Proposta: O objetivo desse texto é: 1) traçar uma linha de desenvolvimento de nossos posicionamentos a partir de abril de 2020 até o presente momento, como tentativa de síntese e avaliação de nossas posições; 2) fazer considerações sobre o processo da farsa eleitoral e suas implicações; 3) analisar o prolongamento da polarização burguesa do eleitoralismo no antifascismo; 4) propor a ruptura revolucionária com a polarização burguesa.
1. Introdução: uma genealogia de nossas posições
Consideramos fundamental retomar as discussões desenvolvidas em nosso blog desde meados de 2020. Embora nossas posições e questionamentos estivessem se desenvolvendo muito antes dessa data, vamos partir do que efetivamente publicamos através dessa plataforma. Essa retomada serve de avaliação acerca do que pode ter se confirmado relativamente ao que discutíamos e o que devemos reavaliar de outra forma ou de modo mais aprofundado daqui para frente.
Em 10 abril de 2020 publicamos um pequeno texto sobre as “possíveis implicações sociais do novo coronavírus” na luta de classes. Em linhas gerais, nossa análise foi a seguinte: a chamada “guerra contra o coronavírus” indicou uma maior convergência de interesses da burguesia a partir de uma dissimulação de combate unido à pandemia (para disfarçar o verdadeiro inimigo público: o proletariado). A situação brasileira, entretanto, se desenvolveu como agravamento da luta interburguesa. Havíamos indicado a polarização burguesa sobre uma falsa oposição entre “salvar vidas” ou “salvar a economia” que implicava em: 1) enquadrar o proletariado no “ode à ciência” das medidas policialescas de controle social; 2) agravar a concorrência da força de trabalho no mercado com um chamado para “salvar a economia”. De todo o modo, a implicação que considerávamos mais notável foi a tendência para uma retomada das: “formas de intervenção estatal do pós-segunda guerra em matéria de políticas econômicas anticíclicas, acompanhadas de um regime de ‘segurança social’ mais militarizada do que nunca” (Communismo Libertário, 10 de abril de 2020). Essa tendência talvez possa ser confirmada com a vitória eleitoral da chapa de Lulalckmin (algo que comentaremos mais adiante).
Em 26 de abril de 2020 publicamos uma continuidade nas nossas avaliações, buscando demonstrar como pensávamos que poderia ocorrer a evolução da política econômica da burguesia no Brasil e no mundo (Communismo Libertário, 26 de abril de 2020). Mencionamos que nos dois anos anteriores (2018-2019), o Fundo Monetário Internacional (FMI) já alertava acerca de uma possível crise financeira global. A situação que já se antecipava era de desaceleração generalizada do crescimento econômico devido à crescente expansão dos endividamentos, tanto corporativos quanto públicos. Embora com o crescimento econômico ameaçado, o “receituário” do FMI ainda era a política fiscal de austeridade e a linha de “livre comércio” de acordo com a reunião do G20 do ano de 2019 (políticas econômicas chamadas de “neoliberais”), tal como havia ocorrido pós-crise de 2008.
Ainda de acordo com nossa publicação, citamos um relatório do FMI publicado em 14 de abril de 2020, onde se previa uma retração de 3% na economia global. Uma variação negativa de 3% do PIB em média global implica em um impacto 300% superior à queda que ocorreu com a crise de 2008/2009 (que foi de 0,6%). Diante desse quadro, o próprio FMI apresentou uma ruptura evidente em termos de orientação das políticas econômicas. As seguintes medidas foram exigidas pelo órgão do capital financeiro: 1) os governos devem gastar “o que for necessário” para manter a sobrevivência das pessoas e 2) “o FMI aponta a necessidade de os Estados participarem ativamente para proteção da população e empresas” (defende explicitamente uma política intervencionista). Se desenhava o cenário para uma possível atualização do New Deal (sob novas condições e com um conteúdo adaptado à essa nova situação histórica).
Enfatizamos que o fato de Braga Netto ter assumido o ministério da Casa Civil com a saída de Onyx Lorenzoni poderia estar relacionado com essa guinada (e a promoção do programa “Pró-Brasil” como indício de uma mudança de política econômica). Imaginávamos, equivocadamente, que Paulo Guedes poderia ser o próximo ministro que poderia sair para garantir a guinada na política econômica bolsonarista, mas estávamos profundamente enganados (até porque não foi necessário, pois o próprio Guedes mudou convenientemente seus posicionamentos nesses anos pandêmicos). Contudo, sugerimos que: “após o período de recuperação através de políticas econômicas anticíclicas, a dinâmica do ‘ajuste fiscal’ (pacotes de austeridade) voltará de forma brutal para cobrar custos contraídos nesse momento, e a conta vai vir com juros” (algo que só poderemos confirmar mais numa próxima conjuntura, mas que o próprio FMI já parece antecipar atualmente, algo que também discutiremos depois).
