quarta-feira, 16 de novembro de 2022

A continuidade da polarização burguesa


Proposta: O objetivo desse texto é: 1) traçar uma linha de desenvolvimento de nossos posicionamentos a partir de abril de 2020 até o presente momento, como tentativa de síntese e avaliação de nossas posições; 2) fazer considerações sobre o processo da farsa eleitoral e suas implicações; 3) analisar o prolongamento da polarização burguesa do eleitoralismo no antifascismo; 4) propor a ruptura revolucionária com a polarização burguesa.

1. Introdução: uma genealogia de nossas posições


Consideramos fundamental retomar as discussões desenvolvidas em nosso blog desde meados de 2020. Embora nossas posições e questionamentos estivessem se desenvolvendo muito antes dessa data, vamos partir do que efetivamente publicamos através dessa plataforma. Essa retomada serve de avaliação acerca do que pode ter se confirmado relativamente ao que discutíamos e o que devemos reavaliar de outra forma ou de modo mais aprofundado daqui para frente.

Em 10 abril de 2020 publicamos um pequeno texto sobre as “possíveis implicações sociais do novo coronavírus” na luta de classes. Em linhas gerais, nossa análise foi a seguinte: a chamada “guerra contra o coronavírus” indicou uma maior convergência de interesses da burguesia a partir de uma dissimulação de combate unido à pandemia (para disfarçar o verdadeiro inimigo público: o proletariado). A situação brasileira, entretanto, se desenvolveu como agravamento da luta interburguesa. Havíamos indicado a polarização burguesa sobre uma falsa oposição entre “salvar vidas” ou “salvar a economia” que implicava em: 1) enquadrar o proletariado no “ode à ciência” das medidas policialescas de controle social; 2) agravar a concorrência da força de trabalho no mercado com um chamado para “salvar a economia”. De todo o modo, a implicação que considerávamos mais notável foi a tendência para uma retomada das: “formas de intervenção estatal do pós-segunda guerra em matéria de políticas econômicas anticíclicas, acompanhadas de um regime de ‘segurança social’ mais militarizada do que nunca” (Communismo Libertário, 10 de abril de 2020). Essa tendência talvez possa ser confirmada com a vitória eleitoral da chapa de Lulalckmin (algo que comentaremos mais adiante).

Em 26 de abril de 2020 publicamos uma continuidade nas nossas avaliações, buscando demonstrar como pensávamos que poderia ocorrer a evolução da política econômica da burguesia no Brasil e no mundo (Communismo Libertário, 26 de abril de 2020). Mencionamos que nos dois anos anteriores (2018-2019), o Fundo Monetário Internacional (FMI) já alertava acerca de uma possível crise financeira global. A situação que já se antecipava era de desaceleração generalizada do crescimento econômico devido à crescente expansão dos endividamentos, tanto corporativos quanto públicos. Embora com o crescimento econômico ameaçado, o “receituário” do FMI ainda era a política fiscal de austeridade e a linha de “livre comércio” de acordo com a reunião do G20 do ano de 2019 (políticas econômicas chamadas de “neoliberais”), tal como havia ocorrido pós-crise de 2008.

Ainda de acordo com nossa publicação, citamos um relatório do FMI publicado em 14 de abril de 2020, onde se previa uma retração de 3% na economia global. Uma variação negativa de 3% do PIB em média global implica em um impacto 300% superior à queda que ocorreu com a crise de 2008/2009 (que foi de 0,6%). Diante desse quadro, o próprio FMI apresentou uma ruptura evidente em termos de orientação das políticas econômicas. As seguintes medidas foram exigidas pelo órgão do capital financeiro: 1) os governos devem gastar “o que for necessário” para manter a sobrevivência das pessoas e 2) “o FMI aponta a necessidade de os Estados participarem ativamente para proteção da população e empresas” (defende explicitamente uma política intervencionista). Se desenhava o cenário para uma possível atualização do New Deal (sob novas condições e com um conteúdo adaptado à essa nova situação histórica).

Enfatizamos que o fato de Braga Netto ter assumido o ministério da Casa Civil com a saída de Onyx Lorenzoni poderia estar relacionado com essa guinada (e a promoção do programa “Pró-Brasil” como indício de uma mudança de política econômica). Imaginávamos, equivocadamente, que Paulo Guedes poderia ser o próximo ministro que poderia sair para garantir a guinada na política econômica bolsonarista, mas estávamos profundamente enganados (até porque não foi necessário, pois o próprio Guedes mudou convenientemente seus posicionamentos nesses anos pandêmicos). Contudo, sugerimos que: “após o período de recuperação através de políticas econômicas anticíclicas, a dinâmica do ‘ajuste fiscal’ (pacotes de austeridade) voltará de forma brutal para cobrar custos contraídos nesse momento, e a conta vai vir com juros” (algo que só poderemos confirmar mais numa próxima conjuntura, mas que o próprio FMI já parece antecipar atualmente, algo que também discutiremos depois).

Também traduzimos e publicamos o texto: O contágio da revolta se espalha: lutas em todos os lugares! (28 de junho de 2020) – Proletarios Internacionalistas, uma vez que os posicionamentos adotados nessa publicação convergiam com os nossos e, mais do que isso, eles chegavam em conclusões mais profundas (que passamos a assumir também). Depois de um panorama e uma avaliação crítica da luta de classes global na pandemia, eles enfatizavam que a nova normalidade deveria ser a revolta e que a nova onda de contágio precisava ser a luta, uma vez que: “A única alternativa ao presente e ao futuro (…) é a resposta internacional e revolucionária que o proletariado tenta concretizar, mas que precisa se afirmar como força unitária organizada que se opõe ao poder burguês” (Proletarios Internacionalistas, 28 de junho de 2020). Essa diretriz revolucionária surgiu contrariamente às medidas policialescas do chamado estado de alarme da pandemia e também em antagonismo direto contra o agravamento da exploração e massacre do proletariado em prol de “salvar a economia”, uma vez que para nossa classe não haveria isolamento senão das lutas (enquanto continuávamos aglomerados em locais de trabalho) e não haveria economia senão nos cortes de custos empresariais (que atingem diretamente a força de trabalho, levando ao rebaixamento salarial e desemprego em massa). A única saída era, como sempre foi, a organização autônoma da luta proletária através do movimento comunista como direção revolucionária.

Em 23 de novembro de 2020, seguindo as diretrizes adquiridas da experiência da luta de classes, comentamos sobre como o contágio da revolta havia se espalhado no Brasil também: A revolta da classe proletária: a incidência da luta internacional no território brasileiro (Communismo Libertário). Denunciamos como a revolta contra os apagões no Amapá havia sido brutalmente reprimida por um governo de oposição ao bolsonarismo (que havia emitido um decreto no dia 17 de novembro para proibir a realização de protestos). Naquela ocasião, o governo de Waldez Góes do Partido Democrático Trabalhista (PDT) usou a bandeira do “salvar vidas” e “ficar em casa” como bastião da repressão policial: “Contra as manifestações se acionou uma colossal repressão com requintes de crueldade. Por exemplo: em um ataque policial a um protesto que ocorria no bairro pobre de Congós, a polícia atirou no olho de um adolescente de 13 anos que corre risco de perder a visão” (Communismo Libertário, 23 de ovembro de 2020).

Destacamos também que “haviam muitos que se preocuparam mais com a interrupção do processo eleitoral em curso nos municípios do que com a situação de penúria provocada pela crise” (Communismo Libertário, 23 de novembro de 2020), portanto as eleições municipais (que atuavam como polarização burguesa eleitoral) também serviram de justificativa para impedir a ação autônoma do proletariado (através da repressão).

Além disso, outra incidência da revolta proletária no território brasileiro que comentamos e participamos foi a luta contra o racismo capitalista em ocasião do assassinato, em véspera do dia da consciência negra, de um homem negro por seguranças do Carrefour. Apesar de não termos participado da primeira manifestação (realizada no dia da consciência negra), conseguimos informações importantes de que muita combatividade e ação direta foi realizada a despeito das burocracias eleitorais da esquerda que buscavam impedir que o proletariado em revolta destruísse o estabelecimento (e isso foi em vão, pois conforme alertava a mídia burguesa dois anos atrás: Após protestos, Carrefour amanhece com grades e portões quebrados e muita destruição).

Diante desse quadro de revoltas, afirmamos que nosso compromisso era o seguinte:

A tarefa das minorias conscientes e autônomas do proletariado é incentivar a revolta, radicalizando-a para direcioná-la em função de nossos interesses de classe. Devemos denunciar o oportunismo de esquerda que busca privilegiar a agenda eleitoral. Precisamos declarar solidariedade para nossos companheiros do Amapá que já estavam lutando contra as iniquidades desse sistema antes desse outro foco de revolta se iniciar. É necessário repetir mais uma vez: a conjuntura de revoltas é internacional e não um fenômeno local brasileiro  (Communismo Libertário, 23 de novembro de 2020).

Foi com esse espírito que participamos da segunda manifestação contra o episódio de racismo capitalista no Carrefour (numa outra loja do mesmo município) e publicamos o texto mais lido de nosso blog: Análise de um protesto contra o Carrefour (Communismo Libertário, 25 de novembro de 2020). Em resumo: todos que faziam campanha eleitoral para a candidatura do PCdoB nas eleições municipais se distanciaram ao máximo do Carrefour e conduziram suas massas para longe de qualquer atrito com os policiais, enquanto aqueles que desejavam mais combatividade foram largados para as garras da repressão. A conivência, implícita ou não, demonstrava mais uma vez como a repressão e os partidos de esquerda hegemonizados pela socialdemocracia se unificam contra qualquer tentativa de ruptura com a polarização burguesa eleitoral.

