segunda-feira, 20 de julho de 2020

Extratos de um artigo de Carlo Romani sobre o anarquismo italiano (2013)

Errico Malatesta & Luigi Fabbri, dois militantes importantes do anarquismo italiano.



Com o objetivo de difundir informações acerca da formação histórica do movimento anarquista, vamos compartilhar trechos de uma Conferência proferida pelo historiador Carlo Romani, publicada na forma de artigo na Revista de Estudos Afro-americanos em 2013. Esse material aborda as especificidades da contribuição do anarquismo italiano para a doutrina social do anarquismo como um todo. Selecionamos os trechos que consideramos mais pertinentes. É possível acessar o documento completo em:

Como sugestão de leitura complementar, indicamos os seguintes artigos: 

Observação: incluíamos entre colchetes as notas do autor utilizadas nos trechos selecionados e adaptamos a numeração das mesmas ao nosso próprio extrato.

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A ideia de federações anarquistas, de grupos declaradamente anarquistas só começa a surgir em meados da década de 1880, até então, não se encontrava nos grupos locais sua associação efetiva à palavra anarquismo, anarquista, apesar de que, enquanto militantes, se declaravam assim.

Os historiadores começaram a identificar isso como uma descontinuidade, para quem não conhece a forma de organização inicial anarquista o movimento é aparentemente invisível até a metade dos anos 1880, pois está diluído no que sobrou das antigas seções locais e regionais dos trabalhadores [1]. Mas, esse movimento sindicalista é somente visível para essa historiografia marxista como um movimento social não socialista de trabalhadores, com componentes muito pouco próximos ao pensamento revolucionário de Marx dentro das sessões da Internacional. Santarelli entendeu isso como um ponto de fragilidade da organização dos operários e trabalhadores italianos.

As sessões da Internacional na Itália desde 1868, particularmente, se aproximaram muito mais das propostas coletivistas bakuninistas do que da vertente do comitê central liderado teoricamente por Marx. Em 1872, quando houve a cisão - o rompimento que encerra a Primeira AIT – a maioria das sessões italianas não seguiu o caminho do comitê central, elas aderiram à Federação do Jura e depois à Internacional fundada em Saint-Imier que dá continuidade ao internacionalismo operário até o ano de 1878. Cerca de 90% das sessões italianas seguiram esse mesmo caminho sindical, do mundo mediterrâneo e eslavo, apenas alguns centros do norte da Itália não realizaram esse caminho e migraram para as posições socialistas que levariam à criação do Partido Socialista [2].

Ocorre que os historiadores que se debruçaram sobre a gênese do movimento anarquista, somente conseguiram localizar efetivamente a presença do nome anarquismo a partir da segunda metade da década de 1880, quando há uma retomada da movimentação e da organização dos trabalhadores após uma forte repressão desencadeada no final da década anterior no sentido de combater efetivamente todas as sessões da Primeira Internacional.

O que tivemos foram momentos mais combativos dos movimentos de organização de trabalhadores na Itália durante a década de 1870. A partir da segunda metade da década de 1870, temos um declínio acentuado. Em 1878 foram promulgadas pela primeira vez leis que foram de chamadas leis contra as “associações para delinquência”, uma forma legal de punir os membros da Internacional, que foram colocados na categoria de bandidos, de delinquentes, malfeitores [3].

Entre 1878 e 1885, houve uma varrida muito grande contra os trabalhadores envolvidos em organizar sindicalmente seus companheiros, acontecendo a primeira diáspora desses militantes italianos para outros países da Europa que ainda eram mais flexíveis como a Suíça, a França e a Alemanha. E começa também a emigração de italianos para os EUA e depois para a Argentina. Malatesta, por exemplo, em 1885 vai para a Argentina e vai procurar ouro na Patagônia como forma de financiar a luta revolucionária socialista, antiparlamentar. Esses militantes emigrantes saídos da Itália ainda não se declaravam anarquistas, mas em grande parte seguidores das ideias de Bakunin. Malatesta somente vai enunciar um projeto socialista e anarquista de libertação social em Buenos Aires com a publicação de seu periódico La Questione Sociale em meados de 1885.