Também traduzimos e publicamos o texto: O contágio da revolta se espalha: lutas em todos os lugares! (28 de junho de 2020) – Proletarios Internacionalistas, uma vez que os posicionamentos adotados nessa publicação convergiam com os nossos e, mais do que isso, eles chegavam em conclusões mais profundas (que passamos a assumir também). Depois de um panorama e uma avaliação crítica da luta de classes global na pandemia, eles enfatizavam que a nova normalidade deveria ser a revolta e que a nova onda de contágio precisava ser a luta, uma vez que: “A única alternativa ao presente e ao futuro (…) é a resposta internacional e revolucionária que o proletariado tenta concretizar, mas que precisa se afirmar como força unitária organizada que se opõe ao poder burguês” (Proletarios Internacionalistas, 28 de junho de 2020). Essa diretriz revolucionária surgiu contrariamente às medidas policialescas do chamado estado de alarme da pandemia e também em antagonismo direto contra o agravamento da exploração e massacre do proletariado em prol de “salvar a economia”, uma vez que para nossa classe não haveria isolamento senão das lutas (enquanto continuávamos aglomerados em locais de trabalho) e não haveria economia senão nos cortes de custos empresariais (que atingem diretamente a força de trabalho, levando ao rebaixamento salarial e desemprego em massa). A única saída era, como sempre foi, a organização autônoma da luta proletária através do movimento comunista como direção revolucionária.
Em 23 de novembro de 2020, seguindo as diretrizes adquiridas da experiência da luta de classes, comentamos sobre como o contágio da revolta havia se espalhado no Brasil também: A revolta da classe proletária: a incidência da luta internacional no território brasileiro (Communismo Libertário). Denunciamos como a revolta contra os apagões no Amapá havia sido brutalmente reprimida por um governo de oposição ao bolsonarismo (que havia emitido um decreto no dia 17 de novembro para proibir a realização de protestos). Naquela ocasião, o governo de Waldez Góes do Partido Democrático Trabalhista (PDT) usou a bandeira do “salvar vidas” e “ficar em casa” como bastião da repressão policial: “Contra as manifestações se acionou uma colossal repressão com requintes de crueldade. Por exemplo: em um ataque policial a um protesto que ocorria no bairro pobre de Congós, a polícia atirou no olho de um adolescente de 13 anos que corre risco de perder a visão” (Communismo Libertário, 23 de ovembro de 2020).
Destacamos também que “haviam muitos que se preocuparam mais com a interrupção do processo eleitoral em curso nos municípios do que com a situação de penúria provocada pela crise” (Communismo Libertário, 23 de novembro de 2020), portanto as eleições municipais (que atuavam como polarização burguesa eleitoral) também serviram de justificativa para impedir a ação autônoma do proletariado (através da repressão).
Além disso, outra incidência da revolta proletária no território brasileiro que comentamos e participamos foi a luta contra o racismo capitalista em ocasião do assassinato, em véspera do dia da consciência negra, de um homem negro por seguranças do Carrefour. Apesar de não termos participado da primeira manifestação (realizada no dia da consciência negra), conseguimos informações importantes de que muita combatividade e ação direta foi realizada a despeito das burocracias eleitorais da esquerda que buscavam impedir que o proletariado em revolta destruísse o estabelecimento (e isso foi em vão, pois conforme alertava a mídia burguesa dois anos atrás: Após protestos, Carrefour amanhece com grades e portões quebrados e muita destruição).
Diante desse quadro de revoltas, afirmamos que nosso compromisso era o seguinte:
A tarefa das minorias conscientes e autônomas do proletariado é incentivar a revolta, radicalizando-a para direcioná-la em função de nossos interesses de classe. Devemos denunciar o oportunismo de esquerda que busca privilegiar a agenda eleitoral. Precisamos declarar solidariedade para nossos companheiros do Amapá que já estavam lutando contra as iniquidades desse sistema antes desse outro foco de revolta se iniciar. É necessário repetir mais uma vez: a conjuntura de revoltas é internacional e não um fenômeno local brasileiro (Communismo Libertário, 23 de novembro de 2020).
