sábado, 14 de setembro de 2024

Para enfrentar a assimilação eleitoral em Porto Alegre

Porto Alegre 2024: Maio debaixo d'água, Setembro em cinzas.

A capital do Estado do Rio Grande do Sul contém particularidades que expressam as tendências globais das calamidades capitalistas, portanto decidimos fazer uma publicação especial sobre as eleições municipais de Porto Alegre. Essa publicação não tem o objetivo de tratar de modo detalhado o processo eleitoral em si, mas situá-lo no contexto da luta de classes mundial.

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Esse texto foi escrito enquanto respirávamos as nuvens de fumaça dos incêndios provocados pelo agronegócio. No momento não abordaremos esse fato, mas não poderíamos deixar de mencioná-lo nessa publicação, visto que expressa as tendências destrutivas que abordaremos aqui. Reconhecemos que nossa contribuição ainda não é suficientemente abrangente para a questão particular que nos propomos discutir. No entanto, as orientações gerais aqui expostas podem ser o ponto de partida para se aprofundar em discussões mais particulares acerca da luta de classes na região metropolitana do território ocupado pelo Estado do Rio Grande do Sul (e também noutras regiões).

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Observação: entre colchetes marcamos as notas que se encontram ao final do texto.

Considerações iniciais:


Nossa caracterização da situação histórica mundial do capitalismo é de uma crise de decomposição que  tem deteriorado as condições de vida em todo o planeta. Neste sentido, a tendência histórica geral que vivemos é de contínua destruição ambiental [1], de aumento da riqueza monetária de um punhado de capitalistas construída sob a miséria generalizada da maioria da população mundial [2], de massacres oriundos de disputas imperialistas [3], em suma, todas as consequências nefastas que são produtos da exploração e dominação de classe. Portanto, não resta alternativa senão reerguer o programa da revolução social em todo o mundo.

Com base nisso, enfatizamos mais uma vez que a posição fundamental que determina nossas orientações é a defesa da revolução social, a luta pela abolição da sociedade de classes capitalista através de um movimento revolucionário dirigido pelo proletariado [4]. Não significa que defendemos que apenas a classe proletária deve determinar sozinha o curso da revolução, mas que sua realização depende do movimento proletário coordenar o conjunto dos explorados e oprimidos em uma luta unificada contra o conjunto dos exploradores e opressores. As transformações sociais radicais necessárias para um processo de emancipação coletiva derivam das condições históricas mundiais que fazem do proletariado a classe revolucionária em luta contra as forças reacionárias dirigidas pelos capitalistas.

Nossa intervenção teórico-prática na luta de classes é orientada conforme a realização desse objetivo revolucionário. A análise da situação está articulada com a estratégia que consideramos apropriada para atingir esse fim [5]. Portanto, o cenário eleitoral é apenas a superfície imediata a partir da qual intervimos para promover o programa revolucionário. Uma vez que existe uma difusão ideológica do eleitoralismo nas massas, devemos combatê-la em seus fundamentos.

As eleições na democracia representativa ocorrem para renovar os quadros administrativos conforme as exigências da gestão dos negócios da classe dominante em cada conjuntura. Os pretensos “partidos de esquerda” que disputam as eleições não alteram essa situação de modo algum. E aqueles que buscam participar do processo eleitoral para supostamente fazer “campanha revolucionária” prometendo “parlamentarismo revolucionário” não passam de oportunistas [6]. A única contribuição de grupos auto-proclamados como “oposição de esquerda” ao participar do processo eleitoral é reforçar a legitimidade da democracia representativa da burguesia.

Todas as mudanças governamentais que podem ocorrer a partir de processos eleitorais seguem os padrões das exigências da acumulação de capital. Essas disputas no nível da institucionalidade burguesa são o resultado culminante da realidade profunda da luta de classes.

Da luta de classes, o campo histórico real sobre o qual se desenvolvem as contradições fundamentais do capitalismo, surgem as tendências eleitorais que expressam as disputas entre diferentes frações da classe dominante. Na medida em que a maioria da população é composta pelo proletariado, portanto as campanhas e disputas por legitimidade diante dos explorados é crucial para as vitórias eleitorais e para a própria assimilação ideológica.

No nível dos interesses econômicos, as diversas frações da burguesia concorrem pela produção e repartição da mais-valia, na forma de lucros, juros, rendas e impostos. Nessa concorrência, existem situações em que os capitalistas industriais podem se opor aos proprietários fundiários, os industriais aos comerciantes, parte da burguesia à propriedade estatal de ramos da produção, etc. Ramos dentro de uma mesma indústria também podem entrar em conflito, por exemplo: os lobbies da indústria automotiva do setor de caminhões e os do transporte ferroviário e fluvial. A relação entre essas frações capitalistas são mediadas pelo governo, como no caso dos recursos de crédito seletivos para determinados setores da economia, a coalizão entre capital financeiro e agronegócio, etc.

São essas relações de força que precisamos compreender para desmascarar as campanhas farsantes com a qual os partidos burgueses buscam realizar uma “assimilação eleitoral” do proletariado, isto é, uma sujeição da classe aos projetos políticos de seus exploradores.

Devemos acabar com a dissimulação de todos os grupos eleitorais com relação à realidade prática dos governos municipais e, no nosso caso particular, a capital gaúcha (Porto Alegre). Todo o cretinismo eleitoral consiste em promessas e ameaças vazias que falsificam as tendências históricas reais que determinam a situação das cidades no capitalismo contemporâneo. Na seção 1, apresentamos um panorama do espetáculo eleitoral da burguesia. Na seção 2, apresentamos as tendências gerais que condicionam a situação particular das eleições municipais em cidades que sediaram megaeventos (como é o caso de Porto Alegre). Na seção 3, expomos as tendências observadas no pós-eleição de 2022 que apontam para a continuidade da mesma política econômica de Temer e Bolsonaro. Na seção 4, defendemos o abstencionismo como um compromisso com a construção da autonomia proletária e da ação direta contra o capital.

1. A unidade contraditória entre duas tendências capitalistas contra o proletariado:


As eleições municipais nada mais são do que uma disputa entre distintos projetos capitalistas de cidade. A estratégia eleitoral visa dividir e assimilar o proletariado a um dos projetos burgueses de governo  municipal. Nesse sentido, não importa o que dizem defender ou o que escrevem em seus programas, mas sim o que esses partidos realizam na prática e como isso expressa a situação efetiva da luta de classes.

Nas eleições atuais de Porto Alegre, vemos uma disputa entre o partido socialdemocrata liderado pelo PT e a tentativa de reeleição do prefeito Melo (MDB). Na prática, a agenda petista continua sendo a manutenção da conciliação de classes através do aparelhamento de entidades representativas e “movimentos sociais” (com a nostalgia dos “bons tempos” da participação popular de outrora), concedendo algumas migalhas de políticas de inclusão e assistência social que possuem a função de anestesiar processos de revolta proletária. Por outro lado, a direita e ultradireita representadas pelo MDB investem numa cooptação da situação de crise e revolta para promover uma solução reacionária, aprofundando os processos de espoliações em curso na cidade sob sua gestão.

Da parte da pseudo-esquerda, persiste uma retórica moralista de enfrentamento dos “setores reacionários” que a socialdemocracia ajudou a colocar no poder, seja desmobilizando as forças de luta do proletariado, seja pavimentando o caminho institucional ao viabilizar grandes empreendimentos da indústria de megaeventos. Economicamente, o projeto de governo expressa as mesmas tendências da direita, enquanto que politicamente conservam um verniz progressista de liberdades democráticas e mecanismos de participação social que conduzem os movimentos sociais a darem legitimidade popular ao programa econômico. Durante o período eleitoral, as entidades representativas de bairro (associações de moradores, centros culturais de caráter “popular”, etc.), sindicais, de estudo, assim como os “movimentos sociais” são usados como palanque.

Da parte da direita e da ultradireita, trata-se de generalizar o saque imperialista da cidade, seja para grupos empresariais imobiliários, seja para empresas transnacionais que visam se apropriar de recursos estratégicos, sobretudo a água. Diferentemente da pseudo-esquerda, a direita tem assumido um caráter mais autoritário e populista, algo que os sociaisdemocratas chamam de “desdemocratização institucional” (desmantelamento das prerrogativas de controle social, de fiscalização popular, etc.), com recorrente uso de clientelismo (serviços pontuais para setores periféricos da cidade amplamente midiatizados nas redes, ampliação de cargos de confiança para incorporar representantes de comunidades que funcionam como cadeia de transmissão da auto-promoção do governo, etc.).