A partir de 1886, há uma organização efetiva do movimento anarquista italiano até mais ou menos o ano de 1893. Em 1893, no ápice do novo movimento de organização dos trabalhadores, começam a eclodir processos de convulsão social como os fasci operários na Sicília em novembro e dezembro.

Na realidade, os fasci, que hoje vinculamos ao fascismo, tiveram justamente sua origem nesses grupos de anarquistas federados em suas cidades (Palermo, Catânia) operantes na Itália meridional. O fasci corresponderia hoje a uma espécie de bonde de pessoas que promoverá um arrastão, um tumulto. Essa tática de luta dos trabalhadores sicilianos depois será usada pelas esquadras fascistas adeptas de Mussolini a partir de 1919 para atacar seus opositores.

Em 1894, o movimento dos fasci operários sicilianos assumiu outra proporção e atingiu os trabalhadores anarquistas federados da Lunigiana na Toscana, região das marmorarias de Carrara, onde vão acontecer os grandes motins que se propagaram por toda a península. E temos em seguida outro ciclo forte de repressão dentro do governo do primeiro-ministro Francesco Crispi, que novamente vai criminalizar a associação anarquista como associação de delinquentes [4].

Em 1898, teremos um último grande motim na Itália desse século, que aconteceu em maio em Milão, onde o general Bava-Beccaris – sob a ordem de Umberto I – mandou atirar na multidão, matando cerca de 400 pessoas entre homens, mulheres e crianças, que estavam atrás das barricadas [5]. A vingança será o motivo reclamado por Gaetano Bresci para fazer o atentado que vai matar o rei Umberto I dois anos depois.

O movimento socialista dos trabalhadores na Itália, inicialmente fortemente influenciado pelos bakuninistas que vão assumir o caráter anarquista na metade da década de 1880, é muito intermitente, não conseguimos perceber uma linha de continuidade ascendente. O movimento também sofre com a concorrência dos socialistas parlamentaristas, do Partido Socialista Italiano criado em 1890.

O estudo sobre o anarquismo italiano para ser bem realizado implica, em primeiro lugar entender a especificidade de sua organização, de um movimento que não tem um partido, uma estrutura centralizada, que, portanto, sofre rapidamente com a uma possível repressão colocada em curso, mas que, ao mesmo tempo, pode se reorganizar quatro ou cinco anos depois, justamente por ser flexível, não ter essa estrutura rigidamente organizada.

Esse é um problema historiográfico, do anarquismo como um todo e particularmente do anarquismo italiano. A Itália é uma península dividida economicamente e culturalmente desde o centro em direção ao norte, que tem uma população de origem germânica. O norte tem um perfil capitalista bastante avançado, onde a Igreja não tem uma participação junto ao latifúndio, aos velhos sistemas agrários do sul. As cidades de Milão, Turim, Bolonha, já eram centros industriais importantes nas últimas décadas do XIX, de grande destaque no cenário europeu.

Desde a década de 1870, todo o norte da Itália já está integrado por linhas férreas ao resto da Europa. Há uma ponte comercial que liga Turim a Lyon, um importante eixo de comunicação que vem desde a época da rota da seda, ainda no século XV, da transferência de mercadorias de Florença para os centros têxteis que existiam em Lyon. Portanto, o centro-norte da Itália é efetivamente integrado a uma Europa que tem um forte dinamismo econômico capitalista, que o centro-sul não tem.

Estão aí, as raízes dos problemas contemporâneos da Itália, da cisão dela em duas, do surgimento do “populismo” de Berlusconi, da tentativa de separação promovida pela Lega Norte, de uma Itália capitalista e uma Itália economicamente mais atrasada, ainda ligada aos valores morais da Igreja católica, o centro-sul onde justamente o fascismo se estabeleceu.

