domingo, 5 de julho de 2020

A Instrução Integral (1869) – Mikhail Bakunin

Imagem alterada da versão encontrada em: [Link]


Compartilhamos aqui em nosso blog mais um texto fundamental para compreender o pensamento de Bakunin e suas posições com relação à questão educacional a partir da perspectiva da instrução integral desenvolvida pelo texto homônimo (publicado em série no jornal L'Egalité, periódico da Federação Românica da AIT, entre julho e agosto do ano de 1869).

Utilizamos como base a versão que encontramos em: BAKUNIN, Mikhail. A educação integral. In: MORIYÓN, F. G. (Org.). Educação Libertária. Tradução de José Cláudio de Almeida Abreu. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. E fizemos alguns ajustes necessários a partir da versão disponibilizada pelo Arquivo Bakunin no Scribd (link).


***


I


O primeiro ponto que temos que considerar hoje é o seguinte: Pode ser completa a emancipação das massas operárias, quando a instrução que estas massas recebem é inferior à que se dá aos burgueses, ou quando há em geral uma classe qualquer, numerosa ou não, que, pela origem está destinada aos privilégios de uma educação superior e de uma instrução mais completo? Levantar este problema significa resolvê-lo? Não é evidente que entre dois homens, dotados de inteligência normal mais ou menos igual, aquele que sabe mais, aquele cuja inteligência está mais desenvolvida pela ciência, e que, compreendendo melhor o encadeamento dos fatos naturais e sociais, ou o que se chama de leis da natureza e da sociedade, capta mais fácil e amplamente o caráter do meio em que vive, não é evidente que este se sentirá mais livre, e será também praticamente mais hábil e poderoso do que o outro? O que sabe mais naturalmente dominará o que sabe menos, e se antes de tudo só existisse entre duas classes esta única diferença de instrução e de educação, esta diferença originaria em pouco tempo todas as outras, o mundo dos humanos se encontraria em seu ponto atual, isto é, estaria dividido de novo numa massa de escravos e num pequeno número de dominadores, os primeiros trabalhando como hoje para os últimos.

Compreende-se assim por que os socialistas burgueses pedem somente ensino para o povo, um pouco mais do que tem agora, enquanto que nós, democratas socialistas, pedimos para ele instrução integral, toda a instrução, tão completa como o que leva consigo o poder intelectual do século, a fim de que por cima das classes operárias não se encontre no futuro nenhuma classe que saiba mais e que, exatamente por isto, possa dominá-las e explorá-las. Os socialistas burgueses querem a manutenção das classes, cada um em que representar, segundo eles, uma diferente função social, uma, por exemplo, a Ciência e a outra o trabalho braçal; e nós, pelo contrário, queremos a abolição definitiva e completa das classes, a unificação da sociedade e a igualdade econômica e social de todos os seres humanos da terra. Conservando-as, eles querem ao mesmo tempo diminuir, suavizar e adornar a desigualdade e a injustiça, bases históricas da sociedade atual, e nós queremos destruí-las. Daí se deduz claramente que não é possível nenhum entendimento, nem conciliação e nem mesmo coalizão entre os socialistas burgueses e nós.

Mas eles dirão – e é o argumento que mais frequentemente nos invocam e que os senhores doutrinários de todas as cores consideram um argumento irresistível –: mas é impossível que toda a humanidade se dedique à ciência, ela morreria de fome. É necessário, pois, que, enquanto uns estudem, outros trabalhem, a fim de produzir os objetos necessários para a vida, para eles mesmos em primeiro lugar, e depois também para os homens que se dedicam exclusivamente aos trabalhos da inteligência; pois estes homens não trabalham só para si mesmos: seus descobrimentos científicos, além de desenvolverem a inteligência humana, não melhorariam a condição de todos os seres humanos sem nenhuma exceção, aplicando-se à indústria e à agricultura e, em geral, à vida política e social? As suas criações artísticas não enobrecem a vida de todo o mundo?

Mas não, em absoluto. E a maior censura que temos que fazer à ciência e às artes é exatamente a de não dividir seus benefícios e de não exercer sua influência além de uma pequena parte da sociedade, com exclusão, e por consequência em detrimento também, da imensa maioria. Hoje se pode dizer dos progressos da ciência e das artes o que já se disse, com tanta razão, do desenvolvimento prodigioso da indústria, do comércio, do crédito, enfim da riqueza social, nos países mais civilizados do mundo moderno. Esta riqueza é completamente exclusiva, e cada dia tende a ser mais, ao concentrar-se num número cada vez menor de pessoas, e ao rechaçar as camadas inferiores da classe média, a pequena burguesia, para juntá-la ao proletariado, de tal maneira que o aumento dessa riqueza é diretamente proporcional à crescente miséria das massas operárias. Portanto, o abismo que separa a minoria feliz e privilegiada de milhões de trabalhadores que a fazem viver do trabalho de seus braços se torna cada vez maior, e quanto mais felizes são os felizes, os exploradores do trabalho popular, mais desgraçados são os trabalhadores. Se compararmos só a opulência fabulosa do mundo aristocrático, financeiro, comercial e industrial da Inglaterra com a situação miserável dos operários deste mesmo país, se relermos a carta tão ingênua e patética escrita recentemente por um inteligente e honesto joalheiro de Londres, Walter Dugan, que acaba de se envenenar voluntariamente com a mulher e seis filhos, só para escapar das humilhações e das torturas do homem, seremos obrigados a confessar que esta civilização tão decantada não é, do ponto de vista material, nada mais do que opressão e ruína para o povo.