Não existe “mal menor” nesse cenário, apenas duas tendências de assimilação do proletariado visando promover diferentes frações da burguesia que representam os grupos eleitorais. Nessa disputa interburguesa há uma complementariedade não premeditada: a pseudo-esquerda pode contribuir com o desmantelamento da independência de classe e das iniciativas de luta diminuindo o ritmo dos ataques e a direita pode ampliar a guinada autoritária e agravar o saque imperialista num ritmo acelerado na medida em que a capacidade de reagir das massas foi desarmada pela pseudo-esquerda.

2. Capitalismo em crise e as cidades:


O capitalismo passa por diferentes momentos históricos de desenvolvimento de suas contradições onde orbitam os projetos políticos de regulamentação de suas tendências que são incorporados pelos partidos da ordem burguesa. Ao compreender a base social concreta desses partidos, é possível situá-los no quadro mais amplo das disputas interburguesas a nível mundial.

Atualmente, os alinhamentos e realinhamentos das diferentes frações da classe dominante ocorrem em função da centralidade da guerra comercial entre EUA e China, fruto do esgotamento da partilha inter-imperialista do mundo do pós-Segunda Guerra Mundial. Não é necessário entrar em detalhes sobre esse processo no momento [7], mas destacamos que atualmente os capitalistas são reféns do esgotamento da capacidade do processo de valorização do valor que caracteriza a fase de decomposição do modo de produção [8].

A guinada nas políticas econômicas de austeridade fiscal no Brasil é resultado da crise de 2008. O ponto de inflexão ocorre em 2014, embora este ano seja o resultado das decisões tomadas nos governos anteriores que apenas resultaram num agravamento da crise [9]. Nenhum governo brasileiro, seja a nível municipal, seja a nível estadual ou federal fez outra coisa senão viabilizar as mudanças necessárias às exigências capitalistas diante da crise.

Mesmo com as boas intenções do reformismo, a tendência geral mundial e nacional é uma piora nas condições de vida do proletariado e do conjunto dos explorados. Além disso, as pressões da crise econômica impulsionam processos de espoliação fundiária que culminam nos saques de territórios indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses, de preservação ambiental, dos lugares de valor cultural não-rentável ao capital nas cidades, etc.

Apesar da construção da Usina de Belo Monte (2011) e outros megaempreendimentos preparassem o terreno para os processos de espoliação (assim como mudanças na legislação, como no caso da mudança do código florestal de 2012 que facilitava o desmatamento para favorecer o avanço do agronegócio sobre as matas), podemos dizer que os ataques mais incisivos no meio urbano vieram dos portões da boiada dos megaeventos da Copa do Mundo (2014) e das Olimpíadas (2016) que culminaram nos ajustes governamentais urbanos necessários para que o setor do capital imobiliário avançasse e determinasse a política municipal em toda a malha urbana do país.

No caso portoalegrense, enquanto cidade sede da Copa, uma pesquisadora de urbanismo percebe em certo momento parte do fenômeno:

é possível constatar que sediar o megaevento foi estratégico para acessar recursos internacionais e difundir a imagem de uma cidade moderna, desenvolvida e eficiente (…). Além disso, a escolha e a gestão dos projetos se articulam sempre com temas relacionado ao crescimento econômico, ao empreendedorismo e à criação de um ambiente favorável aos negócios, todos considerados positivos segundo a lógica do empreendedorismo. Nesse contexto se aprofundam as práticas gerencialistas (…). Por fim, a realização do megaevento em Porto Alegre, estimulou a compressão espaço-tempo no processo de produção do espaço urbano, uma vez que o megaevento teve uma data determinada para acontecer. Esta compressão de cunho neoliberal alterou as formas de organização vigentes até então. Cabe destacar que, principalmente na década de 1990, movimentos sociais e os moradores de Porto Alegre haviam vivenciado processos participativos e inclusivos. A realização do megaevento configura, portanto, não apenas a oportunidade de investimentos estatais e estrangeiros, mas sobretudo, a oportunidade de transformação das relações sociais de produção até outrora vigentes (Misoczky de Oliveira, 2020, pp. 24-25, disponível em: link).

Percebe-se a nostalgia da autora dos anos dourados da socialdemocracia e um equívoco conceitual ao final, pois as relações sociais de produção do espaço continuam sendo as mesmas, mudando apenas a práticas governamentais e institucionais que as regulamentam.

Em suma, a doutrina de choque dos megaeventos consiste em mudanças abruptas na administração das cidades para poder viabilizar as obras dos megaempreendimentos, deixando um legado de precedentes jurídicos, técnicos, legislativos, etc., em benefício de uma aplicação de ativos do capital em processos de urbanização por espoliação [10].

Assim, todas as eleições municipais que se seguiram foram perpassadas por uma participação cada vez mais crescente do capital imobiliário enquanto agente político influente. Atualmente, essa situação tem sido denunciada pela campanha socialdemocrata sobre o “Melnickstão” [11], com o esquecimento conveniente de que este é herdeiro direto do legado dos megaeventos de governos petistas!

De todo modo, antes de verificarmos em nível local os efeitos desse processo em Porto Alegre, podemos constatar a inescapável continuidade da política econômica neoliberal no governo federal, visto que as eleições municipais derivam dos embates travados com relação à essa instância.

3. O governo Lulalckmin na prática:


No início do ano, escrevemos algumas considerações acerca do primeiro ano do governo Lulalckmin (elas se encontram em nosso texto sobre a criminalização da revolta). Assim, um balanço das medidas do governo federal em 2023 demonstraram a continuidade da política econômica de Temer e Bolsonaro, com as particularidades das políticas de inclusão e assistência social anestesiantes. Destacamos como indicadores dessa manutenção as seguintes medidas:

  • A não revogação das reformas trabalhista, previdenciária e da política de preços da Petrobras, além de encaminhar novas reformas como a tributária e administrativa.
  • A criação de um novo Teto de Gastos (denominado de “arcabouço fiscal”).
  • A ampliação das privatizações, incluindo as áreas de Educação, Saúde, Presídios, etc. além de cortes milionários em Saúde e Educação.
  • O Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) voltado para expandir a acumulação de capital da grande burguesia nacional e internacional.
  • O apoio do Brasil em mais uma ocupação militar imperialista no Haiti.
  • A submissão perante o massacre israelense contra os palestinos que se expressa no não rompimento das relações comerciais e diplomáticas com Israel.
  • O apoio do governo ao “PL do Veneno” e a uma liberação ainda maior no uso de agrotóxicos.
  • A continuidade dos desmatamentos, da violência no campo e das chacinas nas favelas, com o aprofundamento da política de apoio aos militares e latifundiários.
  • A postura dúbia e oportunista em relação ao Marco Temporal e ao Novo Ensino Médio.

A garantia dessa agenda do governo Lulalckmin ocorre através do aparelhamento socialdemocrata, ou seja: no controle dos sindicatos e demais aparatos de organização de massa que possuem suas direções burocratizadas pelas distintas frações da socialdemocracia (que conjuntamente estão todas submissas na frente que elegeu Lulalckmin). Destaca-se o novo teto de gastos do Arcabouço Fiscal como o carro chefe da continuidade da política econômica de Temer e Bolsonaro (que nada mais é do que a já mencionada ingerência fiscal do capital financeiro para saquear países semicoloniais através da dívida pública).

Em 2023 as direções burocráticas desviaram qualquer descontentamento para as “mesas de negociação” com as promessas de “aberturas de diálogo” que o governo Lulalckimin criou apenas para manobrar politicamente os trabalhadores (uma vez que as “mesas de enrolação” serviram apenas para um constrangimento de iniciativas de luta).

Em termos de política indigenista, nas eleições de 2022, a coalizão Lulalckmin se comprometeu em aprovar o “Revogaço” de uma série de medidas implementadas no governo Bolsonaro que afetavam negativamente os povos indígenas. A promessa de um “Revogaço” foi feita por Lula no Acampamento Terra Livre daquele ano. No entanto, o que se sucedeu em 2023?

