sexta-feira, 26 de abril de 2019

A Lei e a Autoridade (1886), por: Piotr Kropotkin

Tradução dos artigos de Piotr Kropotkin da revista “Le Révolté”, publicados em 13 de Maio, 27 de Maio, 5 de Agosto e 19 de Agosto de 1882. Estes artigos foram reunidos e publicados juntos sob o título de “Law and Authority” (Lei e Autoridade) em um panfleto de 23 páginas em 1886 na cidade de Londres pela editora “Freedom Press”. Essa tradução e suas notas foram feitas por: Júlio Carrapato. A versão utilizada para essa publicação se encontra disponível em: https://we.riseup.net/assets/84287/Kropotkin-A-Lei-e-a-Autoridade.pdf.




I


«Quando a ignorância se instala no seio das sociedades e a desordem nos espíritos, as leis tornam-se numerosas. Os homens tudo esperam da legislação e, constituindo cada lei nova um novo erro de contas, são levados a pedir-lhe incessantemente o que só pode vir deles próprios, da sua educação, do estado dos seus costumes». Não é com certeza um revolucionário quem diz isto, nem sequer um reformador. É um jurisconsulto, Dalloz[1], autor da compilação das leis francesas conhecida pelo nome de “Repertório de Legislação”. No entanto, estas linhas, ainda que escritas por um homem que era ele mesmo um fabricante e admirador de leis, representam perfeitamente o estado anormal das nossas sociedades.

Dentro das fronteiras dos Estados atuais, uma lei nova é considerada como um remédio para todos os males. Em vez de reformarem elas próprias o que é mau ou está mal, as pessoas começam por pedir uma lei que o modifique. Se a estrada entre duas aldeias estiver impraticável, logo o camponês dirá que seria necessária uma lei sobre os caminhos vicinais. Se o guarda-florestal insultar alguém, aproveitando-se do servilismo dos que lhe testemunham respeito – «seria necessária uma lei, diz o ofendido, que prescrevesse aos guardas rurais que fossem mais educados». E se o comércio e a agricultura não funcionarem capazmente? «É de uma lei protetora que temos falta» – assim raciocinam o lavrador, o criador de gado, o especulador em cereais; até o revendedor de velhos trapos e farrapos pede uma lei que o proteja e ai e ao seu pequeno comércio. E se o patrão baixar os salários ou aumentar o dia de trabalho? «É preciso uma lei que ponha ordem nisso tudo!» – clamam os deputados ainda verdes, em vez de dizerem aos operários que há outra maneira, bem mais eficaz, «de pôr ordem nisso tudo»: retomar ao patrão aquilo de que ele despojou gerações de operários. Numa palavra, por todo o lado há uma lei: uma lei sobre as estradas, uma lei sobre as modas, uma lei sobre os cães raivosos, uma lei sobre a virtude, uma lei para opor um dique a todos os vícios, a todos os males, que não são mais que o resultado da indolência e da cobardia humanas!

Todos estamos de tal maneira pervertidos por uma educação que desde tenra idade procura matar em nós o espírito de revolta e em nós desenvolve o de submissão à autoridade; estamos de tal maneira pervertidos por esta existência sob a férula da Lei que tudo regulamente: o nosso nascimento, a nossa educação, o nosso desenvolvimento, o nosso amor, as nossas amizades, que, se isto continuar, acabaremos por perder qualquer espírito de iniciativa, qualquer hábito de raciocinarmos pelas nossas próprias cabeças. As nossas sociedades parecem já não compreender mais que se possa viver de outra maneira, salvo sob o regime da lei, elaborada por um Governo representativo e aplicada por um punhado de governantes; e no próprio momento em que logram emancipar-se desse jugo, o primeiro cuidado que têm é retomá-lo imediatamente. “o ano I da Liberdade” nunca durou mais que um dia, porque, depois de o ter proclamado, logo no dia seguinte o oprimido se colocava de novo sob o jugo da Lei, da Autoridade.

Efetivamente, já lá vão milhares de anos que os que nos governam mais não fazem do que repetir em todos os tons: «respeito à lei, obediência à autoridade!». O pai e a mãe criam os filhos nesse sentimento. A escola torna o mais firme; prova a sua necessidade, inculcando nas crianças pedacinhos de falsa ciência, habilmente condizentes, da obediência à lei faz um culto; matrimonia o deus e a lei dos senhores numa única e mesma divindade. O herói da história que ela fabricou, é o que obedece à lei, o que a protege contra os revoltados.

Mais tarde, assim que a criança entra na vida pública, a sociedade e a literatura, batendo, a cada dia que passa, a cada instante, como gota de água mole que escava a pedra dura, continuam a inculcar-nos o mesmo preconceito. Os livros de história, de ciência política, de economia social regurgitam esse respeito à lei; chegou-se ao ponto de fazer as ciências físicas darem o seu contributo e, introduzindo nessas ciências de observação uma linguagem falsa, tomada de empréstimo à teologia e ao autoritarismo, conseguiu-se habilmente baralhar-nos a inteligência, sempre em nome da manutenção do respeito pela lei. A imprensa executa a mesma tarefa fastidiosa e sórdida; não há artigo nos jornais que não propague a obediência à lei, enquanto nesse próprio momento se constata na terceira página da publicação todos os dias a imbecilidade da lei e se mostra como ela é arrastada na lama e na imundície por aqueles que são encarregados da sua observância. O servilismo diante da lei passou a ser uma virtude e eu chego mesmo a duvidar que haja um único revolucionário que não tenha começado na tenra idade por ser defensor da lei contra o que geralmente se chama “os abusos”, consequências inevitáveis da própria lei.

A arte faz coro com a pretensa ciência. O herói do escultor, do pintor e do músico cobre a Lei com o escuto protetor e, com os olhos inflamados e as narinas abertas, está pronto para dar bordoada com o gládio em quem quer que ousasse nela tocar. São-lhe erigidos templos, são-lhe nomeados grandes sacerdotes, aos quais os próprios revolucionários hesitam em tocar, e se a Revolução vier varrer uma antiga instituição, será ainda por intermédio de uma Lei que ela tentará consagrar a sua obra.

Esse chorrilho de regras de conduta, que nos foram legadas pela escravatura, pela servidão, pelo feudalismo e pela realeza, a que se chama Lei, substituiu esses monstros de pedra diante dos quais eram imoladas vítimas humanas e que o homem subjugado nem sequer se atrevia a aflorar com os olhos, com medo de ser fulminado por algum raio caído do céu.