O mesmo ocorre com os progressos modernos da ciência e das artes. Estes progressos são imensos! Sim, é verdade. Mas quanto mais imensos, mais se transformam numa causa da escravidão intelectual, e, por conseguinte também material, uma causa de miséria e de inferioridade para o povo, pois alargam cada vez mais o abismo que separa a inteligência popular da das classes privilegiadas. A primeira, do ponto de vista da capacidade natural, é hoje menos cética, menos fraca, menos sofisticada e menos corrompida pela necessidade de defender interesses injustos, e por conseguinte é mais poderosa do que a inteligência burguesa; entretanto, ao contrário, esta última tem todas as armas da ciência, e estas armas são formidáveis. Acontece com muita frequência um operário muito inteligente ver-se obrigado a se calar diante de um sábio néscio que o espanca, não pela inteligência, que não tem, mas pela educação de que o operário carece, e que ele pôde receber porque, enquanto sua necedade se desenvolvia nas escolas, o trabalho do operário vestia-o, dava-lhe casa, alimentava-o e ele proporcionava tudo, professores e livros, necessários para a sua instrução.

Sabemos muito bem que o grau de ciência repartido a cada um não é igual nem mesmo na classe burguesa. Aqui também há uma escala determinada não pela capacidade dos indivíduos, mas pela maior ou menor riqueza da camada social em que nasceram; por exemplo, a instrução que as crianças da pequena burguesia recebem, muito superior ao que os operários conseguem dar-se a si mesmos, é quase nulo em comparação com o que a sociedade amplamente dá à alta e média burguesia, que atualmente só está ligada à classe média por uma vaidade ridícula, por um lado e, por outro, pela dependência que tem dos grandes capitalistas, se encontra na maior parte do tempo numa situação mais miserável e muito mais humilhante ainda do que o proletariado. Por isso, quando falamos de classes privilegiadas, jamais nos referimos a esta pobre pequena burguesia, a qual, se tivesse um pouco mais de inteligência e de coração, não tardaria a unir-se a nós para combater a alta e média burguesia que hoje a humilha tanto como ela humilha o proletariado. E se o desenvolvimento econômico da sociedade seguisse nesta direção ainda por uma dezena de anos, o que por outro lado nos parece impossível, poderíamos ver ainda a maior parte da média burguesia cair primeiro na situação atual da pequena burguesia, para um pouco mais tarde ir parar no proletariado, sempre como consequência desta concentração fatal da propriedade num número cada vez mais reduzido de mãos, o que daria como resultado infalível a divisão definitiva do mundo social numa pequena minoria excessivamente opulenta, sábia, dominante, e uma imensa maioria de proletários miseráveis, ignorantes e escravos.

É um fato que surpreende a todas as inteligências conscienciosas, a todos aqueles que se interessam pela dignidade humana, pela justiça, isto é, pela liberdade de cada um na igualdade, e pela igualdade de todos. Todas as invenções da inteligência, todas as grandes aplicações da ciência à indústria, ao comércio e geralmente à vida social, até hoje só têm servido às classes privilegiadas, assim como ao poder dos Estados, estes protetores eternos de todas as iniquidades políticas e sociais, jamais às massas populares. Basta citar as máquinas, para que cada operário e cada partidário sincero da emancipação do trabalho nos dê razão. Que força mantém ainda hoje as classes privilegiadas, com toda a sua insolente felicidade e com todos os seus prazeres iníquos, diante da indignação tão legítima das massas populares? Não, é somente a força do Estado, onde por outro lado seus filhos desempenham hoje, como sempre fizeram, todas as funções dominantes, e inclusive todas as funções médias e inferiores, exceto as dos trabalhadores e soldados. E o que é que constitui principalmente o poder dos Estados hoje? É a ciência.

Sim, é a ciência. Ciência de governo, de administração e ciência financeira; ciência de tosquiar os rebanhos populares sem fazê-los gritar muito, e, quando começarem a gritar, ciência de impor-lhes o silêncio, a paciência e a obediência com uma força cientificamente organizada; ciência de enganar e de dividir as massas populares, de as continuar mantendo numa ignorância saudável, a fim de não conseguirem jamais, ajudando-se mutuamente e reunindo esforços, criar um poder capaz de derrocar os Estados, ciência militar sobretudo, com todas as suas armas aperfeiçoadas e estes formidáveis instrumentos de destruição que “fazem maravilhas” [1]; finalmente, ciência de talento, que criou os barcos a vapor, as estradas de ferro e os telégrafos; as estradas de ferro que, utilizadas pela estratégia militar, multiplicam por dez o poder defensivo e ofensivo do Estado, e os telégrafos que, ao transformarem cada governo em um Briarée de cem, de mil braços, dando-lhe a possibilidade de estar presente, de agir e de tomar em todas as partes, criam as mais formidáveis centralizações políticas que jamais existiram no mundo.

Quem pode, por conseguinte, negar que todos os progressos da ciência, sem nenhuma exceção, não redundaram até agora no aumento da riqueza das classes privilegiadas e do poder dos Estados, em detrimento do bem-estar e da liberdade das massas populares do proletariado? Mas é possível objetar. As massas populares não se aproveitam também destes progressos? Elas não são hoje muito mais civilizadas do que eram nos séculos passados?