Houve uma retomada extremamente tímida nas ações de fiscalização e repressão às invasões em alguns territórios indígenas, mas a demarcação de terras e as ações de proteção e assistência às comunidades permaneceram muito aquém do prometido. Houve uma continuidade das invasões, conflitos e ações violentas contra comunidades e manutenção de altos índices de assassinatos, suicídios e mortalidade infantil entre os povos indígenas. Somente em 2023, foram registrados 276 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio em pelo menos 202 territórios indígenas em 22 estados do Brasil. Além disso, o governo federal avançou no sentido de explorar petróleo no território indígena da foz do Amazonas, deu prioridade máxima orçamentária ao agronegócio, apoiou grandes projetos de infraestrutura através do PAC e de exploração minerária em conflito com povos indígenas, como a ferrovia “Ferrogrão” e as investidas de empresas estrangeiras sobre o território Mura, no Amazonas [12].

Também presenciamos o agravamento da situação brutal do povo Yanomami, mesmo depois da declaração do estado de Emergência Sanitária de Importância Nacional (Espin) na Terra Indígena Yanomami. O desmonte das conquistas dos povos indígenas seguiu a mesma tendência dos anos anteriores [13], o que se refletiu também na insuficiência do Espin do governo. Assim, em 2023 houve um aumento de 6% de mortes de Yanomamis em relação a 2022 segundo dados do Ministério da Saúde [14].

Todos que compuseram a frente eleitoral de Lulalckmin contribuíram direta ou indiretamente para esse cenário, embora a responsabilidade principal seja das direções burocráticas que desviam as lutas dos explorados para projetar eleitoralmente suas figuras públicas com promessas políticas vazias ou mesmo com a ameaça de crescimento do fascismo. No entanto, como já demonstramos diversas vezes, é precisamente o desarmamento do proletariado pela socialdemocracia que nos impossibilita de enfrentar realmente a onda reacionária (que tanto mais cresce quanto mais o oportunismo socialdemocrata impede a independência de classe do proletariado).

Nesse sentido, os candidatos da pseudo-esquerda são empurrados cada vez mais para a direita, formalizando alianças com aqueles que também já foram chamados de “fascistas” (como o próprio Geraldo Alckmin). Na esteira desse processo, a necessidade de governabilidade exige a colaboração das forças políticas que contribuíram na eleição do governo. Assim, o que vimos ao longo de 2024 até o mês de setembro é a política das burocracias das direções sindicais contribuindo nas derrotas das greves dos trabalhadores do serviço público federal.

A estratégia das direções burocráticas consistiu e consiste em isolar de modo corporativista as lutas e impedir ações mais combativas para desgastar a categoria até a aceitação das propostas extremamente rebaixadas do governo. Vimos isso nas greves dos Técnicos-Administrativos da Educação (TAEs), dos docentes, dos servidores ambientais (ICMBio e Ibama), nas iniciativas de luta dos estudantes em certos casos, assim como nas atuais greves do Correios e do INSS. Todas foram e estão sendo derrotadas com os mesmos métodos [15]. E todas essas derrotas continuam ocorrendo em função do teto de gastos.

Os cortes em saúde [16], educação [17], ambiente [18], etc., também ocorreram em função da dívida pública. A meta fiscal do governo foi zerar o déficit das contas públicas para atender aos interesses do capital financeiro, ao mesmo tempo que propunha o maior Plano Safra da história ao agronegócio [19], além de atender prontamente à demanda de reajuste de mais de 20% das forças repressivas da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal e da Polícia Penal.

Na prática, o governo federal se revelou representante dos mesmos interesses que governavam o país na gestão Temer e Bolsonaro. Por isso que, nessas eleições municipais de 2024, em 85 cidades brasileiras houveram alianças entre PT e o PL (partido do ex-presidente Bolsonaro) [20]. Portanto, enquanto a pseudo-esquerda recua e cede no governo, dissimula e manobra politicamente nas greves, manifestações, etc., a direita e ultradireita reacionária crescem e aprovam sua agenda política [21].

4. O abstencionismo revolucionário:


As seções anteriores resumem bem a situação e o que está em jogo no espetáculo eleitoral da burguesia. Em alguns destaques do Instagram do blog (principalmente os que tratam da Carris e da Corsan), demos exemplos da luta de classes em curso que demonstram que as eleições simplesmente servem para desorganizar as mobilizações e a mudança governamental não trás nenhum “mal menor” como argumentam, porque ambos os males caminham na mesma direção (futuramente apresentaremos uma análise mais detalhada desse processo). A diferença é que o grau de intensidade da socialdemocracia não é percebido em sua totalidade devido à colaboração dos “movimentos sociais”, partidos, sindicatos, etc., que buscam responsabilizar os reacionários pela própria nulidade política ao mesmo tempo em que tentam preservar formalmente mecanismos institucionais de participação social que servem para desviar as energias de luta para  que os explorados administrem a própria miséria.

Desde as últimas eleições municipais [22], as burocracias tentam cooptar a revolta proletária para transformá-la em uma política de “desgastar o governo Melo”, promovendo o impeachment com a palavra de ordem do “Fora Melo” que é simplesmente uma campanha oportunista para a projeção eleitoral [23].

Mal passamos pela pandemia e sofremos a maior enchente da história do território ocupado pelo Estado do Rio Grande do Sul. Todos os danos e mortes, assim como a reação burguesa na forma de uma ofensiva para agravar a exploração atestam por si só o quão inúteis acabam sendo os apelos da socialdemocracia “pelo clima”.

Nesse momento estamos respirando fuligem dos incêndios florestais provocados pelo agronegócio, depois desse mesmo setor da classe dominante realizar uma série de ataques aos povos indígenas (Kaingang, Ava Guaranis e os Kaiowás, em três estados brasileiros: Rio Grande do Sul, Paraná e Mato Grosso do Sul).

Ao mesmo tempo, a grande maioria dos movimentos da pseudo-esquerda se dedicam principalmente em suas campanhas eleitoreiras e deixam qualquer “boiada” passar ilesa.

Se comprova na prática que somente a ação direta dos explorados representa um verdadeiro enfrentamento e, portanto, é fortalecendo e construindo as lutas diretamente que podemos traçar uma alternativa.

As tendências que analisamos confirmam que nenhum partido ou governo poderá impedir o agravamento da crise, ainda mais através da institucionalidade burguesa. Não existe nenhuma alternativa para a emancipação humana senão através da revolução social. As eleições se apresentam como um obstáculo político e ideológico para a realização dos objetivos libertários de nossa classe. Portanto, o abstencionismo revolucionário aparece como tarefa de intervenção para os elementos mais conscientes do proletariado.

Se impõe a necessidade de desmascarar a farsa eleitoral, intervir em cada local de moradia, estudo e trabalho para construir uma campanha que seja pela conquista, através da ação direta, de necessidades imediatas em cada fração de nossa classe. O desenvolvimento da autonomia do proletariado através do antagonismo prático na luta de classes é o objetivo do abstencionismo revolucionário.

Cartaz que difundimos na cidade.


Notas:


[1] – Para nossa análise da “destruição ambiental” no capitalismo, veja nosso texto escrito em conjunto com a editora Amanajé: A crise do sociometabolismo capitalista.

[2] – A partir dos dados e pesquisas realizados pelas próprias instituições burguesas podemos ter um indicativo superficial da situação. Segundo o Relatório Mundial da Desigualdade de 2022, os 10% mais ricos detêm 76% da riqueza e 52% da renda, enquanto que metade da população mundial fica com apenas 2% da riqueza e 8,5% da renda (Piketty et al., 2022). Até o Banco Mundial (BM) precisou admitir o aumento da desigualdade em 2023 (World Bank, 2023). Conforme um relatório da Oxfam (2024), 6 a cada 10 países com empréstimos realizados com o Fundo Monetário Internacional (FMI) estão ficando mais pobres. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) também alerta que a taxa de desemprego apresenta sinais de aumento em 2024 e que a desigualdade também se aprofundará. Referências:  PIKETTY, T. et al. World Inequality Report 2022. Paris: World Inequality Lab, 2022. Disponível em: link2023 in Nine Charts: A Growing Inequality. World Bank. Disponível em: link. |  FÉLIX, Thiago. Desigualdade cresce em seis de 10 países com empréstimos do FMI ou Banco Mundial, diz Oxfam. CNN Brasil. Disponível em: link. | Taxa de desemprego mundial deverá aumentar em 2024 e as crescentes desigualdades sociais são motivo de preocupação, segundo relatório da OIT. International Labour Organization. Disponível em: link.