Depois de um hiato de análises propriamente nossas no blog, voltaríamos a publicar mais um texto discutindo a conjuntura da luta de classes especificamente brasileira em 15 de agosto de 2021: As vicissitudes da luta de classes brasileira na pandemia capitalista. Nesse texto, buscávamos desenvolver um posicionamento síntese tal como fazemos agora. Analisamos o aumento considerável de revoltas proletárias mundialmente como confirmação das teses dos Proletarios Internacionalistas. Discutimos como essa convergência de revoltas difusas, embora sem consciência de classe e organização autônoma do proletariado as dirigindo, deixava a burguesia em alerta, pronta para aumentar consideravelmente os níveis de repressão contra as manifestações (tanto juridicamente, quanto efetivamente com suas forças policiais – e também a partir de figuras políticas que pudessem promover a conciliação de classes ou de outras que pudessem garantir uma guinada reacionária).

Reafirmamos as teses de Chaung e Barbaria sobre como as pandemias são produzidas diretamente pela economia capitalista, de modo que não são efeitos externos (em economês: externalidades) ao capitalismo. E seguida, promovemos uma “discussão sobre a mortificação do proletariado segundo a lei geral da acumulação capitalista” (Communismo Libertário, 15 de agosto de 2021). Em síntese, durante uma crise:

as exigências de valorização são acentuadas e o capitalismo entra num período destrutivo onde é necessário se desfazer deliberadamente de uma parte de sua composição para manter a “proporção adequada” [entre capital constante e capital variável]. Uma vez que compreendemos que os capitalistas tratam todo o contingente de força de trabalho como mero capital variável, fica evidente qual parte da composição orgânica deve perecer no processo: é o proletariado que arca com os custos desse modo de produção. Em outras palavras: as vidas proletárias são literalmente sacrificadas para a manutenção da acumulação capitalista (Communismo Libertário, 15 de agosto de 2021).

Nessas condições, afirmamos que “um não enfrentamento ativo de nossa classe apenas é conivente com esse processo”. O modo de produção não cessou de aglomerar proletários nos seus locais de trabalho e, mesmo assim, as burocracias de esquerda da socialdemocracia os mandavam “ficar em casa”. E quando ocorram manifestações contra essa tirania, os ideólogos cínicos responsabilizavam o proletariado pelo aumento no número de casos e de mortes!  O discurso sobre “ficar em casa” nada mais era do que um eufemismo para: “morra sem perturbar a ordem social!”.

No entanto, o ano de 2021 precedia o ano eleitoral de 2022, então os candidatos a gerir o Estado sentiam a necessidade de canalizar todo e qualquer descontentamento a seu favor. Assim, a socialdemocracia mudou de forma oportunista sua tática e seu discurso nesse período, na medida em que o governo Bolsonaro estava cada vez mais mergulhado em escândalos e visto como o responsável de um genocídio (se bem que isso é superficial, uma vez que as mortes não são responsabilidade de um governo em particular, mas o resultado direto do modo de produção capitalista como um todo). Mas a estratégia socialdemocrata permanecia a mesma: cooptação da revolta para uma frente eleitoral. Neste sentido, a passagem do “fique em casa” para o “Fora Bolsonaro” expressou simplesmente essa política eleitoral da socialdemocracia para impedir a todo o custo uma revolta autônoma do proletariado.

No caso do “Fora Bolsonaro”, alertávamos para uma situação delicada: por um lado, deveríamos superar uma visão estreita de que tudo aquilo não passava de “massa de manobra” dos partidos eleitorais, por outro nós considerávamos importante rejeitar qualquer visão romântica que vislumbrava um “despertar” da luta “contra o genocídio”. No primeiro caso, se ignorava que o campo socialdemocrata estava deliberadamente cooptando a energia de uma revolta que estava para estourar a qualquer momento e, portanto, a antecipação da socialdemocracia foi um desvio dessa disposição das forças e não o seu sentido originário. No segundo caso, havia o risco de ignorar que a socialdemocracia estava se saindo exitosa nisso, deixando de lado a necessidade de ruptura com essa cooptação.

Em síntese, afirmávamos que:

O enquadramento da revolta contra as mortes, o aumento do custo de vida, o desemprego e precarização generalizada sob o slogan do “Fora Bolsonaro” corresponde, mais uma vez, à domesticação do proletariado através da via institucional burguesa (seja na remota e improvável possibilidade de impeachment, seja através do desgaste do governo enquanto se promove um candidato da social-democracia como “salvador da pátria”). Essa orientação que a social-democracia busca estabelecer vem acompanhada da ideia absurda de que os milhões de mortos na pandemia são mera consequência dá “má gestão” do Estado. Com essa ideologia eles obscurecem a própria natureza do sistema capitalista que está por trás do genocídio e contribuem para inocentar a classe dominante (Communismo Libertário, 15 de agosto de 2021).

A avaliação de nossa tentativa de ruptura ou implosão das manifestações do “Fora Bolsonaro” atualmente é a seguinte: agimos aquém do que poderíamos e deveríamos fazer, uma vez que não conseguimos promover mais distúrbios que perturbassem a ordem pública das manifestações e incitassem as massas à revolta para romper com a frente eleitoral da socialdemocracia. Tivemos pouca articulação para adquirir forças necessárias para isso e também houve certa hesitação em assumir uma postura de ruptura mais insurrencionalista em função de preconceitos basistas (no sentido da falácia da “correlação de forças” ou “ação de massas”, como se fosse plausível adquirir uma maioria para agir conforme os interesses libertários da nossa classe!). Mesmo com esse aprendizado, ainda estamos longe no processo de conseguir compor um núcleo capaz dessas tarefas.

No resto do texto das “vicissitudes”, demonstramos como as movimentações bolsonaristas exigiam cada vez mais uma “boiada” (expressão cunhada por Ricardo Salles, ex-ministro bolsonarista do meio ambiente) sobre as terras indígenas, a partir de uma defesa da expansão do agronegócio sobre esses territórios. Portanto, toda a movimentação para setembro daquele ano estava relacionada com isso.

Há de se destacar que a marginalização da luta contra o Marco Temporal a partir da promoção da frente socialdemocrata do “Fora Bolsonaro” nada mais era do que uma forma de evitar que a luta contra a espoliação de terras fosse elevada a primeiro plano. Portanto, ambos os lados da polarização burguesa concordaram em atacar o movimento indígena-proletário contra o Marco Temporal: de um lado a esquerda agredia indígenas e os impedia de assumir a frente dos protestos, assim como os cooptava para o eleitoralismo e, de outro lado, os bolsonaristas mantinham-se firmes na “boiada” sobre as terras indígenas.

Além disso, tanto os bolsonaristas com pretensões golpistas (sempre frustradas) quanto os sociaisdemocratas com sua frente ampla eleitoral pró-democrática ganharam um espaço de diálogo e conluio com os policiais militares (embora a PM esteja do lado da extrema-direita, fez de bom grado uma reunião com representantes da frente da esquerda eleitoral para combater atos subversivos nas manifestações, conforme o documento da reunião com a PM de SP de 21 de julho).

Somente em dezembro de 2021 publicaríamos novas questões relacionadas com as lutas em curso que participamos, enfatizando novamente que o esvaziamento das mesmas não se dava simplesmente à época de festas de fim de ano, mas ao acúmulo de desmobilizações da socialdemocracia ao longo daquele ano a ponto de desviar toda a força que realmente havia para derrubar o governo bolsonarista para uma agenda eleitoral (perpetuando no poder esse governo que diziam ser genocida apenas para cumprir com a estratégia eleitoral, mesmo que isso significasse mais mortes proletárias).

Assim, chegamos em 2022, no ano da farsa eleitoral, com uma dispersão de forças de luta generalizada e que contribuiu satisfatoriamente para a manutenção da polarização burguesa. Depois da passagem do “fique em casa” para o “Fora Bolsonaro”, finalmente a socialdemocracia colhia seus frutos e acionava seu trunfo: estava na hora da campanha eleitoral de Lulalckmin em rivalidade com o campo bolsonarista que ainda mantinha-se forte (e se fortaleceu mais ainda, como veremos).

As lutas contra a espoliação de terras dos indígenas continuaram, mas com pouca adesão além dos próprios indígenas e alguns outros movimentos que buscam alguma cooptação dos mesmos (Ver: Communismo Libertário, 10 de maio de 2022; Communismo Libertário, 24 de junho de 2022). Além disso, outros conflitos como a luta contra a privatização da Corsan e do DMAE (Communismo Libertário, 3 de julho de 2022) ou o “Grito dos Excluídos” (se possível, ver: link) já estavam contaminados com o eleitoralismo e com o antifascismo que atuavam para desmobilizar ao máximo o enfrentamento.

Na ocasião do protesto do dia 18 de outubro de 2022 contra os cortes no ensino superior, nossa avaliação foi a seguinte: as manifestações foram cooptadas para fazer campanha eleitoral, colocando de lado a questão de um enfrentamento direto aos cortes (além do mais, houveram situações de desmobilização de qualquer ação subversiva para “não atrapalhar o processo eleitoral”). Chegamos a comentar isso em um panfleto escrito em colaboração com o blog Amanajé: Enfrentar os cortes do governo nas ruas, com ação direta, autonomia de classe e combatividade!.