A isso respondemos com uma observação de Lasalle, o célebre socialista alemão. Para julgar os progressos das massas operárias, do ponto de vista de sua emancipação política e social, não se pode comparar seu estado intelectual no século presente com seu estado intelectual nos séculos passados. Temos que considerar se, a partir de cada época determinada, uma vez comprovada a diferença que existia então entre elas e as classes privilegiadas, elas progrediram na mesma medida que estas últimas. Pois se houve igualdade nestes dois respectivos progressos, a distância intelectual que as separa hoje do mundo privilegiado será a mesma; se o proletariado progride mais e mais depressa do que os privilegiados, esta distância será necessariamente menor; mas se pelo contrário o progresso do operário for mais lento e por conseguinte menor que o do homem das classes dominantes no mesmo espaço de tempo, esta distância será maior; o abismo que as separava se tornou mais profundo, o homem privilegiado se fez mais poderoso, o operário mais dependente, mais escravo do que na época que se tomou como ponto de partida. Se nos colocarmos, na mesma hora, em dois pontos diferentes, você com cem passos de vantagem sobre mim, e se você der sessenta passos, e eu somente trinta por minuto, ao cabo de uma hora a distância que nos separa não será mais de cem, mas sim de mil e novecentos passos.

Este exemplo dá uma ideia completamente justa dos respectivos progressos da burguesia e do proletariado. Até agora os burgueses caminharam mais depressa no caminho da civilização do que os proletários, não porque sua inteligência fosse maior do que a destes últimos – hoje se poderia dizer com razão o contrário –, mas porque a organização econômica e política da sociedade foi tal que a ciência não existiu senão para eles e que o proletariado se viu condenado a uma ignorância forçada, a tal ponto que mesmo quando avança – e seus progressos são indubitáveis – não é graças à sociedade, mas sim apesar dela.

Vamos resumir. Na organização atual da sociedade, os progressos da ciência foram a causa da ignorância relativa do proletariado, do mesmo modo que os progressos da indústria e do comércio foram a causa de sua miséria relativa. Progressos intelectuais e progressos materiais contribuíram, pois, igualmente, para aumentar a sua escravidão. O que se deduz disto? Que devemos rechaçar e combater a riqueza da burguesia. Combatê-la e rechaçá-la neste sentido, que, ao destruir a ordem social que constitui o patrimônio de uma ou de várias classes, devemos reivindicá-la como o bem comum de todo mundo.

[L'Egalité, Nº 28, 31 de julho de 1869]

II


Demonstramos que enquanto houver dois ou mais graus de instrução para as diferentes camadas da sociedade, haverá necessariamente classes, isto é, privilégios econômicos e políticos para um pequeno número de contemplados, e escravidão e miséria para a maioria.

Membros da Associação Internacional dos Trabalhadores, queremos a igualdade e, porque a queremos, devemos querer também a instrução integral, igual para todo mundo.

Mas, se todo mundo é instruído, nos perguntaremos: quem há de querer trabalhar? E nossa resposta é simples: Todo mundo deve trabalhar e todo mundo deve ser instruído. A isto se costuma responder, com muita frequência, que esta fusão de trabalho industrial com o trabalho intelectual só poderá efetuar-se em detrimento de uns e de outros: os trabalhadores braçais serão mais sábios e os sábios não serão mais do que tristes operários. Sim, na sociedade atual, em que o trabalho braçal e o trabalho da inteligência se desvirtuaram pelo isolamento totalmente artificial a que foram condenados. Mas estamos convencidos de que, no homem vivo e completo, cada uma dessas duas atividades, muscular e nervosa, deve ser desenvolvida por igual, e que, longe de se prejudicarem mutuamente, cada uma deve apoiar, ampliar e reforçar a outra: a ciência do sábio se tornará mais fecunda, mais útil e mais ampla quando o sábio não mais ignorar o trabalho braçal, e o trabalho do operário instruído será mais inteligente e por conseguinte mais produtivo do que o do operário ignorante.

Daqui se deduz que, no interesse do próprio trabalho assim como no da ciência, é necessário que não haja mais nem operários e nem sábios, mas sim homens.

Isto trará como consequência o fato de que os homens que, por sua inteligência superior, se veem hoje atraídos pelo mundo exclusivo da ciência e que, uma vez estabelecidos neste mundo, cedendo à necessidade de uma posição completamente burguesa, dirigem todas as suas invenções à utilidade exclusiva da classe privilegiada da qual eles próprios fazem parte, que estes homens, uma vez que cheguem a ser realmente solidários com todo mundo, solidários, não só em pensamento ou somente com palavras, mas com fatos, pelo trabalho, dirigirão também necessariamente as descobertas e as aplicações da ciência à utilidade de todos, para aliviar e enobrecer antes de tudo o trabalho, a única base legítima e real da sociedade humana.

É possível e inclusive muito provável que na época de transição mais ou menos longa que naturalmente sucederá à grande crise social, as ciências mais elevadas decairão consideravelmente em relação ao nível atual; como também não há dúvida de que o luxo e todos os refinamentos da vida terão que desaparecer da sociedade durante muito tempo, e não mais poderão reaparecer como desfrute exclusivo, mas sim como enobrecimento da vida de todos, quando a sociedade tiver conquistado o necessário para todos. Mas este eclipse temporário da ciência superior será uma desgraça tão grande? O que a ciência vai perder em elevação sublime não ganhará ao ampliar a sua base? Haverá, sem dúvida, menos sábios ilustres, mas, ao mesmo tempo, menos ignorantes. Já não haverá uns tantos homens que toquem o céu, mas ao contrário milhões de homens que em vez de estarem como hoje aviltados, esmagados, caminharão humanamente pela terra; nada de semideuses, nada de escravos. Os semideuses e os escravos se humanizarão ao mesmo tempo, uns abaixando um pouco, os outros subindo muito. Já não haverá, pois, lugar nem para a divinização nem para o desprezo. Todos se darão a mão, e, uma vez unidos, caminharão com novo ardor em direção a novas conquistas, iguais na ciência e na vida.

