sexta-feira, 3 de maio de 2019

Uma perspectiva classista no anarquismo e o conceito das “comunidades de interesses” de Bakunin para a análise conjuntural

Resumo: Neste texto iremos discutir sobre a perspectiva classista (no sentido de partir das premissas da luta de classes) do anarquismo a partir de um diálogo teórico com o conceito de “comunidades de interesses” num artigo escrito por Mikhail Bakunin em 1870.


1. Anarquismo de Luta de Classes


O movimento anarquista historicamente preponderante (inicialmente autointitulado de “socialismo libertário”) sempre reconheceu a “luta de classes” como dinâmica constitutiva da sociedade capitalista. Se considerou, inclusive, como um desdobramento, no nível das ideias, das associações e formulações do próprio movimento operário, na medida em que avançavam as contradições de classe. Na França do século XIX, não foi por acaso que assumiram positivamente a alcunha de “anarquistas”, depois da brutal repressão que os operários sofreram sob a justificativa de promoverem a “desordem e anarquia”. Daí os anarquistas rebaterem veementemente os reacionários anunciando que: “a anarquia é a verdadeira ordem!”.

Para explicar essa questão, devemos fazer algumas considerações sobre o que entendemos por “política”, uma vez que damos um fundamento classista ao que é considerado como “político”. Em síntese, trata-se da emergência de um campo de batalha que envolve ações sobre as ações de uns grupos sobre outros de acordo com seus interesses coletivos que surgem necessariamente de suas condições sociais (que podem ser de classe ou de outras formas de divisões societárias). De todo o modo, as significações classistas do conceito irão derivar das posições em que se encontram os sujeitos no “campo de batalha”. A nossa própria analogia com a “batalha” revela nosso posicionamento pró-dominados.

Em suma, política no entendimento das classes dominantes é a arte de manter o estado social atual. Daí é natural que um conhecido general prussiano diga que: “a guerra é a política por outros meios”(1), uma vez que o fim da política aparece como estabilização da ordem, já que se trata de não deixar o poder consolidado no domínio de determinada classe se desagregar.

Para as classes dominadas, por outro lado, a “política é a guerra por outros meios”, já que o fim da política dos dominados é necessariamente destrutivo, pois é a luta pela desagregação do domínio que incide sobre sua classe. É a recusa da estabilização da ordem atual em prol de uma outra ordem porvir. A positividade da luta não é política, mas social. Daí o fato de Bakunin ter dito que a «Revolução Política» não deveria ser o objetivo da classe operária, mas sim a «Revolução Social», ao explicar que a burguesia, na Revolução Francesa, teria instituído uma igualdade formal perante a lei, mas que, na prática, ocultava a desigualdade de fato. Segundo Bakunin, isso se deu porque essa Revolução foi apenas uma revolução política (BAKUNIN, 2008, p. 72).

Também é nítido que o interesse da classe dominada não é o de ofuscar o conflito socialmente existente entre eles e os dominantes, pois esta é uma tática da classe dominante para efeitos de dominação ideológica: apelar pelo “bem-estar geral”, dizer que os revoltosos querem destruir a sociedade, acabar com os costumes (eis as acusações de “desordem” associadas, equivocadamente, à “anarquia”).

O objetivo revolucionário é realmente a destruição da sociedade atual, mas isso apenas para se colocar uma nova sob os escombros da antiga. Isso fica expresso no ditado que Kropotkin, em sua história da “Grande Revolução”(2), sintetizou como: “desorganizar para organizar de outra forma”.

A classe dominante, se não vê seu domínio consolidado apenas do ponto de vista “eterno” (como se fosse um fato consumado, naturalizando as relações sociais atuais), iria, de qualquer forma, desejar que ele fosse permanente. Portanto, ela há de criar mitos como “o fim da história” ou o “término da era das revoluções”.

A classe dominada tende a demonstrar o caráter não eterno desta dominação, criticando-a histórica e socialmente. Isso se expressa tanto na prática quanto no pensamento que, juntos, definem o movimento proletário em determinadas condições da luta de classes.

A vida da classe dominante é a adaptação, o Ser. A vida da classe dominada é a criação, o Devir. A temporalidade da dominação se expressa no presente eternamente conservado. A temporalidade da libertação afirma uma virtualidade, outro modo de existência possível. A classe dominante impõe uma identidade. As classes dominadas que saíram da reatividade para ação histórica transformativa afirmam uma diferença, um outro mundo possível.

