segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Ajuda Mútua: um importante fator da evolução (1914)

Traduzimos este pequeno artigo de Kropotkin, onde ele resume os resultados dos estudos que ele publicou no seu livro “Ajuda Mútua: um fator de evolução”, publicado originalmente na revista “Mother Earth”, em Junho de 1914 (Vol. IX, No. 4). Essa revista era organizada e publicada por Emma Goldman e contava com a diagramação feita por Alexandre Berkman, dois importantes anarquistas estadunidenses.

Nós deixamos entre colchetes a indicação das páginas referentes à revista [pp. 116-119] e introduzimos (ao final do texto) uma nota explicativa para a noção de “home rule”, já que se trata de uma expressão anglo-saxônica que se refere a uma tradição específica de governo e, portanto, não poderia ser simplesmente traduzida.



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[116] Inicialmente recebida com desconfiança, a ideia de que a ajuda mútua e o apoio mútuo representam um fator importante na evolução progressiva das espécies animais, parece ser aceita agora por muitos biólogos. Na maioria das principais obras do Evolution, surgidas recentemente na Alemanha, já se reconhece que dois aspectos diferentes da luta pela vida devem ser distinguidos: a luta do todo, de grandes divisões, de uma espécie contra condições naturais adversas e espécies rivais e a luta entre indivíduos dentro das espécies; em outras palavras: guerra exterior e guerra interior. Ao mesmo tempo, começa também a ser reconhecido que a luta pela vida dentro das espécies foi exagerada e que a ajuda mútua é, para dizer o mínimo, tanto um princípio fundamental na natureza quanto a luta mútua; enquanto que para a evolução progressiva é, sem dúvida, o mais importante dos dois.

O valor desse reconhecimento não pode ser esquecido. Darwin já previu isso. Uma vez que se reconhece que o instinto social é um instinto permanente e poderoso em todas as espécies animais, e mais ainda no homem, somos capazes de estabelecer os fundamentos da Ética (a moralidade da sociedade) sobre as bases sólidas da observação da natureza e não precisamos procurá-los em revelações sobrenaturais. A ideia que Bacon, Grotius, Goethe e o próprio Darwin (em seu segundo trabalho, “Descent of Man”) estavam advogando, encontra, assim, uma confirmação completa, uma vez que direcionamos nossa atenção para a extensão em que a ajuda mútua é levada adiante na Natureza. Vemos de imediato que arma poderosa ela representa, mesmo para as espécies mais fracas, na luta contra condições naturais adversas, na longevidade que assegura aos indivíduos, no acúmulo de experiência e no desenvolvimento de instintos e inteligência mais elevados que se tornam possíveis dentro da espécie.

Mostrar essa importância do instinto social, como base da Ética, é o trabalho em que estou envolvido.

Outra consideração importante a que o estudo [117] da ajuda mútua na natureza nos traz é que nos permite perceber melhor o quanto a evolução de todas as espécies animais, e ainda mais das sociedades humanas e indivíduos separados, depende das condições de vida nas quais se desenvolvem. Essa ideia, tão energicamente defendida pelas Enciclopédias francesas no final do século XVIII, e por seus seguidores socialistas e anarquistas no século seguinte, começando com Godwin, Fourier e Robert Owen, é amargamente combatida pelos defensores do capitalismo e do Estado, bem como pelos pregadores religiosos; e todos sabemos que vantagem eles tiraram da ideia de luta-pela-vida para defender sua posição – para o desespero do próprio Darwin. Agora que vemos que a ideia de uma luta interna dentro da espécie foi grosseiramente exagerada pelos seguidores de Darwin, entendemos que, em suas obras, subsequentes à sua “Origem das espécies” (“Descendência do Homem” e, especialmente, “Variação em Animais e Plantas”), ele deu cada vez mais importância à ação das condições exteriores na determinação das linhas de evolução de todos os seres vivos – ele não fez “uma concessão” aos seus oponentes, como nos dizem alguns de seus seguidores ingleses. Apenas resumiu o resultado das imensas pesquisas que fez sobre as causas da variação, depois que publicou em 1859 sua primeira obra de época, a “Origem das Espécies”.

Um estudo cuidadoso e desapaixonado dos efeitos do meio ambiente sobre o desenvolvimento de sociedades e indivíduos pode, portanto, ser feito agora, e é certo que abriremos novas e importantes perspectivas sobre a Evolução como um todo, enquanto ao mesmo tempo liberaremos o reformador social das dúvidas que ele poderia ter sobre seus esforços para mudar primeiro as atuais condições de vida da humanidade, e dizer que melhores condições de vida social, baseadas no apoio mútuo e na igualdade, já elevariam as concepções morais do homem a um nível que nunca poderiam atingir no atual sistema de escravidão e exploração do homem pelo homem.