***


Foi sobretudo desde o advento da burguesia – desde a grande Revolução Francesa – que se conseguiu estabelecer esse culto. Sob o antigo regime falava-se pouco de leis, a não ser pela pluma de Montesquieu, Rousseau, Voltaire, para opô-las ao capricho real; era-se obrigado a obedecer à real gana do monarca e dos seus lacaios, sob pena de se ser atirado para a masmorra ou enforcado. Mas, durante e depois da Revolução, os advogados chegados ao poder fizeram o melhor que puderam para fortalecer esse princípio legalista sobre o qual deveriam estabelecer o seu reino. A burguesia aceitou-o logo de entrada, como âncora e boia de salvação, para opor um dique à torrente popular. A padralhada apressou-se a santificá-la, para salvar a sua barca que naufragava nas vagas da torrente. O povo, por fim, aceitou-o como um progresso em relação à arbitrariedade e à violência do passado.

É preciso uma pessoa transportar-se imaginariamente até ao século XVIII, para compreender a situação. É preciso ter vertido lágrimas de sangue ao ouvir a narrativa das atrocidades cometidas nessa época pelos nobres todo-poderosos contra os homens e as mulheres do povo, para compreender que influência mágica estas palavras tentadoras: «Igualdade diante da Lei, obediência à Lei, sem distinção de nascimento ou de fortuna» deviam exercer, há um século, sobre o espírito do campônio. Ele, que fora tratado até então mais cruelmente que um animal, ele, que nunca tivera nenhum direito e nunca obtivera justiça contra os atos mais revoltantes do nobre, a menos que se vingasse, matando-o, e fosse logo a seguir enforcado – ele via-se reconhecido por esta máxima, pelo menos em teoria, pelo menos quanto aos direitos pessoais, como um igual do seu senhor. Fosse qual fosse esta lei, prometia pôr sob a sua alçada em pé de igualdade tanto o senhor como o campônio, proclamava a igualdade, diante do juiz, do pobre e do rico. Esta promessa era uma mentira, sabêmo-lo hoje; mas para a época era um progresso, uma homenagem prestada à verdade. Por tal motivo, quando os salvadores da burguesia ameaçada, os Robespierre e os Danton, baseando-se nos escritos dos filósofos da burguesia, os Rousseau e os Voltaire, proclamaram «o respeito pela lei igual a todos» – o povo, cujo ímpeto revolucionário já se esgotava frente a um inimigo cada vês mais solidamente organizado, aceitou o compromisso. Vergou a cerviz ao jugo da Lei, para se salvar da arbitrariedade do senhor.

Desde então, a burguesia não parou de explorar esta máxima que, associada a outro princípio, o do Governo representativo, resume a filosofia do século da burguesia, o século XIX. Ela pregou-a nas escolas, criou a sua ciência e as suas artes com este objectivo, infiltrou-a em tudo o que é sítio, como a devota inglesa que vos desliza sob a porta de casa os seus tratados religiosos. A burguesia trabalhou tão bem que hoje vemos produzir-se este facto execrável: no próprio dia do despertar do espírito crítico e fundibulário, os homens, querendo ser livres, começam a pedir aos seus amos que tenham a boa vontade de protegê-los, modificando as leis criadas por esses mesmos amos.

***


Mas os tempos e os espíritos entretanto mudaram de há um século a esta parte. Por todo o lado há revoltados que não querem mais obedecer à lei, sem saber de onde ela vem, qual a sua utilidade, de onde vem a obrigação de lhe obedecer e o respeito que a rodeia. A revolução que se aproxima é uma Revolução e não um simples motim, pelo facto de os revoltados dos nossos dias submeterem à sua crítica todas as bases da sociedade, venerada até ao presente, e, antes de tudo o mais, esse ídolo, esse feitiço – a Lei.

Analisara a sua origem e aí descobrem, ou um deus qualquer – produto dos terrores do selvagem, estúpido, mesquinho e mau, à semelhança dos padres que reivindicam a sua origem sobrenatural –, ou o sangue, a conquista efetuada a ferro e fogo. Estudam o seu carácter e aí encontram, como traço distintivo, a imobilidade, substituindo o desenvolvimento contínuo da humanidade. Perguntam como é que a lei se mantém e veem as atrocidades do bizantinismo e as crueldades da Inquisição; as torturas da Idade Média, as carnes vivas cortadas em tiras pelo chicote do carrasco, as correntes, as grilhetas, a clava, a acha-de-armas ao serviço da lei; os sombrios subterrâneos das prisões, os sofrimentos, os prantos e as maldições. E hoje – sempre o machado, a corda, o fuzil e as masmorras; de um lado, o embrutecimento do preso reduzido ao estado de animal dentro da jaula, o envilecimento do seu ser moral, e do outro, o juiz desprovido de todos os sentimentos que constituem a melhor parte da natureza humana, vivendo como um visionário num mundo de ficções jurídicas, aplicando com volúpia a guilhotina, sangrenta ou seca, sem que, louco, friamente cruel, suspeite sequer do abismo de degradação no qual caiu, em relação aos que condena.

Vemos uma raça de fazedores de leis, legiferando sem saberem sobre que matéria legiferam, votando hoje uma lei sobre saneamento básico das cidades, sem terem a menor noção de higiene, regulamentando amanhã o armamento de tropas, sem mesmo conhecerem uma espingarda, fazendo leis sobre o ensino e a educação, sem nunca terem sabido dar um ensinamento qualquer ou uma educação honesta aos seus filhos, legislando a torto e a direito, mas sem nunca esqueceram a coima que atingirá o maltrapilho de pé descalço, nem a prisão e a condenação às galeras que golpearão homens mil vezes menos imorais do que são esses mesmos legisladores! Vemos por fim o carcereiro que caminha para a perda de todo e qualquer sentimento humano, a polícia adestrado como um cão pistoleiro, o bufo admirando-se a si próprio, já que a delação se transformou em virtude e a corrupção foi edificada como um sistema; todos os vícios, todos os lados maus da natureza humana, se encontram favorecidos, cultivados, pelo triunfo da Lei.

Vemos tudo isso e é por isso que, em vez de repetirmos tolamente a velha fórmula: “Respeito pela lei”, gritamos: “Desprezo pela lei e pelos seus atributos!” Substituímos as palavras cobardes “obediência à lei” pela expressão: “Revolta contra todas as leis!”

Basta que se compare apenas os malefícios consumados em nome de cada lei com o que ela pôde produzir de bom, que se pese o bem e o mal – e logo se verá se temos ou não razão.

