sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Levando Piotr Kropotkin a sério (2010) – Álvaro Girón

Traduzimos este artigo de Álvaro Girón sobre Piotr Kropotkin. Em nossa opinião, trata-se de uma ótima introdução e panorama da vida e obra do nosso camarada russo, embora tenha um foco específico nas controvérsias científicas. A versão original do artigo se encontra disponível em: link.

É importante destacar que o autor buscou situar em seu artigo as reflexões kropotkinianas sobre evolução, portanto trata-se de um recorte específico da obra de Kropotkin.

Incluímos ao longo do texto links para explicar algum termo (geralmente utilizamos artigos do Wikipédia) ou indicar uma obra (através da Library Genesis), imagens para ilustrar a discussão e notas adicionais de nossa tradução. Chamamos à atenção para o artigo de Stephen Jay Gould (mencionado no texto), pois o link que colocamos leva para uma versão traduzida do mesmo.

Informações sobre o autor: Álvaro Girón é cientista sênior da Institución Milá y Fontanals (CSIC), Barcelona.

O artigo traduzido foi publicado originalmente em: Mètode, nº 65, primavera de 2010.

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Imagem extraída do artigo (veja-se o link acima).

Mais de uma década atrás comecei a dar os primeiros passos no que viria a ser uma longa investigação sobre Piotr Kropotkin. Naquela época, recém-estabelecido na Inglaterra para uma estada de pós-doutorado, tendi a pensar que poucos estariam interessados em um teórico anarquista após décadas do colapso final do breve renascimento acrático pós-1968. Parecia que apenas permaneciam – no máximo – algumas brasas fumegantes, oportunamente esmagadas naqueles dias quando a ortodoxia thatcheriana – modernizada em convenientes trajes blairistas – reinava na Grã-Bretanha e além. Bem, logo percebi que, na ilha onde viveu durante mais de trinta anos de exílio – de 1886 a 1917 –, ele nunca foi esquecido completamente.

Agora, só porque Kropotkin não foi completamente esquecido, não significa necessariamente que ele foi levado a sério. As ambiguidades são especialmente perceptíveis quando falamos sobre seu pensamento evolucionário. Por um lado, tem sido elogiado por sua vigorosa resistência contra o – mal – chamado darwinismo social. Também é frequentemente referido como um dos precedentes mais claros para estudos de altruísmo entre animais. No entanto, a opinião geral tende a apresentar a visão kropotkiniana da natureza como algo que tinha mais a ver com suas disposições pessoais (supostamente benevolentes) ou seus ideais políticos do que com a análise desapaixonada que o cientista deveria ter. Na verdade, a ideia vem de longe. Já na resenha publicada na Nature em 1903 de sua obra capital, O apoio mútuo (1902), lia-se que Kropotkin atribuía “aos animais inferiores uma benevolência semelhante à sua” [1].

Uma das tentativas relativamente recentes de reabilitação científica do evolucionismo de Kropotkin veio – talvez não por acaso – nas mãos do falecido Stephen Jay Gould, em seu artigo “Kropotkin Was No Crackpot” (1997). Nele, Gould, fazendo uso generoso da contribuição de Daniel Todes (1989) sobre o darwinismo russo, desafiou a imagem do personagem idiossincrático que molda as bordas da economia natural com base em suas convicções políticas muito peculiares: Kropotkin não era um raro avis, se não que suas ideias estavam enraizadas em uma tradição peculiar do evolucionismo russo. Um darwinismo sem Malthus, que tendia a sublinhar o caráter capital da sociabilidade – quando não da solidariedade – na luta pela existência que os seres vivos sustentavam contra as dificuldades ambientais. O que Gould achou reconfortante foi o conhecimento de que, apesar das implicações políticas que o darwinismo havia adquirido na Rússia, não pouco dessa tradição anti-malthusiana se baseava em um sólido trabalho de campo nos vastos territórios despovoados do Império Russo. Isso contrastava com a experiência fundacional de alguém como Darwin, que nasceu e viveu em uma ilha superpovoada e desenvolveu parte de seus primeiros passos como cientista em ambientes tropicais. Em outras palavras, o substrato do darwinismo anti-malthusiano de Kropotkin repousa não apenas em ideais políticos aparentemente excêntricos, mas, acima de tudo, em uma tradição científica respeitável, solidamente ancorada no conhecimento empírico de um ambiente natural peculiar.