A Itália não é como a França, país que faz efetivamente a ponte entre o mundo germânico e o mundo latino na Europa. Por isso que a França possui sua grandeza cultural no elemento de união entre duas culturas distintas. Já a Itália a tem em uma proporção bem menor e apenas em parte dela, a setentrional, cuja região tem um perfil importante dentro da dinâmica do capitalismo europeu a partir da segunda metade do século XIX, tanto que o Risorgimento, ou seja, o movimento de unificação da Itália, parte da região mais próxima da França, do Piemonte, de Turim, local onde será a futura sede da fábrica nacional de automóveis, a FIAT, financiada pelo Estado.

(…)

Como as ideias anarquistas chegaram à Itália? No sentido de que ainda não se tinha o conceito claro de anarquismo no movimento, mas você tinha a prática, uma prática pouco organizada e que buscava uma ideia de organização sem autoridade.

Chegam via Bakunin. O anarquismo na Itália começa a se desenvolver quando Bakunin chega em Florença em 1863, onde vai criar uma sociedade secreta e depois segue para Nápoles, local em que encontra com Malatesta que se tornará seu discípulo na irmandade internacional fundada pelo russo.

Esse é outro ponto, por que Bakunin vai para Nápoles e não para Milão ou Turim? Porque Bakunin tinha um princípio, uma ideia que desenvolve mais claramente em sua estada na Itália, é o que ele vai debater em 1868 dentro da AIT. Bakunin dirá que não adianta o senhor Marx e os delegados ligados ao comitê acharem que os operários ingleses ou alemães, ou a aristocracia operária nas fábricas, serão a linha de frente de um processo revolucionário, porque não serão. Eles serão os primeiros a se aburguesarem, como é a tendência de todo operário na medida em que ascende socialmente, como por exemplo, é o caso do operário do ABC paulista.

(…)

Do ponto de vista da economia, os princípios máximos dos liberais não se realizarão, porque irá aparecer um fator de divisão de classe interno à sociedade, dentro daquela lógica burguesa, fazendo com que alguém trabalhe para alguém que já acumulou antes. Estava posta a divisão em classes que rompeu com a utopia liberal da igualdade política criticada por Godwin.

Esse último grupo social formará o proletariado, que ainda se encontrava mais próximo dos elementos da antiga comuna, mas que uma parte dele, com a disciplina das igrejas protestantes começam a ter uma perspectiva de aburguesamento pelo caminho do trabalho fabril. Nos locais onde não se teve esse processo de disciplina, como é o caso da Itália meridional, extremamente ligada ao campo e aos valores transcendentes da Igreja Católica, em que há mais o interesse da população em permanecer no seu modo de vida original comunitário, é onde Bakunin vai falar que haveria maior possibilidade de se encontrar uma resistência ante esse novo fenômeno que é o capitalismo, que está se desenvolvendo no mundo inteiro, a partir da superação das lógicas agrárias anteriores e do casamento entre a burguesia que ascendeu junto aos antigos proprietários de terra. Não serão nesses operários da indústria em vias de se aburguesar que encontraremos essa resistência para uma revolução, porque a tendência deles seria a de se incorporarem nessa dinâmica maior em curso dentro do capitalismo. E é no sul da Itália, que Bakunin vai encontrar essa vitalidade pré-capitalista.

(…)

Voltando ao problema historiográfico do anarquismo italiano, tanto Cerrito, que é o primeiro a colocar esse problema no final dos anos 1960, quanto depois, em um segundo momento, Carl Levy, que escreve sobre a Itália e o anarquismo italiano no final dos anos 1980 e Davide Turcato, já no século XXI, farão alguns apontamentos.

Cerrito fala que as fontes da polícia são importantes, porque o movimento, mesmo antes de ser efetivamente anarquista, já sofria continuamente com a repressão da polícia durante três décadas, a partir de 1871, da Comuna de Paris, até 1902-03. Será extremamente perseguido pela polícia italiana. Logo, as fontes da polícia nos permitem identificar os momentos em que os agentes da repressão, as chamadas “forças da ordem” tiveram um efetivo enfrentamento contra o movimento que tentava se organizar.

