sexta-feira, 22 de maio de 2020

A vida e a ciência no pensamento de Mikhail Bakunin (extratos)


Observações preliminares: os trechos que selecionamos foram extraídos de O Império Knuto-Germânico e a Revolução Social, uma obra de Mikhail Bakunin que nunca foi concluída, publicada postumamente nos meios libertários a partir da edição e organização de seus manuscritos. Trata-se de um compilado de anotações em que o autor escreve suas concepções sobre a humanidade, a Natureza, dentre outras coisas, no quadro de uma reflexão mais ampla sobre o socialismo (no que diz respeito às necessidades da revolução social).

Publicaremos aqui esses extratos, pois são importantes contribuições onto-epistemológicas que Bakunin legou ao movimento anarquista. Além disso, possuem uma crítica muito contundente à intelligentsia, no que diz respeito às pretensões autoritárias desta.

A Vida e as Ideias Gerais:


Segundo Mikhail Bakunin: “A vida domina o pensamento e determina a vontade” (BAKUNIN, 2014, p. 202, grifos originais). Partindo dessa premissa, ele conclui que é um absurdo tentar subordinar a vida através da vontade de um “governo de cientistas” na forma de intelectuais alienados da coletividade. Vejamos, portanto, como Bakunin constrói sua crítica aos positivistas e ideólogos cientificistas no geral:

“A ideia geral é sempre uma abstração, e por isto mesmo, de certa forma, uma negação da vida real. Constatei no Apêndice esta propriedade do pensamento humano, e consequentemente da ciência também, de conseguir apreender e nomear, nos fatos reais, apenas seu sentido geral, suas relações gerais, suas leis gerais; numa palavra, o que é permanente em suas transformações contínuas, mas nunca de seu lado material, individual, e, por assim dizer, palpitante de realidade e de vida, mas por isto mesmo fugitivo e inapreensível. A ciência compreende o pensamento da realidade, e não a realidade em si; o pensamento da vida, e não a vida. Eis o seu limite, o único limite realmente intransponível para ela, porque se funda na própria natureza do pensamento humano, que é o único órgão da ciência.

Sobre esta natureza fundam-se os direitos incontestáveis e a grande missão da ciência, mas também sua impotência vital e até sua ação maléfica, todas as vezes que, através de seus representantes oficiais, patenteados, se arroga o direito de governar a vida. A missão da ciência é esta: constatando as relações gerais das coisas passageiras e reais, reconhecendo as leis gerais que são inerentes ao desenvolvimento dos fenômenos tanto do mundo físico quanto do mundo social, planta, por assim dizer, as balizas imutáveis da marcha progressiva da humanidade, indicando aos homens as condições gerais cuja observação rigorosa é necessária e cuja ignorância ou esquecimento serão sempre fatais. Numa palavra, a ciência é a bússola da vida; mas não é a vida. A ciência é imutável, impessoal, geral, abstrata, insensível, como as leis, das quais ela não é nada além da reprodução ideal, refletida ou mental, ou seja, cerebral (para que nos lembremos que a própria ciência é apenas um produto material de um órgão material da organização material do homem, do cérebro). A vida é toda fugitiva e passageira, mas também toda palpitante de realidade e de individualidade, de sensibilidade, de sofrimentos, de alegrias, de aspirações, de necessidades e de paixões. É só ela que, espontaneamente, cria as coisas e todos os seres reais. A ciência não cria nada, constata e reconhece, somente, as criações da vida. E todas as vezes que os homens da ciência, saindo de seu mundo abstrato, se metem no mundo real através de criações vivas, tudo o que propõem ou que criam é pobre, ridiculamente abstrato, privado de sangue e de vida, natimorto, igual ao homunculus criado por Wagner, o discípulo pedante do imortal doutor Fausto. Resulta disto que a ciência tem por missão única esclarecer a vida, e não governá-la.