Por mais bem-intencionada que seja a abordagem de Gould, entretanto, alguém ousaria discordar em duas questões fundamentais. A primeira é que a contribuição de Kropotkin não pode e não deve ser entendida como uma espécie de intrusão de um darwinismo peculiar, mas respeitável – o russo – em um ambiente científico e social totalmente estranho. Ao contrário, na Europa Ocidental havia um público mais do que preparado para aceitar que a sociabilidade teve muito a ver com a evolução, especialmente no caso dos animais. Como o próprio Kropotkin reconheceu publicamente, o terreno havia sido convenientemente preparado pelas contribuições de personagens hoje esquecidos como Alfred Espinàs, Jean-Louis de Lanessan ou Ludwig Büchner. Além disso, foi o próprio Darwin quem em A origem do homem se referiu ao papel-chave dos instintos sociais na gênese do sentido moral. Nem Kropotkin nem sua ciência foram periféricos nos debates pós-darwinianos sobre ética e evolução.

A segunda discrepância talvez seja mais heterodoxa. O ponto de vista de Gould, mais do que implicitamente, é baseado na convicção de que as ideias políticas infalivelmente contaminam o trabalho científico: podemos levar Kropotkin a sério porque seu darwinismo peculiar não é exclusivamente informado por seu anarquismo, senão que deve muito mais para sua experiência no ambiente hostil da Sibéria. Alguns de nós, ao contrário, pensam que há boas razões para duvidar do fato de que ciência e cultura podem ser clinicamente separadas (o que inclui o que chamamos de política). Hoje admitimos que a gênese da teoria de Darwin – ou melhor, das teorias –, junto com os muito respeitáveis tentilhões e cracas, teve algo a ver com a economia política de Malthus, a dissidência religiosa, sua militância antiescravidão ou a dinâmica expansiva do Império Britânico. Não separamos uns (a natureza), tidos como fontes legítimas de conhecimento, de outros (a cultura), apresentados como poluentes perigosos: todos são constitutivos do conhecimento. Da mesma forma, não me deixe fazer a mesma separação quando falo de Kropotkin. Se quisermos entender seu pensamento, é melhor tratar do viajante, do anarquista, do geógrafo, do respeitável homem da ciência, ou seja, do homem completo.

O explorador, o revolucionário, o venerável sábio


Três retratos de Piotr Kropotkin. Da esquerda para a direita: em 1861 com uniforme de pajem, no início de 1900 durante a maturidade e, por fim, já velho e provavelmente durante seu retorno à Rússia.

Kropotkin nasceu em 1842 em uma família pertencente à mais antiga aristocracia de Moscou. Aos quinze anos, ingressou no corpo de pajens de São Petersburgo, onde, além de receber treinamento militar, teve acesso a uma requintada educação técnica e científica. Estudante brilhante, foi promovido a pajem da câmara do czar no mesmo ano. De tendências políticas liberais, ele logo se desiludiu com o caráter reacionário do ambiente do palácio em São Petersburgo. Em 1862 ingressou no regimento cossaco na Sibéria (lá permaneceu até 1867), onde esperava poder colaborar de forma mais efetiva na reforma do país. Após um período de trabalho árduo em tarefas administrativas, Kropotkin voltou suas energias para a exploração científica. A experiência siberiana marcou sua vida para sempre. Foi, em primeiro lugar, a pedra de toque sobre a qual ele construiu grande parte de sua importante contribuição ao domínio da geografia física. Além disso, o contato com um ambiente aparentemente despovoado – como o da Sibéria – foi fundamental na articulação posterior de sua interpretação anti-malthusiana do darwinismo. E ainda mais crucial naquele momento, determinou sua perda de fé na máquina do estado quando se tratava de resolver os problemas reais do povo [2].

“Feira em Murom” (Ярмарка в Муроме), pintada entre 1910 e 1912 pelo artista Ivan Semyonovich Kulikov (Иван Семёнович Куликов). Kulikov nasceu numa família de camponeses que morou Murom e sua pintura expressa bem a obshchina.