As fontes da polícia começaram a ficar disponíveis justamente a partir da década de 1960, quando se organiza um grande inventário no Arquivo Central do Estado, em Roma, o do CPC (Casellario Politico Centrale), que consegue estruturar toda a atuação da Pubblica Sicurezza, a segurança pública italiana, desde 1880. Contêm fichários nominais, fichários das federações, fichários de partidos, fichários relativos a jornais, entre outros, que permitem essa reconstrução, mesmo que no século XIX ainda não existisse uma organização efetiva de controle social na polícia italiana. Mas a partir de 1894, no governo Crispi, a Itália passa a ter uma ação preventiva mais sistemática, algo que no Brasil só vai começar a existir em 1922, com a criação da Delegacia Auxiliar do Rio de Janeiro que tinha a tarefa de delegacia política. Essa política preventiva de segurança brasileira inicia-se no governo de Arthur Bernardes que vai criar o DOPS, cujos fundos estaduais cumprem atualmente para o historiador brasileiro guardado as devidas proporções, o papel do CPC (ROMANI, 2011, pp. 161-178).

Essa política de repressão começou a ser realizada na Itália em comum acordo com a Suíça e a França no final dos anos de 1880. Nesse sentido, os arquivos da polícia são importantes para que se construa uma história da relação da repressão oficial com o movimento anarquista.

Um segundo ponto inicia-se a partir da luta específica da organização do movimento e de como ele se difunde. Como seria possível rastrear um movimento que não tem uma organização formal? Será através da imprensa e daqueles que escrevem, dos atores sociais, dos agentes políticos, que são os protagonistas dos periódicos. Porque, às vezes, os periódicos mudam de nome, mas os diretores permanecem, dificilmente acontece o contrário, quando você tem um periódico que muda de diretor.

Temos então, uma linha de identificação do periódico ao individuo que o dirige e ao grupo de colaboradores, que eventualmente assume a direção de um periódico posterior, e ai se dá o personalismo. Essa linha de continuidade que devemos traçar é muito intermitente, como por exemplo, L’Agitazione, fundado por Malatesta, que começa em 1897 e acaba em 1898, e somente retorna com o mesmo nome em 1913. Mas, essa mesma tendência anarquista publica desde 1894 L’Avvenire Sociale e a partir de 1903 vai publicar Il Libertario, cujo diretor Pasquale Binazzi havia estado antes no periódico de Malatesta e que se reencontrarão em 1920 em Umanità Nova. Se não prestarmos atenção em que a política de redação, os colaboradores e o editor são os mesmos, o que representa uma continuidade, aparentemente terão sinais de descontinuidade do movimento.

Segundo aqueles historiadores citados, a melhor forma de se fazer a história do anarquismo seria a de confrontar as fontes oficiais, que são as fontes da polícia, com as fontes produzidas pelos anarquistas através do que eles deixaram de legado, principalmente a imprensa. Pois, por não ter estatutos, atas, o movimento anarquista é mais difícil de produzir uma história processual, diferentemente do procedimento dos partidos políticos. E do entendimento de como se movem essas diferentes tendências em relação a como o mundo muda, mudam também os problemas históricos sociais colocados, e nesse sentido, como as perspectivas de transformação dos anarquistas vão mudar também.

Turcato coloca outro problema, no caso específico do anarquismo italiano, sendo necessário para o entendimento dessa continuidade, ter um olhar não limitado, estudar não somente a Itália. Porque o anarquismo italiano é um anarquismo que se realiza na diáspora, a partir principalmente da repressão do governo Crispi na década de 1890.