Um terceiro ponto sobre o qual as pesquisas realizadas podem lançar uma nova luz é a origem do Estado. Algumas ideias sobre esse assunto, derivadas dos estudos sobre o desenvolvimento da sociedade e contidas em “Ajuda Mútua” [118], eu havia incorporado em um panfleto, “O Estado e seu papel histórico”. Mas muito mais poderia ser dito sobre esse importante assunto; e, como todo leitor cuidadoso verá, os capítulos que dou no livro “Ajuda mútua nas cidades medievais” e, no capítulo anterior, sobre a Comunidade da Vila, abrem novas linhas de pesquisa que seriam ricas em importantes resultados práticos. Infelizmente, o culto ao Estado romano centralizado e ao direito romano, que reina supremo em nossas universidades, atrapalha essas pesquisas. Quanto mais, tal como esses estudos, se fossem feitos, apoiariam as ideias que agora crescem nas comunidades latinas e anglo-saxônicas no que diz respeito à necessidade de independência, ou “Home Rule”(1), não apenas para nacionalidades separadas, mas também para todo território geograficamente separado, toda comuna e paróquia. Tal independência – começa agora a ser entendida – seria a única maneira adequada de estabelecer uma união real entre as diferentes partes de um território, em vez da coesão artificial imposta agora por uma submissão comum a alguma autoridade externa. Já foi dito em algumas resenhas deste livro que, em certa medida, exagerei as boas características das repúblicas livres medievais. Mas se este livro não fosse escrito para o leitor em geral, e se eu tivesse incorporado a imensa massa de material que colecionei nas fontes contemporâneas confiáveis e nos trabalhos modernos sérios sobre o assunto, alguém teria visto que, longe de ter exagerado, fui obrigado a limitar minhas ilustrações a um número bastante pequeno daquelas que eu poderia ter dado. Aquelas ilustrações que tenho apenas nas anotações do meu manuscrito serviriam para fazer um segundo volume.

Agora que vemos um movimento tão grande entre os trabalhadores da Europa e da América em direção a si mesmos, elaborando as formas que a produção e a troca deveriam assumir em uma sociedade livre do jugo do Capital e do Estado, aconselho sinceramente os trabalhadores que já estão pensando nessa direção, para meditar sobre o que sabemos dos dois primeiros séculos de vida independente nas cidades medievais, depois que elas jogaram fora o jugo de barões feudais, bispos e reis, e começaram um novo desenvolvimento nas linhas de liberdade e federação [119]. Obviamente, não devemos tentar imitar o passado – a história não se repete, e eu indiquei em “Ajuda Mútua” os erros que as cidades medievais cometeram quando elaboraram seus mapas de liberdade. O que precisamos fazer é verificar se os princípios da independência e da federação livre não eram infinitamente melhores, levando à prosperidade e a um desenvolvimento intelectual mais elevado do que a submissão a autoridades externas e a escravização à Igreja e ao Estado, que caracterizavam a época que se seguiu à queda das cidades livres e inaugurou o crescimento dos estados militares.

Atualmente, a ideia de centralização e Estados centralizados está tão em voga, mesmo entre os socialistas, que muitas vezes ouvimos pessoas dizendo que as nacionalidades menores não têm motivos para existir; quanto mais cedo forem engolidos pelos mais numerosos, quanto mais esquecerem a língua materna, melhor.

Toda a minha experiência de vida me ensinou o contrário. Tudo o que aprendi em minha vida me convenceu, pelo contrário, de que a maneira mais certa de promover uma harmonia de aspirações entre as diferentes nações é enriquecer e desenvolver, para cada fração da humanidade, ainda mais a linguagem falada pelas massas dessa fração da humanidade. Essa também será a maneira mais segura de todas essas frações concordarem entre si quanto ao um ou dois idiomas que serão aceitos mais tarde como o principal meio das relações internacionais. No mais, aprender uma língua seria um conhecimento bastante fácil de adquirir sob os métodos aperfeiçoados de ensino de línguas que já são trabalhados agora.

Além disso, esta também é a maneira mais segura de estimular todas as nacionalidades a desenvolverem o melhor que elas desenvolveram ao longo dos séculos em seu próprio ambiente: a maneira mais segura de enriquecer nossa herança comum com aquelas características nacionais que dão um valor especial às concepções filosóficas, à poesia e à arte.

Notas:


(1) Segundo o artigo da Wikipédia:
Home Rule é uma expressão inglesa que significa autogoverno autônomo. No Reino Unido, tal expressão tradicionalmente referiu-se a criação de autogoverno, ou por devolução ou por independência, em nações constituintes (por exemplo, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte), e até algum ponto na Irlanda. Home Rule também se refere analogamente aos processos e mecanismos de autogoverno em municipalidades e condados de muitos países em relação ao nível de governo imediatamente superior (por exemplo, em alguns estados estadunidenses). Também pode se referir, em língua inglesa, ao sistema similar de autonomia da Groelândia e das Ilhas Faroe em relação a Dinamarca (cujo nome em dinamarquês é Hjemmestyre). No Império Britânico também existiram exigências vigorosas pelo Home Rule por ativistas na Índia (sublinhados nossos).
Como indicam suas menções às “cidades medievais” e à questão da “independência” e “federação livre”, Kropotkin provavelmente está se referindo ao autogoverno de municipalidades (esta ideia será melhor desenvolvida em outras de suas obras que buscam elucidar o programa da revolução porvir, como “A Conquista do Pão” que já publicamos aqui no blog).

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