No entanto, o verdadeiro elemento catalisador do ponto de vista político – como para muitos jovens de sua geração – foi a Comuna de Paris (1871). Depois de rejeitar o cargo de secretário da Sociedade Geográfica Imperial, ele fez uma viagem para a Suíça: lá ele tomou decididamente o lado do socialismo anarquista. Retornando de sua curta estada na Suíça, juntou-se ao famoso círculo populista de Tchaikovsky, até ser preso em 1874. Ele escapou das prisões russas dois anos depois para se exilar na Grã-Bretanha. Embora ele ganhasse a vida com atividades respeitáveis como contribuições para a Nature, The Times ou a Encyclopedia Britannica, sua nova vida como agitador anarquista estava longe de terminar. Nos anos seguintes, vivendo entre a Grã-Bretanha, França e Suíça, Kropotkin tornou-se um extraordinário propagandista revolucionário, tendo sua contribuição fundamental tanto para a difusão do comunismo libertário quanto para a criação de uma imprensa libertária de grande espírito teórico.

Esta atividade foi interrompida abruptamente. No final de 1882, ele foi preso em Lyon. Infelizmente para as autoridades gaulesas, o julgamento que se seguiu à sua prisão tornou-se uma plataforma formidável para a propaganda libertária [3]. Além disso, consolida-se o mito romântico do príncipe que renuncia aos privilégios de classe para abraçar a causa dos despossuídos, a ponto de gerar uma onda de simpatia pela figura de Kropotkin do outro lado do Canal do Mancha. Os anos na prisão tiveram efeitos duradouros. É na prisão de Clairvaux onde lê a obra do zoólogo russo Karl Fiodorovic Kessler sobre a ajuda mútua na evolução, decisiva, como ele mesmo confessa, na formalização de suas ideias a esse respeito. Por outro lado, sua saúde, já debilitada pela permanência nas prisões russas, piora a ponto de temer por sua vida. Em janeiro de 1886 ele foi libertado da prisão, embora tenha ficado doente para o resto da vida.

Após a libertação, se exilou na Inglaterra. Ele estabeleceu sua residência nos subúrbios de Londres, encerrando grande parte de sua atividade clandestina. No entanto, ele iniciou uma atividade teórica de enorme profundidade. Em todo caso, sua vida suburbana não era absolutamente anônima. A aura romântica do aristocrata que renuncia à sua classe social, aliada à sua grande reputação de viajante e geógrafo, abriu portas e públicos nada comuns para um anarquista. Kropotkin não apenas divulgou suas ideias nos órgãos de imprensa libertários, como também escreveu regularmente em revistas de grande repercussão no meio intelectual, como The Nineteenth Century, a mais aclamada das monthly reviews, por cuja seção científica se tornou responsável. Também participou das atividades da Royal Geographical Society, tornando-se membro da British Association for the Advancement of Science. Os longos anos que ele residiu na Inglaterra até seu retorno à Rússia em 1917 foram anos de moderada respeitabilidade vitoriana, embora ele tenha mantido um forte compromisso com a causa anárquica. Foi, sem dúvida, o período mais fecundo do ponto de vista intelectual, inclusive para o evolucionismo.

Kropotkin contra Thomas Huxley, e além: “O apoio mútuo”

Representação do apoio mútuo na bandeira rúbio negra do anarco-comunismo.

Na verdade, Kropotkin começou a se interessar pelo darwinismo desde muito cedo. Sua correspondência reflete que de certa forma ele estava colocando a teoria darwiniana à prova da natureza siberiana no início da década de 1860. Suas opiniões sobre isso, entretanto, só foram publicadas após o exílio na Europa Ocidental. Isso ocorreu em 1882 em um obituário de Darwin publicado pela imprensa libertária francesa. O artigo é, de fato, uma crítica ao uso burguês do darwinismo e contém alguns argumentos que reaparecerão mais tarde: as espécies sociáveis são as mais prósperas; a solidariedade é o fator chave para a sobrevivência da espécie em sua agonizante luta coletiva contra as forças hostis da natureza. O texto também reflete sua dívida para com a opinião dos zoólogos russos sobre o assunto.