A repressão feita a partir do final da década de 1880, através de um tipo de confinamento de prisioneiros políticos acusados de associação à delinquência, em prisões que não são como as convencionais, eram penhascos, ilhas, onde eram confinados os chamados agitadores políticos, integrantes de diversos movimentos sociais. Eles permaneciam presos durante anos, até um momento em que uma determinada mudança acontecia, um acalmar da convulsão social que assolava periodicamente a Itália, que permitia um relaxamento da prisão possibilitando o retorno do preso ao seu local de origem.

Muitos deles, nessas idas e vindas, como foi o caso de Oreste Ristori, de Malatesta, de Damiani, emigraram. Damiani chegou ao Brasil em 1897, indo para Curitiba e depois vai para São Paulo. E em São Paulo, Damiani – que é uma figura importantíssima no anarquismo italiano – é menos conhecido do que Ristori, porque Ristori chegou ao Brasil com status de propagandista vindo da Argentina e veio para cá publicar La Battaglia, enquanto Damiani só será seu sucessor no periódico em 1912, depois de Ristori ser preso e se desiludir com o movimento anarquista.

Para se reconstruir a história do movimento anarquista da Itália, devemos confrontar os arquivos oficiais, analisar a imprensa, buscar essas linhas de continuidade que existem, mas que não são evidentes, e procurar refletir sobre como esses elementos se articulam com os de outros países, pois o anarquismo vai na esteira da emigração, não como um movimento migratório exclusivamente por motivos econômicos, mas por conta de sua perseguição política. Primeiro, buscando refúgio nos países limítrofes, particularmente no sul da França, em Nice, em Marselha, ou na Suíça, que são os grandes centros iniciais da rearticulação do anarquismo italiano na década de 1890 fora da Itália, e depois indo para os EUA e em seguida para a Argentina, Uruguai e, enfim, o Brasil, em São Paulo.

O Risorgimento é o movimento que começa a partir da casa real de Turim, com o objetivo de unificação nacional, pois já se tinha um nome nacional, mas a Itália ainda não era unificada, o que tem a ver com a perspectiva do republicanismo jacobino que não ocorrerá.

Contudo, no começo da década de 1860, os republicanos eram muito fortes, principalmente na pequena burguesia e em uma parcela dos trabalhadores que acreditavam em uma transformação herdeira de certo jacobinismo arraigado na península.

Quando Bakunin chega a Nápoles em 1864, começa a se difundir no sul da Itália outro ideal de libertação, não mais nacional. Nessa década começam a proliferar sessões da Internacional inicialmente nas cidades de Palermo, Nápoles, Bari, Catânia, que não eram os grandes centros operários industrializados, que ficavam na região do centro-norte do país.

Dois nomes vão aparecer como interlocutores de Bakunin nessa época e que depois vão dar o primeiro impulso à organização do movimento anarquista no começo da década de 1870 na Itália: Carlo Cafieiro e Errico Malatesta.

Por conta da influencia bakuninista, as associações assumem de certa forma, uma tentativa de buscar permanecer como associações secretas, porque a visibilidade facilitaria a possibilidade de repressão ao grupo, mas que os grupos visíveis se organizariam não na forma de ação política declarada, mas na ação de forma sindical, através das sessões da Internacional, para burlar a repressão por parte da polícia e dos agentes militares para quem, depois da Comuna de 1871, as sessões da Internacional foram ligadas diretamente à causa da revolução. A partir de 1872, as sessões italianas da Internacional serão perseguidas também.

Surge na Itália então, uma vertente que vai ser muito forte, uma forma de associação socialista e anárquica denominada de anti-organizacionista. O anti-organizacionismo vai dominar o cenário do movimento social italiano, os grupos sociais de trabalhadores e anarquistas na década de 1880 não ligados a uma concepção de partido tanto republicano quanto socialista.

Mas, junto com Malatesta, outros nomes importantes do anarquismo da década de 1880, como Andrea Costa, que depois se tornará socialista, e principalmente no final dessa década, Francesco Saverio Merlino, vão perceber a carência, a necessidade, a falta de uma organização dos grupos socialistas anárquicos voltados para o movimento social.