Enfim, este caráter de classe também esteve presente em suas análises históricas. Vamos usar um escrito de Bakunin como exemplo.

2. A crítica de Bakunin ao radicalismo burguês


Em um panfleto titulado “Guerra de Classes”(3), o anarquista russo Mikhail Bakunin critica aqueles que chamou de “escritores do radicalismo burguês” (Victor Hugo, Quinots, e cia) por condenarem os “crimes de Dezembro”, isto é, o golpe de Estado de Luís Napoleão Bonaparte, e silenciarem-se sobre os “crimes de Junho” empreendidos durante as sublevações operárias em Paris. Nesta ocasião, a Assembleia Nacional Constituinte (dominada pelo, assim chamado, “Partido da Ordem”) declarou estado de sítio e concedeu poderes ditatoriais ao General Cavaignac que assumiu o poder executivo para se tornar o repressor brutal dos trabalhadores parisienses. Vale destacar que o mesmo Cavaignac seria o candidato dos republicanos democratas em Dezembro do mesmo ano.

É a partir desse plano de fundo que podemos entender essas acusações de Bakunin (grifos nossos):

Por que este silêncio sobre Junho? É porque os criminosos de Junho são republicanos burgueses de quem os escritores citados acima são, moralmente, mais ou menos cúmplices? Cúmplices em seus princípios e, portanto, indiretamente cúmplices em seus atos. Esta razão é provável, mas há ainda outra com a qual esta se relaciona. O crime de Junho golpeou apenas trabalhadores, socialistas revolucionários, consequentemente estranhos à classe e inimigos naturais do princípio que todos estes honoráveis escritores representam. O crime de Dezembro atacou e deportou milhares de republicanos burgueses, os irmãos sociais destes honoráveis escritores e seus correligionários políticos. Paralelamente, eles mesmos foram vitimados. Daí sua extrema sensibilidade ao crime de Dezembro, e sua indiferença àquele de Junho.

3. As comunidades de interesses num contexto de guerra de classes


Mikhail Bakunin descreveu o antagonismo entre burguesia e proletariado pelo conceito de “comunidade de interesses”. Essas “comunidades de interesses” são determinadas pelas “predisposições de classe” e, no caso em que ele analisava, se exprimiram nas posições políticas que foram tomadas durante o período revolucionário na França de 1848.

Ele afirma (muito antes de Bourdieu) que a sensibilidade diante das questões sociais “surge a partir das condições e hábitos de vida que exercem uma muito maior influência sobre os homens que suas idéias e convicções políticas”. Daí o fato de que (outra citação): “Um burguês, por mais vermelho e republicano que seja, ficará muito mais intensamente afetado, tocado e indignado por uma desgraça referente a um outro burguês, mesmo que este burguês seja um louco imperialista, do que pelo infortúnio de um trabalhador, de um homem do povo”.

Interessante notar o caráter sociológico dessas proposições, onde o interesse não se associa necessariamente a uma lógica de rentabilidade econômica e competição individualista em busca do lucro. A burguesia também se associa politicamente através de suas “comunidades de interesses” coletivamente compartilhadas enquanto “classe social”, possibilitando uma unificação política, ainda que contra seus ideários de democracia: “Este fato explica a indulgência demonstrada pelos democratas burgueses com relação aos Bonapartistas. Ele explica também sua severidade excessiva contra os revolucionários socialistas”. Portanto, pode-se dizer que, em certas conjunturas, a burguesia abdica de seu economicismo imediatista para coordenar-se politicamente, mesmo que isso signifique perdas econômicas e individuais de curto prazo, pois, em contrapartida, haverá ganhos políticos coletivos (para sua classe) que são, por definição, de longo prazo.