Longe de temer este eclipse da ciência, por sinal totalmente momentâneo, nós o pediremos com veemência, porquanto terá por efeito humanizar ao mesmo tempo os sábios e os trabalhadores braçais, reconciliar a ciência e a vida. Estamos convencidos de que, uma vez conquistada esta nova base, os progressos da humanidade, tanto na ciência como na vida, superarão com rapidez o que vimos e tudo o que podemos imaginar hoje.

Mas isto levanta outro problema: Todos os indivíduos são igualmente capazes de alcançar o mesmo grau de instrução? Imaginemos uma sociedade organizada segundo a maneira mais igualitária possível e em que todas as crianças tenham desde o nascimento o mesmo ponto de partida, tanto no plano econômico e social como no político, ou seja, exatamente o mesmo cuidado, a mesma educação, o mesmo ensino; não haverá entre estes milhares de pequenos indivíduos diferenças infinitas de energia, de tendências naturais, de aptidões?

Este é o grande argumento de nossos adversários, burgueses puros e socialistas burgueses. Creem-no irresistível. Tentemos pois provar o contrário. Em primeiro lugar, com que direito se fundamentam no princípio das capacidades individuais? Há lugar para o desenvolvimento destas capacidades na sociedade tal como é? Pode haver um lugar para o desenvolvimento numa sociedade que continuará tendo como base econômica o direito de herança? Evidentemente que não, pois desde o momento em que houver herança, a carreira das crianças não será nunca o resultado de suas capacidades e de sua energia individual; será antes de mais nada o do estado de fortuna, da riqueza e da miséria de suas famílias. Os herdeiros ricos, porém néscios, receberão um ensino superior, as crianças mais inteligentes do proletariado continuarão recebendo como herança a ignorância, exatamente como se pratica agora. Não é, pois, uma hipocrisia, um engano infame, falar de direitos individuais fundados em capacidades individuais não só na atual sociedade, mas também inclusive com vistas a uma sociedade reformada, que não obstante continuaria tendo como base a propriedade individual e o direito de herança?

Fala-se tanto de liberdade individual hoje, e, no entanto, o que domina não é em absoluto o indivíduo humano, o indivíduo considerado em geral, é o indivíduo privilegiado por sua posição social, é por conseguinte a posição, a classe. Que se atreva um indivíduo inteligente da burguesia a levantar-se contra os privilégios econômicos desta classe respeitável, e veremos o quanto estes bons burgueses, que neste momento só têm na boca a liberdade individual, respeitarão a sua. E ainda se fala em capacidades individuais! Não vemos cada dia as maiores capacidades operárias e burguesas forçadas a dar passagem e inclusive abaixar a cabeça diante da estupidez dos herdeiros do bezerro de ouro? A liberdade individual, não privilegiada mas sim humana, as capacidades reais dos indivíduos só poderão realizar seu pleno desenvolvimento em plena igualdade. Quando houver igualdade de ponto de partida para todos os homens da terra, somente então – ressalvando, sem embargo, os direitos superiores da solidariedade, que são e serão sempre o maior produto de todas as coisas sociais: inteligência humana e bens materiais –, se poderá dizer, com muito mais razão que hoje, que todo indivíduo é filho de suas obras. Daí concluirmos que, para que as capacidades individuais prosperem e não haja impedimento quanto a dar frutos, é necessário antes de tudo que todos os privilégios individuais, tanto econômicos como políticos, tenham desaparecido, isto é, que todas as classes sociais sejam abolidas. É necessário o desaparecimento da propriedade individual e do direito de herança, é necessário o triunfo econômico, político e social da igualdade.

Mas uma vez vitoriosa a igualdade e bem estabelecida, não haverá mais nenhuma diferença entre as capacidades e os graus de energia das pessoas? Sim; haverá, talvez não tanto como hoje, mas, sem dúvida, sempre existirá. É uma verdade que se tornou proverbial, e que provavelmente não deixará nunca de ser uma verdade: na mesma árvore não há nunca duas folhas idênticas. Com muito mais razão, será sempre verdade em relação aos homens, uma vez que estes são seres muito mais complexos do que as folhas. Mas esta diversidade, longe de ser um mal, é ao contrário uma riqueza do homem, como bem observou o filósofo alemão Feuerbach. Graças a ela a humanidade forma um conjunto em que uns completam os outros e se necessitam mutuamente e de tal modo que esta diversidade infinita dos indivíduos humanos é a causa, a base principal da solidariedade, um argumento bastante poderoso em favor da igualdade.

No fundo, inclusive na sociedade atual, excetuam-se duas categorias de homens, os homens de talento e os idiotas, e se se fizer abstração das diferenças criadas artificialmente por influência de mil causas sociais, tais como educação, instrução, posição econômica e política, que são diferentes não só em cada camada social, mas também quase em cada família, se admitirá que, do ponto de vista das capacidades intelectuais e de energia moral, a grande maioria dos homens se parece muito ou que, pelo menos, vem a ser a mesma coisa, uma vez que a debilidade de cada um é compensada, sob certo aspecto, por uma força equivalente em outro, de tal maneira que é impossível dizer que um homem feito desta matéria possa ser muito superior ou muito inferior ao outro. A grande maioria dos homens não é idêntica mas sim equivalente e, por conseguinte, igual. Portanto, na argumentação de nossos adversários não sobram senão os homens de talento e os idiotas.