Porque a palavra de ordem de todos os grupos e movimentos na década de 1870, inclusive dos jovens malatestianos era a “revolução social”. Havia uma ideia fortemente influenciada por Bakunin, de que não seria necessária uma grande organização articulada em todo o país para se empreender uma revolução social, porque a revolução aconteceria por uma demanda, uma necessidade dos trabalhadores, uma necessidade dada veementemente por um desequilíbrio econômico existente, pela desigualdade social, também essa a fragilidade do capitalismo da década de 1870 na Itália. E as sessões da Internacional passaram a ser braços dessa agitação social, de difusão da revolução social, e por isso foram perseguidas.

Em 1878, por conta dessa perseguição mais acentuada da polícia italiana, há um desmantelamento das primeiras organizações, que só voltarão a se reorganizar a partir de 1886 na região da Toscana, mudando assim o epicentro do anarquismo italiano da região meridional, onde ele se iniciou, para a região que em meados do século seguinte será denominada de região vermelha da Itália, porque fortemente comunista, na Emília-Romanha, em Bolonha, e na Toscana.

O anarquismo será inserido mais efetivamente dentro das organizações operárias no final dos anos de 1880 e começo dos anos de 1890 quando vão aparecer federações anarquistas como a de Livorno, Florença, Carrara, depois em Imola, em Cesena, e em várias outras cidades.

Na década de 1890, o anarquismo na Itália começa a adquirir uma característica mais organizada, mas muitos ainda permanecem individualistas e resistentes à organização, porque entendem que a organização seria uma forma de centralização política e ainda tem em mente o que acontecera anos antes na Internacional [6].

Mas, foi principalmente com Malatesta e com Merlino que se começa a colocar o outro problema do anarquismo italiano, o que diz respeito à sua organização e relação com os sindicatos.

No início do século XX, o que está na pauta das discussões dos agrupamentos locais, o tema central do debate no seio do anarquismo, é a questão da organização e da não organização.

Em 1902, os organizacionistas já se tornaram ampla maioria na Itália e é nesse momento que surgirá a liderança histórica do anarquismo italiano, como o grande nome, aquele que vai difundir por todo o mundo a ideia de comunismo anarquista, que é Errico Malatesta. É quem pega Kropotkin e o transforma, fazendo uma fusão entre o ideal anarquista do voluntarismo, do princípio da não hierarquia, da ação individual, da importância das individualidades continuarem tendo papel fundamental na construção e na organização do social, associando isso a uma forma de luta, que é mais articulada, que tem um prenuncio não de estrutura de partido que vai concorrer às eleições, mas em um sentido lato de um partido da anarquia, um grupo da população que defende uma nova possibilidade de organização social diferente da existente.

A partir de 1902, Malatesta começa a escrever com mais intensidade e um de seus trabalhos é justamente desmontar essa tendência individualista que pretende resolver a revolução social por si própria através da ação direta e dos atentados, combatendo a posição dos chamados “galleanistas”.

O ano de 1907 é também um momento histórico para o anarquismo italiano em sua relação histórica com o sindicalismo. É um ponto de virada, não só porque reafirma a supremacia numérica da vertente organizacionista dentro do movimento, mas também porque a partir do debate iniciado por Malatesta no Congresso de Amsterdam, anuncia-se o predomínio na Itália da vertente anarco-comunista sobre a do sindicalismo, que passaria a se chamar de revolucionário. É quando Malatesta rechaça a redução do anarquismo a uma concepção sindicalista apenas da revolução social, mas reafirma o compromisso de um anarquismo de classe, portanto, coloca a questão classista como questão prioritária dentro do anarquismo, apesar de entender que não é a classe operária a única protagonista da revolução, mas que ela tem um elemento importante de contribuição. Com isso, manteve-se a aproximação da tendência do anarquismo comunista com as ideias sindicalistas, das quais Neno Vasco, por exemplo, foi grande disseminador no Brasil (SAMIS, 2009), mas nunca confundindo-as, ou reduzindo apenas o anarquismo a uma luta revolucionária de socialistas sindicalistas, diferenciado-o, inclusive, daquilo que na Argentina se tornaria o finalismo da FORA (COLOMBO, 2004) e na Espanha o anarco-sindicalismo que gerará posteriormente a CNT (MADRID, 2004). Para Malatesta, as classes oprimidas tem o dever e a primazia da condução da revolução socialista anarquista, mas sua realização é uma tarefa a ser empreendida por toda a sociedade.