Foi com esse espírito que participamos da segunda manifestação contra o episódio de racismo capitalista no Carrefour (numa outra loja do mesmo município) e publicamos o texto mais lido de nosso blog: Análise de um protesto contra o Carrefour (Communismo Libertário, 25 de novembro de 2020). Em resumo: todos que faziam campanha eleitoral para a candidatura do PCdoB nas eleições municipais se distanciaram ao máximo do Carrefour e conduziram suas massas para longe de qualquer atrito com os policiais, enquanto aqueles que desejavam mais combatividade foram largados para as garras da repressão. A conivência, implícita ou não, demonstrava mais uma vez como a repressão e os partidos de esquerda hegemonizados pela socialdemocracia se unificam contra qualquer tentativa de ruptura com a polarização burguesa eleitoral.
Depois de um hiato de análises propriamente nossas no blog, voltaríamos a publicar mais um texto discutindo a conjuntura da luta de classes especificamente brasileira em 15 de agosto de 2021: As vicissitudes da luta de classes brasileira na pandemia capitalista. Nesse texto, buscávamos desenvolver um posicionamento síntese tal como fazemos agora. Analisamos o aumento considerável de revoltas proletárias mundialmente como confirmação das teses dos Proletarios Internacionalistas. Discutimos como essa convergência de revoltas difusas, embora sem consciência de classe e organização autônoma do proletariado as dirigindo, deixava a burguesia em alerta, pronta para aumentar consideravelmente os níveis de repressão contra as manifestações (tanto juridicamente, quanto efetivamente com suas forças policiais – e também a partir de figuras políticas que pudessem promover a conciliação de classes ou de outras que pudessem garantir uma guinada reacionária).
Reafirmamos as teses de Chaung e Barbaria sobre como as pandemias são produzidas diretamente pela economia capitalista, de modo que não são efeitos externos (em economês: externalidades) ao capitalismo. E seguida, promovemos uma “discussão sobre a mortificação do proletariado segundo a lei geral da acumulação capitalista” (Communismo Libertário, 15 de agosto de 2021). Em síntese, durante uma crise:
as exigências de valorização são acentuadas e o capitalismo entra num período destrutivo onde é necessário se desfazer deliberadamente de uma parte de sua composição para manter a “proporção adequada” [entre capital constante e capital variável]. Uma vez que compreendemos que os capitalistas tratam todo o contingente de força de trabalho como mero capital variável, fica evidente qual parte da composição orgânica deve perecer no processo: é o proletariado que arca com os custos desse modo de produção. Em outras palavras: as vidas proletárias são literalmente sacrificadas para a manutenção da acumulação capitalista (Communismo Libertário, 15 de agosto de 2021).
Nessas condições, afirmamos que “um não enfrentamento ativo de nossa classe apenas é conivente com esse processo”. O modo de produção não cessou de aglomerar proletários nos seus locais de trabalho e, mesmo assim, as burocracias de esquerda da socialdemocracia os mandavam “ficar em casa”. E quando ocorram manifestações contra essa tirania, os ideólogos cínicos responsabilizavam o proletariado pelo aumento no número de casos e de mortes! O discurso sobre “ficar em casa” nada mais era do que um eufemismo para: “morra sem perturbar a ordem social!”.
No entanto, o ano de 2021 precedia o ano eleitoral de 2022, então os candidatos a gerir o Estado sentiam a necessidade de canalizar todo e qualquer descontentamento a seu favor. Assim, a socialdemocracia mudou de forma oportunista sua tática e seu discurso nesse período, na medida em que o governo Bolsonaro estava cada vez mais mergulhado em escândalos e visto como o responsável de um genocídio (se bem que isso é superficial, uma vez que as mortes não são responsabilidade de um governo em particular, mas o resultado direto do modo de produção capitalista como um todo). Mas a estratégia socialdemocrata permanecia a mesma: cooptação da revolta para uma frente eleitoral. Neste sentido, a passagem do “fique em casa” para o “Fora Bolsonaro” expressou simplesmente essa política eleitoral da socialdemocracia para impedir a todo o custo uma revolta autônoma do proletariado.
No caso do “Fora Bolsonaro”, alertávamos para uma situação delicada: por um lado, deveríamos superar uma visão estreita de que tudo aquilo não passava de “massa de manobra” dos partidos eleitorais, por outro nós considerávamos importante rejeitar qualquer visão romântica que vislumbrava um “despertar” da luta “contra o genocídio”. No primeiro caso, se ignorava que o campo socialdemocrata estava deliberadamente cooptando a energia de uma revolta que estava para estourar a qualquer momento e, portanto, a antecipação da socialdemocracia foi um desvio dessa disposição das forças e não o seu sentido originário. No segundo caso, havia o risco de ignorar que a socialdemocracia estava se saindo exitosa nisso, deixando de lado a necessidade de ruptura com essa cooptação.