[3] – Aqui nos referimos ao conjuntos dos conflitos militares envolvendo a disputa pela partilha do mundo inter-imperialista. Destacam-se no cenário atual: 1) o avanço da OTAN sobre o Leste Europeu como marcha do imperialismo sobre os territórios da antiga URSS até culminar na atual guerra da Ucrânia, na medida em que a Rússia interviu militarmente para afirmar seu poder de potência regional contra esse avanço; 2) o genocídio palestino realizado pelo Estado sionista de Israel que evolui para uma escalada bélica no Oriente Médio para consolidar um enclave imperialista estadunidense-israelense na região; 3) o aumento das tensões na guerra comercial entre EUA e China e a nucleação desse conflito nas tensões envolvendo Taiwan. A Rússia é uma potência militar e aliada fundamental da China. Todos os conflitos citados estão articulados. Para compreender melhor essa situação, consulte nosso manifesto escrito em conjunto com a editora Amanajé sobre as tendências que apontam para uma possível guerra mundial: Nenhuma guerra, senão a guerra de classes!.

[4] – Uma exposição mais elaborada desse posicionamento foi realizada pelo Réseau de Discussion International no texto: Definir o proletariado.

[5] – A estratégia nas ciências do conflito é determinada em função do objetivo final contido no programa que se busca realizar. No entanto, estamos tratando de uma guerra que constitui a própria realidade social imanente (o antagonismo de classes no capitalismo). Ao longo dos nossos textos buscamos aplicar esse método.

[6] – Nossa posição é fundamentalmente abstencionista. Consideramos equivocada a tática do “parlamentarismo revolucionário”. Sequer existem as condições em que essa tática poderia ser empregada, por isso o que vemos é puro oportunismo para a autoconstrução das organizações. Alguns argumentam que se trata de uma tática excepcional, apenas realizada na medida em que um partido proletário esteja em processo de maturação na classe e que só participa das atividades eleitorais e parlamentares paralelamente, pois o centro de gravidade da luta deve estar situado fora do parlamento (nas greves, insurreições e outras formas da luta de classes) e que as intervenções no parlamento devem corresponder a esta luta (promover suas pautas, atrapalhar sua criminalização, etc.). No entanto, toda a via parlamentar e eleitoral possui um tipo particular de comprometimento com a institucionalidade burguesa que torna inviável qualquer ação revolucionária nesses meios. A ingerência administrativa do Estado Burguês para a atividade parlamentar e eleitoral não é senão um obstáculo para a propaganda revolucionária. A participação nas eleições é um desperdício de energia militante que é desviada da agitação revolucionária para se adaptar ao nível superficial e rebaixado do eleitoralismo. A participação nas eleições promove uma certa legitimidade ao processo eleitoral (ou deslegitimidade do partido aos olhos dos elementos mais conscientes do proletariado), mesmo que supostamente seja utilizado para pura propaganda.

[7] – Seria necessário dois tipos de estudo aqui: uma análise da instrumentalização da energia revolucionária do proletariado por direções sociaisdemocratas que realizaram o desenvolvimento tardio do capital nacional por meio da deformação do valor através do planejamento na esfera da circulação (alterando a lei do valor para aumentar a composição orgânica de capital nacionalmente) e uma análise da totalidade capitalista que, incluindo as contrarrevoluções sociaisdemocratas como momentos de um mesmo processo, desse conta da crise de desvalorização do valor, na medida em que a generalização da produção de mais-valia relativa conduz necessariamente a uma incapacidade intrínseca do capital em aumentar a massa de mais-valia total (passando a declinar em termos absolutos). Certamente, isso não diminui nem obscurece o papel do imperialismo no processo, mas demonstra a razão do esgotamento das partilhas do mundo, o impulso que conduz às guerras comerciais que culminam em disputas bélicas. Essa situação nos leva necessariamente ao aumento nos processos de espoliação fundiária (no campo e na cidade). No pós-crise de 1970, o imperialismo estadunidense, através dos organismos monetários internacionais (FMI e BM), financiou a aplicação do capital sobreacumulado nas infraestruturas de países semicoloniais, endividando-os e tornando-os reféns da austeridade fiscal enquanto que, internamente, crescia sua bolha imobiliária, fruto dessa mesma tendência. A crise de 2008 é resultado dessa combinação de fatores. Na esteira desse processo, os países semicoloniais, na contração do imperialismo ocidental, recorre aos bancos chineses, exportam para a China e realizam parcerias comerciais que repetem, embora de modo diferente, o ciclo anterior, mas é interessante notar que o efeito no território chinês é análogo: cresceu proporcionalmente a bolha imobiliária chinesa. De qualquer forma, a reação do imperialismo estadunidense foi bloquear o desenvolvimento do BRICS que, no Brasil, se expressou na ingerência da Lava Jato e do golpe de 2016, onde a Odebrecht pagou o pato da FIESP (no caso: a empreiteira que cresceu junto com a dívida do país no período militar estava repetindo essa aventura com um negócio da China, até que a guerra comercial entravou o processo).

[8] – A crise da produção microeletrônica dos anos 70 deu início a uma série de instabilidades financeiras, econômicas e monetárias, tornando obsoleta a partilha inter-imperialista do mundo do pós-Segunda Guerra Mundial. A estabilidade econômica relativa do capitalismo foi pontual devido ao período de reconstrução das forças produtivas destruídas pela guerra (durando 30 anos de Bretton Woods, de Bem-Estar Social, etc.). Na medida em que a crise se aprofundava, a financeirização foi a única solução viável para que o sistema não colapsasse. Porem, a onda de financiamentos a base de capital fictício se tornou, de uma solução temporária, em um agravamento do problema, gerando um endividamento público e corporativo cada vez maior. Nesse processo, como de costume, ocorre a socialização dos prejuízos para os proletários e privatização dos benefícios para a burguesia. A manutenção da hegemonia global estadunidense e a estabilidade do sistema monetário internacional foram realizadas mediante a ingerência de organismos financeiros internacionais (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional). As políticas de austeridade fiscal que ficaram conhecidas como neoliberais nada mais são do que uma necessidade do sistema na fase de financeirização econômica. Não foi simplesmente uma escolha ou uma ingerência administrativa, mas a solução que viabilizou a reprodução social das relações de produção capitalistas que se tornaram incapazes de realizar um aumento real da massa de mais-valia total. Esse problema tem sido abordado e aprofundado em nossos textos sobre privatizações, embora somente atualmente as análises tenham maturado. De todo modo, esses textos conservam parcialmente seu valor explicativo: Crítica da privatização da CEEE-D e sua venda para o Grupo Equatorial & Considerações sobre a luta contra a privatização da Corsan e do DMAE.

[9] – Para uma análise desse processo, acesse o texto do grupo Robin Goodfellow, em português: A situação política no Brasil (de 2016). Esse texto demonstra com precisão a inutilidade do voluntarismo governamental diante das movimentações econômicas mundiais.

[10] – Importante para compreender esse processo é a obra de Henri Lefebvre. Ele foi pioneiro em considerar que a produção capitalista do espaço poderia ser uma importante fonte de aplicação do capital em momentos de crise, formando uma espécie de segundo circuito. Conforme Lefebvre (2002, p. 146-147):

O importante é sublinhar o papel do urbanismo e especialmente o do “imobiliário” (especulação, construção) na sociedade neocapitalista. O “imobiliário”, como se diz, desempenha o papel de um segundo setor, de um circuito paralelo ao da produção industrial voltada para o mercado dos “bens” não duráveis ou menos duráveis que os “imóveis”. Esse segundo setor absorve os choques. Em caso de depressão, para ele afluem os capitais. Eles começam com lucros fabulosos, mas logo se enterram. Nesse setor, os efeitos “multiplicadores” são débeis: poucas atividades são induzidas. O capital imobiliza-se no imobiliário. A economia geral (dita nacional) logo sofre com isso. Contudo, o papel e a função desse setor não deixam de crescer. Na medida em que o circuito principal, o da produção industrial corrente dos bens “mobiliários”, arrefece seu impulso, os capitais serão investidos no segundo setor, o imobiliário. Pode até acontecer que a especulação fundiária se transforme na fonte principal, o lugar quase exclusivo de “formação de capital”, isto é, de realização da mais-valia. Enquanto a parte da mais-valia global formada e realizada na indústria decresce, aumenta a parte da mais-valia formada e realizada na especulação e pela construção imobiliária. O segundo circuito suplanta o principal. De contingente, torna-se essencial. Mas essa é uma situação perniciosa, como dizem os economistas. Esse papel do imobiliário nos diferentes países (sobretudo na Espanha, na Grécia etc.) ainda é mal conhecido e mal situado nos mecanismos gerais da economia capitalista.
Referência: LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.