Em resumo: por um lado, a socialdemocracia continuou enfraquecendo ao máximo as forças de luta com sua campanha eleitoral, por outro, os bolsonaristas conseguiam se reorganizar e acumular forças para novas investidas. Esse foi um momento decisivo para a continuidade do movimento reacionário, que não poderia ter se mantido sem a ajuda fundamental da socialdemocracia. A socialdemocracia sabota a ação direta do proletariado possibilitando a regeneração dos bolsonaristas, cuja consequência foram os bloqueios de rodovias durante os locautes patronais e a grande expressividade eleitoral que manifestaram nas eleições de 2022.


2. Análise da farsa eleitoral:


Vimos que a socialdemocracia, sob a hegemonia e direção do Partido dos Trabalhadores (PT), tem cumprido sua tarefa histórica com êxito: o “Fora Bolsonaro” conseguiu reverter a revolta proletária contra o massacre pandêmico em uma antecipação de campanha eleitoral em prol do PT e da eleição de Lulalckmin. A vitória eleitoral no segundo turno exprime a seguinte proporção: quanto maior adesão a socialdemocracia obtém, tanto menor será a revolta proletária contra a ordem social capitalista. Consequentemente, a socialdemocracia tem contribuído para desorganizar a classe proletária, enquanto o partido reacionário recompõe suas forças.

Como podemos ver nos dados das imagens abaixo (fonte: Poder360), o resultado eleitoral do primeiro turno confirmou uma ascensão generalizada dos reacionários no Senado e na Câmara dos Deputados. Eles cresceram na esteira do antipetismo ao mesmo tempo em que a campanha socialdemocrata conseguiu transformar o Lulalckmin em favorito para as eleições presidenciais. Esse movimento contraditório faz parte da dinâmica eleitoral e exprime a polarização burguesa: os exportadores de commodities conseguiram fortalecer suas bancadas ao mesmo tempo em que a burguesia industrial, lesada pela alta do dólar, apostou na mudança presidencial para favorecer seus interesses nesse período de “recuperação econômica” pós-pandêmica.



O segundo turno agravou ainda mais a cooptação eleitoral da disputa entre as facções burguesas brasileiras. Os “votos críticos” ou a campanha eleitoral aberta (acriticamente) para Lulalckmin representaram um retrocesso ainda maior. Diante de um aumento considerável das forças reacionárias, a socialdemocracia ampliou ainda mais o controle da revolta proletária, fazendo a classe desertar de sua luta autônoma para nos enquadrar no eleitoralismo burguês mais tacanho possível.

Já o movimento reacionário busca manipular a “revolta ordeira” colocando-se supostamente “contra” as instituições (por exemplo: “contra o TSE”), mas a reação não é senão a conservação autoritária dessas mesmas instituições (por isso que o “Relatório das Forças Armadas” não tem o objetivo de extinguir as urnas, mas sim de aprimorar seu funcionamento).

É importante levar em consideração a força adquirida pelo bolsonarismo a partir do aparelhamento das instituições. Se não fosse a expressividade desse movimento reacionário, não teria sido possível a realização de 514 operações da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na tentativa de impedir eleitores nordestinos de irem votar, por exemplo.

No entanto, Bolsonaro acabou perdendo a disputa eleitoral presidencial para a candidatura de Lulalckmin

2. 1. Pronunciamento de vitória eleitoral de Lulalckmin:


No discurso da vitória eleitoral de Lula, ele afirmou que: “Somos um único país, um único povo, uma grande nação”, enfatizando a todo o momento que sua vitória eleitoral era uma vitória da democracia mais do que de um partido ou de indivíduos. Esse integralismo democrático é parte fundamental do projeto de conciliação de classes e serve de aviso para quem ousar romper a unidade nacional (que será severamente reprimido pelas forças repressivas dessa união).

Além disso, para acabar com o desentendimento de cúpula governamental, assume o compromisso de “reconstruir a convivência harmoniosa e republicana entre os três poderes”, fortalecendo o regime em unidade contra quaisquer insurgências do proletariado.

A conciliação de classes via integralismo democrático pressupõe a cooptação das massas proletárias em mecanismos burocráticos como o Orçamento Participativo e outras formas de controle, por isso também enfatizou em seu discurso o seguinte: “Vamos também reestabelecer o diálogo entre governo, empresários, trabalhadores e sociedade civil organizada, com a volta do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social”. Daí a ideia de “trazer de volta as conferências nacionais”, etc.

Quando tratou de questões relacionadas às relações internacionais, relatou que deseja reconstituir credibilidade e previsibilidade para reestabelecer a confiança econômica necessária para investimentos econômicos estrangeiros ou nacionais (“para fazer a roda da economia voltar a girar”, como disse). No entanto, isso não pode relegar ao Brasil: “ao eterno papel de exportador de commodities e matéria prima”, o que supõe a guinada desenvolvimentista da política econômica conforme havíamos mencionado antes. Por isso em seguida ele afirma: “Vamos re-industrializar o Brasil, investir na economia verde e digital, apoiar a criatividade dos nossos empresários e empreendedores”.

Em suma, uma atualização do nacional-desenvolvimentismo sob novas condições históricas (que será apenas um breve período de políticas econômicas anticíclicas).

Lulalckmin também fez um discurso insuflado sobre preservação da Amazônia: “vamos retomar o monitoramento e a vigilância da Amazônia, e combater toda e qualquer atividade ilegal – seja garimpo, mineração, extração de madeira ou ocupação agropecuária indevida”. Ele afirma ser possível: “gerar riqueza sem destruir o meio ambiente”, promovendo “o desenvolvimento sustentável das comunidades que vivem na região amazônica”. Além disso, também afirma ser favorável: “à cooperação internacional para preservar a Amazônia, seja em forma de investimento ou pesquisa científica”, embora enfatize que será: “sempre sob a liderança do Brasil, sem jamais renunciarmos à nossa soberania”.

Curiosamente, depois desse pronunciamento o governo norueguês afirmou que reativaria o Fundo Amazônia (ver: link), embora a Noruega seja responsável pela mineradora Hydro, alvo de denúncias do Ministério Público Federal (MPF) do Pará e de quase 2 mil processos judiciais por contaminação de rios e comunidades de Barcarena (PA), município localizado em uma das regiões mais poluídas da floresta amazônica (ver: link). Esse possivelmente é um dos melhores exemplos da combinação perversa entre: desenvolvimento sustentável e cooperação internacional.

Em relação aos povos indígenas, é no mínimo curioso a ênfase dada à proteção dos mesmos, depois de terem colocado em segundo plano e mesmo ostracizado diversas vezes a luta contra o Marco Temporal. No entanto, possivelmente isso se deve ao modo como se planeja realizar “o desenvolvimento sustentável das comunidades”, tanto as que vivem na Amazônia como noutras regiões do país.

Vale destacar que a proposta de criação de um Ministério dos Povos Originários foi uma das promessas recorrentes de Lulalckmin durante a campanha presidencial de 2022. No discurso da avenida Paulista ele reafirma esse compromisso: “Nós vamos criar o Ministério dos Povos Originários para que eles nunca mais sejam desrespeitados, para que eles nunca mais sejam tratados como cidadãos de segunda categoria” (ver: link).

Além disso, Lulalckmin se comprometeu em aprovar o “Revogaço” de uma série de medidas implementadas no governo Bolsonaro que afetavam diretamente (de forma negativa) os povos indígenas. A promessa de um “revogaço” Lula foi feita por Lula no Acampamento Terra Livre, realizado em abril, em Brasília, que reuniu cerca de 5 mil representantes de 200 povos indígenas do país (ver: link).

No entanto, isso certamente entraria em conflito com os interesses agropecuaristas e extrativistas da burguesia do setor primário brasileiro (que tem encabeçado as manifestações bolsonaristas). Além do mais, Lulalckmin se comprometeu a governar para todos, não só para quem votou no PT. Portanto, provavelmente: 1) ou essas medidas não serão cumpridas; 2) ou serão aprovadas sob a condição de “gerar riqueza sem destruir o meio ambiente”, promovendo “o desenvolvimento sustentável das comunidades que vivem na região amazônica”, o que significa, em outras palavras: uma destruição soft da Amazônia e das comunidades originárias.

Não obstante, segundo Ailton Krenak, “o mito da sustentabilidade” foi “inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza” (p. 9 de “Ideias para adiar o fim do mundo”). Isso porque a sustentabilidade conserva a ideia de “desenvolvimento” que fundamenta a espoliação da Terra pelas corporações.

Provavelmente as promessas não foram senão oportunismo eleitoral, mas deixaremos para analisar isso com mais profundidade em outra ocasião.

3. Bloqueios e protestos bolsonaristas:


Com a derrota de Bolsonaro nas eleições presidenciais, uma onda de bloqueios bolsonaristas ocorreram em rodovias promovendo o que chamam de “intervenção federal” contra a “fraude eleitoral”.

Não obstante, a escalada da violência política exercida sem hesitação pelos bolsonaristas havia começado antes do segundo turno terminar com Roberto Jefferson disparando contra oficiais da Polícia Federal (PF) e Carla Zambelli perseguindo armada um eleitor do PT.