Em síntese, afirmávamos que:
O enquadramento da revolta contra as mortes, o aumento do custo de vida, o desemprego e precarização generalizada sob o slogan do “Fora Bolsonaro” corresponde, mais uma vez, à domesticação do proletariado através da via institucional burguesa (seja na remota e improvável possibilidade de impeachment, seja através do desgaste do governo enquanto se promove um candidato da social-democracia como “salvador da pátria”). Essa orientação que a social-democracia busca estabelecer vem acompanhada da ideia absurda de que os milhões de mortos na pandemia são mera consequência dá “má gestão” do Estado. Com essa ideologia eles obscurecem a própria natureza do sistema capitalista que está por trás do genocídio e contribuem para inocentar a classe dominante (Communismo Libertário, 15 de agosto de 2021).
A avaliação de nossa tentativa de ruptura ou implosão das manifestações do “Fora Bolsonaro” atualmente é a seguinte: agimos aquém do que poderíamos e deveríamos fazer, uma vez que não conseguimos promover mais distúrbios que perturbassem a ordem pública das manifestações e incitassem as massas à revolta para romper com a frente eleitoral da socialdemocracia. Tivemos pouca articulação para adquirir forças necessárias para isso e também houve certa hesitação em assumir uma postura de ruptura mais insurrencionalista em função de preconceitos basistas (no sentido da falácia da “correlação de forças” ou “ação de massas”, como se fosse plausível adquirir uma maioria para agir conforme os interesses libertários da nossa classe!). Mesmo com esse aprendizado, ainda estamos longe no processo de conseguir compor um núcleo capaz dessas tarefas.
No resto do texto das “vicissitudes”, demonstramos como as movimentações bolsonaristas exigiam cada vez mais uma “boiada” (expressão cunhada por Ricardo Salles, ex-ministro bolsonarista do meio ambiente) sobre as terras indígenas, a partir de uma defesa da expansão do agronegócio sobre esses territórios. Portanto, toda a movimentação para setembro daquele ano estava relacionada com isso.
Há de se destacar que a marginalização da luta contra o Marco Temporal a partir da promoção da frente socialdemocrata do “Fora Bolsonaro” nada mais era do que uma forma de evitar que a luta contra a espoliação de terras fosse elevada a primeiro plano. Portanto, ambos os lados da polarização burguesa concordaram em atacar o movimento indígena-proletário contra o Marco Temporal: de um lado a esquerda agredia indígenas e os impedia de assumir a frente dos protestos, assim como os cooptava para o eleitoralismo e, de outro lado, os bolsonaristas mantinham-se firmes na “boiada” sobre as terras indígenas.
Além disso, tanto os bolsonaristas com pretensões golpistas (sempre frustradas) quanto os sociaisdemocratas com sua frente ampla eleitoral pró-democrática ganharam um espaço de diálogo e conluio com os policiais militares (embora a PM esteja do lado da extrema-direita, fez de bom grado uma reunião com representantes da frente da esquerda eleitoral para combater atos subversivos nas manifestações, conforme o documento da reunião com a PM de SP de 21 de julho).
Somente em dezembro de 2021 publicaríamos novas questões relacionadas com as lutas em curso que participamos, enfatizando novamente que o esvaziamento das mesmas não se dava simplesmente à época de festas de fim de ano, mas ao acúmulo de desmobilizações da socialdemocracia ao longo daquele ano a ponto de desviar toda a força que realmente havia para derrubar o governo bolsonarista para uma agenda eleitoral (perpetuando no poder esse governo que diziam ser genocida apenas para cumprir com a estratégia eleitoral, mesmo que isso significasse mais mortes proletárias).
Assim, chegamos em 2022, no ano da farsa eleitoral, com uma dispersão de forças de luta generalizada e que contribuiu satisfatoriamente para a manutenção da polarização burguesa. Depois da passagem do “fique em casa” para o “Fora Bolsonaro”, finalmente a socialdemocracia colhia seus frutos e acionava seu trunfo: estava na hora da campanha eleitoral de Lulalckmin em rivalidade com o campo bolsonarista que ainda mantinha-se forte (e se fortaleceu mais ainda, como veremos).