[11] – O apelido se deve ao favorecimento da prefeitura aos grupos empresariais do setor imobiliário, dentre eles a Melnick, por isso o apelido de “Melnickstão”. Em 2021, um pesquisador esboçava um panorama do crescimento do que ele chama de “coalizão urbano-imobiliário-financeira”: MELO, Erick Omena De. Financeirização, governança urbana e poder empresarial nas cidades brasileiras. Cadernos Metrópole, v. 23, n. 50, p. 41–66, 2021. Disponível em: link. O caso portoalegrense se mostrou exemplar e mesmo paradigmático para compreender esse processo, daí a importância dessa particularidade municipal, ainda mais pelo fato de ser uma transição do polo mais desenvolvido da socialdemocracia (centro do Fórum Social Mundial, Orçamento Participativo, etc.) para a mais tacanha urbanização neoliberal.

[12] – Veja mais informações em: CIMI. Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2023. Brasília: Conselho Indigenista Missionário, 2024.


[14]Mortes de indígenas Yanomami em 2023 crescem 6% em relação a 2022, mostram dados do Ministério da Saúde. G1. Disponível em: link.

[15] – Ainda não redigimos um balanço sobre essas lutas, então não vamos entrar em mais detalhes no momento. A greve dos técnicos-administrativos contra uma defasagem salarial de mais de 54%, o processo de sucateamento das instituições de ensino federal através dos cortes orçamentários (provenientes dos 10 anos de agravamento da política de austeridade fiscal), em suma, tudo isso está relacionado com as diretrizes fiscais impostas pelo capital financeiro em relação ao déficit público.

[16] – Ministério da Saúde tem congelados R$ 4,4 bilhões do orçamento. Agência Brasil. Disponível em: link.

[17] – Universidades sofrem corte de R$ 1,3 bilhão após um mês do fim da Greve da Educação. Nova Democracia. Disponível em: link.

[18] – Em julho deste ano o governo fez corte de 24% no combate de incêndios para cumprir o Arcabouço Fiscal. Esquerda Diário. Disponível em: link.

[19] – Governo Lula corta R$25 bi em gastos sociais enquanto anuncia mais de R$400 bi para agronegócio reacionário. Esquerda Diário. Disponível em: link.

[20] – PT e PL se unem para disputar eleições em 85 cidades do País; veja quais. Estadão. Disponível em: link.

[21] – O terrorismo climático capitalista no Rio Grande do Sul e o ecocídio incendiário coordenado pelo agronegócio não serão pormenorizados nesse texto, mas também expressam as mesmas tendências analisadas. Para a situação das enchentes, escrevemos dois comunicados e uma análise cronológica disponíveis em: Comunicado sobre a devastação que assola as terras do Rio Grande do SulSegundo comunicado sobre a situação do Rio Grande do SulInformes da luta de classes no território ocupado pelo Estado do RS.

[22] – Em novembro de 2020, em pleno período eleitoral, o assassinato de Beto por seguranças do Carrefour na Zona Norte de Porto Alegre foi o estopim para dois protestos combativos na cidade. Embora com muitos limites, essas ações contribuíram para explicitar os métodos dissimulados da socialdemocracia. Na primeira manifestação, a comunidade do bairro onde ocorreu o assassinato destruiu parte do mercado em revolta, ato de vingança coletiva pelo histórico de discriminações e violências perpetrados no estabelecimento. A socialdemocracia e sua frente ampla eleitoral entorno da então candidata Manuela D'Ávila (PCdoB) não conseguiu impedir, embora tivesse tentado, a ação direta das massas nesse primeiro protesto. A correlação de forças foi desfavorável até mesmo para a brigada militar que fracassou em proteger o mercado. Porém, no segundo ato, realizado em um outro Carrefour de bairro diferente, a situação foi distinta, pois o nível de engajamento das massas foi menor e o efetivo policial maior. Dessa vez a socialdemocracia conseguiu o que queria, dividindo o protesto, permitindo o isolamento dos elementos combativos para facilitar a repressão policial, enquanto que a frente ampla eleitoral saiu ilesa em sua conivência. Na prática, a defesa da projeção eleitoral da frente ampla da Manuela D'Ávila implicava em compromissos com a ordem burguesa, portanto se impôs a tarefa histórica da socialdemocracia de impedir que a revolta se generalizasse e fosse o gatilho de um movimento semelhante ao que aconteceu no mesmo período nos EUA, relacionado com o assassinato de George Floyd. O resultado de nossa intervenção prática nesse contexto está sintetizado na análise da situação presente na seção 3 do texto A revolta da classe proletária: a incidência da luta internacional no território brasileiro e na análise de nossa intervenção no texto: Análise de um protesto contra o Carrefour.

[23] – Não é necessário mais se deter nessas questões que só fazem sentido para uma parcela da pequena burguesia e da “classe média” em decadência, uma vez que eles tentarão em vão defender seus privilégios ameaçados pela crise, personificando suas angústias numa “má gestão” do balcão de negócios da burguesia. Uma outra parcela apenas fará coro com os reacionários, personificando na “corrupção de valores tradicionais” o agravamento das tensões familiares provocadas pelos desastres do capital, responsabilizando as “agendas progressistas” pela angústia gerada pela queda no padrão de vida. Todos os sonhos mesquinhos e fantasias românticas com as quais se entorpecem as gerações de jovens atualmente também contribui para estreitar os horizontes políticos e arrebanhá-los para o eleitoralismo. Outro fator importante foi o isolamento pandêmico e seus efeitos deletérios na ação coletiva, multiplicados pela política do “fica em casa” das direções burocráticas.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Definir o proletariado (2004) – Réseau de Discussion International

A fundição de ferro em blocos (1890), óleo sobre tela, de Hermann Heyenbrock.

Observação: recuperamos esse texto da Biblioteca Comunista Velha Toupeira (aqui é possível acessar o que sobrou do site: link), uma vez que o site da mesma sofreu um ataque virtual sionista no momento em que começaram os massacres de palestinos por Israel. Nosso objetivo é difundir esse material, na medida em que se trata de uma contribuição fundamental para a caracterização da classe proletária com base nos acúmulos programáticos do movimento comunista internacional.

Introdução


Para os socialistas utópicos, o comunismo surgiu do pensamento.

Marx entende que o comunismo surgiu do próprio seio do capitalismo e que é representado por uma força social: o proletariado. A teoria comunista é apenas uma emanação do proletariado sendo Marx somente o receptáculo que exprimiu teoricamente e de maneira extremamente sintética o movimento e o objectivo da nossa classe. Marx não é, como o pretende a socialdemocracia ou o estalinismo, o mestre genial do pensamento marxista, que, tendo bebido da filosofia francesa e alemã, teria conseguido engendrar o “marxismo”, que bastaria depois insuflar a um proletariado cujo movimento próprio apenas se restringiria à esfera económica, sindical. Marx via-se a si mesmo apenas como um porta-voz do proletariado.

Sendo o proletariado a fonte da teoria comunista, portador do comunismo e agente da revolução comunista, é da mais alta importância definir corretamente o que ele é. Tanto mais que à sua definição estão certamente ligadas questões de importância primordial: lutas ditas “reivindicativas” e lutas revolucionárias, definição do que são os comunistas, relação entre classe e partido, estratégia e tácticas, extrapolação sobre a transição para o comunismo e a ditadura do proletariado…

A. Concepções falsas de proletariado


Durante a “paz social”, o peso da ideologia dominante impõe concepções falsas do que é o proletariado. Estas concepções falsas tomam como ponto de partida a constatação da pretensa não-luta, constatação idealista incapaz de ver por detrás da forma pela qual se exprime a realidade a própria realidade. Elas levam tanto ao ativismo como à passividade.