II


A lei é um produto relativamente moderno, porque a humanidade viveu séculos e séculos sem ter nenhuma lei escrita, nem sequer simplesmente grava em símbolos, nas pedras, à entrada dos templos. Nessa época, as relações dos homens entre si eram reguladas por simples costumes, por hábitos, usos, que a constante repetição tornava veneráveis e que cada um adquiria desde a infância, como aprendia a procurar comida pela caça, a criação de animais ou a agricultura.

Todas as sociedades humanas passaram por esta fase primitiva e até ao presente ainda uma grande parte da humanidade não tem nenhumas leis escritas. As populações locais têm usos, costumes – “um direito costumeiro”, como dizem os juristas –, têm hábitos de sociabilidade, e isso basta para manter boas relações entre os membros da aldeia, da tribo, da comunidade. Acontece o mesmo conosco, civilizados; basta que se saia das nossas grandes cidades, para se ver que as relações mútuas dos habitantes ainda estão reguladas, não segundo a lei escrita dos legisladores, mas segundo os costumes antigos, geralmente aceites. Os camponeses da Rússia, da Itália, da Espanha, e até mesmo de boa parte da França e da Inglaterra, não têm nenhuma ideia da lei escrita. Esta vem imiscuir-se na sua vida, só para regular as relações deles com o Estado; quanto às relações entre eles, algumas vezes muito complicadas, regulam-nas simplesmente segundo os antigos costumes. Outrora, tal acontecia com toda a humanidade.

***


Quando se analisa os costumes dos povos primitivos, nota-se que há duas correntes bem distintas.

Como o homem não vive solitariamente, elabora em si sentimentos, hábitos úteis à conservação da sociedade e à propagação da espécie. Sem sentimentos de sociabilidade, sem práticas de solidariedade, a vida em comum teria sido absolutamente impossível. Não é a lei que os estabelece: eles são anteriores a todas as leis. Também não é a religião que os prescreve: eles são anteriores a qualquer religião, encontram-se em todos os animais que vivem em sociedades. Desenvolvem-se a si próprios, pela força das coisas, como esses hábitos a que o homem chamou instintos nos animais: provêm de uma evolução útil, necessária mesmo, ao manter a sociedade na luta pela existência que ela própria deve sustentar. Os selvagens acabam por não se comer mais entre si, porque acham que é muito mais vantajoso uma pessoa dedicar-se a um cultivo qualquer, em vez de andar à procura uma vez por ano do prazer de se alimentar da carne de um parente velho. No seio das tribos absolutamente independentes e que não conhecem nem leis nem chefes, de que muitos viajantes nos pintaram os costumes, os membros do mesmo clã deixaram de andar à facada, a propósito de cada discussão, porque o hábito da vida em sociedade acabou por desenvolver neles um certo sentimento de fraternidade e de solidariedade: preferem dirigir-se a terceiros, a fim de esvaziarem os seus diferendos. A hospitalidade dos povos primitivos, o respeito pela vida humana, o sentimento de reciprocidade, a compaixão pelos fracos, a bravura levada até ao sacrifício de si mesmo na defesa do interesse de outrem, que se aprende primeiro a praticar para com as crianças e os amigos e mais tarde em relação aos membros da comunidade – todas estas qualidades se desenvolvem no homem anteriormente às leis, independentemente de qualquer religião, como em todos os animais sociáveis. Estes sentimentos e estas práticas são o resultado inevitável da vida em sociedade. Sem serem inerentes ao homem (tal como dizem os padres e os metafísicos), estas qualidades são a consequência da vida em comum.

Mas, ao lado destes costumes, necessários à vida das sociedades e à conservação da espécie, produzem-se nas associações humanas outros desejos, outras paixões, donde, outros hábitos, outros costumes. O desejo de dominar os outros e de lhes impor a vontade própria, o desejo de se apossar dos produtos do trabalho de uma tribo vizinha; o desejo de subjugar outros homens, a fim de alguém se rodear de gozos e prazeres, sem a pessoa ser obrigada a trabalhar ela mesma, enquanto os escravos produzem o necessário e proporcionam ao seu amo todos os prazeres e todas as volúpias – esses desejos pessoais, grosseiramente egoístas, criam outra corrente de hábitos e costumes. Por um lado, o padre – esse charlatão que explora em proveito próprio a superstição e que, depois de se ter emancipado a si mesmo do medo do diabo, o propaga no meio dos outros; e, por outro lado, o guerreiro, esse arrasa-montes fanfarrão que incita à invasão e à pilhagem dos vizinhos, a fim de voltar a casa carregado do produto do saque e seguido de escravos – ambos, de mãos dadas, conseguem impor às sociedades primitivas costumes vantajosos para eles e que tendem a perpetuar o seu domínio sobre as massas. Aproveitando-se da indolência, do medo, da inércia das multidões e graças à repetição constante dos mesmos atos, conseguem estabelecer, com carácter permanente, costumes que passam a ser o ponto de apoio da sua dominação.

Para isso, exploram primeiro o espírito de rotina que está tão desenvolvido no homem e que atinge um grau tão impressionante nas crianças, nos povos selvagens, assim como nos animais. O homem, sobretudo quando é supersticioso, tem sempre medo de mudar seja o que for ao que existe; geralmente venera o que é antigo. «Os vossos pais fizeram assim; assim viveram nos bons e maus momentos, educaram-vos, não foram infelizes, tratai de fazer o mesmo!» – dizem os anciãos aos jovens, a partir do momento em que estes querem mudar qualquer coisa. O desconhecido assusta-os, preferem agarrar-se ao passado, mesmo que esse passado represente a miséria, a opressão, a escravatura. Pode-se mesmo dizer que, quanto mais infeliz o homem for, mais receio tem de mudar o que quer que seja, com medo de se tornar ainda mais infeliz; é preciso que um raio de esperança e algumas horas de bem-estar penetrem na sua triste choça, para que ele comece a querer mais e melhor, a criticar a antiga maneira de viver, a desejar uma mudança. Enquanto esta esperança não o penetrar, enquanto não se emancipar da tutela dos que se servem das suas superstições e temores, preferirá ficar na mesma situação. Se os jovens quiserem mudar qualquer coisa, os velhos soltarão um grito de alarme contra os inovadores. Aquele selvagem preferiria deixar-se matar a transgredir o costume do seu país, porque desde a infância lhe disseram que a menor infracção aos costumes estabelecidos lhe traria desgraça, causaria a ruína de toda a tribo. E ainda hoje, quantos políticos, economistas e pretensos revolucionários agem sob a mesma impressão, agarrando-se a um passado que se vai embora! Quanto não têm outra preocupação senão procurar precedentes! Quantos fogosos inovadores não passam de simples copistas das revoluções anteriores!