As lutas contra a espoliação de terras dos indígenas continuaram, mas com pouca adesão além dos próprios indígenas e alguns outros movimentos que buscam alguma cooptação dos mesmos (Ver: Communismo Libertário, 10 de maio de 2022; Communismo Libertário, 24 de junho de 2022). Além disso, outros conflitos como a luta contra a privatização da Corsan e do DMAE (Communismo Libertário, 3 de julho de 2022) ou o “Grito dos Excluídos” (se possível, ver: link) já estavam contaminados com o eleitoralismo e com o antifascismo que atuavam para desmobilizar ao máximo o enfrentamento.
Na ocasião do protesto do dia 18 de outubro de 2022 contra os cortes no ensino superior, nossa avaliação foi a seguinte: as manifestações foram cooptadas para fazer campanha eleitoral, colocando de lado a questão de um enfrentamento direto aos cortes (além do mais, houveram situações de desmobilização de qualquer ação subversiva para “não atrapalhar o processo eleitoral”). Chegamos a comentar isso em um panfleto escrito em colaboração com o blog Amanajé: Enfrentar os cortes do governo nas ruas, com ação direta, autonomia de classe e combatividade!.
Em resumo: por um lado, a socialdemocracia continuou enfraquecendo ao máximo as forças de luta com sua campanha eleitoral, por outro, os bolsonaristas conseguiam se reorganizar e acumular forças para novas investidas. Esse foi um momento decisivo para a continuidade do movimento reacionário, que não poderia ter se mantido sem a ajuda fundamental da socialdemocracia. A socialdemocracia sabota a ação direta do proletariado possibilitando a regeneração dos bolsonaristas, cuja consequência foram os bloqueios de rodovias durante os locautes patronais e a grande expressividade eleitoral que manifestaram nas eleições de 2022.
2. Análise da farsa eleitoral:
Vimos que a socialdemocracia, sob a hegemonia e direção do Partido dos Trabalhadores (PT), tem cumprido sua tarefa histórica com êxito: o “Fora Bolsonaro” conseguiu reverter a revolta proletária contra o massacre pandêmico em uma antecipação de campanha eleitoral em prol do PT e da eleição de Lulalckmin. A vitória eleitoral no segundo turno exprime a seguinte proporção: quanto maior adesão a socialdemocracia obtém, tanto menor será a revolta proletária contra a ordem social capitalista. Consequentemente, a socialdemocracia tem contribuído para desorganizar a classe proletária, enquanto o partido reacionário recompõe suas forças.
Como podemos ver nos dados das imagens abaixo (fonte: Poder360), o resultado eleitoral do primeiro turno confirmou uma ascensão generalizada dos reacionários no Senado e na Câmara dos Deputados. Eles cresceram na esteira do antipetismo ao mesmo tempo em que a campanha socialdemocrata conseguiu transformar o Lulalckmin em favorito para as eleições presidenciais. Esse movimento contraditório faz parte da dinâmica eleitoral e exprime a polarização burguesa: os exportadores de commodities conseguiram fortalecer suas bancadas ao mesmo tempo em que a burguesia industrial, lesada pela alta do dólar, apostou na mudança presidencial para favorecer seus interesses nesse período de “recuperação econômica” pós-pandêmica.
O segundo turno agravou ainda mais a cooptação eleitoral da disputa entre as facções burguesas brasileiras. Os “votos críticos” ou a campanha eleitoral aberta (acriticamente) para Lulalckmin representaram um retrocesso ainda maior. Diante de um aumento considerável das forças reacionárias, a socialdemocracia ampliou ainda mais o controle da revolta proletária, fazendo a classe desertar de sua luta autônoma para nos enquadrar no eleitoralismo burguês mais tacanho possível.
Já o movimento reacionário busca manipular a “revolta ordeira” colocando-se supostamente “contra” as instituições (por exemplo: “contra o TSE”), mas a reação não é senão a conservação autoritária dessas mesmas instituições (por isso que o “Relatório das Forças Armadas” não tem o objetivo de extinguir as urnas, mas sim de aprimorar seu funcionamento).
É importante levar em consideração a força adquirida pelo bolsonarismo a partir do aparelhamento das instituições. Se não fosse a expressividade desse movimento reacionário, não teria sido possível a realização de 514 operações da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na tentativa de impedir eleitores nordestinos de irem votar, por exemplo.