Em 1887, em dois artigos publicados na The Nineteenth Century e em um contexto de grande tensão social na Grã-Bretanha, Kropotkin declarou que o anarquismo e a filosofia da evolução tinham os mesmos métodos [4]. No entanto, introduziu uma nuance importante. Criticando Herbert Spencer, ele afirmou que as leis populacionais malthusianas eram falsas e que nada acrescentavam à teoria da evolução. Paralelamente, Thomas Henry Huxley, defensor de longa data de Darwin, estava elaborando seu próprio roteiro político-científico em uma direção muito diferente. Em 1888, na própria The Nineteenth Century, Huxley começou a traçar um retrato da natureza como um conjunto de processos amorais e brutais, absolutamente incapaz de fornecer qualquer tipo de critério sobre o qual basear a moralidade. É a resposta de Huxley tanto à ética evolucionária de Spencer quanto ao seu ultraliberalismo político. Agora, embora sua posição seja congruente com um novo liberalismo reformista que considerava necessário um certo nível de intervenção estatal, Huxley enfatizou com igual força que a presença permanente do espectro malthusiano e a persistência de instintos agressivos primordiais impunham limites severos aos projetos de reforma radical e revolucionária. Tudo isso levou Kropotkin a responder em uma série de artigos publicados na mesma revista entre os anos de 1890 e 1896, e que finalmente foram reunidos em um volume intitulado Mutual Aid: a factor of evolution, publicado em 1902.

Pois bem, o objetivo de O apoio mútuo não era simplesmente [responder a] Huxley. Kropotkin começou a criticar o que ele via como uma escola inteira que usava a luta pela existência como seu slogan. O livro tornou-se um ataque aos discípulos de Darwin que, em sua opinião, viam apenas os aspectos mais brutais na natureza. O príncipe anarquista reconheceu que a luta pela existência – no sentido de uma competição real por comida e espaço – existia no mundo vivo, mas não era fácil de acontecer. Era muito raro que se chegasse ao umbral malthusiano de combate efetivo entre indivíduos por comida. Em contraste, Kropotkin destacou o papel predominante do que, segundo ele, Darwin chamou de “luta metafórica pela existência” [5], ou seja, a luta coletiva que as espécies travam contra as condições ambientais hostis e contra outras espécies. Estava claro para ele que a melhor arma nesse tipo de luta era a sociabilidade. Os mais aptos são os animais que adquirem hábitos de apoio mútuo.

Por outro lado, para Kropotkin, a luta entre indivíduos da mesma espécie não pode produzir nenhum tipo de progresso evolutivo, mas sim o contrário. Definir limites para a competição malthusiana por meio da ajuda mútua é a chave para a evolução progressiva. A sociabilidade – apoio mútuo – não apenas limita a luta, mas é condição necessária para o desenvolvimento das faculdades mais elevadas, como inteligência e moralidade. Isso o levou a outra conclusão correlativa. Kropotkin, ao contrário de Huxley, pensava que a moralidade era fundada na natureza, não havia processo ético para se opor a uma suposta natureza amoral. Longe de ser um desenvolvimento tardio, fruto da civilização, nosso senso moral estava profundamente ancorado em nosso passado biológico: são milhões de anos de evolução que falam em nós.

Da ética ao neolamarckismo

Marie Goldsmith, autora que influenciou a “virada lamarckista” em Piotr Kropotkin.

Não é surpreendente, então, que Kropotkin tenha tentado desenvolver as consequências éticas do ponto de vista adotado em seu Mutual Aid. No período entre 1890 e 1914, começou a parecer-lhe uma necessidade urgente. A crescente influência da filosofia de Nietzsche – conspícua mesmo nas fileiras libertárias – bem como o rearmamento patente do catolicismo no final do século XIX apareciam como novas ameaças. No ano de 1904, ele publicou dois artigos em The Nineteenth Century com o objetivo não apenas de conjurar os perigos, como de servir de base para o que ele desejava ser uma obra acabada sobre moral baseada na filosofia evolucionária. Uma nova ética – que, em suas próprias palavras, viria a cortar a grama sob os pés do cristianismo – na qual a marca inspiradora de A origem do homem de Darwin é explicitada. No entanto, Kropotkin logo encontrou um obstáculo em sua tradicional besta negra: Thomas Malthus. De acordo com o anarquista russo, os biólogos relutavam em reconhecer o apoio mútuo como a principal característica da vida animal porque advertiam que estava em franca contradição com a luta feroz pela vida entre os indivíduos, que necessariamente se segue das limitações malthusianas de espaço e comida. Este era o verdadeiro fundamento – segundo eles – da teoria da evolução darwiniana. Mesmo quando lembrados de que Darwin em A origem do homem havia enfatizado o papel fundamental da sociabilidade e dos sentimentos de simpatia na preservação das espécies [6], esses mesmos naturalistas foram incapazes de conciliar essa afirmação com o peso indubitável de que o próprio Darwin e Alfred Russel Wallace haviam atribuído à luta interindividual em sua teoria da seleção natural. Kropotkin assumiu a existência dessa contradição. O malthusianismo e o domínio da solidariedade na economia da natureza eram mutuamente excludentes.