De todo o modo, há que se destacar que os bloqueios são locautes patronais organizados por donos de frota e transportadoras em conluio com o agronegócio. A adesão efetiva de caminhoneiros ao movimento acontece mais marginalmente e por vias que não passam pela deliberação de instâncias oficiais como os sindicatos (que, a propósito, não aprovaram e ainda rechaçaram a paralisação patronal). Isso não significa que possa haver expressividade de base bolsonarista nos caminheiros, mas que ela não passa por meios oficiais.

Tanto a Polícia Rodoviária Federal (PRF) quanto a Polícia Militar (PM) fizeram declarações de apoio e solidariedade às manifestações. Por exemplo: ao se dirigir a manifestantes que fecharam com caminhões uma rodovia nas proximidades de Blumenau, em Santa Catarina, o PRF Ricardo Torres aparece em vídeo dizendo: “O que é que eu faço da vida? O que vocês me orientam para a gente interagir e encontrar a melhor solução, para que a gente consiga não sair com ninguém machucado, ninguém preso, ou que prejudique o meu trabalho”. Ele também acrescenta que: “A manifestação vai continuar com vocês e nós, os dois servidores que estamos aqui, vamos monitorar e informar às nossas chefias que é a nossa missão. Mas, em nenhum momento… já assumi o compromisso aqui e reitero com todos vocês, nós chegaremos para atritar ou chegaremos para enfrentar os senhores, que são patrões nossos enquanto servidores públicos” (ver: link).

Enquanto isso, a socialdemocracia continuava festejando a pseudo-vitória contra o bolsonarismo ou fazendo coro com a direita ao julgar as manifestações do ponto de vista da ordem capitalista com coisas do tipo: “xandão nesses baderneiros!”, “espero que a polícia dê um pouco de intervenção militar gratuita neles”, etc.

Assim, a passagem do “fique em casa” para o “Fora Bolsonaro”, se prolongou na campanha eleitoral de Lulackmin (frente eleitoral antifascista) e se estende agora para uma polarização entre reacionários conduzidos pelo bolsonarismo e “unidade de luta popular contra o fascismo” conduzida pela socialdemocracia (em suas diferentes frações). A independência de nossa classe exige o igual rechaço dessas frações burguesas em disputa e a proposição de uma política de classe autônoma e subversiva.

4. Para romper com a polarização burguesa


Diante o prolongamento da polarização burguesa pós-eleições, é necessário pensar um posicionamento político que não reforce nenhum lado das frações burguesas em disputa. Antes de terminarem as eleições, o posicionamento da autonomia proletária perante a farsa eleitoral era o abstencionismo revolucionário (campanha para o não-voto, seja através do voto nulo, da abstenção e mesmo sabotagens). No entanto, para que não se tornasse um mero engajamento passivo, isso também implicava compromisso com as lutas diretas, de modo a participar delas e denunciar (no sentido de uma ruptura) as cooptações da socialdemocracia. Foi assim que, diante de um caso como, por exemplo, a luta dos trabalhadores da Corsan contra a privatização companhia, consideramos necessário que os revolucionários impedissem que essa pauta se tornasse “questão eleitoral” (o que ainda não ocorreu efetivamente, dado a hegemonia eleitoralista que ainda vigora entre esses trabalhadores).

O fato é que o abstencionismo revolucionário sempre foi muito mais do que uma simples denúncia da farsa eleitoral: significa combater, no curso das lutas efetivas, as cooptações eleitorais. Por isso que também implica necessariamente a ruptura ativa com as frentes eleitorais, a não tolerância dos setores da esquerda do Capital que endossam a farsa eleitoral.

Um exemplo de NÃO-ruptura efetiva veio dos anarcoides que chamaram para a unidade antifascista. Os partidários da ideologia especifista defenderam o seguinte posicionamento: 

estamos e estaremos, sem sectarismo, ao lado de outras companheiras e companheiros que – independentemente de sua posição política frente às urnas – constroem esses movimentos populares no dia a dia, para além das eleições. Essa será a maior contribuição à derrota do bolsonarismo: uma forte unidade de luta popular por direitos e contra os setores reacionários (O anarquismo frente ao fascismo e ao debate eleitoral).

Ao mesmo tempo em que criticam acertadamente os pseudo-anarquistas que declararam voto em Lula na Jacobin (veja-se: Anarquistas em defesa do voto em Lula), eles dizem defender “uma forte unidade de luta popular por direitos e contra os setores reacionários”, o que, na prática, é o mesmo do que fortalecer a frente popular (apesar e aquém das urnas). Nossa unidade não deve ser “popular” (outro termo a-classista), mas sim uma unidade de classe do proletariado, em prol da luta autônoma e revolucionária pelo comunismo.

Nesse momento, estamos diante do prolongamento da polarização eleitoral da disputa interburguesa sob a forma de reacionários com pretensões golpistas contra socialdemocracia em defesa da institucionalidade política “legítima” (juridicamente). Ambos defendem reforço da repressão e da unidade integralista do governo burguês, seja pela via golpista, seja pelo policiamento generalizado do judiciário sobre os opositores (conforme demanda a socialdemocracia).

No quadro atual da polarização, não é possível simplesmente declarar “isenção política” perante a luta entre as frações burguesas, porque essa luta interburguesa se reflete nas formas de cooptação comprometem a autonomia proletária. Em outras palavras: é necessário promover a independência de classe do proletariado combatendo ativamente esse desenvolvimento da polarização (ignorar a existência dessa disputa interburguesa não vai fazer ela desaparecer, é preciso combatê-la).

Para intervir nessa situação histórica a favor da política autônoma do proletariado, é preciso construir os meios de autodefesa próprios da classe (perante as duas vias de aumento generalizado da repressão, seja sob o estandarte bolsonarista, seja sob o tucano-petista). Uma das vias da independência de classe poderia ser o uso da ação direta contra os bolsonaristas rejeitando o viés policialesco da socialdemocracia. Mas para não incorrer em uma luta unilateral (que pode favorecer o lado tucano-petista), é necessário visualizar a situação em conjunto antes.

Diante dos golpistas, a socialdemocracia aciona o judiciário e fortalece seus mecanismos repressivos e de controle sobre a circulação de informação nos meios digitais. A socialdemocracia está pronta para retaliar o combate direto aos bolsonaristas e criminalizar qualquer movimento que não se enquadre na sua política pró-estabilidade e institucionalidade do governo burguês. Os sociaisdemocratas precisam ser igualmente confrontados tanto quanto os reacionários. Por isso, precisamos promover posicionamentos contrários à regulamentação do judiciário nas redes de comunicação digital, uma vez que conhecemos seus danos nocivos: no Irã, por exemplo, essa história de banimento de contas permitiu um poder arbitrário da parte do Estado para desorganizar e obstruir a comunicação via Telegram dos grevistas na luta de classes contemporânea que está cada vez mais intensa por lá. Portanto, é necessário romper e sabotar o quanto possível o chamado da socialdemocracia à “unidade de luta popular contra os setores reacionários”, usando-se também os métodos da ação direta que serão empregados contra os bolsonaristas.

Neste sentido, consideremos necessário impedir que a ideologia antifascista contrarrevolucionária continue ganhando espaço, pois somente a revolução social é capaz de liquidar com os reacionários e os sociaisdemocratas. Contra a polarização ideológica que a burguesia impõe na forma de fascismo e antifascismo, afirmamos a força coletiva de nossa classe organizada a partir de seus próprios interesses libertários.

sábado, 29 de outubro de 2022

Chamado à luta antirracista do proletariado contra a Rede de Farmácias São João

Ação direta realizada em resposta ao racismo capitalista praticado por seguranças da loja São João em Porto Alegre (RS).

No dia 22 de outubro de 2022, uma situação de racismo ocorreu em uma loja da rede de farmácias São João na Zona Leste de Porto Alegre (mais especificamente: na Avenida Bento Gonçalves, no bairro Paternon). O caso acabou sendo registrado por uma pessoa que gravou um vídeo que passou a circular pela internet (veja abaixo o vídeo). Neste vídeo podemos observar uma agressão contra uma mulher negra no estabelecimento da farmácia. Ela estava intercedendo contra os abusos dos seguranças que mantinham três jovens (também negros) presos no local sob falsa suspeita de furto.


Os três adolescentes negros estavam sendo acusados de furto de preservativos pelos funcionários da loja e, mesmo após não encontrarem nada com os meninos durante a revista, os seguranças da farmácia não os deixaram sair. É nesse momento que a cliente que grava o vídeo intervém em defesa deles, bem como mulher que é agredida com uma rasteira por um dos seguranças e tem sua perna quebrada (para mais informações, veja-se essa notícia da RDC TV: link).

Apesar do registro audiovisual, a Rede de Farmácias São João se manifestou em nota alegando que as agressões são justificáveis devido a uma tentativa de furto (uma falsificação total do ocorrido para encobertar o racismo praticado no estabelecimento).

Essa prática de distorção e falsificação dos fatos é recorrente e conhecemos bem ela. Por exemplo: quando a polícia militar busca justificar um salvo conduto das suas carnificinas (que incluem matanças, torturas, etc.), geralmente alegam-se coisas do tipo “havia suspeita de furto”, “havia suspeita de posse de arma”, etc. Em certos casos, a polícia costuma pegar a mochila dos chamados “elementos suspeitos” para colocar alguma arma que trazem consigo para criminalizar, afirmando que “o jovem tinha posse de arma ilegal”. Quanto mais o público é levado a acreditar nessas mentiras, mais facilmente se perpetuam os massacres e discriminações de todo o tipo. Portanto, podemos legitimamente levantar a seguinte hipótese: será que a narrativa do suposto “furto de preservativo” não tinha esse mesmo objetivo? O que teriam feito com aqueles adolescentes se ninguém tivessem feito nada? Lembremos do caso do Carrefour (situação que descrevemos em detalhes em nossas publicações, por isso sugerimos abrir o link que anexamos)… Em suma, há de se reconhecer a coragem dessas mulheres, negras e proletárias, que enfrentaram os abusos do sistema sem recuar!