No entanto, Bolsonaro acabou perdendo a disputa eleitoral presidencial para a candidatura de Lulalckmin
2. 1. Pronunciamento de vitória eleitoral de Lulalckmin:
No discurso da vitória eleitoral de Lula, ele afirmou que: “Somos um único país, um único povo, uma grande nação”, enfatizando a todo o momento que sua vitória eleitoral era uma vitória da democracia mais do que de um partido ou de indivíduos. Esse integralismo democrático é parte fundamental do projeto de conciliação de classes e serve de aviso para quem ousar romper a unidade nacional (que será severamente reprimido pelas forças repressivas dessa união).
Além disso, para acabar com o desentendimento de cúpula governamental, assume o compromisso de “reconstruir a convivência harmoniosa e republicana entre os três poderes”, fortalecendo o regime em unidade contra quaisquer insurgências do proletariado.
A conciliação de classes via integralismo democrático pressupõe a cooptação das massas proletárias em mecanismos burocráticos como o Orçamento Participativo e outras formas de controle, por isso também enfatizou em seu discurso o seguinte: “Vamos também reestabelecer o diálogo entre governo, empresários, trabalhadores e sociedade civil organizada, com a volta do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social”. Daí a ideia de “trazer de volta as conferências nacionais”, etc.
Quando tratou de questões relacionadas às relações internacionais, relatou que deseja reconstituir credibilidade e previsibilidade para reestabelecer a confiança econômica necessária para investimentos econômicos estrangeiros ou nacionais (“para fazer a roda da economia voltar a girar”, como disse). No entanto, isso não pode relegar ao Brasil: “ao eterno papel de exportador de commodities e matéria prima”, o que supõe a guinada desenvolvimentista da política econômica conforme havíamos mencionado antes. Por isso em seguida ele afirma: “Vamos re-industrializar o Brasil, investir na economia verde e digital, apoiar a criatividade dos nossos empresários e empreendedores”.
Em suma, uma atualização do nacional-desenvolvimentismo sob novas condições históricas (que será apenas um breve período de políticas econômicas anticíclicas).
Lulalckmin também fez um discurso insuflado sobre preservação da Amazônia: “vamos retomar o monitoramento e a vigilância da Amazônia, e combater toda e qualquer atividade ilegal – seja garimpo, mineração, extração de madeira ou ocupação agropecuária indevida”. Ele afirma ser possível: “gerar riqueza sem destruir o meio ambiente”, promovendo “o desenvolvimento sustentável das comunidades que vivem na região amazônica”. Além disso, também afirma ser favorável: “à cooperação internacional para preservar a Amazônia, seja em forma de investimento ou pesquisa científica”, embora enfatize que será: “sempre sob a liderança do Brasil, sem jamais renunciarmos à nossa soberania”.
Curiosamente, depois desse pronunciamento o governo norueguês afirmou que reativaria o Fundo Amazônia (ver: link), embora a Noruega seja responsável pela mineradora Hydro, alvo de denúncias do Ministério Público Federal (MPF) do Pará e de quase 2 mil processos judiciais por contaminação de rios e comunidades de Barcarena (PA), município localizado em uma das regiões mais poluídas da floresta amazônica (ver: link). Esse possivelmente é um dos melhores exemplos da combinação perversa entre: desenvolvimento sustentável e cooperação internacional.
Em relação aos povos indígenas, é no mínimo curioso a ênfase dada à proteção dos mesmos, depois de terem colocado em segundo plano e mesmo ostracizado diversas vezes a luta contra o Marco Temporal. No entanto, possivelmente isso se deve ao modo como se planeja realizar “o desenvolvimento sustentável das comunidades”, tanto as que vivem na Amazônia como noutras regiões do país.
Vale destacar que a proposta de criação de um Ministério dos Povos Originários foi uma das promessas recorrentes de Lulalckmin durante a campanha presidencial de 2022. No discurso da avenida Paulista ele reafirma esse compromisso: “Nós vamos criar o Ministério dos Povos Originários para que eles nunca mais sejam desrespeitados, para que eles nunca mais sejam tratados como cidadãos de segunda categoria” (ver: link).
Além disso, Lulalckmin se comprometeu em aprovar o “Revogaço” de uma série de medidas implementadas no governo Bolsonaro que afetavam diretamente (de forma negativa) os povos indígenas. A promessa de um “revogaço” Lula foi feita por Lula no Acampamento Terra Livre, realizado em abril, em Brasília, que reuniu cerca de 5 mil representantes de 200 povos indígenas do país (ver: link).