Este espírito de rotina cuja origem vai beber na superstição, na indolência, e na cobardia, constituiu em todos os tempos a fonte da força dos opressores; e nas sociedades humanas primitivas foi habilmente explorado pelos padres e os chefes militares perpetuando os costumes, só para eles vantajosos, que eles conseguiam impor às tribos.

***


Enquanto este espírito de conservantismo, habilmente explorado, bastava para garantir o esbulho da liberdade dos indivíduos pelos chefes; enquanto as únicas desigualdades entre os homens eram as desigualdades naturais e estas não se encontravam ainda decuplicadas ou centuplicadas pela concentração do poder e das riquezas – ainda não se fazia sentir nenhuma necessidade da lei e do aparelho formidável dos tribunais e das penas de prisão sempre crescentes para impô-la.

Mas quando a sociedade começou a cindir-se cada vez mais em duas classes hostis – uma que busca estabelecer a sua dominação e a outra que procura subtrair-se a ela –, então a luta começou a travar-se. O vencedor de hoje apressa-se a imobilizar o facto consumado, procura torná-lo indiscutível, torná-lo santo e venerável por tudo o que os vencidos podem respeitar. A Lei faz a sua aparição, sancionada pelo padre e tendo às ordens a clava do guerreiro. Trabalha para parar no tempo os costumes vantajosos para a minoria dominadora e a Autoridade militar encarrega-se de lhe garantir total obediência. O guerreiro encontra ao mesmo tempo nesta nova função um instrumento para tornar mais firme o seu poder; não tem mais ao seu serviço uma simples força brutal: ele é o defensor da Lei.

Mas, se a Lei só apresentasse um amontoado de prescrições unicamente favoráveis aos dominadores, teria grande dificuldade para ser aceite, para se fazer obedecer. Ora bem, o legislador salta o obstáculo e confunde num único e mesmo código as duas correntes de costumes de que acabamos de falar: as máximas que representam os princípios de moral e de solidariedade elaborados pela vida em comum e as ordens que devem para sempre consagrar a desigualdade. Os costumes que são absolutamente necessários à própria existência da sociedade, são habilmente misturados no Código com as práticas impostas pelos dominadores, as quais têm pretensões ao mesmo respeito por parte da multidão. “Não matarás!” – diz o Código, que se apressa logo a acrescentar: “Paga o dízimo ao padre”. “Não roubarás!” – determina o Código e imediatamente a seguir comina: “O que não pagar impostos terá o braço cortado”.

Eis a Lei e este duplo carácter manteve-o ela até hoje. A sua origem é ou está no desejo dos dominadores imobilizarem os costumes que eles mesmos tinham imposto para vantagem própria.

O seu carácter é ou está na amálgama hábil dos costumes úteis para a sociedade – costumes que não têm necessidade de lei para ser respeitados – com os outros costumes que só apresentam vantagens para os dominadores, que são prejudiciais para as massas e que só são mantidos pelo pavor dos suplícios.

Não mais do que o capital individual, nascido da fraude e da violência e desenvolvido sob os auspícios da Autoridade, a Lei tem qualquer título ao respeito dos homens. Nascida da violência e da superstição, estabelecida no interesse do padre, do conquistador e do rico explorador, deverá ser abolida por inteiro, no dia em que o povo quiser quebrar as grilhetas e as correntes que o amarram de pés e mãos.

Convencer-nos-emos disso ainda melhor, analisando no capítulo seguinte o desenvolvimento ulterior da Lei, sob os auspícios da religião, da Autoridade e do regime parlamentar atual.

III


Vimos como é que a Lei nasceu dos costumes e usos estabelecidos e como representava desde o começo uma mescla hábil de costumes sociáveis, necessários à preservação da espécie humana, com outros costumes, impostos pelos que usavam a seu favor as superstições populares e o direito do mais forte. Esse duplo carácter da Lei determina o seu desenvolvimento ulterior em povos cada vez mais policiados. Mas enquanto o núcleo de costumes de sociabilidade inscritos na Lei não sofre senão uma modificação muito fraca e muito lenta ao longo dos séculos – é a outra parte das leis que se desenvolve, completamente em proveito das classes dominantes, totalmente em detrimento das classes oprimidas. É à justa se, de tempos a tempos, as classes dominantes deixam que lhes arranquem uma lei qualquer que representa, ou parece representar, uma certa garantia para os deserdados. Mas então essa lei não faz mais do que ab-rogar uma lei precedente, feita para avantajar as classes dominadoras. «As melhores leis, dizia Buckle, foram as que ab-rogaram leis precedentes». Mas que esforços terríveis não foi necessário despender, que rios de sangue não foi preciso derramar, cada vez que se tratava de ab-rogar uma dessas instituições que servem para pôr o povo a ferros. Para abolir os últimos vestígios da servidão da gleba e dos direitos feudais, para quebrar o poderio da camarilha real, foi preciso que a França passasse por quatro anos de revolução e por vinte de guerras[2]. Para ab-rogar a mais pequena das leis iníquas que nos foram legadas pelo passado, são precisas dezenas de anos de luta e as mais das vezes elas não desaparecem senão nos períodos revolucionários.

***


Os socialistas já fizeram inúmeras vezes a história da gênese do Capital. Contaram como ele nasceu das guerras e do saque, da escravatura, da servidão da gleba, da fraude e da exploração moderna. Mostraram como é que ele se alimentou do sangue do operário e como pouco a pouco conquistou o mundo inteiro. Ainda está por fazer a mesma história, no que respeita à gênese e ao desenvolvimento da Lei. O espírito popular, tomando, como sempre, a dianteira em relação aos homens do gabinete de ministros, já está a fazer a filosofia dessa história e a plantar os marcos essenciais do seu percurso.

Feita para garantir os frutos da pilhagem, do açambarcamento e da exploração, a Lei seguiu as mesmas fases de desenvolvimento do Capital: irmã e irmão gêmeos, eles caminham de mãos dadas, alimentando-se ambos dos sofrimentos e das misérias da humanidade. A sua história foi quase a mesma em todos os países da Europa. Apenas os detalhes diferem; o fundo da questão permanece o mesmo e deitar uma vista de olhos ao desenvolvimento da Lei em França. Ou na Alemanha, é conhecer nos traços essenciais as suas fases de desenvolvimento na maior parte das nações europeias.