A idiotia é, como se sabe, uma doença fisiológica e social. Deve ser, pois, tratada não nas escolas, mas nos hospitais e temos o direito de esperar que a introdução de uma higiene social mais racional do que a de hoje, e sobretudo mais cuidadosa com a saúde física e moral dos indivíduos, e a organização igualitária da nova sociedade, acabem fazendo desaparecer completamente da superfície da terra esta doença tão humilhante para a espécie humana. Quanto aos homens de talento, tem-se que observar em primeiro lugar que, feliz ou infelizmente, como se queira, eles apareceram na história como raras exceções a todas as regras conhecidas e as exceções não se organizam. Esperemos, portanto, que a sociedade futura encontre na organização realmente prática e popular de sua força coletiva o meio para que estes grandes talentos sejam menos necessários, menos humilhantes e realmente mais benfeitores para todo mundo. Pois não se pode jamais esquecer as palavras profundas de Voltaire: “Existe alguém que tem mais inteligência do que os maiores gênios, este alguém é todo mundo”. Trata-se portanto de organizar este todo mundo com a maior liberdade, fundamentada na mais completa igualdade econômica, política e social, para que não haja nada mais a temer das veleidades ditatoriais e das ambições políticas dos homens de talento.

Quanto a produzir homens de talento por meio da educação, não há que se pensar nisto. Por outro lado, de todos os homens de talento conhecidos, nenhum ou quase nenhum se manifestou como tal na infância, nem na adolescência e nem mesmo na primeira juventude. Só se mostraram como tal na maturidade, e muitos só depois da morte é que foram reconhecidos, enquanto outros grandes homens, que haviam sido proclamados homens superiores em sua juventude, terminaram a carreira na mais completa nulidade. Não é portanto, de nenhum modo, na infância, nem na adolescência que se podem determinar as superioridades e as inferioridades relativas dos homens, nem o grau de suas capacidades e de suas inclinações naturais. Tudo isto só se manifesta e só se determina pelo desenvolvimento dos indivíduos e, como há naturezas precoces e outras muito lentas, embora de nenhum modo inferiores, às vezes até superiores, nenhum professor poderá jamais precisar com antecipação a carreira e o tipo de ocupação que as crianças vão escolher quando chegarem à idade da liberdade.

Daí se conclui que a sociedade, sem nenhuma consideração pelas diferenças reais ou fictícias das inclinações e das capacidades, e não tendo nenhum meio para determinar, nem direito para fixar a futura carreira das crianças, deve a todas elas sem exceção, uma educação e uma instrução absolutamente iguais.

[L'Egalité, Nº 29, 7 de agosto de 1869]

III


A instrução deve ser igual para todos em todos os graus, por conseguinte deve ser integral, quer dizer, deve preparar cada criança de ambos os sexos tanto para a vida do pensamento como para a do trabalho, a fim de que todos possam igualmente tornar-se homens completos.

A filosofia positiva [2], tendo destronado nas mentes as fábulas religiosas e os sonhos da metafísica, nos permite prever o que será no futuro a instrução científico. Terá o conhecimento da natureza como base e a sociologia como auge. O ideal, ao deixar de ser o dominador e o violador de todos os sistemas metafísicos e religiosos, será a partir de agora a última e mais bela expressão do mundo real. Ao deixar de ser sonho, ele próprio se transformará em realidade.

Inteligência alguma, por mais prodigiosa que seja, é capaz de abarcar todas as ciências em sua especialidade, e como, por outro lado, é absolutamente necessário para o completo desenvolvimento da inteligência um conhecimento geral de todas as ciências, o ensino se dividirá naturalmente em duas partes: a parte geral, que dará os elementos principais de todas as ciências sem nenhuma exceção, do mesmo modo que o conhecimento, não superficial, porém real do seu conjunto; e a parte específica dividida necessariamente em vários grupos ou faculdades, cada uma delas abrangendo em toda a sua especialidade um certo número de ciências que, pela própria natureza, são especialmente destinadas a se completarem.

A primeira parte, a parte geral, será obrigatória a todas as crianças; constituirá, se assim podemos dizer, a educação humana da sua inteligência, substituindo completamente a metafísica e a teologia, e ao mesmo tempo colocando as crianças num ponto de vista bastante elevado para que, uma vez na adolescência, possam escolher com pleno conhecimento de causa a faculdade que melhor convenha a suas disposições individuais, a seus gostos.

Sem dúvida ocorrerá que, ao escolherem a sua especialidade científica, os adolescentes influenciados por algum motivo secundário, seja exterior ou interior, muitas vezes se equivocarão e poderão optar em primeiro lugar por uma faculdade e por uma carreira que não sejam precisamente aquelas que melhor se adaptariam às suas aptidões.

Mas como somos partidários, não hipócritas e sim sinceros, da liberdade individual; como, em nome desta liberdade, depreciamos com toda a alma o princípio de autoridade, assim como todas as manifestações possíveis deste princípio divino, anti-humano; como depreciamos e condenamos, com toda a profundidade do nosso amor pela liberdade, a autoridade paterna do mesmo modo que a do professor; como as consideramos igualmente desmoralizantes e funestas, e como a experiência de cada dia nos demonstra que o pai de família e o professor, apesar da sua sabedoria necessária e proverbial, e até por causa desta sabedoria, se equivocam sobre as capacidades de seus filhos, muito mais ainda que as próprias crianças, e que segundo esta lei tão humana, lei incontestável, fatal, de que abusará qualquer homem que domine, os professores e os pais de família, ao determinarem arbitrariamente o futuro de seus filhos, levam muito mais em conta os seus próprios gostos do que as tendências naturais das crianças; como finalmente as faltas cometidas pelo despotismo são sempre mais funestas e menos remediáveis do que as cometidas pela liberdade, manifestamo-nos plenamente contra todos os tutores oficiais, oficiosos, paternalistas e pedantes do mundo e a favor da liberdade das crianças de escolherem e determinarem a sua própria carreira.

