a forma da superstição e são a base de qualquer Estado para Spinoza. Neste sentido, devemos avançar na análise para além da questão particular da superstição.

A Esperança nas Recompensas e o Medo das Punições


Antes de prosseguirmos, gostaríamos de definir melhor o que se entende por “medo” e “esperança”, assim como “segurança” e “desespero” segundo Spinoza (Ética, III parte, prop. 18, esc. 2):
Efetivamente, a esperança nada mais é do que uma alegria instável, surgida da imagem de uma coisa futura ou passada de cuja realização temos dúvida. O medo, por outro lado, é uma tristeza instável, surgida igualmente da imagem de uma coisa duvidosa. Se, desses afetos, excluímos a dúvida, a esperança torna-se segurança e o medo, desespero, quer dizer, uma alegria ou uma tristeza surgida da imagem de uma coisa que temíamos ou de uma coisa que esperávamos.
A organização de determinadas sociedades podem estar baseadas em regras que se valem desses afetos para serem cumpridas. Neste sentido, quando alguém sente-se obrigado a agir de tal ou qual forma, o fundamento dessa obrigação pode ser o medo de uma punição e/ou a esperança de uma recompensa. Em outras palavras: a sanção que acompanha o demérito e a compensação que acompanha o mérito, na medida em que essa distinção das ações é feita por valores consagrados socialmente.

Portanto, podemos compreender que o medo das punições e a esperança nas recompensas podem aparecer correlacionadas de diversas formas nas sociedades. Com a mobilização desses afetos, as autoridades sociais esperam como resultado a obediência das pessoas em suas condutas, de modo que assumam a normatividade da ordem social vigente.

Por exemplo: o Estado cria um código penal para punir as transgressões, não simplesmente para exercer a punição em si, mas, sobretudo, porque espera-se que as pessoas obedeçam à Lei por temerem as consequências da desobediência. Desta forma, a “obediência civil” é uma “condução das condutas” das pessoas que vivem numa sociedade que possui um conjunto de leis regidas pela autoridade do Estado (recomendamos o texto de Kropotkin acerca das relações entre Lei e Autoridade). No caso específico da “penalidade”, a obediência tem como afeto determinante o medo da punição e a esperança surge como consequência: “tenho esperança de que não serei punido se obedecer”.

Em objeção a esse modo de governo, Spinoza afirma em seu Tratado Político que “é a servos e não a homens livres que se atribuem prêmios de virtude” (ESPINOSA, 2009, p. 13). Em outras palavras: uma ação que não é autodeterminada na sua prática não tem como causa adequada a natureza do agente e sim uma causa exterior, sendo o agente apenas causa parcial (inadequada). Disso resulta que, uma vez que, para Spinoza, a liberdade não é “contingência de escolha” (livre-arbítrio), não se pode chamar de livre aquele que faz algo por esperança de uma recompensa, assim como é nítido que quem age por medo da punição também não é livre. “Porque a liberdade é uma virtude, ou seja, uma perfeição: por isso, tudo quanto no homem é sinal de impotência não pode ser atribuído à sua liberdade” (ESPINOSA, 2009, p. 15).

Virtude e Potência: crítica aos afetos de obediência


Em uma carta escrita em resposta ao médico cartesiano Velthuysen que havia acusado Spinoza de fatalismo, encontramos um argumento que reconhece a “virtude” como possuindo valor intrínseco (como os estoicos faziam), vejamos: “a recompensa da virtude é a própria virtude, assim como a punição da loucura e da fraqueza é a própria loucura” (SPINOZA, 1988, p. 287). A punição e a recompensa aqui aparecem como consequências intrínsecas das ações e não como imposições exteriores por meio de juízos de valor.

Mais adiante ele faz uma caricatura de Velthuysen para expor seu pensamento:
De fato, como [ele] não encontra nada que lhe agrade em virtude e no entendimento, ele preferiria viver por impulso de seus afetos, se não fosse impedido por uma coisa: temer a punição. Portanto, ele se abstém de ações más e cumpre os preceitos divinos como um escravo, isto é, de mal grado e com um espírito hesitante, e por esse serviço ele espera ser recebido por Deus com dons muito mais agradáveis do que o próprio amor divino, e tanto mais quanto mais resistência e menos atração ele sente em relação ao bem que realiza. Por isso ele acredita que todos aqueles que não se contêm com esse medo vivem descontroladamente e abandonam toda a religião (SPINOZA, 1988, pp. 287-288, grifos nossos).
Destacamos no texto uma passagem que pode soar meio confusa, mas o seu significado está associado à concepção segundo a qual os prazeres inerentes à vida devem ser reprimidos se quisermos ser recompensados no futuro pela nossa dor presente (seja numa espécie de paraíso ou num momento longínquo de nossa vida). No caso de um certo tipo de ideia religiosa, quanto mais sofrimento e esforço ascético do sujeito envolverem suas atividades na Terra, tanto mais próximo da redenção a pessoa se torna.

