quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Análise de um protesto contra o Carrefour

Captura de tela de um vídeo do site de notícias G1. Fonte: link.

Resumo: análise do protesto do dia 23 de novembro, realizado na zona leste de Porto Alegre (RS) e que faz parte da revolta desencadeada contra o assassinato de João Alberto Silveira Freitas por seguranças da loja multinacional Carrefour.

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No dia 23 de novembro ocorreu em Porto Alegre o segundo protesto da revolta contra o assassinato de João Alberto Silveira Freitas (conhecido popularmente pelo apelido de Beto). Nosso objetivo não é somente relatar o acontecimento, como também analisar seu processo, extraindo conclusões e ensinamentos. Além disso, buscaremos adicionar alguns fatos complementares.

Em uma publicação recente, nós descrevemos o contexto da revolta e elaboramos um objetivo definido para atuar nessa conjuntura: “A tarefa das minorias conscientes e autônomas do proletariado é incentivar a revolta, radicalizando-a para direcioná-la em função de nossos interesses de classe. Devemos denunciar o oportunismo de esquerda que busca privilegiar a agenda eleitoral” (Communismo Libertário, A revolta da classe proletária: a incidência da luta internacional no território brasileiro). Esse será o critério utilizado na avaliação do protesto.

Para nossa análise, vamos utilizar o mapa que fizemos a partir de uma captura de tela do Google Maps:

Mapa construído com a ajuda do Google Maps. Fonte: link.

Como já indicado no mapa, o Carrefour em que ocorreu a manifestação é localizado na avenida Bento Gonçalves, na Zona Leste de Porto Alegre. Nessa avenida os dois sentidos são divididos por duas estradas. O supermercado fica no lado esquerdo.

A concentração da manifestação começou às 18h, mas o Carrefour já havia fechado seu estabelecimento às 16h. Mesmo se antecipando em duas horas, os patrões mantiveram seus funcionários presos na loja contra a vontade dos mesmos e mandaram que eles ficassem “escondidos” [1]. Além de exporem a riscos os trabalhadores e as trabalhadoras do local, eles provavelmente queriam colocá-los contra os manifestantes e, na pior das hipóteses, usá-los como escudo em caso de ocupação da loja. Sabe-se que eles só foram liberados às 22h.

Foto tirada na entrada onde ocorria a concentração da manifestação.

Essa situação é emblemática, pois revela o quanto o poder sobre a força de trabalho de que dispõem os patrões é um poder ditatorial e que só na aparência do contrato de trabalho que temos a impressão de haver “liberdade”. Mas como proletários, nós sabemos na prática que a relação trabalhista é de submissão à autoridade do local de trabalho e que a palavra “colaboradores” não passa de um eufemismo para escravos assalariados.

Uma divisão que não fará síntese


Não podemos dizer com exatidão quais eram todos os movimentos presentes nessa ocasião, mas vamos dividir os que estavam presentes em dois conjuntos: os que seguiram pela estrada direita (no sentido que vai pra Viamão) e os que foram na estrada esquerda (na contramão do sentido que vai pro Centro da cidade). A manifestação que foi pela esquerda contou com a presença de anarquistas, o movimento autônomo, pessoas independentes de organização, a Unidade Popular (UP) e a Transição Socialista (TS). O resto dos movimentos sociais foram pela direita (MRT, PSOL, PCdoB, PSTU e demais que não foram lembrados).

Basta olhar no mapa que fizemos para que fique evidente que o pessoal que foi pela direita (que ironia) estava mantendo distância do supermercado. Apesar da utilidade em fechar as duas vias, o contingente maior de pessoas seguiu pela direita onde não era necessário senão manter uma quantidade mínima para fechar o trânsito.

Veja como esquina do mercado ficava de um lado e os que seguiam pela direita ficavam de outro em nosso GIF:

GIF criado a partir de vídeo gravado do ato.

Por sua vez, a minoria que foi pela esquerda deu cobertura para as ações diretas que consistiam em arrancar as grades que ficam na entrada que vai pro estacionamento do mercado. O mercado é de difícil acesso pela avenida principal, pois fica em uma descida em formato de barranco de, pelo menos, uns 10 metros.