De acordo com o advogado que está representando os três adolescentes, as famílias dos garotos foram até o DECA (Departamento Estadual da Criança e do Adolescente) para registrar boletim de ocorrência, mas foram informados de que deveriam voltar outro dia porque a delegacia estava cheia (uma forma de constrangê-los a sequer recorrerem diante da discriminação evidente). Enquanto isso, os funcionários da farmácia, mesmo sem prova alguma, registraram uma ocorrência no local e no mesmo dia! Um absurdo que só deixa escancarado a brutalidade do sistema contra pessoas negras e proletárias (bem como a parcialidade da justiça burguesa)!

Perante essas iniquidades do sistema capitalista, somente uma revolta incendiária é capaz de fazer o devido justiçamento diante de tantas vidas proletárias brutalizadas. É com esse espírito que também saudamos a ação direta exemplar realizada na noite daquele mesmo dia, conforme podemos observar abaixo na publicação do Twitter que incorporamos em nossa publicação:


Somente a ação direta, a iniciativa combativa e autônoma da classe proletária, pode lutar efetivamente contra as opressões e discriminações historicamente endógenas ao capitalismo. O Estado não passa da organização política do poder dominante da classe capitalista e sempre vai intervir a favor das empresas, em suma: da propriedade privada. Os boicotes também não são ferramentas próprias da luta proletária, pois são meros instrumentos da concorrência fazer pressão nos preços e ainda favorecer tantas outras empresas que igualmente partilham da mesma conduta sistêmica da economia mercantil.

É nesse sentido que será fundamental o ato marcado às 16 horas do dia 29 de outubro, em frente ao mesmo estabelecimento da São João (Av. Bento Gonçalves, nº 2255), onde estaremos nos colocando na luta diretamente.

Divulgação do “Ato Antirracista” contra a Rede de Farmácias São João.

Antes de enunciarmos nosso posicionamento, convém relembrar outro caso dessa mesma rede de farmácias onde poderemos compreender melhor como as empresas conseguem se safar de serem responsabilizadas por suas discriminações usando inclusive um “discurso antidiscriminatório”.

Antecedentes discriminatórios da Rede de Farmácias São João


Em outubro de 2021, a mesma Rede de Farmácias São João tinha se envolvido em outro caso de discriminação. Nessa ocasião, teria vazado um áudio de uma ex-funcionária que estava no cargo de gestão no Litoral Norte, onde orientava para que os recrutadores observassem as características físicas dos candidatos aos empregos. Ela afirmou em seu áudio:

“Vocês sabem que feio e bonito é o mesmo preço, né gente? (…) Vamos cuidar muito nas nossas contratações. Pessoas muito tatuadas VOCÊS SABEM QUE A EMPRESA NÃO GOSTA (…). Pessoas muito gordas, vocês sabem que… Então assim, cuidem as aparências. (…) Se pegar alguém, né, com todo respeito, ‘veado’ e tudo mais, tem que ser uma pessoa alinhada, que não vire a mão, não desmunheque (…)”.

 


Nessa ocasião, a empresa também tentou acobertar o caso e chegou a classificar o fato registrado como “fakenews”. No entanto, o evidente flagrante do áudio acabou obrigando a rede de farmácias a abrir uma sindicância administrativa interna para apuração dos fatos. Após concluir a investigação, a empresa repentinamente mudou de postura e supostamente “repudiou o comportamento” da então gestora, afirmando ser favorável à “diversidade e à inclusão”. Isso não passou, evidentemente, de uma falsificação descarada, pois a própria gestora afirma “vocês sabem que a empresa não gosta”, o que indica que a discriminação é uma política intrínseca à empresa.

O advogado da rede disse que a mulher “foi desligada por justa causa, porque a ação que ela praticou foi um ‘ato isolado’ que não condiz com a política da empresa”. Em outras palavras: para limpar a imagem da empresa e isentar sua prática discriminatória inerente, a Rede de Farmácias São João usou como bode expiatório sua ex-funcionária.

Sabemos que casos de discriminação nesses estabelecimentos não são nem de longe “atos isolados”, mas a regra fundamental das políticas discriminatórias e mesmo racistas que estão disseminadas nessas empresas e que são congruentes com a reprodução do modo de produção capitalista, na medida em que as opressões e todo tipo de preconceito são funcionais para a fragmentação do proletariado, dividindo-o em segmentos mais precarizados ou mesmo descartáveis (população tornada supérflua que vira alvo de eliminação, direta ou indiretamente). Também é funcional para os capitalistas colocar os proletários lutando entre si, em concorrência mercantil, em vez de lutar pela superação do modo de produção capitalista (daí as políticas afirmativas de viés identitário).

Em uma palestra realizada em abril, em Nova Prata, o presidente da Rede de Farmácias São João, Pedro Henrique Kappaum Brair, afirmou que: “O universo conspira a favor daqueles que buscam, às vezes incansavelmente, atingir suas conquistas e ter sucesso” (veja-se: link). Ao que parece, para ter “ter sucesso” é necessário “conspirar com o Universo” da seguinte forma: promovendo discriminação, reproduzindo racismo e outas práticas infames que são “incansavelmente” praticadas para “atingir conquistas”.

Posicionamento na para a manifestação contra a Rede de Farmácias São João


Perante essas práticas recorrentes no capitalismo, é evidente que nosso posicionamento não seria outro senão em prol da emancipação integral do proletariado em uma revolução social. Mas esse programa revolucionário geral exige um compromisso militante com os disparadores imediatos da revolta proletária contra o sistema. Nesse sentido, cada luta particular deve ser pensada visando cumprir os princípios da ação direta que constroem o poder e a organização autônoma do proletariado (sobre nossa discussão estratégica, veja-se: link).

Recentemente identificamos uma polarização burguesa que busca enquadrar a luta do proletariado numa frente popular antifascista (interclassista, mas dirigida por uma fração burguesa), personificada na candidatura presidencial de Lulalckmin (veja-se a esse respeito a seção “Contra a farsa eleitoral: o antifascismo constrói as bases da vitória reacionária”, do texto disponível em: link). Na ocasião do protesto do dia 18 contra os cortes no ensino superior, nossa avaliação (não publicada no blog) foi a seguinte: as manifestações foram cooptadas para fazer campanha eleitoral, colocando de lado a questão de um enfrentamento direto aos cortes (além do mais, houveram situações de desmobilização de qualquer ação subversiva para “não atrapalhar o processo eleitoral”, conforme identificamos nas falas da frente que liderou essa cooptação).

Nesse sentido, ainda coloca-se a necessidade de ruptura com a socialdemocracia para efetivar uma direção autônoma da luta proletária, em prol de seus próprios interesses, sem reforçar ainda mais uma das frações burguesas (em especial a socialdemocracia) que não vai hesitar em apontar as armas contra as massas trabalhadoras depois de eleita (basta lembrar o que tanto o governo Lula, quanto o governo Alckmin, cada um em suas instâncias, fizeram contra as lutas proletárias e a favor dos interesses capitalistas). Portanto, reiteramos um de nossos posicionamentos na seguinte palavra de ordem: Abaixo à farsa eleitoral! Ação direta contra o Capital!

No que diz respeito ao contexto mais específico da luta antirracista contra a Rede de Farmácias São João, consideramos necessário uma medida efetiva contra a empresa. Portanto, nosso posicionamento nessa luta em particular é o seguinte: Abaixo o racismo capitalista! Pelo fechamento da São João da Bento Gonçalves!

Acreditamos que o fechamento da loja seria apenas uma vitória parcial, mas ainda sim uma vitória e sinal de conquista de autonomia perante as forças burguesas da atual situação histórica brasileira. Esse objetivo pode ser conquistado mobilizando a fúria e a revolta incendiária do proletariado até suas últimas consequências no ato do dia 29.

Caso tenhamos êxito, estaremos impondo uma ação exemplar significativa nas vésperas do espetáculo eleitoral da burguesia! Por isso: Avante bárbaros proletários! Não temos nada a perder senão nossas correntes!

domingo, 16 de outubro de 2022

Análise crítica da situação de enfrentamento ao corte de verbas do Ensino Superior no Brasil


Libelo escrito por membros da Internacional Situacionista & estudantes da cidade de Estrasburgo no ano de 1966 (1ª edição). Título original: De la misere en milieu étudiant considérée sous ses aspects économique, politique, sexuel et notamment intellectuel et de quelques moyens d’ y remédier. Versão em português disponível em: link.

Proposta: Nessa publicação apresentaremos uma avaliação crítica da situação de enfrentamento aos cortes de verbas destinadas ao Ensino Superior. Em nossa perspectiva, o que está realmente em disputa não são “questões estudantis”, nem o “futuro da educação e da ciência do Brasil”, dentre outras fantasias ideológicas que apenas representam os interesses de diferentes frações burguesas nos quadros da reprodução social do capitalismo brasileiro. Buscamos romper com todas essas impressões para demonstrar que mesmo essa medida imediata de “corte de verbas” pode ser compreendida e explicada pela teoria revolucionária e combatida pela prática independente da luta autônoma proletária.