Entre amor e ódio: servidão de si


Continuaremos nossa exposição considerando apenas os afetos-paixões, isto é, aqueles afetos das quais não somos causa adequada. Neste sentido, não podemos confundir, por exemplo, o afeto de amor aqui descrito com aquele de segundo ou terceiro gênero abordados por Spinoza em outras partes de sua Ética. Estamos, nesse caso, nos referindo aos afetos-paixões que são acompanhados do primeiro gênero de conhecimento.

Segundo Spinoza: “O amor nada mais é do que a alegria, acompanhada da idéia de uma causa exterior, e o ódio nada mais é do que a tristeza, acompanhada da idéia de uma causa exterior” (Ética, III parte, prop. 13, esc.). Com efeito, quando Spinoza afirma que amor e ódio estão “acompanhados da ideia de uma causa exterior”, ele quer dizer que: “Os modos do pensar tais como o amor, o desejo, ou qualquer outro que se designa pelo nome de afeto do ânimo, não podem existir se não existir, no mesmo indivíduo, a idéia da coisa amada, desejada, etc.” (Ética, II parte, ax. 3). Além disso, “aquele que ama esforça-se, necessariamente, por ter presente e conservar a coisa que ama. E, contrariamente, aquele que odeia esforça-se por afastar e destruir a coisa que odeia” (Ética, III parte, prop. 13, esc.).

Não obstante, para se ter esse gênero de paixão e imaginação, é necessário que o modo de existência considerado tenha amado ou odiado por acidente (Ética, III parte, prop. 15), portanto “Simplesmente por termos considerado uma coisa com um afeto de tristeza ou de alegria, afeto do qual essa coisa não é a causa eficiente, podemos amá-la ou odiá-la” (Ética, III parte, prop. 15 cor.) e, consequentemente, “pode ocorrer que amemos ou odiemos certas coisas sem que saibamos a causa, mas apenas por simpatia (como se costuma dizer) ou por antipatia” (Ética, III parte, prop. 15, esc.).

As paixões de amor e de ódio podem ser traduzidas, respectivamente, pelas expressões “vício” e “rancor”. Em síntese: essas paixões conduzem afetivamente o agente a ir neste ou naquele sentido para ter presente e conservar o objeto do amor ou, contrariamente, afastar e destruir o objeto de ódio. Desta forma, o modo de existência determinado por estes afetos-paixões é conduzido a agir pela dependência da coisa amada ou pela aversão (Ética, III parte, def. 9) à coisa odiada, por causas exteriores das quais não possui controle e nem compreende.

Assim, quando se ama passionalmente, confunde-se a causa do efeito de alegria com a imagem da coisa que estava presente no momento do afeto de alegria e, portanto, a mente imagina essa existência como sendo a causa exterior dessa alegria. Inversamente: quando se tem o afeto-paixão de ódio, confunde-se a causa do efeito de tristeza com a imagem da coisa que estava presente no momento do afeto de tristeza e, portanto, a mente imagina essa existência como sendo a causa exterior dessa tristeza.

A servidão, nestas condições, se refere a um modo de agir condicionado com essa identificação das coisas amadas e odiadas como se fossem, respectivamente, “boas em si” ou “más em si”. A imaginação não é capaz de excluir a forma da imagem, isto é, não dissocia o afeto, que é uma variação da existência do afetado e não do afetante, da ideia daquilo pela qual o existente foi afetado.

Uma das formas com as quais foi possível organizar afetivamente a sociedade para manter a ordem social vigente usando esses afetos-paixões está no “amor conjugal”, como menciona Andrade (2016, pp. 256-257):
A aposta no amor conjugal como fonte de sentimentos sociais implica (…) uma valorização do casamento e uma nova partilha das funções e virtudes dos gêneros envolvidos. O casamento se converte em sancionador moral do laço amoroso, passando a ser fundado no afeto e na amizade recíprocos. (…) Dentro do matrimônio, é atribuída à mulher a responsabilidade por manter o afeto aceso. Cabe a ela moldar a selvagem atração sexual em uma paixão leve e gentil, governando o homem por meio de habilidades como compreensão, simpatia e maturidade. (…) O casamento, a arte de governo gentil e o laço afetivo familiar convertiam-se, assim, em substitutos da pastoral religiosa e do poder soberano na constituição de uma sensibilidade apropriada a um corpo social autônomo, mas ainda estruturado em estamentos.

