quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Sínteses de Spinoza: O primeiro gênero de conhecimento como faculdade de imaginar e a servidão ao imaginário

Em primeiro lugar, é necessário destacar que, para Spinoza, a mente humana é a ideia do corpo assim como o corpo é o ideado da mente (Ética, Parte 2, prop. 13). Neste caso, o primeiro gênero de conhecimento que se tem começa com as afecções do corpo singular do ser humano com outros corpos singulares. Para fins didáticos, diremos (DELEUZE, 1997, pp. 156-157) que a modificação de um corpo no espaço pelo encontro é a afecção (efeito de causas exteriores) e a modificação do mesmo no tempo de sua duração existencial é o afeto (um efeito sobre seu esforço de existência, isto é, conatus). Spinoza chama de consciência o conhecimento das modificações que envolvem essas afecções, das passagens de um estado corpóreo a outro, em decorrência dos encontros com outros modos de existência.

O primeiro gênero de conhecimento é conceituado por Spinoza na seguinte passagem da Ética (Parte 2, prop. 17, esc.): “chamaremos de imagens das coisas as afecções do corpo humano, cujas idéias nos representam os corpos exteriores como estando presentes, embora elas não restituam as figuras das coisas. E quando a mente considera os corpos dessa maneira, diremos que ela os imagina”.

Segundo Spinoza, o conhecimento inadequado das coisas consiste em restringir-se ao conhecimento imaginário. É mister acrescentar que “a mente não erra por imaginar, mas apenas enquanto é considerada como privada da idéia que exclui a existência das coisas que ela imagina como lhe estando presentes” (Ética, Parte 2, prop. 17, esc.). Ou seja, a imaginação é um poder da mente, mas quando não atribuímos à nossa capacidade imaginativa as imagens das coisas que consideramos presentes e sim à natureza desses corpos exteriores, então estamos sucetíveis a atribuir-lhes causas imaginárias, uma vez que confundimos as causas pelas quais estes modos de existência exteriores nos afetam com a imagem que temos deles.

Em outras palavras: têm-se um conhecimento daquilo que foi apreendido pela experiência vaga como, por exemplo, uma pessoa que passa a saber que o fogo queima apenas porque se queimou ao colocar a mão sobre ele. No caso do exemplo, a pessoa apenas se lembra dessa afecção do seu corpo com as chamas, mas não entende a causa do efeito da queimadura que sofreu, isto é, qual a relação de (de)composição que se estabelece no encontro entre a natureza do fogo e a natureza de seu corpo. O primeiro gênero do conhecimento é, portanto, um conhecimento das consequências separado das suas premissas ou, o que dá no mesmo, dos efeitos sem suas causas (Ética, Parte 2, prop. 28).

As formas pelas quais variam nossa forma de experimentar as afecções com outros modos de existência são as sensações e as percepções (sentimos calor por sermos aquecidos por algo, percebemos a distância que uma estrada percorrendo sua extensão, etc.). Ambas indicam a natureza do corpo afetado (neste caso, nós enquanto experimentamos um encontro da qual decorre a afecção determinada) e envolvem apenas a natureza do corpo afetante (uma vez que é uma causa exterior sobre nós que gera nossas sensações e percepções). Essas impressões do corpo no momento atual de sua duração são chamadas de sentidos.

A imaginação, quando associada aos nossos afetos paixões, segundo uma interpretação que utilizaremos (DELEUZE, 1997, pp. 156-171), pode ser entendida como um conhecimento baseado em “signos escalares”. Um signo é sempre um efeito, ou seja, uma variação de algo determinada por uma causa.

Neste sentido, nossa servidão às paixões equacionada com nossa restrição ao primeiro gênero de conhecimento é traduzida pelos conjuntos de signos que podemos enquadrar da seguinte maneira (DELEUZE, 1997, p. 157):

  • Físicos sensoriais ou perceptivos: “envolvem tão-somente a natureza de sua causa, são essencialmente indicativos e indicam nossa própria natureza mais do que outra coisa” (já demos exemplos acima sobre eles).
   • Abstrativos: generalizações em termos universais (como “o homem é um animal racional”) a partir de qualidades selecionadas por semelhança e dessemelhança.
    • Imperativos: tomar o efeito pela causa (como, por exemplo, considerar que a “finalidade” do Sol é aquecer, pois o efeito dele sobre nós é o calor). Algo “deveria ser assim” ou “foi feito para ser assim” são algumas de suas rubricas. O imperativo é, neste sentido, um efeito moral.
   • Hermenêuticos ou interpretativos: são efeitos imaginários, onde as sensações e percepções da existência podem levar à imagem de um ser suprassensível como fim último da mesma e, inversamente, são figurados como a imagem ampliada de algo que nos afeta (Deus como sol infinito ou Legislador, por exemplo).

Respectivamente: “Ha portanto quatro signos escalares de afecção, que poderiam denominar-se: as índices sensíveis, os ícones lógicos, os símbolos morais, os ídolos metafísicos” (Idem).

Agora deixemos que o próprio Spinoza argumente sobre a questão da “falsidade”. Ética, Parte II:

Proposição 35. A falsidade consiste na privação de conhecimento que as idéias inadequadas, ou seja, mutiladas e confusas, envolvem.

Demonstração: Não há, nas idéias, nada de positivo que constitua a forma da falsidade (…) . Ora, a falsidade não pode consistir na privação absoluta (pois se diz que erram ou se enganam as mentes, mas não se diz o mesmo a respeito dos corpos), nem tampouco na ignorância absoluta, pois ignorar e errar são coisas diferentes. A falsidade consiste, portanto, na privação de conhecimento que o conhecimento inadequado das coisas – ou seja, as idéias inadequadas e confusas – envolve.

Escólio: Expliquei (…) por qual razão o erro consiste na privação de conhecimento. Mas para explicar melhor essa questão, darei um exemplo. Os homens enganam-se ao se julgarem livres, julgamento a que chegam apenas porque estão conscientes de suas ações, mas ignoram as causas pelas quais são determinados. É, pois, por ignorarem a causa de suas ações que os homens têm essa ideia de liberdade. Com efeito, ao dizerem que as ações humanas dependem da vontade estão apenas pronunciando palavras sobre as quais não têm a mínima ideia. Pois, ignoram, todos, o que seja a vontade e como ela move o corpo. Os que se vangloriam do contrário, e forjam sedes e moradas para a alma, costumam provocar o riso ou a náusea. Assim, quando olhamos o sol, imaginamos que ele está a uma distância aproximada de duzentos pés, erro que não consiste nessa imaginação enquanto tal, mas em que, ao imaginá-lo, ignoramos a verdadeira distância e a causa dessa imaginação. Com efeito, ainda que, posteriormente, cheguemos ao conhecimento de que ele está a uma distância de mais de seiscentas vezes o diâmetro da Terra, continuaremos, entretanto, a imaginá-lo próximo de nós. Imaginamos o sol tão próximo não por ignorarmos a verdadeira distância, mas porque a afecção de nosso corpo envolve a essência do sol, enquanto o próprio corpo é por ele afetado.



Referências:



DELEUZE, Gilles. Spinoza e as três “Éticas”. In: _____. Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997.

SPINOZA, Baruch. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

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