Observação: As notas estão ao final do texto e são sinalizadas por colchetes em negrito ([…]).


Introdução:


Às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais, um novo decreto do governo Jair Bolsonaro buscava contingenciar recursos das instituições de ensino públicas do Brasil. O bloqueio ocasionado pelo decreto 11.216/2022, publicado em 30 de setembro, afetava sobretudo as instituições de ensino superior federais que, juntas, perderiam R$ 328 milhões (ao longo do ano, o acumulado é de R$ 763 milhões retirados do orçamento das universidades).

Depois da péssima repercussão da medida, o governo federal reverteu o bloqueio. A informação do recuo do governo foi divulgada pelo ministro da Educação, Victor Godoy, em suas redes sociais.

No entanto, mesmo com esse recuo, o governo federal apenas mudou seu alvo para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). Uma publicação do dia 6 de outubro no Diário Oficial da União (DOU) mostra que o governo federal bloqueou R$616 milhões do orçamento da pasta destinados a atividades de pesquisa nas Universidades Públicas.

No esteira desses acontecimentos, a UNE (União Nacional dos Estudantes), a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e outras organizações institucionais convocaram uma mobilização nacional para o dia 18 de outubro. Em nota, a direção da CNTE afirmou que:

Não podemos tolerar e nem admitir mais tantos ataques à educação de nosso povo. O movimento estudantil, por meio da UNE e ANPG, convocou uma imediata manifestação nas ruas brasileiras no próximo dia 18 de outubro. Essa data foi imediatamente acolhida e, desde o dia de ontem, quando ocorreu uma reunião da Direção Executiva da CNTE, os educadores e as educadoras brasileiros/as se somarão à essa luta. Todos às ruas do país no próximo dia 18 de outubro! Em defesa do maior patrimônio que um país pode dar a seu povo, lutemos juntos/as por uma educação pública, gratuita, laica e socialmente referenciada! (Brasília, 07 de outubro de 2022, Direção Executiva da CNTE).

Como nos posicionamos, enquanto comunistas libertários, diante dessa situação de corte de verbas? Para responder essa questão, é necessário levar em consideração a situação atual da luta de classes brasileira, relativamente à polarização interburguesa da farsa eleitoral e o modo como o “movimento estudantil” tem transformado essa mobilização em uma mera campanha eleitoral passiva diante dos ataques.

1. Questões preliminares sobre o chamado “movimento estudantil”:


A ideologia burguesa [1] insiste em dissolver as posições de classe sob formas “neutras” que apagam as origens sociais das pessoas. Assim, não importa se o “jovem” ou a “estudante” tenha que vender sua força de trabalho para se sustentar ou contribuir com a renda de sua família, não importa se este ou aquele “discente” esteja desempregado ou mesmo quando só pode se manter com ajuda de seus familiares assalariados. Toda a vez que se tomam indistintamente as pessoas por classificações “neutras” como “jovem”, “estudante”, etc., ocorre um apagamento das condições de classe.

Não estamos dizendo, contudo, que “não existem estudantes” ou que “não existe juventude”, mas que essas classificações (uma relacionada aos níveis de escolaridade e a outra a faixa etária) não dizem respeito senão à administração e reprodução social do capitalismo, seja em termos jurídicos (“Estatuto da Juventude”, por exemplo), seja em termos empregatícios (“Diploma” como certificado de aptidão laboral num ramo restrito do mercado de trabalho – embora não seja certo que haja emprego para todos os “formados”).

Mesmo o mais vulgar senso comum parece ter noção disso intuitivamente quando ouvimos frases como “estude para conseguir um emprego decente”, embora isso também não passe de outra forma de “seduzir” ideologicamente membros do proletariado com a ilusão de que podem “escolher sua própria profissão” ao se “dedicarem aos estudos” (a cenoura que mantém muitos resignados ao sobre-esforço enquanto sonham com um futuro ilusório).

Não obstante, os efeitos ideológicos mais nocivos surgem quando as necessidades práticas que levam o proletariado a se revoltar são cooptadas para o chamado “movimento estudantil”, quando começam a agir politicamente como “estudantes” (como vinculados a uma instituição de ensino específica da sociedade burguesa) no lugar de cometerem a subversão de agirem autonomamente a partir de seus interesses de classe.

A experiência histórica da luta de classes nos legou o seguinte aprendizado: as lutas estudantis servem para impedir uma parte considerável do proletariado (geralmente os “jovens”) de lutar em prol da libertação de sua condição de classe e colocar a outra parte do proletariado (que está fora das instituições de ensino) contra esses “estudantes”, difamando-os como “jovens vagabundos” [2].

No entanto, podem nos objetar que existem “interesses específicos” dos “estudantes” que justificam um “movimento específico”, porém é precisamente esse isolamento em especificidades funcionais ao sistema que marca o caráter ideológico desse “movimento” (cuja premissa oculta é: “o estudante deve se interessar e defender coisas de estudantes sem contestar a sociedade em que vive”). O mesmo vale para aquilo que os teóricos liberais chamam de “grupos de pressão” da “sociedade civil organizada”: são meras formas de enquadrar aos conformes jurídicos burgueses (como “cidadãos”), toda e qualquer luta que possa emergir contra as precárias condições de vida no capitalismo.

Mas isso não acaba por tornar toda e qualquer mobilização impossível, dado que “lutar contra o corte de verbas” se torna “apenas mais um momento de reprodução da sociedade capitalista”? Essa é uma falsa conclusão que parte de falsas premissas. Em outras ocasiões, tratando de outras questões particulares, demonstramos como um disparador imediato de revolta poderia ser conectado com as questões gerais da luta de classes [3]. Portanto, a questão é saber como fazer a mediação da tentativa de corte de verbas para financiamento do Ensino Superior com a luta de classes em seu conjunto.

2. Os cortes de verbas no Ensino Superior como continuidade da política dos setores exportadores da classe dominante brasileira:


Para compreender os interesses por trás da tentativa de corte de verbas, mesmo que o governo já tenha recuado diante da ameaça de revolta, é necessário compreender essa medida no quadro do projeto político-econômico de classe ao qual se situa.

Em primeiro lugar, é necessário pensar a organização social do ensino em sua forma historicamente específica atual (ou seja, no modo de produção capitalista). Nesse sentido, não vamos defender um “modelo ideal de ensino”, porque é necessário compreender como é o ensino que existe efetivamente, qual a posição social das instituições de ensino nesse modo de produção e qual o verdadeiro motivo nos cortes de verbas.

Vamos recorrer a um dos economistas e ideólogos mais importantes no que diz respeito à consciência do papel do ensino no capitalismo: Theodore W. Schultz (1902-1998), que foi professor do departamento de economia da Universidade de Chicago, participando da fundação da disciplina de Economia da Educação em meados de 1950. Ele também é considerado o principal formulador da teoria do capital humano. Tanto a disciplina de economia da educação quanto a ideia de capital humano surgiram da preocupação em explicar os ganhos de produtividade gerados pelo “fator humano” na produção. Assim emergiu a concepção de que o trabalho humano, quando qualificado por meio do ensino, se tornava um importante meio para a ampliação da produtividade econômica, e, portanto, das taxas de lucro do capital.

Segundo Schultz (1971, pp. 42-43), os cinco fatores mais importantes do capital humano são:

(1) recursos relativos à saúde e serviços, concebidos de maneira ampla de modo a incluir todos os gastos que afetam a expectativa de vida, o vigor e a capacidade de resistência, e o vigor e a vitalidade de um povo; (2) treinamento realizado no local do emprego, incluindo-se os aprendizados às velhas maneiras organizadas pelas firmas; (3) educação formalmente organizada nos níveis elementar, secundário e de maior elevação; (4) programas de estudos para os adultos que não se acham organizados em firmas, incluindo-se os programas de extensão, notadamente no campo da agricultura; e (5) migração de indivíduos e de famílias, para adaptar-se às condições flutuantes de oportunidades de empregos.

Não obstante, o que o ganhador do Nobel de Economia não leva em consideração é que esse “fator humano” do capital não é um “investimento do trabalhador sobre si mesmo e seus filhos” como ele sugere. O capital humano é parte do capital variável na composição orgânica de capital (capital constante + capital variável) e cujos rendimentos são explorados pelo capitalista (que é quem se beneficia do “papel das capacidades adquiridas dos agentes humanos como uma fonte importante dos ganhos de produtividade”) [4].

Portanto, os investimentos em ensino decorrem da reprodução ampliada do capital em sua composição orgânica, derivando do processo de acumulação como um todo. No entanto, como viemos argumentando em nossos textos sobre a dominação do agronegócio e dos extrativistas no que diz respeito à determinação exportadora do eixo dinâmico da economia brasileira [5], tanto a qualificação da força de trabalho quanto a própria superpopulação relativa (o chamado “exército industrial de reserva”) se tornaram supérfluos e estão sendo destruídos.

O excedente populacional proletário tem sido destruído pela gestão da pandemia, conforme argumentamos em “As vicissitudes da luta de classes brasileira na pandemia capitalista”, assim como também se destroem as condições de qualificação da força de trabalho ao se sabotar as instituições de ensino, ambas formas de desvalorização da força de trabalho, como modo de reduzir os custos de empregabilidade (rebaixamento salarial, etc.) e ampliar a exploração bruta da força de trabalho.