Exemplo de afeto libertário: a modéstia de Spinoza


Antes de prosseguir, gostaríamos de retomar a seguinte ideia: os afetos-paixões, isto é, aqueles das quais o ser humano não é causa adequada, quando não são refreados, conduzem-nos à servidão. Não obstante: “Um afeto não pode ser refreado nem anulado senão por um afeto contrário e mais forte do que o afeto a ser refreado” (Ética, IV parte, prop. 7). No entanto, não vamos abordar (não neste texto) como podemos refrear os afetos que geram servidão com outros afetos. Vamos apenas mencionar algumas questões relacionadas a afetos que surgem naqueles modos de existência que já estão sob posse de sua própria potência de agir.

Quando alguém age sob posse de sua potência de agir, ou seja, quando alguém é causa adequada daquilo que põe em prática, essa pessoa tem uma relativa liberdade naquilo que faz, pois autodetermina sua ação. Neste sentido, a pessoa singular é causa adequada de seu próprio esforço (conatus) realizado em suas ações. Se na servidão tínhamos “afetos-paixões”, na afetividade libertária temos “afetos-ações”.

Para nosso filósofo holandês, o desejo de fazer o bem a um outro, quando surge daqueles que vivem sob a condução da razão, é chamado de piedade (Ética, IV parte, prop. 37, esc. 1). Este desejo se expressa como um momento da generosidade do agente e tem por objetivo favorecer o outro (Ética, IV parte, prop. 59, esc.).

Este modo de se portar diante do outro é ativo e difere daquelas ações que realizamos por causa de nossos afetos-paixões. Ele exige de nós uma alegria imanente em nossas ações (e não a busca pela alegria ou afastamento do sofrimento). Vamos comparar a modéstia com outros afetos-paixões para nos fazer compreender.

Considerando que “podemos definir [a comiseração] como a tristeza originada da desgraça alheia” (Ética, III parte, prop. 22, esc.) e que a “benevolência é o desejo de fazer bem àquele por quem temos comiseração” (Ética, III parte, def. 35 dos afetos), a origem triste e impotente desse outro modo de agir (por meio da benevolência) não nos conduz à nossa libertação da servidão, mas uma partilha gregária de nossa miséria, uma comunhão de nossas tristezas.

A modéstia, postura que surge da piedade, é um modo da ação que visa o bem do outro gratuitamente, pois, segundo Spinoza: “quem deseja ajudar os outros, por palavras ou por atos, para que, juntos, desfrutem do supremo bem, buscará, sobretudo, ganhar-lhes o amor, e não, em vez disso, provocar-lhes a admiração, a fim de que uma doutrina leve a marca do seu próprio nome, nem lhes dará, em geral, qualquer motivo de inveja” (Ética, IV parte, Capítulo 25).

Portanto, a modéstia não é uma forma de humildade, porque não se refere a uma tristeza emulada (Ética, III parte, def. 26 dos afetos) e não se confirma na fraqueza coletiva de um modo gregário de existência (que pode ser expressa da seguinte forma: “ajudai-vos uns aos outros porque somos todos pecadores”).

Entendemos, portanto, que a modéstia é uma ação gratuita, porque está baseada na potência coletiva e na busca pela felicidade libertária da comunidade, diferentemente da impotência mútua dos afetos tristes que nos conduz à conformidade miserável da condição de servidão e que nos leva a crer na superstição (num “bem maior” que justificaria essa condição infeliz).


Referências:


ANDRADE, Daniel Pereira. O Governo dos Sentimentos Morais no Século XVIII. Dados, Rio de Janeiro, v. 59, n. 1, pp. 233-270, mar. 2016.

ESPINOSA, Benedictus. Tratado Político. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

ROCHA, André Menezes. Espinosa e o conceito de superstição. Cadernos de Ética e Filosofia Política 12, 1/2008, pp. 81-99.

SPINOZA, Baruch. Carta 43. In: _____. Spinoza: Correspondencia. Madrid: Alianza, 1988.

_____. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

_____. Tratado teológico-político. Madrid: Alianza, 1986.

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