No entanto, isso certamente entraria em conflito com os interesses agropecuaristas e extrativistas da burguesia do setor primário brasileiro (que tem encabeçado as manifestações bolsonaristas). Além do mais, Lulalckmin se comprometeu a governar para todos, não só para quem votou no PT. Portanto, provavelmente: 1) ou essas medidas não serão cumpridas; 2) ou serão aprovadas sob a condição de “gerar riqueza sem destruir o meio ambiente”, promovendo “o desenvolvimento sustentável das comunidades que vivem na região amazônica”, o que significa, em outras palavras: uma destruição soft da Amazônia e das comunidades originárias.
Não obstante, segundo Ailton Krenak, “o mito da sustentabilidade” foi “inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza” (p. 9 de “Ideias para adiar o fim do mundo”). Isso porque a sustentabilidade conserva a ideia de “desenvolvimento” que fundamenta a espoliação da Terra pelas corporações.
Provavelmente as promessas não foram senão oportunismo eleitoral, mas deixaremos para analisar isso com mais profundidade em outra ocasião.
3. Bloqueios e protestos bolsonaristas:
Com a derrota de Bolsonaro nas eleições presidenciais, uma onda de bloqueios bolsonaristas ocorreram em rodovias promovendo o que chamam de “intervenção federal” contra a “fraude eleitoral”.
Não obstante, a escalada da violência política exercida sem hesitação pelos bolsonaristas havia começado antes do segundo turno terminar com Roberto Jefferson disparando contra oficiais da Polícia Federal (PF) e Carla Zambelli perseguindo armada um eleitor do PT.
De todo o modo, há que se destacar que os bloqueios são locautes patronais organizados por donos de frota e transportadoras em conluio com o agronegócio. A adesão efetiva de caminhoneiros ao movimento acontece mais marginalmente e por vias que não passam pela deliberação de instâncias oficiais como os sindicatos (que, a propósito, não aprovaram e ainda rechaçaram a paralisação patronal). Isso não significa que possa haver expressividade de base bolsonarista nos caminheiros, mas que ela não passa por meios oficiais.
Tanto a Polícia Rodoviária Federal (PRF) quanto a Polícia Militar (PM) fizeram declarações de apoio e solidariedade às manifestações. Por exemplo: ao se dirigir a manifestantes que fecharam com caminhões uma rodovia nas proximidades de Blumenau, em Santa Catarina, o PRF Ricardo Torres aparece em vídeo dizendo: “O que é que eu faço da vida? O que vocês me orientam para a gente interagir e encontrar a melhor solução, para que a gente consiga não sair com ninguém machucado, ninguém preso, ou que prejudique o meu trabalho”. Ele também acrescenta que: “A manifestação vai continuar com vocês e nós, os dois servidores que estamos aqui, vamos monitorar e informar às nossas chefias que é a nossa missão. Mas, em nenhum momento… já assumi o compromisso aqui e reitero com todos vocês, nós chegaremos para atritar ou chegaremos para enfrentar os senhores, que são patrões nossos enquanto servidores públicos” (ver: link).
Enquanto isso, a socialdemocracia continuava festejando a pseudo-vitória contra o bolsonarismo ou fazendo coro com a direita ao julgar as manifestações do ponto de vista da ordem capitalista com coisas do tipo: “xandão nesses baderneiros!”, “espero que a polícia dê um pouco de intervenção militar gratuita neles”, etc.
Assim, a passagem do “fique em casa” para o “Fora Bolsonaro”, se prolongou na campanha eleitoral de Lulackmin (frente eleitoral antifascista) e se estende agora para uma polarização entre reacionários conduzidos pelo bolsonarismo e “unidade de luta popular contra o fascismo” conduzida pela socialdemocracia (em suas diferentes frações). A independência de nossa classe exige o igual rechaço dessas frações burguesas em disputa e a proposição de uma política de classe autônoma e subversiva.
4. Para romper com a polarização burguesa
Diante o prolongamento da polarização burguesa pós-eleições, é necessário pensar um posicionamento político que não reforce nenhum lado das frações burguesas em disputa. Antes de terminarem as eleições, o posicionamento da autonomia proletária perante a farsa eleitoral era o abstencionismo revolucionário (campanha para o não-voto, seja através do voto nulo, da abstenção e mesmo sabotagens). No entanto, para que não se tornasse um mero engajamento passivo, isso também implicava compromisso com as lutas diretas, de modo a participar delas e denunciar (no sentido de uma ruptura) as cooptações da socialdemocracia. Foi assim que, diante de um caso como, por exemplo, a luta dos trabalhadores da Corsan contra a privatização companhia, consideramos necessário que os revolucionários impedissem que essa pauta se tornasse “questão eleitoral” (o que ainda não ocorreu efetivamente, dado a hegemonia eleitoralista que ainda vigora entre esses trabalhadores).