O governo da ciência e dos homens de ciência, mesmo que se chamem positivistas, discípulos de Auguste Comte, ou até discípulos da Escola doutrinária do comunismo alemão, só pode ser impotente, ridículo, inumano, cruel, opressivo, explorador, maléfico. Podemos dizer dos homens de ciência, enquanto tais, o que eu falei dos teólogos e dos metafísicos: não têm sentidos nem coração para os seres individuais e vivos. Nem podemos nos queixar disto para eles, pois é a consequência natural de seu ofício. Enquanto homens de ciência, só se preocupam, só podem interessar-se pelas generalidades; só pelas leis” (BAKUNIN, 2014, pp. 291-292, sublinhados nossos).

Depois de uma falha de duas folhas no manuscrito (aparentemente perdidas), Bakunin ainda continua desenvolvendo esse problema:

Em sua organização atual, monopolistas da ciência, mantendo-se, enquanto tais, fora da vida social, os sábios formam, certamente, uma casta à parte, que oferece muita analogia com a casta dos sacerdotes. A abstração científica é seu Deus, as individualidades vivas e reais são as vítimas, e eles são os imoladores consagrados e patenteados destas.

A ciência não pode sair da esfera das abstrações. Deste ponto de vista, ela é infinitamente inferior à arte, que também só mexe, propriamente, com tipos gerais e situações gerais, mas que, por um artifício que lhe é próprio, sabe encarná-los em formas que, mesmo não sendo vivas, no sentido da vida real, não deixam de provocar, na nossa imaginação, o sentimento ou a lembrança desta vida; ele individualiza, de certa forma, os tipos e as situações que concebe, e, através destas individualidades sem carne e sem osso, e, enquanto tais, permanentes ou imortais, que ela tem o poder de criar, lembra-nos as individualidades vivas, reais, que aparecem e que desaparecem à nossa vista. A arte é, pois, de certa forma, a volta da abstração à vida. A ciência é, ao contrário, a imolação perpétua da vida fugitiva, passageira, mas real, sobre o altar das abstrações eternas.

A ciência é tão pouco capaz de apreender a individualidade de um homem quanto a de um coelho. Ou seja, ela é tão indiferente para uma quanto para a outra. Não é que ela ignore o princípio da individualidade. Ela a concebe perfeitamente como princípio, mas não como fato. Ela sabe muito bem que todas as espécies animais, inclusive a espécie humana, tem existência real apenas num número indefinido de indivíduos que nascem e que morrem, dando lugar a indivíduos novos igualmente passageiros. Ela sabe que, à medida que nos elevamos das espécies animais às espécies superiores, o princípio da individualidade determina-se mais, os indivíduos aparecem mais completos e mais livres. (…) Ela sabe, quando não está viciada pelo doutrinarismo teológico, metafísico ou, político e jurídico, ou até mesmo por um orgulho estreitamente científico, e quando não está surda aos instintos e às aspirações espontâneas da vida, ela sabe, e eis sua última palavra, que o respeito do homem é a lei suprema da humanidade, e que o grande, o verdadeiro fim da história, o único legítimo, é a humanização e a emancipação, é a liberdade real, a prosperidade real, a felicidade de cada indivíduo que viva na sociedade. Pois, no fim das contas, a não ser eu se recaia na ficção liberticida do bem público representado pelo Estado, ficção ainda fundada na imolação sistemática das massas populares, é preciso reconhecer que a liberdade e a prosperidade coletivas só são reais quando representam a soma das liberdades e das prosperidades individuais.

A ciência sabe tudo isto, mas não vai, não pode ir além. Como a abstração constitui sua própria natureza, pode muito bem conceber o princípio da individualidade real e viva, mas não pode ter nada a ver com os indivíduos reais e vivos. Ela preocupa-se com os indivíduos em geral, mas não com Pedro ou José, não de tal ou qual outro indivíduo, que só existem, que só podem existir para ela. Os indivíduos dela são, mais uma vez, apenas abstrações.

