domingo, 16 de junho de 2019

Ensaio sobre as possibilidades transformativas e a transformação das possibilidades

Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo (Marx, Teses Sobre Feuerbach, 1845).

Resumo: neste texto discutiremos questões relacionadas à transformação das condições objetivas a partir do conceito de práxis revolucionária.

1. Introdução:


Quando nos perguntamos sobre “o que fazer?” diante dessa ou daquela situação, a seguinte oposição se nos impõe: de um lado, agir de acordo com as possibilidades e, de outro, criar novas possibilidades agindo. Tanto as possibilidades de acordo com a realidade acabam orientando nossas práticas, quanto as nossas práticas postas em ato modificam as realidades possíveis. Alguns ficam entusiasmados demais com a alteração das possibilidades através da prática e outros ficam conformados demais com as possibilidades atuais nas quais baseiam suas práticas. Dizia Camillo Berneri: “Assim como há um extremismo ingênuo, há um possibilismo ingênuo. Tudo consiste em não ser possibilistas ou extremistas, mas revolucionários inteligentes”. Como ser “revolucionários inteligentes”? Tentaremos explorar essa questão nesse texto.

2. Sobre o “caráter geral do campo das determinações” e a “imprevisibilidade das suas formas de realização”:


Costuma-se invocar o contexto e suas condições para explicar quais seriam as possibilidades práticas da atuação política e seus limites. Parte-se das determinações gerais e globais para delimitar os processos particulares e locais. Trata-se da análise conjuntural, que só é possível quando se dispõe de uma teoria social da estrutura (o estrutural, no caso, são as invariáveis do modo de produção e o conjuntural são suas variações historicamente determinadas). Estas análises possuem sua importância efetiva, mas são apenas uma parte do processo de explicação. Se nos limitarmos a fazer “contornos conjunturais”, corremos o risco de nos tornarmos impotentes diante das situações. Não podemos paralisar a análise nesta forma de tirar “retratos” da realidade, como se se bastasse apreender as tendências mais ou menos estáveis (eliminando os “desvios instáveis” como acidentes/contingentes).

É mister acrescentar que, mesmo nessas “análises fotográficas”, são pessoas reais que estão construindo o conhecimento da realidade da qual fazem parte (são, por isso mesmo, “parciais”, uma vez que seu ato de conhecer não é uma representação idêntica ao real – e nem pode sê-lo). O próprio poder de análise é parte do processo imanente do vir-a-ser dos acontecimentos e das efetuações históricas. Não é nenhum pouco equivocado assumir, portanto, que são “objetividades parciais” que se encontram nesses discursos.

Não negamos que seja difícil acompanhar o real no ritmo de seus desdobramentos, mas se quisermos fazer de nossas ações efetivos movimentos de superação das condições atuais, precisamos levar em consideração a seguinte inversão de perspectiva: em que medida a práxis, como atividade humana sensível, transforma a realidade e, portanto, muda o quadro geral das determinações? Neste caso, deve-se admitir que realidade como efetividade só devém da práxis transformativa como efetuação. “Nada é, tudo vem a ser”, já dizia Heráclito de Mileto. Ou, como falou Bachelard, “os fatos são feitos”. Mas tal inversão não deve, por sua vez, engendrar-se em si mesma, gerando uma espiral abstrativa no sujeito. Portanto, os dois eixos de análise devem-se acoplar num processo de desenvolvimento recíproco, numa dialética. As condições de possibilidade serão discutidas mais adiante. Primeiramente, recorreremos a um referencial que pode nos ajudar a melhor abordar a nossa questão.

João Bernado faz uma diferenciação entre o “caráter geral do campo das determinações” e a “imprevisibilidade das suas formas de realização” para caracterizar o anti-teleologismo do materialismo histórico dialético (BERNADO, 1977, pp. 62-65). O “caráter geral do campo das determinações” poderia ser diagnosticado, por exemplo, através de uma análise histórico-conjuntural (que é uma abstração do real e não “a realidade per se”). Por outro lado, o que ele chamou de “formas de realização” se refere aos fatos históricos nas suas efetivações a partir das condições do “caráter geral” considerado (o real concreto, diferentemente do real abstrato). Em outras palavras, a causalidade geral é previsível, pois é apreensível na forma de potência (no sentido matemático de que o possível já é real), mas sua forma de realização (a história em sua efetivação concreta) é imprevisível, uma vez que a passagem ao ato possui um gap de indeterminação relativa. É como se as formas de realização do campo das determinações necessariamente recalcassem qualquer ideia que se possa ter delas, na medida em que são processos em ato (daí a imprevisibilidade). É por isso que Marx dizia que se faz história, mas não como se quer.

