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domingo, 9 de agosto de 2020

As cidades do comunismo primitivo (2020) – Emancipação


Reconstrução de uma casa Cucuteni.


Publicaremos aqui a tradução que realizamos do segundo artigo sobre “comunismo originário” disponível no site “Nuevo Curso” do grupo Emancipação. Consideramos que as sínteses que eles apresentam são de suma importância para a compreensão adequada do que se convencionou chamar de “comunismo primitivo”. Caso não tenha lido o primeiro artigo, sugerimos que o leia primeiro, disponível neste link.

Não obstante, é necessário fazer algumas ressalvas quanto às conclusões a que chegam ao final. Com efeito, o texto parte de premissas adequadas, mas ao tentar explicar o que chama de “proto-luta de classes” cai no mito do progresso, uma apologia que aparece sob o disfarce de “teoria do entrave do desenvolvimento das forças produtivas”. No nosso entendimento, essa “teoria” é subproduto da alienação da técnica humana, uma vez que subordina a tecnicidade à utilidade economicamente rentável (o que se traduz na abstração das relações técnicas de sua própria positividade). Ignorando-se, sob esse aspecto, a evolução concreta inerente às relações técnicas, pois existe uma temporalidade evolutiva própria à tecnicidade que não se reduz ao economicamente rentável, a não ser quando a economia coloniza a técnica (situação que pressupõe a alienação do trabalho).

As imagens, legendas e links que incluímos estavam na publicação original (tomamos a liberdade de corrigir os links quebrados).

Ao final deixaremos um vídeo complementar às discussões sobre as primeiras cidades humanas.

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No artigo anterior descobrimos como as primeiras economias em transição para a agricultura e a sedentarização não dividiram a sociedade em classes. Pelo contrário, evoluíram dentro do comunismo primitivo, criando o primeiro comunal agrário. Hoje vamos nos aproximar da evolução desses modelos na Europa Oriental. Ali grandes cidades com dezenas de milhares de habitantes prosperaram durante séculos sob formas avançadas de comunismo primitivo, com maior bem-estar que seus contemporâneos já baseados em economias exploradoras e com um urbanismo praticamente oposto até datas relativamente recentes, quando Sólon enunciou as bases da democracia escravista grega. O que aconteceu com elas? Por que elas duraram tanto? Por que desapareceram?


Localização dos principais mega-sítios da Cultura Tripiliana-Cuteni.


Na década de 70, começaram as primeiras descobertas arqueológicas do que mais tarde se chamou de Cultura Tripiliana-Cuteni. Em uma vasta região das atuais Ucrânia, Romênia e Moldávia, foram descobertas dezenas de “mega-sítios”, cidades neolíticas. Seu apogeu foi entre 4.500 e 3.000 a.C. O problema para os arqueólogos é que o número de casas em cada uma delas é impressionante. Em uma das últimas mega-sítios exploradas, Nebelivka, durante…

mais de seis anos de trabalho de campo desde 2009, os pesquisadores escavaram e mapearam estruturas localizadas em mais de um quilômetro quadrado. Fotos aéreas, imagens de satélite e dados geomagnéticos, complementados por escavações de 88 poços de teste, identificaram 1.445 casas residenciais e 24 estruturas comunais chamadas casas de assembleias.

Restos de cultura material Cuteni encontrado em escavações arqueológicas.


Porém, o interessante é que…

Os pesquisadores dizem que não há sinais de um governo centralizado, uma dinastia governante, ou disparidades de riqueza e classes sociais no antigo assentamento. As casas eram muito semelhantes em tamanho e design. As escavações produziram poucos bens de “prestígio”, como artefatos de cobre e adornos de conchas. Apareceram muitos exemplos de cerâmica pintada e figuras de barro típicas da Cultura Tripiliana, e mais de 6.300 ossos de animais desenterrados no local sugerem que os residentes comiam muita carne bovina e de cordeiro. Essas pistas sugerem que a vida cotidiana era muito semelhante nos diferentes bairros de Nebelivka.

Plano reconstruído de Nebelivka.

A população desses mega-sítios nada tinha a invejar as cidades mesopotâmicas já formadas sob a divisão em classes. Os dois maiores mega-sítios investigados, Talianki e Maidanets, abrigavam, no momento de seu máximo desenvolvimento, 26.000 e 46.000 pessoas respectivamente. É claro, sob um planejamento urbano e prioridades tão radicalmente diferentes quanto sua organização social.