1. Materialismo vulgar da definição economicista do proletariado e identificação de proletariado com classe operária


Alguns baseiam a sua concepção de proletariado apenas sobre a propriedade dos meios de produção. Há os burgueses, os operários, os pequeno-burgueses, os camponeses, os desempregados, os estudantes… A sociedade é seccionada segundo categorias sociológicas cuja multiplicidade varia em função dos critérios usados. O proletariado é então reduzido, seja ao proletariado industrial, ou mesmo ao proletariado produtivo, seja a um conjunto de categorias sócio-profissionais. Em todo o caso, é definido pela sua relação com as coisas (mercadorias, produtos, máquinas, fábricas, produção, produtividade). Esta concepção de proletariado afirma-se como materialista. Mas o proletariado é tomado apenas na sua dimensão de força produtiva de coisas e portanto como capital variável.

Os operários são proletários, mas nem todos os proletários são operários, longe disso. A definição economicista de proletariado que o identifica à classe operária, aos trabalhadores, serve o capitalismo. A realidade e o conceito de classe proletária são negados pela realidade e conceito de classe operária, e a confusão entre os dois exprime e serve a contrarrevolução capitalista, quer dizer, ela opõe-se ao facto de os proletários operários se poderem servir da sua posição privilegiada na produção para destruir o capitalismo encerrando-os na função que eles assumem no seio do processo de produção capitalista. Com efeito, o termo operário dá relevo à função, ao estatuto produtivo do proletário. Ora, o operário é uma figura positiva dentro do capital e a própria classe operária aparece como uma figura antagónica, mas positiva. A classe operária tornou-se uma potência reconhecida no interior do sistema.

O marxismo, ao invés e contra Marx, contribuiu a manter a confusão entre uma classe proletária com capacidade revolucionária, mesmo não fazendo a revolução, e uma classe operária suposta capaz de adquirir força e direitos, até eliminar por fim o capitalismo através de reformas ou mesmo pela insurreição.

A crítica a ser feita ao economicismo socialdemocrata e estalinista não deve ser que ele se afunda no sociologismo, nem que dá uma definição exclusivamente baseada nas condições materiais de vida. O que deve ser criticado não é o seu ponto de partida materialista mas o facto de que se trata de um materialismo mecanicista que se concretiza na identificação entre condições materiais de produção de coisas e produção, entre condições materiais de vida e “economia”, na sua liquidação da totalidade e a separação que faz entre “produção” e revolução. A definição economicista de proletariado só toma em conta o mecanismo de funcionamento do capitalismo. Seria mesmo absurdo criticar esta definição de proletariado como sendo exclusivamente materialista pois nem sequer é materialista consequente, já que nega que a própria revolução é uma produção material.

2. Definição voluntarista


A definição voluntarista não cai no materialismo vulgar de identificar os trabalhadores com o proletariado. Cai exclusivamente no idealismo de considerar o proletariado como sendo os que compreendem “o que faz falta”. A revolução deixa de ser determinada pelo movimento de oposição do proletariado para o ser pela associação/adição voluntária dos indivíduos mais conscientes e/ou mais ativos.

A constatação de um proletariado esmagado pela contrarrevolução e de uma situação onde restaria somente aos comunistas de boa vontade e de elevada consciência o darem-se as mãos induz ao iluminismo e ao ativismo. Em vez de se explicar que a negação negativa da classe, o triunfo da concorrência, será por sua vez negada, que, malgrado toda a ideologia podre, o proletariado é constrangido a lutar, obrigado a associar-se, deixa-se todo o proletariado na merda e interpela-se os que têm a consciência. Em vez de partir-se das determinações materiais que definem o proletariado, que o levam a associar-se, a formar-se como classe, a constituir-se em Partido, considera-se o “Partido” como o resultado formal da associação e da centralização dos que compreendem “o que faz falta”.

Creem ter apreendido a dinâmica. Com razão, partem da polarização inevitável e apreenderam que em última instância há apenas dois partidos: o da revolução e o da reação. Mas renunciam logo a seguir à dinâmica real, porque fazem abstração das contradições existentes na sociedade presente que a determinam. “O proletariado é revolucionário ou não é nada” é uma frase que tem todo o sentido na dinâmica social, mas somente aí. Torna-se uma caricatura quando se pretende que apenas “os revolucionários” são o proletariado e que o resto são burgueses.

A luta, a oposição, não é uma esfera à parte da vida mas sim a sua totalidade. Esta oposição inultrapassável não se encontra na “política” mas na existência mesma de classe excluída, de classe que produz a sua própria opressão e a sua própria emancipação, que, precisamente quando produz coisas, produz as condições sociais (logo materiais) da sua própria exploração e da supressão dessa exploração, de classe que produz o capital e a revolução social.

Em vez de se ver o desenvolvimento embrionário da classe e da sua organização enquanto força social no associativismo operário prático, em vez de se colocar em evidência que o proletariado é constrangido a associar-se como negação prática da concorrência, em vez de se mostrar no movimento prático a tendência em direção à organização em força social da classe, o movimento é desprezado em proveito de uma ideia voluntarista, formalista e idealista da organização.

3. Adição dos erros anteriores


Há também a pseudo-superação destas caricaturas que descrevemos. Mete-se um pouco de sociologia e um pouco de perspectiva. Crê-se ir mais longe e repete-se o esquema socialdemocrata: o proletariado é constituído pelos operários e pelos revolucionários. Na prática, ocorre uma adição perfeitamente dualista para formar o conceito de classe: os “revolucionários” consideram-se a si mesmos como proletários e o resto do proletariado é, como para a socialdemocracia, os operários sociológicos (adicionando-se ou não, consoante os grupos, os desempregados, os camponeses…). É uma combinação de idealismo e de materialismo vulgar.

B. Definição materialista dialética de proletariado


1. O proletariado como relação social


Em vez de ignorar ou não tomar em devida conta as condições materiais na definição de proletariado, a nossa definição afirma que o proletariado não é senão o movimento real e social bem prático e material. Em vez de desconsiderar o papel da produção nesta definição, trata-se de lhe dar um sentido mais global que os materialistas vulgares.

Se nós insistimos de tal forma neste facto de que o proletariado é constrangido a lutar pela revolução, não é porque seja um facto “económico”, mas porque vemos a luta, a oposição, a negação (não somente potencial, mas sempre em desenvolvimento) lá onde o sociólogo vê apenas “indivíduos que compõem uma classe”.

Assim, lá onde os estalinistas só veem o ponto de partida, a sociedade tal como está, os operários enquanto operários, nós vemos um movimento e esse ponto de partida como um produto social sempre inacabado onde se concentra a contradição de toda a sociedade entre o seu passado e o seu futuro.

Em vez de desconsiderarmos a produção de coisas na definição de proletariado, de renunciarmos a considerar o proletariado como força produtiva, nós situamos este momento real numa totalidade que é a produção e reprodução da sociedade inteira com as respectivas contradições mortais, onde se inclui a sua superação. Assim, em vez de definirmos o proletariado pela relação que este mantém com as coisas (mercadorias, produtos, máquinas, fábricas), nós definimo-lo como produto dum antagonismo prático entre os “homens” que contém no seu desenvolvimento a supressão do próprio antagonismo.

Na produção, não vemos somente produção de coisas mas sim, e sobretudo, produção de relações sociais. Em lugar de vermos, duma maneira estática, o proletariado como uma simples força produtiva de coisas e por conseguinte de capital, nós vemo-lo, por este mesmo ato, como força produtiva da revolução. Em vez de o considerarmos só como um aglomerado de homens forçados a fornecer o trabalho vivo ao trabalho morto, de o considerarmos unicamente como totalidade de homens vendendo a sua força de trabalho, como capital variável produzindo mais-valia, nós definimo-lo como relação social em movimento, contradição mortal do capitalismo cuja resolução apenas se encontra na sua auto-supressão.

“O proletariado, como toda a classe social, não se define pela sua situação económica. Define-se pelo papel que desempenha na dinâmica social, na luta de classes. A noção de classe não deve portanto sugerir-nos uma imagem estática, mas uma imagem dinâmica. Quando descobrimos uma tendência social, um movimento dirigido a um dado fim, então podemos reconhecer a existência de uma classe no verdadeiro sentido do termo” (PCI).

Analisar o proletariado do ponto de vista da produção de mais-valia permite compreender o mecanismo de funcionamento do capitalismo, permite compreender o capital como valor valorizando-se e logo a sua dinâmica. Mas o comunismo não se contenta em analisar o funcionamento do capitalismo, ele analisa o mecanismo do seu derrube, o movimento de subversão do qual o proletariado é o sujeito histórico. O comunismo é fundamentalmente a necrologia do capital. “Não ver senão o mecanismo do capital é eternizá-lo” (Jean Barrot).