Nas origens, a lei consistia no pacto, ou contrato nacional. No Campo de Marte, as legiões e o povo aceitavam o contrato; o Campo de Maio das comunas primitivas da Suíça ainda é uma recordação dessa época, apesar de toda a alteração que sofreu, por causa da intromissão da civilização burguesa e centralizadora. Certamente, esse contrato nem sempre era livremente consentido; o forte e o rico impunham já a própria vontade nessa época. Mas, pelo menos, encontravam um obstáculo às suas tentativas de invasão da massa popular que amiúde também lhes fazia sentir a sua força.

À medida que a Igreja, por um lado, e o senhor feudal, por outro, conseguem sujeitar o povo, o direito de legiferar escapa das mãos da nação para passar para as dos privilegiados. A Igreja expande os seus poderes; apoiada pelas riquezas que se acumulam nos seus cofres, mete cada vez mais o bedelho na vida privada e, a pretexto de salvar almas, apropria-se do fruto do trabalho dos seus servos; cobra imposto a todas as classes, estende a sua jurisdição; multiplica os delitos e as penas e enriquece-se na proporção direta dos delitos cometidos, já que é para os seus cofres-fortes que escorre o produto das multas. As leis não têm mais qualquer relação com os interesses nacionais: «crer-se-ia que emanavam mais de um concílio de fanáticos do que de um corpo de legisladores», observa um historiador do direito francês.

Ao mesmo tempo, à medida que o senhor, pelo seu lado, estende os seus poderes sobre os cultivadores dos campos e os artesãos das cidades, também é ele que passa a ser juiz e legislador. No século X, se monumentos de direito público há, não passam de tratados que regulam as obrigações, as corveias, as faxinas e os tributos dos servos e dos vassalos do senhor. Os legisladores dessa época são um punhado de salteadores que se multiplicam e organizam para a roubalheira que exercem contra um povo que se torna cada vez mais pacífico, à medida que se dedica à agricultura. Exploram em seu benefício o sentimento justiça inerente aos povos; para o efeito, armam-se em justiceiros, fazem da própria aplicação dos princípios de justiça uma fonte de rendimentos e formulam leis que servirão para manter a sua dominação.

Mais tarde, tais leis, reunidas por legistas e classificadas, servirão de fundamento aos códigos modernos. E ainda se ousa falar em respeitar os códigos, herança do padre e do barão!

A primeira revolução, a revolução das comunas medievais, não conseguiu mais que abolir parte dessas leis; porque as cartas das comunas libertas não são na maior parte dos casos senão um compromisso entre a legislação senhorial ou episcopal, e as novas relações sociais, criadas no seio da comuna livre. E, no entanto, que diferença entre essas leis e as leis atuais! A Comuna não se arroga o direito de prender ninguém e de guilhotinar[3] os cidadãos por qualquer razão de Estado: limita-se a expulsar quem conspirar com os inimigos da Comuna e a arrasar a sua casa. Para a maior parte dos pretensos “crimes e delitos”, limita-se a impor multas; chega-se mesmo a ver, nas Comunas do século XII, esse princípio tão justo, mas hoje esquecido, segundo o qual toda a Comuna responde pelas malfeitorias cometidas por cada um dos seus membros[4]. As sociedades de então, considerando o crime como um acidente ou como uma infelicidade – tal ainda é até ao presente o caso da concepção do camponês russo – e não admitindo o princípio da vingança pessoal, pregado pela Bíblia, entendiam que a culpa de cada má ação recaía sobre a sociedade inteira. Foi necessária toda a influência da Igreja bizantina, que importava para o Ocidente a crueldade refinada dos déspotas do Oriente, para introduzir nos costumes dos Gauleses e dos Germanos a pena de morte e os suplícios horríveis que mais tarde foram infligidos aos que se considerava como criminosos; e também foi necessária toda a influência do código civil romano – produto da podridão da Roma Imperial – para introduzir essas noções de propriedade fundiária ilimitada que vieram derrubar os costumes comunalistas dos povos primitivos.

Sabe-se que as Comunas livres não puderam aguentar-se; foram vítimas da realeza. E à medida que o poder do rei adquiria uma força nova, o direito de legislar passava cada vez mais para as mãos de uma pequena súcia de cortesãos. O apelo à nação só passa a ser feito para sancionar os impostos exigidos pelo rei. Parlamentos, convocados com dois séculos de intervalo, segundo a real gana e os caprichos da Corte, “Conselhos extraordinários”, “sessões de notáveis” onde os ministros mal ouvem as “queixas” dos súbditos do rei – eis os novos legisladores. E mais tarde ainda, assim que todos os poderes estão concentrados numa única pessoa que diz: “O Estado sou eu”[5] - é “no segredo dos Conselhos do príncipe”, segundo a fantasia de um ministro ou de um rei imbecil, que se fabricam os éditos aos quais os súbditos são obrigados a obedecer, sob pena de morte. Todas as garantias judiciárias são abolidas; a nação é serva do poder real e de um punhado de cortesãos; as penas mais terríveis: a roda, a fogueira, a esfolação, as torturas de todos os gêneros e feitios – produto da fantasia doente de monges e de loucos raivosos que ficam deliciados com os sofrimentos dos supliciados –, eis os progressos que fazem a sua aparição nesta época.

***


É à grande revolução francesa que cabe a honra de ter começado a demolição desta andaimaria de leis que nos foi legada pela feudalidade e a realeza. Mas, após ter demolido algumas partes do velho edifício, a Revolução pôs o poder de legiferar entre as mãos da burguesia que, por sua vez, começou a erguer nova andaimaria de leis destinadas a manter e a perpetuar a sua dominação sobre as massas. Nos seus parlamentos, legisla a perder de vista e montanhas de papelada acumulam-se a uma rapidez assustadora. Mas, no fundo, o que são todas estas leis?

A maior parte só tem uma finalidade: proteger a propriedade individual, quer dizer, as riquezas adquiridas por meio da exploração do homem pelo homem, abrir novos campos de exploração ao Capital, sancionar as novas formas que a exploração incessantemente reveste, à medida que o Capital açambarca novos ramos da vida humana: ferrovias, telégrafos, luz eléctrica, indústria química, expressão do pensamento humano pela literatura e pela ciência, etc. O resto das leis, no fundo, tem também sempre a mesma finalidade, quer dizer, a manutenção da máquina governamental, que serve para garantir ao capital a exploração e a monopolização das riquezas produzidas. Magistratura, polícia, exército, instrução pública, finanças – tudo serve o mesmo deus: o Capital; tudo isso tem um só fim: o de proteger e facilitar a exploração do trabalhador pelo capitalista. Analisai todas as leis feitas de há oitenta anos até hoje – não encontrareis outra coisa. A proteção das pessoas, que se quer representar como a verdadeira missão da Lei, não ocupa senão um lugar quase imperceptível no meio dessa tralha jurídica; porque, nas sociedades atuais, os ataques contra as pessoas, ditados diretamente pelo ódio e a brutalidade, tendem a desaparecer. Se se mata alguém, hoje, é para pilhar e raramente por vingança pessoal. E se esse gênero de crimes e delitos vai sempre diminuindo, não é certamente graças à legislação que o devemos: é ao desenvolvimento humanitário das nossas sociedades, aos nossos hábitos cada vez mais sociáveis, e não às prescrições das leis. Que se ab-rogue amanhã todas as leis concernentes à proteção das pessoas, que se deixe amanhã de instaurar processos judiciais por crimes contra as pessoas, e o número de atentados ditados pela vingança pessoa ou pela brutalidade não terá acréscimo de um único.