Hórreos e cultivos no campo da Cultura Tripiliana-Cuteni.

Uma das coisas que mais tem chamado a atenção dos pesquisadores é a diversidade e sofisticação do regime alimentar. Nos mega-sítios se cultivavam trigo, aveia, painço, centeio e cevada – além do cânhamo usado para produtos têxteis –, mas também haviam áreas de pomares e árvores frutíferas onde foram encontrados restos de cultivo de damascos, ameixas, cerejas, uvas, ervilhas e feijão. A pecuária, essencial para permitir a inclusão produtiva dos membros fisicamente mais fracos, era altamente desenvolvida e parece que a dieta era rica em proteínas de suínos, cabras e ovelhas domesticados, mas também de caça e pesca. E, evidentemente, eram elaborados fermentados de grãos –  cerveja velha – e possivelmente de vinho de uva.

Reconstrução da cidade de Ur, com a característica separação do espaço entre classes e a aglomeração dos explorados e submetidos.

Mas além do igualitarismo das casas e da diversidade alimentar, essas cidades do comunismo primitivo diferiam das mesopotâmicas em sua baixa densidade espacial. Enquanto Ur, no auge de seu esplendor, ocupava 89 hectares e tinha cerca de 60.000 habitantes, as 3.000 casas de Maidanets ocupavam cerca de 270 hectares e as 2.700 de Talianki, nada mais, nada menos, que 450 hectares.

A alta densidade das primeiras cidades classistas em relação às cidades comunistas primitivas reflete evidentemente a exploração, mas também a centralização do poder estatal que acaba de nascer para “mediar” as classes entre si e, sobretudo, para manter o sistema de exploração. Uma população concentrada é mais fácil de controlar e dividir em cotas com menos recursos. A estrutura urbana das cidades do comunismo primitivo reflete não apenas uma distribuição igualitária de espaço e acesso aos produtos do trabalho coletivo – como vimos na dieta alimentar – mas a natureza diferente do poder político em uma sociedade sem Estado.

Casa das assembleias em Nebelivka.

Em Nebelivka, por exemplo, as casas foram agrupadas em 153 bairros, a maioria das quais tinha entre três e sete casas, que foram agrupadas, por sua vez, em 14 bairros, cada um com uma ou mais casas de assembleia. Esses locais de coordenação e decisão social precisavam, pela sua própria natureza, ter uma área aberta. A comunidade não dividida em classes precisa deste espaço.


A proto-luta de classes


Casas queimadas em Nebelivka.


Outra coisa que chamou a atenção dos arqueólogos dos mega-sítios é o aparecimento de casas queimadas em épocas diferentes. Em muitos casos, elas não foram reconstruídas. Apenas o buraco ficou com as ruínas. Os pesquisadores inicialmente atribuíram isso a alguma forma de ritual. Era um desses “mistérios” arqueológicos. Mas, na verdade… nem tanto.

Por toda a Europa Oriental, ao mesmo tempo e depois dos “mega-sítios” de Cucuteni, apareceram cidades igualitárias mais ou menos grandes, mas muito semelhantes. Elas são conhecidas pela palavra latina “oppida”. E há evidências arqueológicas de que elas prosperaram até 580 a.C. e que há pouco mais de 2.000 anos ainda restavam algumas. À medida que o marco de compreensão desse tipo de cidades comunistas primitivas aumentou, apareceram outras formas de interpretação muito mais interessantes do que o “deus ex machina” do ritual.

Okolište, na Bósnia, foi fundada por volta de 5200 a.C. e continha grupos familiares que aparentemente desenvolveram diferentes potenciais econômicos e demográficos em seu desenvolvimento. As casas das famílias mais ricas, que exerciam uma posição crescente de poder dentro da grande aldeia, foram queimadas por volta de 4.900 a.C. Depois dessa época, há muitas mudanças em Okolište: o tamanho da vila, que originalmente era muito grande para as condições neolíticas com aproximadamente 3.500 habitantes, é reduzido a um “tamanho padrão para o sudeste da Europa” de 100-200 habitantes. Além disso, as diferenças entre as famílias tornam-se irreconhecíveis e as funções específicas da centralidade de Okolište dentro do assentamento circundante são igualmente indiscerníveis. Neste sentido, no caso de Okolište podemos supor que estamos perante uma rebelião interna contra as crescentes diferenças sociais e as crescentes diferenças na gestão dos recursos.