2. Carácter contraditório do proletariado


O proletariado não existe como um conjunto de operários que depois têm uma prática. Pelo contrário, o proletariado existe somente enquanto prática de oposição de luta. Mas isto não pode ser interpretado como identificação da prática à acção revolucionária ou à acção consciente. Definindo o proletariado pela sua prática material, pelo seu movimento, não pretendemos acrescentar uma característica voluntária ou política à definição de proletariado e menos ainda substituir por uma definição política a definição economicista, mas pelo contrário, afirmar a sua determinação materialista: o proletariado é objetivamente um movimento prático global e contraditório, no qual se inclui tanto a reprodução desta sociedade como a sua destruição.

“O proletariado é revolucionário ou não é nada”. Justamente! Se arrebatarmos a determinação revolucionária na determinação da vida do proletariado e se o concebermos como simples produtor de coisas, liquida-se toda a dinâmica que anima o proletariado desde o seu nascimento. Mas ele não é revolucionário por ideal ou por vontade, mas precisamente porque se auto-produz como revolucionário ao mesmo tempo que produz capital, ou reciprocamente, porque o capital produz o seu coveiro.

3. Classe em si e classe para si


Uma maneira idealista, a custo disfarçada, de conceber o proletariado, consiste em considerá-lo ainda de um lado como simples classe do capital, como trabalhador, e por outro lado como revolucionário, como comunista quando “luta”. Isto é uma visão dualista e metafísica que consiste em separar na cabeça uma questão que é inseparável na prática, que consiste em fazer duas coisas na cabeça de uma só que existe na prática. É um desvio bastante corrente do idealismo que, em última instância, tem horror das contradições. A caricatura consiste em dizer que, quando o proletário trabalha, ele é capital, e quando luta contra o trabalho é comunista, ou então a oposição dualista: “classe em si”, “classe para si”. Os idealistas liquidam assim a contradição entre capital e comunismo, entre burguesia e proletariado, para a substituir por trabalhador/humanidade. Esquecem-se, no mesmo passo, que é precisamente enquanto classe desta sociedade que ela é o seu polo destrutivo, ou dito concretamente, esquecem que é o mesmo processo que a constrange a trabalhar e a suprimir o trabalho, que é apenas enquanto classe forçada a trabalhar que ela é forçada a revoltar-se.

4. Metafísica e dialética


O metafísico também sabe que existe a vida e a morte, a produção do capital e a destruição do capital. Mas vê na morte algo exterior à vida e na destruição algo de uma natureza totalmente diferente do desenvolvimento do capital, quer dizer, que nos conceitos que elabora, nunca vê a contradição, nem o seu devir, nem a sua ultrapassagem.

Pelo contrário, a dialéctica vê a morte mesmo na vida, no desenvolvimento do capital vê o desenvolvimento das suas contradições mortais, a destruição inevitável.

A ruptura não consiste portanto em ver a existência de conceitos opostos vida-morte, capital-comunismo. Mesmo o metafísico mais imbecil concebeu esta oposição. Porém vê sempre o conceito antitético surgir do exterior da tese, de circunstâncias exteriores à tese. A dialéctica põe precisamente em evidência que a tese contém a antítese, que ela é contradição em desenvolvimento, ou dito de outra maneira, que toda a afirmação dum fenómeno contém em si mesmo os elementos da sua negação.

Contrariamente à oposição “classe em si/classe para si”, o proletariado nunca é uma ou outra destas imagens puras, ideais, mas precisamente o processo contraditório e vivo que exclui praticamente toda a existência destes polos ideais. Historicamente, quando o proletariado não pode ser senão a sua atomização completa e acabada, carne para canhão das guerras capitalistas (realidade histórica que se aproxima mais do conceito idealista de classe em si ou para o capital), ele não existe mais, é a sua negação negativa.

Quando o proletariado é classe dominante totalizadora, abolição prática de todas as classes (realidade histórica que se aproxima mais do conceito idealista de classe para si), ele também não existe mais, é a sua negação positiva. O proletariado não é um dos seus polos históricos, mesmo se os contém na prática, mas sim o processo real desta contradição histórica.

Se, conceptualmente, falamos de classe explorada e de classe revolucionária, isso é apenas válido como momento duma explicação desde que não percamos de vista que a classe não é uma coisa nem outra, nem a adição das duas; o proletariado é antes de tudo um movimento, o movimento de destruição do velho mundo. Movimento que é determinado pela realidade de ser explorado e de dever destruir essa exploração, movimento real produto da contradição entre valor e necessidades humanas. O proletariado “puramente” explorado é um mito da burguesia, o proletariado “puramente” revolucionário é um sonho idealista que vai de encontro aos nossos interesses e que só será real com o desaparecimento, a dissolução da classe na humanidade, ou seja, com o comunismo.

5. Dinâmica contraditória global e definição das classes no antagonismo


As classes são uma prática e uma dinâmica. Mas uma dinâmica e uma prática globais. Não se trata de adicionar a produção de coisas (ou a propriedade ou não dos meios de produção) às ideias ou à política. É a prática global da vida, da luta, ou melhor da luta pela vida ou da vida de luta. A reprodução da vida (luta) é contradição, é dinâmica, é oposição global. Esta dinâmica determina as relações de oposição, as classes. Quando se fala de relações de reprodução e de propriedade, não se trata dum conceito estático (produção de coisas), mas sim de contradições na reprodução global da totalidade da vida, cujo desenvolvimento inerente implica a contrarrevolução e a revolução.

Os dualistas subtis tentam distinguir entre “operários” (económicos) e proletariado (revolucionário). Isto é estática comparada e não dinâmica, porém tentam responder à contradição interesses revolucionários/ideologia contrarrevolucionária.

Mas a dialéctica é todo um outro modo de pensar. A globalidade da vida humana é, nesta sociedade, contradição, tensão, movimento. O valor (enquanto sujeito, dinâmica) divide permanentemente a sociedade em dois campos: aqueles que são cooptados pela propriedade (gestão, controlo da sua produção, luta pela sua defesa) e aqueles desapossados de tudo, que, na sua vida, se opõem à propriedade ( a venda da força de trabalho é esta oposição conciliada e enquadrada, da mesma maneira que o são as outras formas de arranjar meios de vida: direito ao desemprego, o roubo, …).

As classes não existem à partida “em si” (por elas mesmas, definidas pela produção ou pela economia) e em seguida “lutando” (fazendo política). Existem somente enquanto forças orgânicas opostas e antagónicas. Definem-se portanto na prática do seu movimento de oposição e de luta inerente às relações de “produção” e aos interesses antagónicos que elas implicam. “Produção”, não no sentido imediato referindo-se exclusivamente à produção de coisas, mas no seu sentido global, enquanto reprodução da espécie, reprodução da exploração, reprodução dos dois campos irreconciliáveis…

Assim pois, proletariado e burguesia definindo-se pelo seu antagonismo mútuo: a burguesia como personificação das relações de produção capitalista, como partido da conservação, como força reacionária; o proletariado, como negação de toda a sociedade presente, como partido da destruição, portador do comunismo.

Toda a vida do proletário é apenas oposição e luta. As definições economicista e politicista devem ser postas uma ao lado da outra e deve-se lhes opor uma definição global baseada na totalidade da vida prática. Mais, não somos nós que definimos o proletariado, mas a vida total é que define o proletariado a nós mesmos.

C. Proletariado e comunismo


1. Determinação materialista dialéctica da existência dos comunistas


A acção voluntária dos operários como comunistas não é um fruto súbito duma tomada de consciência metafísica mas sim o resultado dum conjunto de determinações tanto históricas (classe explorada e revolucionária; concentração de todas as contradições das classes exploradas) como políticas (produto e fator – partido – as lições da história) e evidentemente económicas: é porque a classe operária se encontra cada vez mais na merda, que se a constrange a trabalhar cada vez mais por menores salários…, que o trabalho lhe parece cada vez mais embrutecedor, que ela se organiza como um poder. Demais a mais, o lugar que ocupam os proletários produtores de mais-valia tem importância: atribui-lhes um papel determinante na revolução.