Kropotkin tentou contornar o obstáculo postulando uma síntese entre darwinismo e lamarckismo em uma série de artigos publicados na The Nineteenth Century ao longo da década de 1910 [7]. Uma síntese em que a seleção natural seria, em grande parte, fagocitada pela ação direta do ambiente sobre os organismos, uma influência ambiental que seria transmitida aos descendentes por meio da herança dos caracteres adquiridos. Para tanto, tentou provar, fundamentalmente, que a seleção natural das variações produzidas ao acaso ou acidentalmente não poderia explicar a evolução progressiva, enquanto que a ação direta do meio transmitida hereditariamente o fazia. Para isso, era fundamental demonstrar que a herança dos caracteres adquiridos não somente não era uma impossibilidade teórica, mas que começava a gozar de certa base experimental. Na verdade, sua tentativa de reabilitação de Lamarck o levou a estudar em profundidade não apenas as obras dos neolamarckianos modernos, mas também as teorias hereditárias rígidas opostas, principalmente a de August Weismann.

Talvez para alguns, esse apoio tardio às teses neolamarckianas ilustre melhor do que nada até que ponto Kropotkin é apenas mais um caso de como as preocupações extra-científicas levam algumas mentes privilegiadas a cometer erros graves. Esta é uma forma de ver as coisas não apenas de modo simplista, como está basicamente errada: é um anacronismo. O anarquismo de Kropotkin não o levou a apoiar ideias estranhas, mas a defender abordagens amplamente compartilhadas por uma parte importante da comunidade de biólogos da época em que viveu. Não apenas a crítica às teorias de Weismann fora generalizada na França e na própria Alemanha, era o próprio mendelismo – ao qual Kropotkin não atribuiu importância especial – que não foi credível para explicar o fenômeno global da hereditariedade. Algo semelhante pode ser dito de sua teoria do apoio mútuo. Antropomorfismo? Certamente não maior do que o do próprio Darwin. Na verdade, a ideia de ingenuidade em Kropotkin não deixa de ser uma ilusão retrospectiva. Uma ilusão alimentada pelo fato de que, tanto na ciência quanto na política, ele se alinhou do lado que acabou sendo o perdedor. É possível que em uma época menos sectária, tanto na ciência quanto na política, abordemos sua figura de outra forma. Nesse ínterim, se você quiser entender alguma coisa sobre os debates pós-darwinianos nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX, é hora de levar Kropotkin a sério.

Notas:


[1] – “[…] he attributes to the lower animals a benevolence similar to his own”. F.W.H., 1903. “Mutual Aid”. Nature, LXVII: 196-197.

[2] – [Nota da tradução]: Em “Memórias de um Revolucionário” (que foi publicado originalmente em 1899 e não 1892 como diz no texto), há um capítulo em que Kropotkin narra sua carreira militar na Sibéria. Ele fala sobre como ele acumulou desilusões com relação à possibilidade de tentar reformar a vida social através de meios governamentais (e ele ainda não era anarquista). Durante suas viagens na Sibéria que Kropotkin vai se aproximar da vida concreta das massas e reconhecer o quanto as autoridades são os verdadeiros entraves para a fecundidade e prosperidade dos povos. É como se ele descobrisse na prática as premissas da anarquia antes de entrar em contato com a teoria. Infelizmente não publicaram novas versões traduzidas dessa obra, mas deixaremos aqui o link para o texto em inglês: Memoirs of a Revolutionist.

[3] – A esse respeito: “The Lyon Trial”, Freedom Anarchist Fortnightly, 44(2): 4-5; “The Trial of Socialists”, The Times, 9, 10, 12 e 20 de janeiro de 1883.