Se elas errarem, este próprio erro também lhe servirá de ensino eficaz para o futuro, e como o ensino geral que tiverem recebido lhes servirá de luz, elas poderão facilmente voltar ao caminho que a sua própria natureza lhes tiver indicado.

As crianças, como os adultos, só chegam à sabedoria pela própria experiência e nunca pelos outros.

Na instrução integral, ao lado do ensino científico ou teórico, deverá existir necessariamente o ensino industrial ou prático. Somente assim é que se formará o homem completo: o trabalhador que compreende e que sabe.

O ensino industrial, paralelamente ao científico, dividir-se-á também em duas partes: o ensino geral, que deve dar às crianças a ideia geral e o primeiro conhecimento prático de todas as indústrias, sem exceção de nenhuma, assim como a ideia de conjunto que constitui a civilização material, a totalidade do trabalho humano; e a parte específica, dividida em grupos de indústrias vinculadas entre si mais especificamente.

O ensino geral deve preparar os adolescentes para escolherem livremente o grupo específico de indústrias e, entre estas, muito particularmente a indústria pela qual têm mais preferência. Uma vez nesta segunda fase de ensino industrial, farão, sob a orientação de professores, as primeiras aprendizagens do trabalho sério.

Ao lado do ensino científico e industrial haverá também necessariamente o ensino prático, ou melhor, uma série sucessiva de experiências de moral, não divina, mas sim humana. A moral divina se fundamenta em dois princípios imorais: o respeito à autoridade e o desprezo da humanidade. A moral humana, ao contrário, se fundamenta no desprezo da autoridade e no respeito à liberdade e à humanidade. A moral divina considera o trabalho como uma degradação e como um castigo; a moral humana vê nele a condição suprema da felicidade humana e da humana dignidade. A moral divina, necessariamente, desemboca numa política que só reconhece direitos aos que, por sua posição econômica privilegiada, podem viver sem trabalhar. A moral humana só atribui direitos aos que trabalham; ela reconhece que só pelo trabalho é que o homem se torna homem.

A educação das crianças, ao tomar como ponto de partida a autoridade, deve sucessivamente desembocar na mais completa liberdade. Entendemos por liberdade, do ponto de vista positivo, o pleno desenvolvimento de todas as faculdades que se encontram no homem e, do ponto de vista negativo, a completa independência da vontade de cada um frente à dos outros.

O homem não é e nem será nunca livre frente às leis naturais, frente às leis sociais; as leis, que assim se dividem em duas categorias para maior comodidade da ciência, não pertencem na verdade mais que a uma só e única categoria, pois todas elas são igualmente leis naturais, leis fatais e que constituem a base e a própria condição de toda existência, de tal maneira que nenhum ser vivo poderia rebelar-se contra elas sem suicidar-se.

Mas é preciso distinguir bem estas leis naturais das leis autoritárias, arbitrárias, políticas, religiosas, criminais e civis, que as classes privilegiadas estabeleceram ao longo da história, sempre em benefício da exploração do trabalho das massas operárias, com o único fito de amordaçar a liberdade destas massas, leis que sob o pretexto de uma moralidade fictícia foram sempre a fonte da mais profunda imoralidade. Assim, obediência involuntária e fatal a todas as leis que, independentes de qualquer vontade humana, são a própria vida da natureza e da sociedade; porém independência tão absoluta quanto possível de cada um diante de todas as pretensões de ordem, diante de todas as vontades humanas, tanto coletivas quanto pessoais, que quisessem impor não sua influência natural e sim a sua lei e despotismo.

Quanto à influência natural que os homens exercem uns sobre os outros é ainda uma dessas condições de vida social contra as quais a rebelião seria tão inútil quanto impossível. Esta influência é a base mesma, material, intelectual e moral, da solidariedade humana. A pessoa humana, produto da solidariedade, vale dizer da sociedade, sendo submissa às leis naturais, pode, sob a influência de sentimentos vindos de fora, e sobretudo de uma sociedade estrangeira, reagir até certo ponto contra ela, mas não pode liberar-se disto sem se colocar imediatamente em outro meio solidário e sem sofrer em seguida novas influências. Pois para o homem a vida fora de qualquer sociedade e de todas as influências humanas, o isolamento absoluto é a morte intelectual, moral e também material. A solidariedade não é produto, mas a mãe da individualidade, e a personalidade humana não pode nascer e desenvolver-se senão na sociedade humana.

A soma das influências sociais dominantes, expressa pela consciência solidária ou geral de um grupo humano mais ou menos amplo, se chama opinião pública. E quem não conhece a poderosa ação da opinião pública sobre os homens? A ação das mais draconianas leis restritivas é nula comparada com ela. Ela é, pois, por excelência a educadora dos homens; de onde se deduz que para moralizar os homens é necessário moralizar primeiro a sociedade, humanizar a sua opinião e a sua consciência pública.

[L'Egalité, Nº 30, 14 de agosto de 1869]

IV


Para moralizar os homens, já dissemos, tem-se que moralizar o meio social.

O socialismo, fundado na ciência positiva, rechaça totalmente a doutrina do livre arbítrio; reconhece que tudo o que é chamado de vícios e virtudes dos homens é necessariamente o produto da ação combinada da natureza e da sociedade. A natureza, na qualidade de ação etnográfica, fisiológica e patológica, cria as disposições que são chamadas de natureza, e a organização social as desenvolve, as detém ou fabrica o seu desenvolvimento. Todos os indivíduos, sem exceção alguma, são, ao longo de suas vidas, produto da natureza e da sociedade.