Já podemos concluir aqui que o protesto estava dividido, não havia alinhamento e nem unidade. Uma ausência de coesão nas forças de uma manifestação nos deixa debilitados diante de uma eventual repressão e impede uma ação unitária efetiva. Não obstante, seria ingênuo demais imaginar que haveria unidade entre grupos com objetivos e métodos tão distintos.

Há quem chame de “unidade na ação” ou “unidade tática” essa “partilha” que é realizada num determinado ato em função da “pauta em comum”. No entanto, contestamos essa concepção pragmática e oportunista. Jamais haverá unidade com quem não acompanha a radicalização da nossa classe social, que dirá com organizações sociais-democratas que defendem vidraças e clamam para que não haja “confronto”. Não devemos colaborar em nada com quem entregaria nossos companheiros para a polícia na primeira oportunidade que tiver ao taxar nossa revolta de “vandalismo”.

Mas isso não significa que não devemos participar desses processos. Existem companheiros e companheiras que estão presentes nesses atos, além de pessoas de nossa classe que ainda hesitam diante das situações que lhes parecem confusas demais para adotar algum posicionamento mais rígido. Nossa presença em ações de massa é fundamental para minar a influência do oportunismo e da direção social-democrata. Já falamos acima que este é um de nossos objetivos nessa revolta.

Pois então, o pessoal da direita só faltou ir pra Viamão (região metropolitana) numa procissão sem fim, pois além de passarem longe do Carrefour, continuaram andando para além do local do supermercado. Enquanto isso, houve quem tentou reter o máximo de pessoas possíveis entorno do mercado, denunciando os sociais-democratas ao ecoarem: “O Carrefour é pra cá! Onde vocês vão?” .

Repressão e conivência: um conluio disfarçado de “correlação de forças”


Infelizmente nós não chegamos a entrar no estabelecimento, nem tampouco no estacionamento. Se tivéssemos nos concentrado em ocupar aquele espaço, poderíamos ter entrado na loja e ajudado os trabalhadores e trabalhadoras a se livrarem do cárcere em que estavam submetidos! Mas a polícia tinha permissão de entrar no estacionamento a hora que quisessem e dispunham de dois contingentes para evitar qualquer tentativa de entrar na loja.

Enquanto a manifestação seguia pela Bento Gonçalves, o contingente número 1 (ver mapa) se concentrou atrás do ato, pela retaguarda. O contingente número 2 permaneceu concentrado no local indicado no mapa.

PM se deslocando para formar um bloco na retaguarda do protesto.

Os grupos de ação direta retiravam as grades da esquina do supermercado e as colocavam no meio da rua para formar barricadas, junto a cartazes que colocavam fogo. Parte dos policiais do contingente 2 entrou no estacionamento e formou seu bloco lá. Não havia como descer aquele barranco para enfrentar os policiais, dado que o gás lacrimogênio se concentraria na inclinação atrás das pessoas e forçaria elas a irem em direção ao próprio batalhão da tropa de choque posicionada logo à frente (uma grande vantagem territorial).

Quando a Polícia Militar anunciou seus 5 min para começar a repressão, o conjunto que estava na estrada direita debandou, como já era de se esperar. A justificativa é sempre a mesma: “não havia correlação de forças”. Na verdade, não havia força alguma da parte desses grupos sociais-democratas em entrar num confronto direto com a polícia.

Os policiais estavam vindo tanto da direita quanto da esquerda, encurralando que havia ficado na avenida. Se formavam barricadas na rua. Havia sobrado um grupo pequeno e minoritário das pessoas que estavam participando do protesto. A intenção era resistir e pensar numa alternativa diante daquela situação.

No entanto, a polícia começou uma repressão brutal com o uso de muito gás lacrimogênio. Eles também usaram balas de borracha para quem tentava fugir subindo em direção ao Morro da Cruz [2]. Mas antes disso ocorrer, foi registrado um sujeito estranho na manifestação dizendo: “se a PM vier, fujam para aquela direção” (apontando justamente para o caminho que dava para as comunidades do Morro da Cruz). Provavelmente era um P2 (policial infiltrado). De qualquer forma, se a intenção fosse recuar sem abandonar totalmente o protesto, a alternativa seria ir para essa direção mesmo.