A partir de 1907, o anarquismo da Itália começa a ter componentes cada vez mais próximos do comunismo, no sentido organizativo da palavra.

Eu vou parando por aqui no momento histórico em que a questão da organização deixou de ser um problema para o anarquismo italiano e em que ele pode também se distanciar da relação direta com o sindicalismo, fenômeno que será muito mais forte no anarquismo ibérico.


Notas do autor:


[1] – Na Itália, durante o início da década de 1870 proliferaram muitas seções regionais e locais da Associação Internacional dos Trabalhadores, a AIT. O esmagamento da Comuna de Paris em 1871 e a perseguição em seguida aos internacionalistas atingiram não somente a França, mas espalhou-se por toda a Europa, principalmente na Suíça e Itália. Da repressão aos comunnards (participantes da Comuna de Paris) e aos internacionalistas forma-se uma primeira articulação conjunta entre as polícias de diversos países europeus. Notadamente empenhadas em perseguir e derrotar a rede de ativistas e de sindicalistas que havia sido formada nessa década. O italiano Amilcare Cipriani, por exemplo, que havia sido também um comunnard foi desterrado para a Nova Caledônia em comum acordo com o Estado italiano que recusou sua deportação.

[2] – O movimento sindical na década de 1880 foi fortemente abalado pela perseguição ocorrida aos internacionalistas na década anterior. Muitos trabalhadores e suas organizações, principalmente nos centros operários mais desenvolvidos no norte-nordeste da Europa, optaram por seguir um caminho de luta parlamentar institucional. Essa política levou à fundação dos Partidos Socialistas (democráticos) nos países europeus e ao surgimento em 1889-90 da chamada II Internacional dos Trabalhadores, articulada em torno do parlamentarismo socialista, estratégia que se afasta do pensamento revolucionário marxista e opta pela política da luta pelos direitos constitucionais dos trabalhadores.

[3] – Vemos que o enquadramento de militantes anarquistas ou de revolucionários de qualquer tipologia na categoria de delinquentes tem uma longa história que continua até o presente. Com pequenas modificações de nomes, malfeitores na Itália, delinquentes, terroristas, subversivos em períodos de anticomunismo, até chegarmos aos vândalos na mídia atual. As atuais leis antiterrorismo são apenas uma versão repaginada das primeiras leis contra a associação de delinquentes como resultado da organização dos trabalhadores durante a Primeira Internacional.

[4] – Como resultado dessa nova onda de repressão aos trabalhadores, principalmente aos anarquistas, será reativado o regime do domicílio coatto, no qual o prisioneiro é confinado em uma ilha ao largo da península. Oreste Ristori, que citamos acima, por exemplo, passará por quase todas as ilhas de confinamento na Itália (Tremiti, Ponza, Ustica Favignana, Port'Ercole), fator que longe de desarticular o anarquismo, como pensava o governo, permitiu aos anarquistas de diversas regiões da Itália se conhecerem mutuamente como se estivessem vivendo em um congresso permanente, fortalecendo, paradoxalmente, o movimento.

[5] – Sobre os motins de maio há o excelente estudo de Louise Tilly em língua inglesa (Tilly, 1992).

[6] – Nessa corrente o principal nome do chamado individualismo italiano (nome como ficou conhecida essa corrente anarquista na história) é Luigi Galleani.


Referências do autor:


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