Acontece que a ação do determinante (potência) está em dialética com a ação do determinado (ato) numa circularidade diferenciante (retroação do determinado no determinante):

o determinado é-o porque a amplitude da sua acção decorre de um nível que lhe é exterior, mas essa acção pode incidir sobre o determinante e modificá-lo, provocando assim uma reorganização nos níveis e, consequentemente, a determinação de novas amplitudes para a sua acção (BERNADO, 1977, p. 66).

Vemos, portanto, que essas considerações sobre os atos de conhecimento humano a respeito da realidade circundante fazem parte de sua própria existência prática. Na medida em que o ser humano reage às determinações gerais com suas ações, essa ordem de generalidade sofre variações em decorrência da interação (causal) com outros efeitos. Ora, sabe-se que não existe nada no mundo que seja singularmente determinado que não seja, ao mesmo tempo, singularmente determinante. No mesmo sentido, um ponto de uma coordenada é, ao mesmo tempo, uma referência e o referenciante diferencial dos outros pontos em que interage sistematicamente.

3. A união entre teoria e formas de conhecimento com a atividade sensível objetiva do ser humano:


O acoplamento ativo entre a perspectiva do quadro geral de determinações e as formas de realização pela práxis só se realiza na medida em que nos tornamos, em algum grau, causas eficientes co-eternas da Natureza. Para entender essa tese, devemos recorrer às famosas “Teses Sobre Feuerbach” (1845) de Karl Marx.

Na primeira Tese, Marx afirma que os materialismos até então existentes só teriam considerado como “objeto do pensamento” as manifestações sensíveis das coisas, apreendidas pela “contemplação”. Neste sentido, o pensamento exprimia-se passivamente em relação ao seu objeto. Em decorrência, o lado ativo do pensamento teria sido desenvolvido apenas pelos idealistas, mas estes últimos não apreendiam a realidade na sua objetividade, apenas abstratamente. Para Marx, a “atividade humana sensível”, enquanto prática, é tanto subjetivante (efetua subjetividades) quanto objetivante (efetua objetividades). Até então, não se teria problematizado a prática enquanto forma de objetivação humana que se distingue da subjetivação, ainda que estejam em unidade mútua. De todo o modo, a ideia central da primeira tese é a de que os materialistas contemplativos não compreenderiam, portanto, “o significado da atividade ‘revolucionária’, ‘prático-crítica’” (idem).

Na segunda Tese, Marx levará até as últimas consequências a afirmação de que a unidade mútua do pensamento e da prática pode ser expressa a partir da transformação da existência que, no conjunto das teses, nos dá a ideia de que a ontogênese do real é o que confirma o pensamento e não uma ontologia como teoria especulativa pura sobre o “Ser”. Reproduziremos a tese para que se possa analisá-la mais detalhadamente:

A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma realidade objetiva [gegenständliche Wahrheit] não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na prática que o homem tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza citerior [Diesseitigkeit] de seu pensamento. A disputa acerca da realidade ou não realidade do pensamento – que é isolado da prática – é uma questão puramente escolástica (MARX, 2009, pp. 119-120, grifos no original).

O que pode confirmar o pensamento é o poder prático do ser humano. Se a “base material” da vida é o elemento passivo, a transformação desta base é o elemento ativo. Isso significa que as condições objetivas podem ser transformadas. Por isso que, quando Marx afirma que o pensamento deve provar a verdade na prática, ele quer dizer com isso que a ontogênese de um novo modo de existência é que confirma o pensamento, mais do que a pura verificação abstrata do campo das determinações gerais. A questão que surge é, de fato, inteiramente inovadora: trata-se agora do “fazer ser” (questão de atividade) mais do que o “ser” (questão de identidade), uma vez que a realidade não é mais considerada como imutável. Também deve-se considerar que a matéria tampouco se transforma a partir de um “dever ser” abstrato que lhe imprimiria uma “forma final”, mas sim de um “poder” que parte da própria “base material” para revolucioná-la. Em outras palavras: não se exclui o “elemento passivo” – o campo geral das determinações –, pois ele é o pressuposto objetivo, isto é, as condições nas quais se realiza o “elemento ativo” que é a transformação (modo de objetivação de novas causas-efeitos em ato na realidade imanente).