Nesse sentindo, o disparador imediato da atual revolta contra os cortes de verba ao Ensino Superior é o processo generalizado de desvalorização da força de trabalho. Esse ponto de partida está sendo distorcido pelo conjunto de interesses burgueses que buscam tirar proveito da disposição para a mobilização: 1) para reforçar a confiança nas instituições de ensino da burguesia com apelos ao “futuro da educação e da ciência do Brasil”; 2) para enquadrar as forças de luta nos quadros da polarização interburguesa do processo eleitoral em curso (a disputa para a presidência entre Lulalckmin e Bolsonaro).

O campo realmente autônomo da luta proletária revolucionária está além e aquém da polarização eleitoral burguesa entre o projeto neoliberal progressista de Lulalckmin e o projeto neoliberal reacionário de  Bolsonaro.

2. 1. A luta contra os cortes de verbas segundo a concepção da autonomia proletária:


Qual a tarefa dos militantes revolucionários para enfrentar a política que caracterizamos na seção anterior? Compreendemos que temos uma tarefa positiva na luta contra a desvalorização da força de trabalho na medida em que agrava as condições de exploração e embrutecimento de nossa classe proletária.

No entanto, devemos lutar pela unidade de classe do proletariado diante desse ataque, denunciando essa política de corte de verbas nas pesquisas em ciência e tecnologia como mais uma medida que busca brutalizar e precarizar a força de trabalho, para uma exploração cada vez mais intensa do proletariado.

Diante desse quadro, defendemos as seguintes medidas imediatas: Contra o desemprego, o arrocho salarial e os cortes em Ciência e Tecnologia! Revogação imediata do Teto de Gastos (Emenda Constitucional n.º 95)!

Embora os cortes que financiam o Ensino Superior e as pesquisas (que são majoritariamente realizadas por Universidades Públicas no Brasil) tenham iniciado muito antes do Teto de Gastos, exigir a revogação da Emenda 95 eleva o nível de mobilização e alcance do movimento ao núcleo jurídico ao qual os governos estão se reportando atualmente ao administrarem o orçamento público.

No entanto, o movimento estudantil está desmobilizando a revolta, conduzindo as massas a lutar pela eleição de Lula, em prol da frente eleitoral antifascista. Isso fica perceptível numa nota da Rede Estudantil Classista e Combativa (RECC) sobre a tentativa de ocupação da reitoria da Universidade Federal do Ceará (UFC) que foi frustrada pela UNE.

No dia 07 de outubro ocorreu uma plenária de mobilização contra os cortes de verba pelo Centro Acadêmico Frei Tito de Alencar (CAFTA), do curso de História da UFC. Durante a plenária, houve a proposição de ato na reitoria, assim como propostas de ocupação (lembrando que a UFC tem um reitor interventor, diretamente colocado por Bolsonaro). No entanto, a UNE buscou conduzir o ato para a avenida da universidade, pois almejavam evitar a todo o custo o conflito aberto com a reitoria.

Durante o percurso do ato, os estudantes se deparam com os portões da reitoria fechados, então a base dos estudantes revoltada com a situação derruba os portões, assumindo a direção do ato a despeito da UNE buscar desmobilizar os estudantes.

Entretanto, mesmo com os coros em prol da ocupação, as dirigências da UNE insistiram em suas manobras e começaram a afirmar que solicitariam a vinda do interventor para dialogar com os estudantes. A RECC denunciou dessa forma essa atitude:

Frente a isto, a UNE deixa muito claro seu posicionamento: precisamos garantir a eleição de Lula, ainda que isto custe podar a legítima revolta dos estudantes contra Bolsonaro. Ainda que Bolsonaro pise nas nossas cabeças, não é do interesse da UNE radicalizar a luta nesse período próximo ao segundo turno. Seu interesse está em criar comitês eleitorais e realizar passeatas de rua ao invés de ocupações, promovam ainda mais seu candidato (sic).

Em resumo: a UNE conseguiu desmobilizar os estudantes nessa ocasião, com a promessa de diálogo, boicote da ocupação e desvio do ato para a avenida da universidade na esquina com a rua 13 de maio.

Isso demonstra como a socialdemocracia (a partir de órgãos de controle como a UNE) tem feito de tudo para impedir a generalização da revolta proletária, para cooptar todas as energias para a farsa eleitoral burguesa. Isso nos coloca diante da segunda necessidade perante a atual mobilização.

3. Contra a farsa eleitoral: o antifascismo constrói as bases da vitória reacionária


O título dessa seção não é uma provocação, mas um ensinamento legado pela experiência histórica da luta de classes. As frentes antifascistas historicamente tem conduzido o proletariado à derrotas e ao abandono de sua autonomia de classe na medida em que o enquadram em oposições interburguesas como: “democracia” contra “ditadura”, “Estado democrático de direito” contra “Estado policial de ajuste”, “civis” contra “militares”, “regime constitucional” contra “regime ditatorial”, etc…

A experiência dos anos 30 até a segundo guerra mundial nos demonstra que todas as frentes populares antifascistas serviam apenas para: 1) transformar os proletários em bucha de canhão da guerra interimperialista; 2) impedir toda e qualquer independência de classe e ações autônomas do proletariado. Além disso, nas situações onde a frente popular enfrentou as forças fascistas, a frente geralmente é derrotada (como no caso da vitória de Franco na Espanha).

A direção das frentes populares antifascistas é realizada pelo partido socialdemocrata hegemônico da situação histórica. Mas antes mesmo de um movimento reacionário se formar, é a socialdemocracia que reforça as instituições que serão usadas contra o proletariado (como o caso dos governos petistas terem inaugurado o uso de medidas como a Garantia da Lei e da Ordem ou aprovado a Lei Antiterrorismo).

A primeira tarefa da socialdemocracia, conforme já demonstramos noutras ocasiões, é enquadrar o proletariado nos quadros da reprodução reformista do capitalismo: seja institucionalmente através de reformas progressistas (identitarismo, assistencialismo, etc.), seja através do aumento da produtividade da força de trabalho para ampliar a exploração de mais-valia relativa através de políticas desenvolvimentistas, ou simplesmente favorecendo a conciliação de classes através do controle sindical sobre a classe trabalhadora.

Para aplicar essas políticas (na parte ou no todo), será necessário combater a autonomia proletária, portanto “é a socialdemocracia que desarma, ideológica e materialmente o proletariado, e reprime militarmente suas insurreições” (Askö #9, 08/1998).

A frente antifascista nada mais é do que a segunda tarefa histórica da socialdemocracia: capturar toda a revolta do proletariado e usá-la para defender a democracia, os direitos, as instituições, isto é, um suposto “capitalismo mais humano” (e esse “humanismo capitalista” não hesitará em atirar contra proletários, em encarcerar e torturar aqueles que não seguirem a agenda da frente popular).

Tudo isso está registrado em nossa memória histórica da luta de classes. Nesse sentido, indicamos a tradução que nossos camaradas da editora Amanajé fizeram para contribuir nesse debate: 1936: Como a “Frente Popular” na França e na Espanha mobilizou a classe trabalhadora para a guerra (2006).

Em nossa avaliação, o bolsonarismo é um movimento reacionário com pretensões de exercício aberto e deliberado do terrorismo de classe contra o proletariado, mas isso significa justamente a necessidade imediata de romper com as frentes antifascistas de toda a natureza. Isso porque:

 

Os partidos reacionários representam a radicalização da ditadura burguesa quando o “pacto democrático” entra num processo de “crise orgânica” (quando se fala em “instabilidade das instituições”), tornando necessário uma reforma ainda mais autoritária para reforçar a dominação de classe (recuperar a “estabilidade política” do regime). Para isso é necessário: 1) que o movimento reacionário tenha uma base de massas e uma mobilização permanente dessas bases em uma postura bélica e beligerante frente a inimigos públicos que personificam os ressentimentos dos setores mais conservadores da sociedade (em conspiração constante contra o chamado “progressismo”); 2) processo de consolidação desse bloco de poder da ala reacionária da burguesia com o “fechamento do regime” (no pior dos casos, quando a pretensão do uso reacionário da violência se funde com as instituições oficiais do Estado que legitimam essa violência) ou senão através de operações de violência paralelas aos órgãos oficiais da democracia (através de milícias, “gabinetes ocultos”, “narcopolítica”, etc.); 3) processo de concentração de poder para exercício do terror aberto (caso do “fechamento do regime”) ou através da terceirização desse poder (caso da cobertura institucional via aparelhamento governamental dos abusos de milícias, jagunços de fazendeiros, etc.); 4) difusão ideológica do anticomunismo em estado paranoico (caso em que toda adversidade é projetada sobre a figura do inimigo público nº 1 da burguesia: o comunismo) e reforço do discurso de unidade e lealdade nacional e 5)  a parte mais importante e decisiva de todo o processo: a colaboração passiva dos socialdemocratas que possuem a tarefa de manter o proletariado organizado em frentes populares inofensivas até que não sejam mais necessários e possam ser também eliminados.

No caso brasileiro, o partido socialdemocrata hegemônico que está dirigindo as frentes antifascistas é o Partido dos Trabalhadores (PT). Sua tarefa histórica tem sido cumprida com êxito: o “Fora Bolsonaro” de 2021 (ano passado) conseguiu reverter a revolta proletária contra o massacre pandêmico em uma antecipação de campanha eleitoral em prol do PT e da eleição de Lula (veja-se parte desse processo em nosso texto: “As vicissitudes da luta de classes brasileira na pandemia capitalista”).