Entretanto, não são estas individualidades abstratas, são os indivíduos reais, vivos, passageiros, que fazem história. As abstrações não têm pernas para andar, só andam quando são carregadas por homens reais. Para estes seres reais, compostos, não somente em ideia, mas realmente de carne e sangue, a ciência não tem coração. Ela considera-os, no máximo, como carne para desenvolvimento intelectual e social. O que quer saber das condições particulares e da sorte fortuita de Pedro e de José? Ela iria tornar-se ridícula, abdicaria e iria aniquilar-se, se quisesse se preocupar destas, a não ser como um exemplo para apoiar suas teorias (…). Ela não consegue apreender o concreto; só consegue se mexer nas abstrações. Sua missão é preocupar-se com a situação e as condições gerais da existência e do desenvolvimento da espécie humana em geral, ou de tal raça, de tal povo, de tal classe ou categoria de indivíduos; com as causas gerais de sua prosperidade ou de sua decadência, e com os meios gerais para fazê-las avançar em todo tipo de progresso. Com a condição de cumprir larga e racionalmente esta demanda, terá cumprido todo o seu dever, e seria realmente ridículo e injusto pedir-lhe mais” (BAKUNIN, 2014, pp. 293-295, grifos originais, sublinhados nossos).

Não obstante, Bakunin reconhece a importância da ciência, ao afirmar que: “Tudo o que temos direito de exigir dela [da ciência] é que nos indique, com uma mão firme e fiel, as causas gerais dos sofrimentos individuais – e entre estas causas ela não esquecerá, sem dúvida, a imolação e a subordinação, infelizmente ainda costumeiras demais, indivíduos vivos às generalidades abstratas; e que ao mesmo tempo nos mostre as condições gerais necessárias à emancipação real dos indivíduos que vivem na sociedade. Eis a sua missão, eis também os seus limites, além dos quais a ação da ciência social só saberia ser impotente e funesta. Pois além destes limites começam as pretensões doutrinárias e governamentais de seus representantes patenteados, de seus sacerdotes. E já está mais do que na hora de acabar com todos os papas e sacerdotes: não os queremos, mesmo que se chamem democratas socialistas” (BAKUNIN, 2014, p. 297, grifos originais).

Qual a solução que ele propõem para a “antinomia” entre ciência (ideias gerais, portanto, abstrações sobre as tendências desenvolvimento das condições) e “vida concreta” (as individualidades vivas que fazem a história) que ele descreveu acima? Seguindo o princípio de que as condições de resolução de um problema nascem do próprio problema, Bakunin afirma que:

“Por um lado, a ciência é indispensável à organização racional da sociedade; por outro lado, sendo incapaz de se interessar ao que é real e vivo, não deve se meter na organização real ou prática da sociedade.

Esta contradição só pode ser resolvida de uma única maneira: a liquidação da ciência enquanto ser moral existente fora da vida social de todo mundo, e representado, enquanto tal, por um corpo de sábios patenteados, e sua difusão nas massas populares. A ciência, sendo chamada, a partir de agora, a representar a consciência coletiva da sociedade, deve realmente tornar-se propriedade de todo mundo. Através disto, sem perder nada de seu caráter universal, do qual nunca poderá desligar-se, sob pena de deixar de ser a ciência, e continuando a se preocupar exclusivamente com as causas gerais, com as condições gerais e com as relações gerais dos indivíduos e das coisas, vai fundar-se no fato com a vida imediata e real de todos os indivíduos humanos. Será um movimento análogo ao que fez dizer aos protestantes, no começo da Reforma religiosa, que não havia mais necessidade de padres, cada homem tornando-se, a partir daí, seu próprio padre, cada homem, graças à intervenção invisível, única, de Nosso Senhor Jesus Cristo, tendo enfim conseguido engolir seu bom Deus. Mas aqui não se trata nem de Nosso Senhor Jesus Cristo nem do bom Deus, nem da liberdade política, nem do direito jurídico, todas estas coisas tendo sido teológica ou metafisicamente reveladas, e todas sendo igualmente indigestas, como sabemos. O mundo das abstrações científicas não é revelado; ele é inerente ao mundo real, do qual é apenas a expressão e a representação geral ou abstrata. Enquanto ele forma uma região separada, representada especialmente pelo corpo dos sábios, este mundo ideal ameaça tomar-nos, em relação ao mundo real, o lugar do bom Deus, e de reservar aos seus representantes patenteados o ofício dos padres. É por isto que, através da instrução geral, igual para todos e para todas, é preciso dissolver a organização social separada da ciência; afim de que as massas, deixando de ser rebanhos conduzidos e tosados por pastores privilegiados, possam tomar, a partir de então, seus próprios destinos históricos nas mãos.