Os manifestantes foram por esse caminho citado. Longe de dificultar o trabalho da PM, isso garantiu o território principal (a Bento Gonçalves) a eles e uma vantagem que não tinha mais como driblar (eles fecharam os caminhos de volta mirando suas armas contra quem avançasse em direção à Bento). Depois disso, era só uma questão de tempo até todos se dispersarem e outros serem detidos pela PM.

Não fizeram prisões dessa vez, mas sabe-se que os quatro detidos pela PM tiveram suas identificações registradas e provavelmente vão usar isso a favor deles na próxima vez que pegarem essas mesmas pessoas. Podemos especular que essas pessoas estão sendo monitoradas também. Geralmente ocorre de eles buscarem por sujeitos que já foram abordados, até que consigam prender alguém de fato. De todo o modo, isso demonstra que a repressão não estava tão intensa assim, pois se fosse em certas regiões do México, por exemplo, os detidos sequer seriam presos e estariam já na lista de “desaparecidos”.

O tratamento não é o mesmo quando a PM vai praticar terrorismo nas periferias e saem atirando por diversão em pessoas pobres e negras. Mas não podemos relativizar a situação apenas por essa diferença de conduta. Na verdade, essa é mais uma forma de fragmentar as forças do proletariado, de nos humilhar diante dos demais. Uma forma de rebaixamento que usam também para colocar a população contra quem taxam de “baderneiros” que só querem “fazer confusão” e “atrapalhar a vida dos outros”.

Conclusões e considerações finais


Não foram os anarquistas, os autonomistas e até mesmo alguns marxistas que “fizeram coro” com a reação e se conduziram pela “estrada direita” não é mesmo? Para a social-democracia é muito conveniente passar longe do Carrefour e deixar que a Polícia Militar fazer o trabalho sujo. Não temos como comprovar uma combinação consciente de ações, mas podemos cogitar a hipótese de que a PM e os sociais-democratas estavam bem alinhados.

Na primeira manifestação de Porto Alegre, no Carrefour onde ocorreu o assassinato, a social-democracia tentou evitar a destruição do supermercado. Acontece que os militantes do PCdoB se dizem contrários ao que chamam de “vandalismo”. Nessa manifestação do relato seus militantes diziam para não se misturar com essa gente que queria “confronto” segundo palavras mencionadas no ato. Pode-se concluir perfeitamente que a estrada da direita estava sendo dirigida por esse partido anti-proletário.

Em Sorocaba, o PCdoB tem ameaçado entregar militantes antifascistas para a polícia, enquanto declara voto no PSL, partido bolsonarista de extrema direita [3]. Portanto, esse tipo de atitude já é amplamente esperada da parte dos grupos mais radicais.

Em Porto Alegre existe toda uma campanha entorno da eleição da Manuela D’Ávila (PCdoB) para a prefeitura. Será que querem preservar a imagem de conciliadores para garantir suas cadeiras no Estado Burguês? Inclusive, não apenas o próprio PCdoB, mas todos que estavam caminhando na mesma direção que eles, pela direita, e que também declaram “voto crítico” contra um certo “fascismo” que ameaçaria a perseguição política dos movimentos sociais. Que estranho esse tipo de posicionamento, pois para isso eles precisam ser coniventes com a perseguição que aconteceu na manifestação que acabamos de descrever.

Como dizia Bertolt Brecht:

Melhores ou piores, é o mesmo:
a bota que nos pisa é sempre uma bota.
Já terão compreendido o que quero dizer:
não mudar de senhores, mas sim não ter nenhum (A bota que nos pisa, 1932).

GIF do proletariado radicalizado buscando barrar a passagem da polícia com barricadas em chamas.

Notas:


[1] – Para mais informações sobre esse fato, verifique essa notícia de mídia independente: Cárcere privado e violência policial em manifestação contra o racismo em Porto Alegre.

[2] – Dispomos de um vídeo do protesto que tentou capturar esse momento:


[3] – Veja a nota da direção municipal do partido em Sorocaba:

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