Nos três exemplos citados, as certezas e incertezas na gestão e reconstrução dos conflitos sociais internos são evidentes. No entanto, os processos, por exemplo, em Heuneburg e Okolište podem ser comparados. Em ambos os casos, o desenvolvimento do potencial econômico crescente de um grupo de famílias dentro da população total leva a conflitos sociais internos. Enquanto uma concentração de atividades e poder político em certas famílias é reconhecível na neolítica Okolište, em Heuneburg há um distrito inteiro – separado do resto do assentamento – no qual o artesanato e o controle político estão concentrados. Em ambos os casos, os conflitos sociais levam a um padrão de assentamento mais disperso e à redução das diferenças sociais dentro da sociedade (Johannes Müller. Rebellion and Inequality in Archaeology, 2017).

Ou seja, as diferenças no desenvolvimento demográfico dos diferentes grupos ou tribos que convergiam na cidade e a extensão desigual dentro da comunidade de certas atividades – ou seja, o desenvolvimento das forças produtivas sob o comunismo primitivo – teriam suscitado conflitos tendendo ao aparecimento de classes. Chegando a esse ponto, o comunismo agrário primitivo só poderia reprimir o processo – enfraquecendo o tecido e a capacidade produtiva do grupo social – ou transformar-se em sociedade de classes. O desenvolvimento destas e sua extensão a partir das guerras, mas também das trocas que difundem as novas tecnologias por elas desenvolvidas, sem dúvida potencializam os momentos de crise nas cidades igualitárias. Daí seu desaparecimento ou transformação paralelamente ao desenvolvimento do modo de produção escravista. A primitiva cidade comunista não desapareceu sem luta, mas sua resistência não deixou de ser uma resistência ao desenvolvimento das capacidades produtivas de toda a Humanidade.


O que podemos aprender com a cidade comunista primitiva?


Reconstrução digital de Talianki, uma cidade comunista primitiva de cerca de 5.000 anos.

As descobertas da cultura Cuteni estão levando os arqueólogos a revisar a história das primeiras cidades não apenas na Europa, mas na Ásia e na América. Hoje, uma tendência é seguir discursos como o do arqueólogo David Wengrow, da University College London, que argumenta que cidades igualitárias não eram um fenômeno local [Observação: deixamos o link para o texto em sua versão traduzida para o português]. Wengrow lembra que antigos centros cerimoniais na China e no Peru, por exemplo, eram cidades com infraestruturas sofisticadas que existiam antes de qualquer indício de controle burocrático e que uma administração igualitária, por meio de assembléias e sem Estado, poderia até ter caracterizado as cidades mesopotâmicas durante seus primeiros séculos, um período sem evidências arqueológicas de sepulturas reais, exércitos ou grandes burocracias típicas dos primeiros estados.

Desenho de como teria sido a distribuição das habitações na Cultura Tripiliana-Cuteni.

A importância de todo esse debate histórico e arqueológico é sua… atualidade. Mostra-nos como, mesmo com um grau de desenvolvimento tecnológico muito primitivo, foi possível sustentar sistemas produtivos complexos e não mercantilizados que não destruíram o ambiente natural nem esmagaram grupos sociais inteiros. Mostra que a política pode ser a expressão organizada da consciência de uma massiva comunidade humana que não se encontra dividida em classes, em vez da batalha em torno e contra um Estado que falsamente finge ter sempre existido e que se diz ser essencial para manter a produção mais básica. Ou seja, a Humanidade pode ser uma comunidade real, não fragmentada pela fratura entre classes antagônicas.

Além disso, não se vê em lugar nenhum como o desenvolvimento do conhecimento e das capacidades produtivas que o capitalismo nos legou contradiga o anterior, como afirmam os neo-malthusianos em todas as suas versões. Ao contrário, se o comunismo primitivo não é uma opção hoje, não é porque o desenvolvimento humano nega a possibilidade do comunismo, é porque esse desenvolvimento torna possível um novo comunismo além da escassez.


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La primera ciudad de la Historia: Çatalhöyük | Tarihin İlk Şehri (Türkçe Altyazı)

sábado, 8 de agosto de 2020

O comunismo primitivo não foi o que te contaram (2020) – Emancipação

Reconstrução digital de Talianki, uma cidade comunista primitiva de cerca de 5.000 anos.