A ciência estatística só é possível graças a esta fatalidade natural e social. Esta ciência não se contenta em constatar e enumerar os fatos sociais; ela procura o encadeamento e a correlação com a organização da sociedade. A estatística criminal, por exemplo, constata que num mesmo país, numa mesma cidade, durante um período de dez, vinte, trinta anos, e às vezes mais, se nenhuma crise política e social mudar as condições da sociedade, o próprio crime ou delito repetir-se-á a cada ano quase que na mesma proporção; e, o que é ainda mais notável, a maneira de cometê-lo repetir-se-á quase que no mesmo número de vezes num ano e em outro: por exemplo, o número de envenenamentos, de homicídios com arma branca ou de fogo, do mesmo modo que o número de suicídios por este ou aquele meio, são quase sempre os mesmos. O que levou o célebre estatístico belga Quetelet a dizer em memorável frase: “A sociedade prepara os crimes e os indivíduos não fazem senão executá-lo”.

Este retorno periódico dos mesmos fatos sociais não ocorreria se as disposições intelectuais e morais dos homens, do mesmo modo que os atos de sua vontade, tivessem como princípio o livre arbítrio. Esta palavra, livre arbítrio, ou não tem sentido, ou significa que o indivíduo humano se determina espontaneamente por si próprio, fora de toda influência exterior, seja ela natural ou social. Mas se fosse assim, se todos os homens agissem só por si mesmos, haveria no mundo a maior amargura; qualquer solidariedade entre eles seria impossível, e todas estas inúmeras vontades totalmente independentes umas das outras e que se chocam entre si, necessariamente tenderiam a se destruir umas às outras e acabariam por fazê-lo, se não pairasse sobre elas a despótica vontade da divina Providência, que “as guia enquanto elas se agitam”, e que ao destruí-las impõe a ordem divina nesta humana confusão.

Vemos assim todos os partidários do princípio do livre-arbítrio forçados fatalmente pela lógica a reconhecer a existência e a ação de uma Providência divina. É a base de todas as doutrinas teóricas e metafísicas, um sistema magnífico que satisfez por muito tempo a consciência humana, e que, do ponto de vista da reflexão abstrata ou da imaginação religiosa e poética, visto de longe, parece, de fato, cheio de harmonia e grandeza. Só que é uma pena que a realidade histórica que correspondeu a este sistema tenha sido horrível e que o próprio sistema não suporte a crítica científica.

De fato, sabemos que, enquanto o direito divino reinou na terra, a imensa maioria dos homens foi brutal e cruelmente explorada, atormentada, oprimida, dizimada; sabemos que ainda hoje continua existindo em nome da divindade metafísica ou teológica um esforço por manter as massas populares na escravidão; e não podia ser diferente, pois, desde o momento em que existe uma vontade divina que governa o mundo, a natureza e a sociedade, a liberdade humana é totalmente anulada. A vontade do homem é necessariamente impotente em presença da vontade divina. O que se conclui? Que ao querermos defender a liberdade metafísica abstrata ou fictícia do homem, o livre arbítrio, somos obrigados a negar sua liberdade real. Diante da toda poderosa onipresença divina o homem é escravo. Ao ser destruída a liberdade do homem em geral pela Providência divina, não resta senão o privilégio, isto é, os direitos especiais concedidos pela graça divina a tal indivíduo, a hierarquia [3], a tal dinastia, a tal classe.

Também a Providência divina torna impossível qualquer ciência, o que quer dizer que é simplesmente a negação da razão humana, ou então que, pata reconhecê-la, tem-se que renunciar a seu próprio sentido comum. A partir do momento em que o mundo é governado pela vontade divina não há mais «que buscar o encadeamento natural dos fatos, e sim uma série de manifestações dessa vontade suprema, cujos decretos, como diz a Sagrada Escritura, são e devem continuar sendo impenetráveis para a razão humana, sob pena de perder o seu caráter divino. A divina Providência não é somente a negação de toda lógica humana, é também da lógica em geral, pois toda lógica implica uma necessidade natural, e esta necessidade seria contrária à liberdade divina; é, sob o ponto de vista humano, o triunfo do absurdo. Aqueles que querem crer devem pois renunciar tanto à liberdade quanto à ciência; e no deixar-se explorar, apanhar dos privilegiados do bom Deus, devem repetir com Tertuliano: Creio porque é absurdo [4], acrescentando mais estas palavras, tão lógicas quanto as primeiras: E quero a iniquidade.

Quanto a nós que renunciamos à felicidade de outro mundo, e que reivindicamos o triunfo completo da humanidade nesta terra, confessamos humildemente que não compreendemos nada da lógica divina, e que nos contentaremos com a lógica humana fundamentada na experiência e no conhecimento do encadeamento dos fatos, tanto naturais como sociais.

Esta experiência acumulada, coordenada e meditada, que chamamos de ciência, nos demonstra que o livre arbítrio é uma ficção impossível, contrária à própria natureza das coisas; que aquilo que se chama de vontade não é mais que o produto do exercício de uma faculdade nervosa, do mesmo modo que a nossa força física não é mais que o produto do exercício de nossos músculos, e que como consequência uma e outra são igualmente produtos da vida natural e social, quer dizer, das condições físicas e sociais dentro das quais cada pessoa nasceu e continua se desenvolvendo; e repetimos que todo homem, ao longo de sua vida, é produto da ação combinada da natureza e da sociedade, de onde se deduz claramente a verdade que enunciamos no artigo anterior: para moralizar os homens tem-se que moralizar o meio social.

Para moralizá-lo só há um meio: fazer triunfar nele a justiça, isto é, a mais completa liberdade [5] de cada um, na mais perfeita igualdade de todos. A desigualdade de condições e de direitos, e a ausência de liberdade para cada um, que é fatalmente o seu resultado, é a grande iniquidade coletiva que dá origem a todas as iniquidades individuais. Basta suprimi-la e todas as outras desaparecerão.