[4] – [Nota da tradução]: Os artigos a que se refere o autor são The Scientific Basis of Anarchy The Coming Anarchy. O primeiro artigo foi traduzido por nós já e se encontra disponível neste link. De todo o modo, ambos os artigos foram publicados conjuntamente como partes do seu: Anarco-comunismo: seus fundamentos e princípios.

[5] – [Nota da tradução]: “Devo estabelecer que uso o termo luta pela existência em sentido amplo e metafórico, que inclui a dependência de um ser em relação a outro e, ainda mais importante, que inclui não só a vida do indivíduo, mas o sucesso em deixar descendentes. Podemos dizer que, em tempos de escassez, dois animais caninos realmente lutam um contra o outro para que um deles possa conseguir alimentos e sobreviver. Mas dizemos que uma planta na orla de um deserto luta para sobreviver contra a seca, embora fosse mais correto dizer que ela busca a umidade. Em relação a uma planta que produz anualmente milhares de sementes, das quais em média apenas uma chega à maturidade, pode-se dizer com mais propriedade que ela luta contra as plantas do mesmo tipo e de outros tipos que já cobrem o solo. O visgo depende da macieira e de algumas outras árvores, mas somente em um sentido muito forçado poderíamos dizer que ele luta contra essas árvores, pois, caso muitos parasitas semelhantes cresçam na mesma árvore, esta irá definhar e morrer. Mas, de forma mais apropriada, podemos dizer que várias mudas de visgo que crescem juntas no mesmo galho lutam umas contra as outras. Uma vez que a dispersão do visgo é realizada por pássaros, sua ocorrência depende das aves; e podemos dizer metaforicamente que ele luta contra as outras plantas frutíferas para que os pássaros comam e dispersem as suas sementes e não as de outras plantas. Nesses vários sentidos, que vão de um a outro, eu uso, por conveniência, a expressão ‘luta pela existência’ como um termo geral” (DARWIN, 2018, pp. 82-83, grifos nossos). Referência: DARWIN, Charles. A origem das espécies. Tradução de Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2018.

[6] – [Nota da tradução]: “A julgar pelos costumes dos selvagens e da maioria dos quadrúmanos, os homens primitivos e também os seus antepassados semelhantes aos símios muito provavelmente viveram em sociedade. Nos animais fortemente sociáveis, a seleção natural muitas vezes age sobre o indivíduo por meio da conservação de mudanças que são benéficas para a comunidade. Uma comunidade que inclui um largo número de indivíduos bem dotados cresce em número e sai vitoriosa sobre aquelas menos favorecidas, embora muitas vezes cada membro individualmente não se avantaje absolutamente sobre os outros da sua própria comunidade. Insetos sociais têm adquirido desta maneira notáveis estruturas que são de pequena ou nenhuma utilidade para o indivíduo, como o dispositivo que recolhe o pólen ou o ferrão das abelhas trabalhadoras ou as grandes maxilas das formigas-soldado. No que concerne aos animais sociais superiores, não me consta que alguma estrutura tenha sido modificada unicamente em benefício da comunidade, embora algumas sejam de utilidade secundária para ela. Por exemplo, os chifres dos ruminantes e os grandes dentes caninos dos babuínos parecem ter sido adquiridos pelos machos como armas para as discórdias sexuais, mas são usados como defesa das manadas ou do grupo. No que diz respeito a certas faculdades mentais, conforme veremos no quinto capítulo, o caso é completamente diferente; com efeito, estas faculdades foram conquistadas principalmente ou quase exclusivamente em benefício da comunidade e ao mesmo tempo os indivíduos auferiram com elas vantagem indireta” (DARWIN, 1974, p. 80, grifos nossos). Referência: DARWIN, Charles. A origem do homem e a seleção sexual. Tradução de Attilio Cancian e Eduardo Nunes Fonseca. São Paulo: HEMUS, 1974.

[7] – [Nota da tradução]: Esses artigos foram reunidos e publicados recentemente num livro apenas disponível em espanhol: La selección natural y el apoyo mutuo.

Referências:


GOULD, S. J., 1997. “Kropotkin Was No Crackpot”. Natural History, 106: 12-21.

TODES, D. P., 1989. Darwin without Malthus: The Struggle for Existence in Russian Evolutionary Thought. Oxford University Press: Oxford, 123-142.