Publicaremos aqui a tradução que realizamos do primeiro artigo sobre o “comunismo primitivo” disponível no site “Nuevo Curso” do grupo Emancipação. Consideramos que as sínteses que eles apresentam são de suma importância para a compreensão adequada do que se convencionou chamar de “comunismo primitivo”. O segundo artigo também foi traduzido por nós e se encontra publicado em nosso blog, veja-se: link.

Não obstante, é necessário fazer uma ressalva quanto ao uso do termo “primitivo”: trata-se de um qualificativo equivocado, pois nos induz a cometer o erro de projetar uma linearidade progressiva sobre as sociedades.

As imagens, legendas e links que incluímos estavam na publicação original (tomamos a liberdade de corrigir os links quebrados). Ao final deixamos, como complemento, um vídeo sobre o templo de Göbekli Tepe.


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No relato que nos ensinaram na escola, há uns 9.000 anos, o descobrimento da agricultura produziu a sedentarização, a urbanização e a divisão de classes. O comunismo primitivo foi deixado para trás e a História da Humanidade começou como tal com a ruptura da comunidade social originária e o início dos modos de produção baseados na exploração de umas classes por outras. Os descobrimentos arqueológicos das últimas décadas desmentem, porém, estes relatos e nos pintam um mundo em que o comunismo primitivo desenvolveu a agricultura e a pecuária sem dividir a sociedade em classes, produziu grandes cidades muito distintas daquelas do “Crescente Fértil” e resistiu à emergência das classes exploradoras até datas relativamente recentes, chegando a coexistir temporalmente com os primeiros reis romanos e a primeira democracia escravista grega.


No início da agricultura havia… o comunismo


Göbekli Tepe


A velha história tinha falhas evidentes. A primeira grande revolução produtiva de nossa espécie, no fim de meio milhão de anos de vida nômade, que abriu as portas para a divisão em classes sociais, escrita, religiões desenvolvidas, os primeiros estados… não poderia ser explicada como uma melhoria na produtividade. A agricultura exigia mais recursos e produzia menos do que permanecer como caçadores nômades. Durante décadas, se experimentou todo o tipo de modelos explicativos, mas nenhum conseguia alcançar resultados realmente satisfatórios. Parecia que nossos antepassados tinham passado fome e penúrias voluntariamente para aprender a cultivar grãos e criar gafo, embora essas práticas levassem muitas gerações para serem mais proveitosas do que a caça e a coleta.

Klaus Schimidt, o arqueólogo que dirigiu a escavação de Göbekli Tepe, considerada por muitos como a descoberta arqueológica mais importante até hoje, foi o primeiro a desenvolver uma teoria satisfatória a partir das novas evidências. Göbekli Tepe, descoberto em 1994 e construído há cerca de 11.500 anos, cerca de três milênios antes da fundação de Uruk/Suméria, tem sido conhecido na mídia como “o primeiro templo”, mas, acima de tudo, é o primeiro vestígio material descoberto até agora da sedentarização e de produção agrícola.

Schimidt argumentou que Göbekli Tepe havia sido um centro de onde o cultivo e a pecuária se espalharam em direção ao que chamamos de “Crescente Fértil”. Mas os construtores dessas edificações ainda eram nômades e caçadores. Teriam sido as necessidades de manutenção das próprias estruturas do santuário que teriam gerado os incentivos para investir recursos no árduo trabalho de cultivo de cereais silvestres e domesticação de algumas espécies. Podia ser antieconômico em relação à caça, mas a caça exigia longas viagens em ciclos sazonais, se você quisesse ficar em Göbekli, teria que dedicar mais tempo cuidando dos grãos selvagens que o cercavam. Ainda mais se, ao que parece, o santuário recolhesse e abrigasse regularmente os aleijados e enfermos, funcionando como uma espécie de “base” para um grupo que ainda era nômade.

Faltava, contudo, uma peça a polir: que sentido tinha manter uma estrutura tão cara e ao mesmo tempo tão precária? O que esses santuários forneciam de importante o suficiente para organizar toda a vida comunitária ao seu redor? A resposta seria dada novamente por Göbekli Tepe. A descoberta de grandes cubas de fermentação iluminou um novo elemento. Escavações paralelas na China, entretanto, deram origem às primeiras teorias que afirmavam que a agricultura foi um subproduto da necessidade de produzir bebidas alcoólicas para as celebrações periódicas dos caçadores nômades.


Relevo encontrado em Jiahu.