Tememos que o triunfo da justiça só se efetue por meio da revolução social, dado o pouco interesse que têm as pessoas privilegiadas em se deixarem moralizar ou, o que dá no mesmo, em se deixarem igualar. Não vamos falar disto agora, nos limitaremos a proclamar esta verdade, por sinal tão evidente, de que enquanto o meio social não se moralizar, a moralidade das pessoas será impossível.

Para que os homens sejam morais, isto é, homens completos no pleno sentido da palavra, são necessárias três coisas: um nascimento higiênico, uma instrução racional e integral acompanhado de uma educação fundamentada no respeito ao trabalho, à razão, à igualdade e à liberdade, e um meio social em que todo indivíduo, desfrutando de plena liberdade, fosse realmente, de fato e de direito, igual a todos os outros.

Existe este meio? Não. Por conseguinte tem-se que criá-lo. Se no meio que existe se criassem escolas que dessem aos alunos o ensino e a educação tão perfeitos como imaginamos, chegaríamos a criar homens justos, livres, morais? Não, pois ao saírem da escola eles se veriam numa sociedade dirigida por princípios bastante contrários, e, como a sociedade é sempre mais forte do que os indivíduos, ela logo os dominaria, isto é, os desmoralizaria. Além disso, a criação de tais escolas seria impossível no meio social atual, pois a vida social abrange tudo, invade as escolas assim como a vida das famílias e de todas as pessoas que fazem parte dela.

Os professores, os pais são todos membros desta sociedade, todos mais ou menos embrutecidos ou desmoralizados por ela. Como iriam dar aos alunos o que eles próprios não têm? Só com o exemplo é que se prega bem a moral, e, ao ser a moral socialista contrária à moral atual, os professores, necessariamente dominados por esta, fariam diante dos alunos exatamente o contrário do que estariam pregando. De sorte que a educação socialista é impossível nas escolas assim como nas famílias atuais.

Mas a instrução integral é também impossível nela: os burgueses não compreendem de jeito nenhum que seus filhos possam se tornar trabalhadores, e os trabalhadores estão privados dos meios para darem a seus filhos o ensino científico.

Gosto muito destes bons socialistas burgueses que sempre dizem: “Primeiro vamos instruir o povo, e depois emancipá-lo”. E nós, ao contrário, dizemos: Primeiro emancipá-lo e ele se instruirá por si mesmo. Quem vai instruir o povo? Vocês? Mas vocês não podem instruí-lo, vão é envenená-lo, inculcando nele todos esses preconceitos religiosos, históricos, políticos, jurídicos e econômicos, e ao mesmo tempo matar a sua inteligência e debilitar a sua legítima indignação e vontade. Com o trabalho diário e com a miséria, vocês vão é rebentar o povo e ainda dirão: “Instrui-vos!” Gostaríamos muito de ver como vocês os instruiriam, juntamente com os seus próprios filhos, depois de treze, quatorze, dezesseis horas de trabalho bruto, com a miséria e a incerteza do dia seguinte como única recompensa.

Não, meus senhores, apesar de todo o nosso respeito pelo grande problema da instrução integral, declaramos que atualmente ele não é o maior problema do povo. O problema mais importante é o da emancipação econômica, que engendra necessariamente, e ao mesmo tempo, a emancipação política e imediatamente após a emancipação intelectual e moral.

Daí adotarmos plenamente a resolução votada no Congresso de Bruxelas (1867):

“Reconhecendo que no momento é impossível organizar um ensino racional, o Congresso convida as diferentes seções a estabelecer aulas públicas seguindo um programa de ensino científico, profissional e produtivo, isto é, ensino integral, para remediar o mais possível a insuficiente educação que os operários recebem atualmente. E naturalmente a redução das horas de trabalho é considerada como uma condição prévia indispensável”.

Sim, sem dúvida, os operários farão todo o possível para se proporcionar a educação que puderem, dentro das condições materiais de que dispõem atualmente. Porém, sem se deixar dissuadir pelas vozes de sirena dos burgueses e dos socialistas burgueses, eles concentrarão antes de mais nada os seus esforços neste grande problema da emancipação econômica, que será a mãe de todas as outras emancipações.

[L'Egalité, Nº 31, 21 de agosto de 1869]


Notas:


[1] – Nota da edição de Moriyón: Alusão às palavras do General de Failly no dia seguinte de Montana (3 de novembrode 1867): “Les chassepots (fuzil antigo do exército francês) fizeram maravilhas”, palavras que todo mundo recordam então.

[2] – Nota da edição de Moriyón: Coma expressão “filosofia positiva”, Bakunin não quer dizer de maneira alguma positivismo ou comtismo, cujos defeitos ele mostrou com absoluta clareza em seu Apêndice (Considerações filosóficas sobre o fantasma divino, sobre o mundo real e sobre os homens) impresso no tomo III das Obras. Ele se refere à filosofia científica em geral, que se apoia na observação e na experiência.

[3] – Nota da edição de Moriyón: Bakunin parece tomar aqui a palavra em seu sentido etimológico, “governo sacerdotal”.

[4] – Nota da versão disponibilizada pelo Arquivo Bakunin: “Credo quia absurdum”.

[5] Nota de Bakunin (segundo a versão do Arquivo): Já dissemos aquilo que entendemos por liberdade: por um lado, o desenvolvimento completo quanto possível de todas as capacidades naturais de cada indivíduo, e, por outro, a sua independência, não relativamente às leis naturais e sociais, mas relativamente a todas as leis impostas por outras vontades humanas, sejam coletivas ou isoladas.

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