Talvez nos venham objectar que foram feitas desde há cinquenta anos um bom número de leis liberais. Mas analise-se essas leis e ver-se-á que todas essas leis liberais não são mais que a ab-rogação das leis que nos foram legadas pela barbárie dos séculos precedentes. Todas as leis liberais, todo o programa radical, resumem-se nestas palavras: abolição das leis tornadas incômodas para a própria burguesia e regresso às liberdades das comunas do século XII estendidas a todos os cidadãos. A abolição da pena de morte, o júri para todos os “crimes” (o júri, mais liberal do que hoje, existia no século XII), a magistratura eleita, o direito de acusação dos funcionários, a abolição dos exércitos permanentes, a liberdade de reunião, a liberdade de ensino, tudo o que nos dizem ser uma invenção do liberalismo moderno, enfim, não passa de um regresso às liberdades que existiam, antes que a Igreja e o Rei tivessem estendido a mão sobre a humanidade.

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A proteção da exploração – direta, pelas leis, sobre a propriedade, e indireta, pela manutenção do estado –, eis portanto a essência e a matéria dos códigos modernos e a preocupação dos dispendiosos mecanismos de legislação. Chegou o tempo, entretanto, de não perdê-lo com fraseologia e de nos apercebermos do que são na realidade esses estratagemas. A lei que foi apresentada a princípio como uma recolha de costumes úteis para a preservação da sociedade, não passa de um instrumento para a manutenção da exploração e da dominação dos ricos ociosos sobre as massas laboriosas. Hoje, a sua missão civilizadora é nula; só tem uma verdadeira missão: a conservação da exploração.

Aqui está o que nos diz a história do desenvolvimento da Lei. É a esse título que somos chamados a respeitá-la? Com certeza que não. Não mais que o Capital, produto do assalto à mão armada, ela tem direito ao nosso respeito. E o primeiro dever dos revolucionários do século XIX será fazer um auto-de-fé de todas as leis existentes, do mesmo modo que o farão dos títulos de propriedade.

IV


Se estudarmos os milhões de leis que regem a humanidade, aperceber-nos-emos facilmente que podem ser subdivididas em três grandes categorias: proteção da propriedade, proteção do Governo, proteção das pessoas. E, ao analisarmos essas três categorias, chegar-se-á em relação a cada uma delas a esta conclusão lógica e necessária: inutilidade e nocividade da Lei.

No que à proteção da propriedade tange, os socialistas sabem sobejamente o que se passa. As leis sobre a propriedade não são feitas para garantir, nem ao indivíduo, nem à sociedade, o gozo dos produtos do trabalho de cada um. São feitas, pelo contrário, para furtar ao produtor uma parte do que produz e para garantir a alguns a parte dos produtos que furtaram, quer aos produtores, quer à sociedade inteira. Quando a lei estabelece os direitos do senhor Fulano de Tal sobre uma casa, por exemplo, estabelece o seu direito, não sobre uma choupana que ele mesmo tivesse construído, nem sobre uma casa que ele tivesse erguido com a ajuda de alguns amigos – aliás, ninguém lhe teria disputado tal direito, se assim fosse. A lei, pelo contrário, estabelece os seus direitos sobre uma casa que não é o produto do seu trabalho, para começar porque ele a fez construir por outros, a quem não pagou todo o valor de seu trabalho, e a seguir porque essa casa representa um valor social que ele, só, não pôde produzir: a lei portanto estabelece os seus direitos sobre uma porção do que pertence a toda a gente e a ninguém em particular. A mesma casa, construída mesmo no meio da Sibéria, não teria o valor que tem dentro de uma grande cidade e o seu valor atual provém – bem se sabe – do trabalho de cerca de cinquenta gerações que construíram a cidade, que a embelezaram, proveram de água e de gás, de belas avenidas, de universidades, de teatros e de armazéns, de ferrovias e de estradas que irradiam em todas as direções. Donde, ao reconhecer os direitos do senhor Fulano de tal sobre uma casa em Paris, em Londres, em Rouen, a lei apropria-lhe – injustamente – uma certa parte dos produtos do trabalho da humanidade inteira. E é precisamente porque esta apropriação é uma injustiça gritante (todas as outras formas de propriedade têm o mesmo carácter) que foi necessário criar todo um arsenal de leis e todo um exército de soldados, de polícias e de juízes para mantê-lo, contra o bom senso e o sentimento de justiça inerente à humanidade.

Ora bem, a metade das leis vigentes – os códigos civis de todos os países – não tem outra finalidade para além de manter esta apropriação, este monopólio, em proveito de alguns, contra a humanidade inteira. Os três quartos dos processos julgados pelos tribunais não passam de querelas que surgem entre monopolistas: dois ladrões em disputa pelo saque. E boa parte das leis criminais tem também o mesmo fim, já que estas têm como objectivo manter o operário numa posição de subordinação ao patrão, a fim de lhe acautelar a exploração daquele.

Quanto a garantir ao produtor os frutos do seu trabalho, nem sequer há leis que se encarreguem disso. É coisa tão simples e tão natural, tão bem ancorada nos costumes e nos hábitos da humanidade, que a lei nem sequer sonhou com ela. O bandoleirismo declarado, de armas na mão, já não é do nosso século: um trabalhador também não vem nunca disputar a outro trabalhador os produtos do seu trabalho; se qualquer mal-entendido houver entre ambos, esvaziam-no de conteúdo sem recurso à Lei, dirigindo-se a terceiros; e se alguém vier exigir de outro uma certa parte do que produziu, só pode ser o proprietário, que vem fazer o levantamento antecipado da sua parte de leão. Quanto à humanidade em geral, respeita em todo o lado o direito de cada um ao que produziu, sem que para o efeito haja necessidade de leis especiais.