O fato é que o abstencionismo revolucionário sempre foi muito mais do que uma simples denúncia da farsa eleitoral: significa combater, no curso das lutas efetivas, as cooptações eleitorais. Por isso que também implica necessariamente a ruptura ativa com as frentes eleitorais, a não tolerância dos setores da esquerda do Capital que endossam a farsa eleitoral.
Um exemplo de NÃO-ruptura efetiva veio dos anarcoides que chamaram para a unidade antifascista. Os partidários da ideologia especifista defenderam o seguinte posicionamento:
estamos e estaremos, sem sectarismo, ao lado de outras companheiras e companheiros que – independentemente de sua posição política frente às urnas – constroem esses movimentos populares no dia a dia, para além das eleições. Essa será a maior contribuição à derrota do bolsonarismo: uma forte unidade de luta popular por direitos e contra os setores reacionários (O anarquismo frente ao fascismo e ao debate eleitoral).
Ao mesmo tempo em que criticam acertadamente os pseudo-anarquistas que declararam voto em Lula na Jacobin (veja-se: Anarquistas em defesa do voto em Lula), eles dizem defender “uma forte unidade de luta popular por direitos e contra os setores reacionários”, o que, na prática, é o mesmo do que fortalecer a frente popular (apesar e aquém das urnas). Nossa unidade não deve ser “popular” (outro termo a-classista), mas sim uma unidade de classe do proletariado, em prol da luta autônoma e revolucionária pelo comunismo.
Nesse momento, estamos diante do prolongamento da polarização eleitoral da disputa interburguesa sob a forma de reacionários com pretensões golpistas contra socialdemocracia em defesa da institucionalidade política “legítima” (juridicamente). Ambos defendem reforço da repressão e da unidade integralista do governo burguês, seja pela via golpista, seja pelo policiamento generalizado do judiciário sobre os opositores (conforme demanda a socialdemocracia).
No quadro atual da polarização, não é possível simplesmente declarar “isenção política” perante a luta entre as frações burguesas, porque essa luta interburguesa se reflete nas formas de cooptação comprometem a autonomia proletária. Em outras palavras: é necessário promover a independência de classe do proletariado combatendo ativamente esse desenvolvimento da polarização (ignorar a existência dessa disputa interburguesa não vai fazer ela desaparecer, é preciso combatê-la).
Para intervir nessa situação histórica a favor da política autônoma do proletariado, é preciso construir os meios de autodefesa próprios da classe (perante as duas vias de aumento generalizado da repressão, seja sob o estandarte bolsonarista, seja sob o tucano-petista). Uma das vias da independência de classe poderia ser o uso da ação direta contra os bolsonaristas rejeitando o viés policialesco da socialdemocracia. Mas para não incorrer em uma luta unilateral (que pode favorecer o lado tucano-petista), é necessário visualizar a situação em conjunto antes.
Diante dos golpistas, a socialdemocracia aciona o judiciário e fortalece seus mecanismos repressivos e de controle sobre a circulação de informação nos meios digitais. A socialdemocracia está pronta para retaliar o combate direto aos bolsonaristas e criminalizar qualquer movimento que não se enquadre na sua política pró-estabilidade e institucionalidade do governo burguês. Os sociaisdemocratas precisam ser igualmente confrontados tanto quanto os reacionários. Por isso, precisamos promover posicionamentos contrários à regulamentação do judiciário nas redes de comunicação digital, uma vez que conhecemos seus danos nocivos: no Irã, por exemplo, essa história de banimento de contas permitiu um poder arbitrário da parte do Estado para desorganizar e obstruir a comunicação via Telegram dos grevistas na luta de classes contemporânea que está cada vez mais intensa por lá. Portanto, é necessário romper e sabotar o quanto possível o chamado da socialdemocracia à “unidade de luta popular contra os setores reacionários”, usando-se também os métodos da ação direta que serão empregados contra os bolsonaristas.
Neste sentido, consideremos necessário impedir que a ideologia antifascista contrarrevolucionária continue ganhando espaço, pois somente a revolução social é capaz de liquidar com os reacionários e os sociaisdemocratas. Contra a polarização ideológica que a burguesia impõe na forma de fascismo e antifascismo, afirmamos a força coletiva de nossa classe organizada a partir de seus próprios interesses libertários.
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