2. Identidade essencial entre o ponto de vista do proletariado e o ponto de vista dos comunistas


Não é que seja necessário acrescentar a política à economia.  Não se trata de “politizar” o que quer que seja. A vida dos não-proprietários, dos proletários, não pode ser outra coisa que luta, luta pela vida, oposição viva à propriedade. A crítica verdadeira que deve ser feita aos que defendem a introdução das ideias socialistas nos operários (Kautskismo) parte daí. Nós mesmos somos apenas o produto destacado (mas histórico e não imediato) dessa oposição viva e organizamo-nos para a dirigir no sentido da sua negação efetiva e total.

É a própria realidade, as contradições da sociedade burguesa, o facto de que o proletariado é historicamente constrangido a fazer a revolução que fornece estas perspectivas que os comunistas tomam a seu cargo da maneira mais elevada possível e isso de acordo com os períodos históricos.

O ponto de vista real da nossa classe é o mesmo que o nosso malgrado as fraquezas e a falta de rupturas mais ou menos importantes. O ponto de vista da nossa classe (não o conjunto dos trabalhadores trabalhando em fábricas) é a diminuição da exploração que exprime o comunismo que é o desaparecimento da exploração. É fazer uma dicotomia imbecil dizer que as lutas operárias não são revolucionárias, que são reformistas e isso até à chegada do Partido-Zorro.

3. Surgimento do proletariado determinado pelo arco histórico


O proletariado é o herdeiro de todas as classes exploradas do passado porque as suas condições de sobrevivência levam ao seu paroxismo a inumanidade das condições de vida de todas as classes exploradas do passado, e porque concentra em si todas as causas profundas das lutas anteriores, No entanto, o proletariado distingue-se dessas classes oprimidas do passado porque estas últimas não tinham um projeto social próprio e porque as suas lutas na impossibilidade material de ultrapassar o quadro de simples reações, tendiam a-historicamente e utopicamente a reconstituir a velha comunidade perdida. Com o proletariado, a luta secular contra a exploração, contra a desumanização do homem, contra a subordinação da vida humana à ditadura do valor, é assumida pela primeira vez na história pelo sujeito revolucionário, quer dizer, um sujeito com um projeto social próprio, válido para o conjunto da humanidade e em ruptura total com a civilização do progresso: a destruição do Capital e para lá das classes, da exploração, da propriedade privada, de todos os estados… e a instauração do comunismo.

É o arco histórico total que determina o surgimento do proletariado como classe historicamente constrangida a impor o comunismo.

4. O proletariado, contradição permanente entre classe explorada e classe revolucionária, logo tendendo a organizar-se em partido


O proletariado é a classe revolucionária porque é já dissolução das classes no seio da sociedade de classes, porque classe de “sem reservas”, de desapossados, de homens libertados e arrancados aos velhos laços comunitários e aos velhos laços de alienação. O seu desapossamento alimenta o capital (de acordo com um processo de exploração diferente do que vigorava nas sociedades anteriores) e não pode abolir-se de um modo revolucionário senão através de uma reapropriação da potência social, do seu produto comum que o enfrenta opondo-se lhe como capital. Se o capital é condição do comunismo, é primeiramente porque produz massivamente desapossados susceptíveis de se constituir em classe revolucionária, dissolvente das condições existentes.

Essa luta é portanto não apenas uma reação da classe explorada, mas também e sobretudo a acção de uma classe revolucionária historicamente constrangida a assumir o seu programa e a constituir-se em força organizada, em partido comunista mundial (inversão da práxis no sentido mais global deste conceito).

A classe é uma contradição em ato (em movimento), simultaneamente manifestação heterogénea-capital variável e tendência a organizar-se em partido.

A classe traz em si a negação de todas as determinações do capital, o comunismo como movimento real de destruição da ordem social existente. O partido é a emergência desta classe enquanto organização (não no sentido formal) superior de si mesma para a sua emancipação e para a revolução comunista.

Que o proletariado se constitua em classe, logo em partido e ao mesmo tempo ele seja destruído sem cessar pela concorrência, é precisamente a dinâmica da nossa classe. Todas as tentativas de fixar este processo reintroduzem o dualismo pela janela depois de o terem expulsado pela porta. O proletariado, como conjunto de indivíduos, não se fixa nunca. Está em perpétua constituição (centralização, direção, constituição em partido), e destruição (sempre relativa e portadora de uma nova negação). O proletariado é a contradição viva da propriedade, mas ao mesmo tempo reprodu-la (reproduzindo também todo o seu conteúdo, logo a concorrência, logo a sua destruição negativa).

5. Partido e classe, duas expressões da mesma realidade


O proletariado constitui-se em classe organizando-se em Partido. Sem Partido (e também programa, projeto social, etc.) não se pode falar de proletariado. “A classe pressupõe o partido” (PCI, Partido e classe).

A luta do proletariado para se organizar em Partido é o centro, determinado pelas próprias condições da exploração, de toda a sua atividade.

O Partido não é acessório, é fundamental; sem ele o proletariado não existe como classe, mas sim como massa de indivíduos-objetos inertes da exploração e da barbárie capitalista.

Mas cuidado, devemos combater toda a assimilação entre Partido e esta ou aquela organização formal do passado.

Para Kautsky, Lenine, Luxemburgo, Pannekoek, Bordiga, etc., a classe podia ser definida em si, sem partido, e o partido sem problemas ser definido na base de outras características essenciais, para discutir depois a relação entre eles. No entanto, a classe não pode ser definida sem o Partido e o Partido não faz sentido sem a classe. Sem afirmação do Partido, mesmo numa forma embrionária, não existe proletariado. “O proletariado é revolucionário ou não é nada”.

Se se trata de substituir a cabeça do Estado burguês por outra, se se trata de destruir um governo e substitui-lo por outro, se se trata de gerir a produção capitalista por comités de fábrica ou por sovietes, é perfeitamente lógico considerar de um lado o partido e do outro a classe, de ter uma definição para classe e outra para o partido (socialdemocracia em geral, Kautsky) e ter depois a preocupação de saber se o partido dirige e aterroriza a classe (socialdemocracia de linha robespierriana, estalinismo, trotskismo original, PCI) ou se a classe deve decidir e o partido aconselhar (socialdemocracia, Kautsky depois de 1917, conselhismo, trotskistas atuais, CCI, democratas operários em geral).

A “relação” entre classe e partido não é uma relação entre duas entidades. Trata-se duma mesma realidade que não admite duas definições distintas e depois uma relação entre elas. É por isso que a questão equivaleria a encontrar a “relação” entre o corpo humano e o seu movimento, ou entre o corpo e a vida, sendo o corpo humano e o seu movimento (ou a sua vida) a mesma coisa. Eis a questão absurda, porque o corpo humano é o seu movimento, sem movimento não há corpo humano, sem corpo humano não há movimento, sem partido a classe operária não existe, sem a constituição do proletariado em classe não há partido comunista!

6. O partido, momento do movimento real do comunismo, determinado historicamente


É evidente que se pode – como relação a toda a realidade – considerar somente um dos seus aspectos, por exemplo a classe, o corpo humano, …mas não se pode jamais fazer abstração do outro aspecto: o partido, o movimento.

Assim, pode falar-se da acção da classe para se organizar em partido e da acção das minorias na linha histórica do partido para dirigir a formação da classe. No primeiro caso, toma-se o proletariado como sujeito e o Partido como a sua acção, a sua obra; no segundo caso, toma-se o partido histórico como o sujeito e a constituição da classe como a sua acção, a sua obra.

Mesmo se se aceitar ver uma distinção entre classe e Partido, é indispensável que se lembre sempre que ambos são determinados pela contradição, logo pela sua ultrapassagem. Não é um Partido mítico que é, que contém, ou que dá à classe a resolução da contradição. O partido é apenas a formalização, ou melhor a tomada a cargo e a organização em força desta resolução através da organização dos homens historicamente constrangidos a resolver esta contradição: os proletários.

Mas o partido não é essa coisa ideal que se poderia construir à força de consciência e vontade, não se saberia quando. É o produto da síntese do trabalho preparatório dos comunistas, o qual é indispensável, e do desenvolvimento da combatividade operária.

Na concepção do Partido como produto da consciência e da vontade, a consciência é unicamente concebida como uma compreensão cerebral e não como um momento da prática.

As determinações históricas fazem que aquilo que pode parecer um ato de vontade individual dum comunista não seja senão um momento do movimento real do comunismo.

A história não é a história das vontades assumidas e não assumidas, mas a história determinada historicamente pela luta de classes que se cristaliza na atividade dos indivíduos.

Mazagan, 7 Dezembro 2004, Réseau de Discussion International.