Todas essas leis sobre a propriedade, que enchem os gordos volumes dos códigos e de alegria os soldados, ao não terem outro fito para além do da proteção da apropriação injusta dos produtos do trabalho da humanidade por certos monopolistas, não têm nenhuma razão de ser e os socialistas revolucionários estão bem decididos a fazê-las desaparecer, no dia da Revolução. Podemos, com efeito, com toda a justiça, fazer um auto-de-fé completo de todas as leis relacionadas com os aqui nomeados “direitos de propriedade”, de todos os títulos de propriedade, de todos os arquivos – numa ou em poucas palavras, de tudo o que diz respeito a essa instituição que em breve será considerada como uma nódoa humilhante na história da humanidade, pela mesma razão que a escravatura e a servidão dos séculos passados.

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O que acabamos de dizer sobre as leis respeitantes à propriedade aplica-se completamente a esta outra segunda categoria de leis: as leis que servem para manter o Governo, ou leis constitucionais.

Está-se mais uma vez perante um arsenal completo de leis, decretos, ordenações, advertências, etc., que servem para proteger as diversas formas de Governo representativo – por delegação ou usurpação –, sob o qual se debatem ainda as sociedades humanas. Sabemos muito, mas mesmo muito bem – os anarquistas demonstraram-no bastantes vezes pela crítica incessante das diversas formas de Governo –, que a missão de todos os governos, monárquicos, constitucionais e republicanos, é proteger e manter pela força os privilégios das classes possidentes: aristocracia, padralhada e burguesia. Cerca de um terço bem pesados das leis – as leis “fundamentais”, as leis sobre os impostos, sobre as alfândegas, sobre a organização dos ministérios e das suas chancelarias, sobre o exército, a polícia, a Igreja, etc. – e há bem algumas dezenas de milhares em cada país – não tem outra finalidade senão manter, consertar e desenvolver a máquina governamental, a qual serve, por sua vez, quase inteiramente para proteger os privilégios das classes possidentes. Analise-se todas essas leis, faça-se a sua observação na ação do dia-a-dia, e toda a gente se aperceberá que não há uma única boa e digna de ser conservada, a começar pelas que entregam as comunas, de mãos e pés atados, ao pároco, ao grande burguês do sítio e ao subprefeito, e acabando nessa famosa Constituição (a 19ª ou 20ª desde 1789)[6] que nos dá uma Câmara de cretinos e de especuladores na Bolsa, que preparam a ditadura de um aventureiro qualquer, caso não seja o governo de um cabeça de abóbora coroado.

Em resumo, em relação a estas leis, não pode haver qualquer dúvida. Não só os anarquistas, mas também os burgueses mais ou menos revolucionários, estão de acordo sobre o seguinte: o único uso que se possa eventualmente fazer de todas as leis referentes à organização do Governo – é acender-se uma jubilosa fogueira de festa.

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Resta a terceira categoria de leis, a considerada mais importante, já que é a ela que se agarram mais preconceitos: as leis respeitantes à proteção das pessoas, à punição e à prevenção dos “crimes”. Com efeito, esta categoria é a mais importante, porque, se a Lei goza de uma certa consideração, é porque se crê este gênero de leis absolutamente indispensável à segurança do indivíduo na sociedade. São estas leis as tais que se desenvolveram a partir do núcleo de costumes úteis para as sociedades humanas e que foram exploradas pelos dominadores para sancionar o seu domínio. A autoridade dos chefes de tribo, das famílias ricas das comunas e do rei apoiava-se nas funções de juiz que exerciam; e ainda até ao presente, cada vez que se fala da necessidade do Governo, é a sua função de juiz supremo que se subentende. «Sem Governo, os homens cortariam as goelas uns aos outros», diz o pensador de aldeia. «O objectivo final de qualquer Governo é dar doze honestos jurados a cada acusado», dizia Burke.

Pois bem, apesar dos preconceitos existentes sobre este assunto, já não é sem tempo de os anarquistas dizerem com voz grossa que esta categoria de leis é tão inútil e nociva como as precedentes.

Para começar, quanto aos chamados “crimes”, aos atentados contra as pessoas, é com sabido que dois terços e frequentemente até três quartos de todos esses “crimes” são inspirados pelo desejo de alguém se apossar das riquezas pertencentes a outrem. Esta categoria imensa dos chamados “crimes e delitos” desaparecerá no dia em que a propriedade privada tiver deixado de existir.

«Mas, dir-nos-ão, haverá sempre brutos que atentarão contra a vida dos cidadãos, que desfecharão uma facada a cada querela, que vingarão a menor ofensa com um homicídio, se não houver leis para reduzi-los à impotência e penas para detê-los!». Aí está o refrão que nos cantam, mal pomos em dúvida o direito de punir da sociedade. Sobre isso há, no entanto, uma coisa hoje bem estabelecida: a severidade das punições não diminui o número dos “crimes”. Enforcai, esquartejai, se quiserdes, os assassinos, o número de assassínios não diminuirá um só. Pelo contrário, aboli a pena de morte e não haverá um assassinato a mais. Os estatísticos e os legistas sabem que nunca diminuição da severidade no código penal trouxe um aumento de atentados contra a vida dos cidadãos. Por outro lado, seja a colheita boa, esteja o pão barato, esteja o tempo bom – e o número de assassinatos diminuirá logo. Está provado pela estatística que o número de crimes aumenta e diminui, em proporção do preço dos víveres e do bom ou mau tempo. Não é que todos os assassinatos sejam inspirados pela fome. Nada disso; mas quando a colheita é boa e os víveres estão a um preço acessível, os homens mais alegres, menos miseráveis do que habitualmente, não se deixam arrastar pelas paixões sombrias e não vão enterrar a faca na barriga de um dos seus semelhantes por motivos fúteis.

Além disso, também é com sabido que o medo do castigo nunca deteve um único assassino. Todo aquele que vai matar o vizinho movido pelo desejo de vingança ou pela miséria não raciocina demasiado sobre as consequências do seu ato; e não há assassino que não tenha tido a firme convicção de que vai escapar às diligências legais. De resto, que cada um raciocine por si mesmo sobre o assunto, analise os crimes e as penas correspondentes, os motivos e as consequências deles e, se souber raciocinar sem se deixar influenciar pelas ideias feitas, chegará necessariamente a esta conclusão:

«Sem se falar já de uma sociedade em que o homem receberá uma melhor educação, onde o desenvolvimento de todas as suas faculdades e a possibilidade de usá-las lhe proporcionarão tanto prazer que ele não procurará perdê-las por causa de um assassinato – sem se falar da sociedade futura, até mesmo na sociedade atual, com estes tristes produtos da miséria que hoje vemos nos botequins das grandes cidades –, no dia em que nenhuma punição for infligida aos assassinos, o número de assassínios não registará o aumento de um único caso por tal motivo; pelo contrário, até é muito provável que tal número diminuísse, pela subtração de todos os casos que hoje são devidos aos reincidentes, embrutecidos nas prisões».