Muitos marxistas entenderam, a partir da síntese de Lenine de que “o critério da verdade é a prática” (que, no entanto, não é uma deturpação do que foi dito acima), que a realidade deveria ser julgada apenas a partir das práticas existentes em ato, ignorando o complemento indispensável das práticas que transformam o mundo existente em ato ao serem objetivadas na realidade. De tudo que foi dito acima, pode-se encontrar uma síntese na seguinte passagem dos Manuscritos de 1844: 


Vê-se como subjetivismo e objetivismo, espiritualismo e materialismo, atividade e sofrimento perdem a sua oposição apenas quando no estado social e, por causa disso, a sua existência enquanto tais oposições; vê-se como a própria resolução das oposições teóricas só é possível de um modo prático, só pela energia prática do homem e, por isso, a sua solução de maneira alguma é apenas uma tarefa do conhecimento, mas uma efetiva tarefa vital que a filosofia não pôde resolver, precisamente porque tomou apenas como tarefa teórica (MARX, 2004, p. 111, grifos no original).

É evidente que as oposições que Marx cita (“subjetivismo e objetivismo, espiritualismo e materialismo, atividade e sofrimento”), possuem uma “unidade mútua” que se expressa, não num simples agir individual, mas numa prática socialmente construída. Trata-se de entender os modos de existências do humano como estados sociais em que é a “energia prática” e “vital” das pessoas que determinam as formas de existir.


4. Conclusão e um exemplo:


O recalque da qual falávamos a respeito das “formas de realização” do “campo geral das determinações” ocorre necessariamente. Portanto, como Marx falou em sua “Crítica ao Programa de Gotha”: “cada passo do movimento real é mais importante do que uma dezena de programas”.

Um exemplo prático do avanço incognoscível do “movimento real” está na análise que  Bernado faz da Comuna de Paris ao tratar das “previsões” de Bakunin e Marx (APROPUC, 2011). Segundo João Bernado, tanto Bakunin quanto Marx fizeram análises corretas acerca do “caráter geral do campo das determinações” quando propuseram programas para a França na guerra franco-prussiana. O primeiro achava que as províncias deveriam se sublevarem, pois acreditava que nelas poderia se instalar um governo provisório e o segundo acreditava que a classe operária deveria “apenas” esforçar-se em organizar-se em suas associações. Evidentemente que a indicação de Marx correspondia a algo que já era prática do proletariado francês. Bakunin acabou se decepcionando com a falta ou, nas palavras dele, “inexistência” de revolta nas províncias. No entanto, ambos rejeitaram Paris: para eles, a capital francesa já estava perdida. A história, retrospectivamente, nos mostrou uma “forma de realização” que foi completamente diferente do diagnóstico (correto) de Bakunin e Marx.

Por que as análises deles estariam corretas mesmo? Pois, de fato, quase tudo conspirava contra uma revolução em Paris e esse era efetivamente o “caráter geral do campo das determinações” (o previsível analiticamente). Alguns bem que poderiam dizer que foi um milagre, um golpe de sorte, mas isso seria um absurdo para qualquer materialista. O que ocorreu então? Tivemos um acontecimento que somente poderia ser percebido por quem estava em vias de realizá-lo (somente pala intuição de seus agentes). De certa forma, a aspiração substitui, nesse caso, a previsão: o pôr em prática dos objetivos humanos modifica o conjunto das possibilidades.


A História não faz nada, “não possui nenhuma riqueza imensa”, “não luta nenhum tipo de luta”! Quem faz tudo isso, quem possui e luta é, muito antes, o homem, o homem real, que vive; não é, por certo, a “História”, que utiliza o homem como meio para alcançar seus fins – como se se tratasse de uma pessoa à parte –, pois a História não é senão a atividade do homem que persegue seus objetivos (MARX, 2011, p. 111, grifos do autor).


Referências:


APROPUC. João Bernardo - Marx, Bakunin e a Comuna de Paris. 12 out. 2011. Disponível em: <https://youtu.be/t7OVyuaboSc>, acessos em: 16 jun. 2019.

BERNADO, João. Marx critico de Marx. Epistemologia, Classes Sociais e Tecnologia em “O Capital”. Livro Primeiro. Porto: Afrontamento, 1977. 3v.

ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A sagrada família, ou, A crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e consortes. São Paulo: Boitempo, 2011.

MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. Seleção, tradução e notas de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2012.

MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.

MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009.