O mesmo vale para a classe proletária e seus dilemas em relação a associar-se de forma fragmentada como setores isolados da força de trabalho (luta salarial, por exemplo, que reflete interesses imediatos e economicistas na concorrência universal da sociedade capitalista) ou  associando-se como classe que compartilha interesses comuns contra a burguesia (luta social revolucionária contra a dominação de classe ao qual está submetida no capitalismo). No primeiro caso, podem ocorrer ganhos econômicos e melhoria das condições de vida num curto prazo que, em contrapartida, desagrega e conforma parte de suas forças combativas enquanto classe. No segundo, pode-se avançar na construção dos órgãos de auto-organização de classe que, conjuntamente, formam o contrapoder proletário ao Estado Burguês numa perspectiva de longo prazo nos quadros de uma estratégia revolucionária(4).

O trecho que melhor resume essa questão é o seguinte (destaques nossos):

Condições e hábitos, sua maneira especial de existir, desenvolver-se, pensar e agir; todos os seus variados relacionamentos sociais, tão regularmente convergentes para o mesmo fim; toda esta diversidade de interesses expressando uma ambição social comum e constituindo a vida do mundo burguês, estabelece entre os que pertencem a este mundo uma solidariedade infinitamente mais real, profunda e inquestionavelmente mais sincera que qualquer uma que possa surgir entre uma seção qualquer da burguesia e os trabalhadores. Nenhuma diferença de opiniões políticas é suficiente para superar a comunidade burguesa de interesses. Nenhum aparente acordo de opiniões políticas é suficiente para superar o antagonismo de interesses que divide a burguesia e os trabalhadores. Comunidade de convicções e idéias são e devem ser subsidiárias de uma comunidade de interesses e predisposições de classe. 
A vida domina o pensamento e determina a vontade. Esta é uma verdade que nunca se deve perder de vista quando queremos compreender qualquer fenômeno político e social. (…) se um homem nascido e criado no ambiente burguês deseja se tornar sincera e profundamente o amigo e irmão dos trabalhadores, ele deve renunciar a todas as condições de sua existência passada e suprimir todos os seus hábitos burgueses. Ele deve romper suas relações de sentimento com o mundo burguês, sua vaidade e ambição. Ele deve virar as costas a este mundo e tornar-se seu inimigo; proclamar-lhe guerra irreconciliável; e lançar-se de corpo e alma no mundo e na causa dos trabalhadores.

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Notas:

(1)  Mais corretamente, trata-se de Carl Phillip Gottlieb von Clausewitz e sua afirmação: “A guerra nada mais é que a continuação da política por outros meios” (Der Krieg ist eine bloße Fortsetzung der Politik mit anderen Mitteln).

(2) – Não dispomos de um pdf traduzido para o português dessa grande obra de Piotr Kropotkin, mas sugerimos a quem tiver acesso que leia o Capítulo titulado de “Os Anarquistas”. A referência da obra original é a seguinte: KROPOTKIN, Pierre. La grande révolution: 1789-1793. Paris: P.V.Stock Éditeur, 1909. Capítulo XLI (pp. 453-462). Neste link você pode baixar o pdf em francês: https://bibdig.biblioteca.unesp.br/handle/10/6713. Neste outro link é possível acessar uma versão em espanhol: https://anarquismoenpdf.tumblr.com/post/143075393253/piotr-kropotkin-la-gran-revoluci%C3%B3n-1789-1793. E, em português, através desse link: https://archive.org/details/kropotkinpiotr.agranderevolucao1789.

(3) – Escrito e publicado em 1870 (todas as citações foram retiradas da versão publicada no “Arquivo Bakunin”, disponível em: http://arquivobakunin.blogspot.com/2010/06/guerra-de-classes-1870.html). O panfleto trata de uma série de questões relacionadas ao movimento revolucionário francês no período que ficou conhecido como a “Primavera dos Povos” de 1848. Com a radicalização do movimento, no sentido de uma “Revolução Social”, a burguesia foi obrigada a apoiar um golpe de Estado na França, algo que Marx descreveu muito bem em seu “18 de Brumário de Luís Bonaparte” (leitura essencial e indispensável para todo o revolucionário sério, não importa se é marxista ou não).

(4) – É nítido que estamos introduzindo conceitos exógenos ao comentar Bakunin. Isto não significa que estamos o deturpando, mas dialogando com suas ideias, como partes de um desenvolvimento que não se fecha em si mesmo, uma vez que a “função de autor” como “referencial de autoridade” também é recorrentemente criticada pelos libertários.


Referências:


BAKUNIN, Mikhail. O princípio do Estado e outros escritos. São Paulo, Hedra, 2008.

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