Vimos que o resultado do primeiro turno confirmou uma ascensão generalizada dos reacionários no Senado e na Câmara dos Deputados. No entanto, a campanha socialdemocrata conseguiu transformar o Lulalckimin em favorito para as eleições presidenciais. O segundo turno é a continuidade da cooptação eleitoral da disputa entre as facções burguesas brasileiras. Nesse sentido, o “Fora Bolsonaro” ainda representa a capitulação do proletariado para a socialdemocracia e, pior ainda, os “votos críticos” ou a campanha eleitoral aberta (acriticamente) para Lulalckimin representam um retrocesso ainda maior!

Em outras palavras: diante de um aumento considerável das forças reacionárias, a socialdemocracia ampliou ainda mais o controle da revolta proletária, fazendo a classe desertar de sua luta autônoma e enquadrando-a no eleitoralismo burguês mais tacanho possível (beirando ao puro moralismo individualista de que clicar uns botões numa urna é “fazer sua parte”).

Por outro lado, é fundamental para o movimento reacionário se colocar supostamente “contra” as instituições (por exemplo: “contra o TSE”), pois é uma reação para solucionar a própria crise política através da conservação autoritária dessas mesmas instituições. Aqui temos uma complementaridade, uma necessidade recíproca do reformismo diante do reacionarismo: de um lado a socialdemocracia impede a subversão proletária para dar mais tempo aos reacionários (além de aumentar a confiança na legitimidade do regime burguês, o que significa, para o proletariado, permanecer desarmado enquanto confia sua segurança ao Estado), de outro lado os reacionários assentam ainda mais os discursos de ódio anticomunista nas suas bases e tentam garantir mais condições de exercício da violência.

4. Compromisso das minorias revolucionárias: em prol da autonomia proletária!


Diante desse quadro, qual a tarefa dos militantes revolucionários? A resposta não poderia ser mais evidente: promover a ruptura total com essa polarização interburguesa, em prol da reconstrução dos meios de luta e objetivos específicos do proletariado na luta de classes. Esse objetivo específico do movimento comunista libertário pode ser sintetizado pelo seguinte lemas Abaixo à farsa eleitoral! Ação direta contra o Capital!

Compreendemos que é necessário sabotar tanto o reformismo socialdemocrata quanto o reacionarismo conservador, denunciando a cumplicidade desses dois lados da mesma moeda (pois ambos buscam conservar o capitalismo, seja reformando, seja com uma reação conservadora). Qualquer objeção de que esse posicionamento radical “faz o jogo da direita” não passa de uma falsificação histórica e uma manipulação para impedir a autonomia revolucionária do proletariado.

É por isso que não podemos ser tolerantes e passivos com o avanço de qualquer um dos lados dessa oposição, pois os reacionários são uma ameaça a nossa subversão por serem ativamente anti-anarquistas e anticomunistas, enquanto que os reformistas estão a todo custo impedindo a única via de combate efetivo que poderia enfrentar a reação, pois impedem a auto-organização e direção revolucionária do proletariado (e também entregam os revolucionários para a polícia, disseminam conspiração de que existem “infiltrados” no movimento agindo como “provocadores”, dentre outras falsificações para criminalizar os militantes autônomos).

Por isso também discordamos da passividade resignada dos especifistas que defendem manter compromissos com a mesma frente antifascista que acorrenta o proletariado, como declararam nesse texto publicado na Jacobin:

estamos e estaremos, sem sectarismo, ao lado de outras companheiras e companheiros que – independentemente de sua posição política frente às urnas – constroem esses movimentos populares no dia a dia, para além das eleições. Essa será a maior contribuição à derrota do bolsonarismo: uma forte unidade de luta popular por direitos e contra os setores reacionários (O anarquismo frente ao fascismo e ao debate eleitoral).

Ao mesmo tempo em que criticam acertadamente os pseudo-anarquistas que declararam voto em Lula na mesma revista [6] (veja-se: Anarquistas em defesa do voto em Lula), eles dizem defender “uma forte unidade de luta popular por direitos e contra os setores reacionários”, o que, na prática, é o mesmo do que fortalecer a frente popular (apesar e aquém das urnas). Nossa unidade não deve ser “popular” (outro termo a-classista), mas sim uma unidade de classe do proletariado, em prol da luta autônoma e revolucionária pelo comunismo.

O bolsonarismo só pode ser derrotado se o proletariado rompe a unidade antifascista e constrói sua própria política independente de classe, a partir de seus próprios objetivos e meios autônomos de luta. O bolsonarismo só será derrotado por um movimento que já não mira apenas num governo particular da sociedade burguesa, mas luta diretamente pela organização do proletariado a partir de seus próprios interesses com objetivos revolucionários de longo prazo.

Notas:


[1] – Observação sobre o conceito de ideologia: compreendemos por ideologia a consciência dos interesses que são congruentes com a reprodução social de uma determinada sociedade de classes. Nesse sentido, não compreendemos pela noção de ideologia qualquer “sistema de ideias e valores” como, por exemplo, o antropólogo Louis Dumont: “Chamo de ideologia o conjunto de ideias e valores em uma sociedade” (2000, p. 19). Em nossa perspectiva, as ideologias são formas históricas de consciência social que estão diretamente associadas com as relações de classe. Os processos ideológicos se manifestam em qualquer forma de ação e intelecção: na moralidade (sistema dos valores e costumes), no saber (qualquer forma de conhecimento), nas crenças (fé, superstição), etc. No entanto, é necessário enfatizar que a ideologia não implica necessariamente uma concepção voluntarista da classe dominante, onde as instituições sociais são deliberadamente “manipuladas” pelos dominantes (essa seria uma forma maniqueísta de compreender as coisas). Os processos ideológicos ocorrem espontaneamente na ausência de crítica revolucionária, pois correspondem a uma consciência conservadora da ordem social vigente, enquanto fetichização dessa ordem. A característica peculiar da ideologia é “apresentar um interesse particular como geral” (MARX & ENGELS, 2007, p. 49), ou seja, questões particulares relacionadas ao domínio de um grupo social são apresentadas como uma generalidade para toda a sociedade (ou, dito de outra forma: na medida em que uma sociedade de classes é uma sociedade baseada na dominação de uns sobre outros, toda consciência que supõe a continuidade inexorável dessa situação é, na prática, uma apologia). Outro mecanismo sutil da ideologia é sua aparição imediata na forma de hábitos e do senso comum (formando um status quo). Além disso, justamente para “generalizar o particular”, será da natureza do discurso ideológico se apresentar como “a-ideológico”, como “puramente técnico” em certos casos, como “consenso científico” noutros, ou mesmo como idêntico à “moralidade” em si (como dever ético “puramente formal”).

[2] – No momento não é nosso objetivo aprofundar essa discussão, mas noutra ocasião vamos abordar essa questão em mais detalhes e com exemplos.

[3] – É necessário relembrar uma importante tese revolucionária já expressa no “Manifesto do Partido Comunista” (1848) que está dividida em duas premissas fundamentais: 1) “Os comunistas não constituem, em face dos outros partidos operários, nenhum partido particular” (MARX & ENGELS, 1998, p. 20) e 2) “Eles não possuem interesses separados dos interesses do conjunto do proletariado” (idem). Os revolucionários defendem, portanto: a formação de uma organização geral da luta proletária que leve em consideração os “interesses do conjunto do proletariado”, portanto as chamadas “especificidades” e “necessidades particulares” são apenas as pontas do iceberg geral da luta de classes, cuja função das minorias revolucionárias é fazer a conexão da totalidade da luta com seus disparadores imediatos.

[4] – Essa questão mesma já havia sido abordada por Marx nas discussões relativas à necessidade de qualificação da força de trabalho no chamado trabalho complexo relativamente ao avanço técnico-científico, mas preferimos mostrar a consciência fetichizada dos economistas como exemplo de que estão parcialmente conscientes disso quando não estão falando da necessidade de “formação cidadã”. Na verdade, a face socialdemocrata do ensino é a “formação cidadã” (ideologia do integralismo democrático), enquanto que a face liberal é a “pura qualificação da força de trabalho” (ideologia da concorrência mútua entre vendedores de força de trabalho).

[5] – Sugerimos a leitura da seção 5 (“A social-democracia brasileira contemporânea”) de nosso texto: “Notas sobre o partido social-democrata brasileiro” (28 de agosto de 2020). Também sugerimos os textos em que abordamos questões específicas relacionadas a processos de privatização e lutas por terra que também tangenciam a mesma discussão: “Crítica da privatização da CEEE-D e sua venda para o Grupo Equatorial”, “Considerações sobre a mobilização nacional dos povos indígenas contra o Marco Temporal” e “Considerações sobre a luta contra a privatização da Corsan e do DMAE”.

[6] – Uma crítica mais contundente foi publicada por nossos camaradas da Amanajé: Notas acerca da farsa eleitoral: anarquistas votam em Lula?.


Referências:


DUMONT, Louis. Homo aequalis: gênese e plenitude da ideologia econômica. Bauru: EDUSC, 2000.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. Disponível em: link.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Estudos avançados, São Paulo, v. 12, n. 34, p. 7-46, dez. 1998. Disponível em: link.

SCHULTZ, Theodore W. O Capital Humano. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. Disponível em: link.