***


Falam-nos sempre dos benefícios da lei e dos efeitos salutares das penas. Mas já alguma vez se tentou fazer o balanço entre os benefícios atribuídos à Lei e às penas e o efeito degradante dessas penas sobre a humanidade? Faça-se apenas a adição de todas as más paixões despertas nos espectadores pelas punições atrozes que eram infligidas nas nossas ruas. Então quem é que cultivou e desenvolveu os instintos de crueldade no homem (instintos desconhecidos nos animais, já que o homem se tornou no animal mais cruel à face da terra), se não foram o rei, o juiz e o padre, armados de leis, que mandavam arrancar a carne viva aos pedaços, derramar pez a ferver sobre as feridas, desmembrar, triturar os ossos, serrar os homens ao meio, a fim de manterem a sua autoridade? Calcule-se apenas toda a torrente de depravação despejada nas sociedades humanas pela delação, favorecida pelos juízes e paga pelo metal sonante do Governo, com o pretexto de contribuir para a descoberta dos crimes. Vá-se até a prisão e estude-se por lá aquilo em que o homem se transforma, privado de liberdade, fechado a sete chaves com outros depravados que se impregnam de toda a corrupção e de todos os vícios que as paredes das prisões atuais ressumam; e lembre-se ao menos alguém que quanto mais são elas reformadas, mais detestáveis ficam, sendo as penitenciárias modernas e modelares cem vezes mais corruptoras que as torres de menagem da Idade Média. Tome-se, enfim, em consideração quanta corrupção, quanta depravação do espírito são mantidas na humanidade pelas ideias de obediência – essência da lei –, de castigo, de autoridade com o direito de punir, de julgar do lado de fora da consciência de cada um; assim como pelo exercício das funções de carrasco, de carcereiro, de delator – numa palavra, pelo funcionamento de todo este imenso aparelho da Lei e da Autoridade. Considere-se tudo isso e toda a gente estará certamente de acordo conosco, sempre que dissermos que a Lei e a penalidade são abominações que devem deixar de existir.

Aliás, os povos primitivos não policiados e, à partida, menos imbuídos de preconceitos autoritários compreenderam perfeitamente que aquele a quem chama “criminoso”, é muito simplesmente um infeliz; que não é questão de chicoteá-lo, de acorrentá-lo ou de fazê-lo morrer no patíbulo ou na prisão, mas que é preciso aliviá-lo pelos cuidados mais fraternos, por um tratamento igualitário, pela prática da vida entre pessoas honestas. E esperamos que a próxima revolução faça ressoar este brado:

«Queimemos as guilhotinas, deitemos por terra as prisões, escorracemos o juiz, a polícia, o delator – raça imunda, se jamais houve outra igual sobre a terra –,tratemos como um irmão aquele que tiver sido levado pela paixão a fazer mal ao seu semelhante; acima de tudo, retiremos aos grandes criminosos, a esses produtos ignóbeis do parasitismo burguês, a possibilidade de exibição das suas taras sob formas sedutoras – e tenhamos a certeza de que não teremos mais que muitos poucos crimes a assinalar na nossa sociedade. O que mantém vivo o crime (além do parasitismo) são a Lei e a Autoridade: a lei sobre a propriedade, a lei sobre o Governo, a lei sobre penas e delitos e a Autoridade que se encarrega de fazer essas leis e de aplicá-las».

Não mais leis, não mais juízes! A Liberdade, a Igualdade e a prática da Solidariedade são o único dique eficaz que, em caso de necessidade, possamos opor aos instintos antissociáveis de alguns de entre nós.


Notas:


[1] – Désiré Dalloz (1795-1869), jurista francês, autor, com o irmão Armand, de um “Repertório de Legislação, Doutrina e Jurisprudência”. Também compilou uma “Colectânea Periódica de Jurisprudência Geral”.

[2] – O autor refere-se ao período de 1789-1794 e, depois, ao de 1794-1815, ano da queda definitiva de Napoleão, após o regresso da sua permanência forçada na ilha de Elba e dos derradeiros “Cem Dias”.

[3] – É claro que Kropotkine bem sabia, autor como foi de um dos melhores livros de sempre sobre a Revolução Francesa, “A Grande Revolução (1789-1793)”, que a guilhotina só seria proposta como forma de “humanizar” a pena de morte pelo Dr. Joseph Ignace Guillotin, em 10 de Outubro de 1789, a exemplo do que já se fazia em Itália. Era uma forma de execução mais rápida e “limpa” do que a forca, a roda, a golilha do pelourinho ou o esquartejamento. A primeira decapitação legal teve lugar no dia 25 de Abril de 1792.

[4] – Já se sabe que, em tese, a responsabilidade é individual e não colectiva e que, como reza a caricatura, seria aberrante alguém responder pelo crime cometido pelo vizinho; mas, como o homem, incluindo o autor material do crime é, em boa parte, um produto da sociedade, não se pode apenas julgar o produto final, inocentando a engrenagem que o produziu. Além disso, com esta auto-responsabilização de todos, livremente assumida e não imposta, a todos se estendia de maneira não elitista a tão badalada “ética da responsabilidade”…

[5] – Frase atribuída a Luís XIV (1638-1715), “O Grande”, “O Rei Sol”, já depois dele ter domesticado a nobreza e transferido a Corte para Versalhes, porque sempre desconfiara de Paris…

[6] – O autor refere-se à Constituição de 1791 (Monarquia parlamentar), à de 1793 (Governo da Convenção), à de 1795 (Diretório), à de 1799 (Consulado), à de 1802 (Consulado vitalício), à de 1804 (Primeiro Império), à de 1814 (senatorial), à Carta Constitucional de 1814 (restauração monárquica), ao Ato adicional à Constituição do Império de 1815, à Carta Constitucional de 1830, à Constituição de 1848 (2ª República), à de 1852 (2º Império e Monarquia cesarista), à de 1870 (2º Império liberal), à de 1875 (3ª República). Já depois da morte de Kropotkine, a França ainda conheceria a Constituição de 1946 (4ª República) e a de 1958 (5ª República). E entre todas estas datas ainda houve revises e ajustes…

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