Mas enquanto as massas não tiveram chegado a este grau de instrução, será preciso que se deixem governar por homens da ciência? Deus queira que não! Seria melhor, para elas, deixar de lado a ciência do que permitir que sejam governadas por sábios. O governo dos sábios teria, como primeira consequência, tornar a ciência inacessível ao povo e seria necessariamente um governo aristocrático, pois a instituição atual da ciência é uma instituição aristocrática. A aristocracia da inteligência! Do ponto de vista prático, a mais implacável, e do ponto de vista social, a mais arrogante e a mais insultante: tal seria o poder constituído em nome da ciência. Este regime seria capaz de paralisar a vida e o movimento na sociedade. Os sábios, sempre presunçosos, sempre vaidosos, e sempre impotentes, gostariam de se meter em tudo, e todas as fontes da vida iriam secar sob o sopro abstrato e sábio destes.

Mais uma vez, a vida, e não a ciência, cria a vida: só a ação espontânea do próprio povo pode criar a liberdade popular. Sem dúvida, seria muito feliz que a ciência pudesse, a partir de hoje, esclarecer a marcha espontânea do povo rumo à sua emancipação. Porém, mais vale a ausência de luz do que uma falsa luz, acendida parcimoniosamente de fora, com o objetivo evidente de fazer o povo se perder. Além disto, o povo não carecerá de luz, em absoluto. Não é em vão que um povo percorreu uma longa carreira histórica e que pagou seus erros através de séculos de sofrimentos horríveis. O resumo prático destas dolorosas experiências constitui uma espécie de ciência tradicional que, sob certos ângulos, vale tanto quanto a ciência teórica. Enfim, uma parte da juventude estudiosa, aqueles, entre os burgueses estudiosos, que sentirem em si ódio o bastante contra a mentira, contra a hipocrisia, contra a iniquidade e contra a covardia da burguesia, para encontrar neles mesmos a coragem de virar as costas a esta, e paixão suficiente para abraçar sem reserva a causa justa e humana do proletariado, estes serão, como eu já disse, os instrutores fraternos do povo; levando-lhe os conhecimentos que ainda lhe faltam, tornarão perfeitamente inútil o governo dos sábios.

Se o povo deve se preservar do governo dos sábios, com mais razão deve prevenir-se contra aquele dos idealistas inspirados. Quanto mais estes crentes e estes poetas do céu são sinceros, mais perigosos se tornam. A abstração científica, eu disse, é uma abstração racional, verdadeira em sua essência, necessária à vida, da qual é a representação teórica, a consciência. Ela pode, ela deve ser absorvida e digerida pela vida. A abstração idealista, Deus, é um veneno corrosivo que destrói e decompõe a vida, que a falseia e a mata. O orgulho dos idealistas não sendo pessoal, mas um orgulho divino, é invencível e implacável. Ele pode, ele deve morrer, mas não cederá nunca, e, enquanto ainda lhe restar um suspiro, ele tentará subjugar o mundo sob os pés de seu Deus, como os tenentes da Prússia, estes idealistas práticos da Alemanha, gostariam de vê-lo sendo esmagado sob a bota esporeada do rei deles. É a mesma fé – seus objetos nem são muito diferentes – e o mesmo resultado da fé, a escravidão” (BAKUNIN, 2014, pp. 297-299, grifo original, sublinhados nossos).


Referência:


FERREIRA, Andrey Cordeiro; TONIATTI, Tadeu Bernardes de Souza. De baixo para cima e da periferia para o centro: textos políticos, filosóficos e de teoria sociológica de Mikhail Bakunin. Niterói: Alternativa, 2014 (Volume I – Coleção Pensamento Insurgente).

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