Em 2004, as escavações em Jiahu, a mais antiga aldeia neolítica chinesa descoberta até agora, fundada há cerca de 9.000 anos, forneceu uma nova pista. O arqueólogo Patrick McGovern descobriu restos de uma bebida, uma espécie de chicha, que devia conter cerca de dez graus de álcool. O que é mais interessante é que a produção dessa “cerveja” primitiva teria sido, segundo McGovern, a causa da sedentarização. Santuários como Göbekli Tepe, ou assentamentos como Jiahu, ou aqueles que dariam origem à Suméria, teriam sido o produto da necessidade de comunidades e grupos de caça nômades em se reunirem novamente para celebrar e redistribuir o fruto de seu trabalho.

Como em Göbekli Tepe, Jiahu originalmente não abrigava toda a tribo. É bem possível que tenha nascido como um assentamento de apenas umas poucas pessoas que cuidavam de cultivos “fermentáveis” que em cada ciclo sazonal permitiam a produção da bebida. Tratava-se de bebidas cuja função era integrar-se em uma espécie de festa em que a comunidade nômade se reencontrava com seus aleijados e com os menos produtivos e sacrificados agricultores. Como observa McGovern:

Apesar de caracterizarmos essas bebidas como neolíticas tal qual a domesticação destas plantas, veremos que é um esforço igualitário, com todos trabalhando juntos.

Em uma economia comunista primitiva, a celebração é o principal mecanismo coletivo de coesão social. Ao unir a redistribuição entre agricultores e caçadores por meios de cerimônias, a comunidade não se dividia em classes, afirmando sem fricções seu igualitarismo. A fermentação de grãos silvestres – a forma mais primitiva de cerveja – começa a ter um papel cada vez mais importante nesses festivais, porque eles se convertem naturalmente no “objetivo” de todos. Toda celebração precisa de algo especial. Desse modo, algo aparentemente antieconômico, como semear e cultivar em tempo integral, torna-se objeto de uma primeira divisão do trabalho que não servia à exploração de uns por outros.

Ainda há exemplos dessa lógica comunista primitiva operando em sociedades vivas, por exemplo, os Enawene-Nawe, cuja sociedade combina caça e agricultura articulando-se em torno de um festival cíclico central. Cada vez que os grupos de caça e pesca voltam, uma casa diferente – os responsáveis de um pomar – organiza uma festa comunitária onde os resultados da caça e do cultivo são redistribuídos, mantendo a organização social. As casas estão distribuídas radialmente e a casa que deve organizar o festival está mudando de raio para raio como o calendário cíclico amazônico.


Foto de canoas Kwakiutl de 1914.


Essa lógica redistributiva parece ter sido também a origem das primeiras redes “globais”. Com toda a probabilidade, uma troca não-mercantil mais parecida com as extensas redes de troca ritual polinésia ou dos Kwakiutl até o século 20, do que com o comércio posterior dos fenícios ou gregos. Pesquisas recentes sobre o DNA da flora britânica levaram uma equipe de cientistas a concluir que as comunidades neolíticas do Sul da Europa compartilhavam sementes de grãos cultivados com seus vizinhos mais atrasados do Norte há mais de oito mil anos, dois mil anos antes das primeiras evidências conhecidas de agricultura nas ilhas.

Ou seja, os “santuários” – originalmente o centro dos itinerários de caça das partes de uma tribo – possivelmente também serviam para a redistribuição entre diferentes tribos, difundindo e equalizando os avanços em diferentes regiões geográficas. A revolução agrária criou um mundo interconectado com trocas de longa distância muito antes do nascimento da mercadoria.

O resultado geral é uma imagem da Revolução Neolítica e do nascimento da civilização muito diferente daquela que se tivera durante o século XX. A comunidade agrária primitiva não tinha uma estrutura social nem um ciclo produtivo essencialmente diferente daquele das tribos nômades. Depois do comunalismo primitivo dos caçadores e coletores que fascinou os primeiros antropólogos, não veio imediatamente o Estado, a propriedade privada e a divisão sócio-sexual do trabalho, mas uma longa fase de comunismo agrário que continuou a ser sustentado em parte pela caça, pela pesca e coleta. Esse sistema de produção ocupava amplos espaços geográficos, certamente mais conectados entre si do que imaginamos. E, o que é mais importante: o grande salto não foi a descoberta da agricultura em si, mas o nascimento do comunal agrário a partir da lógica cerimonial da celebração.


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Göbekli Tepe: El descubrimiento que puede cambiar la historia | Tarihi değiştirebilecek keşif


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