domingo, 26 de abril de 2020

Ensaio de análise de conjuntura político-econômica sobre as implicações da pandemia

Mapa da pandemia do novo coronavírus do Google, disponível em: https://news.google.com/covid19/map?hl=pt-BR&gl=BR&ceid=BR:pt-419


Resumo: nesse texto buscamos trazer elementos de política econômica para o debate acerca das condições conjunturais postas pelo efeito multiplicador da pandemia do novo coronavírus.

Observação: caso não seja possível enxergar o conteúdo das imagens, recomendamos clicar nelas para ampliar o tamanho destas.

1. Introdução:


Em nosso texto, publicado em 10 de abril, “sobre possíveis implicações sociais do novo coronavírus”, afirmamos o seguinte: “Em síntese: do lado do ‘salvamento de vidas’ está também a política econômica anticíclica e, portanto, o partido social-democrata de administração da acumulação capitalista”. Neste sentido, consideramos que a teoria econômica heterodoxa (Keynes) é um instrumento de administração da crise pelos capitalistas e será utilizado por uma ala mais intervencionista de seus quadros.

O objetivo desse texto é desenvolver esse argumento específico de acordo com o cenário que se configura atualmente, com destaque na conjuntura brasileira, situando-a na dinâmica que conseguimos apreender da situação mais geral do modo de produção capitalista (ou seja: da “economia global”).

2. FMI antes do novo coronavírus (SARS-CoV-2):


No dois últimos anos (2018-2019), antes de qualquer indício da pandemia atual que assola o mundo, o Fundo Monetário Internacional (FMI) fazia os seguintes alertas acerca de uma possível crise financeira (buscamos ilustrar com os prints abaixo):

FERNÁNDEZ, David. Bomba da dívida mundial ameaça explodir. El País, 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/08/economia/1528478931_493457.html>, publicada em: 13 jun 2018.

ESTADÃO CONTEÚDO. FMI não prevê recessão global, mas alerta para risco de crise. Exame, 2019. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/economia/fmi-nao-preve-recessao-global-mas-alerta-para-risco-de-crise/>, publicada em 24 jan 2019.


AGÊNCIA ESTADO. FMI alerta para o risco de uma crise financeira. InfoMoney, 2019. Disponível em: <https://www.infomoney.com.br/economia/fmi-alerta-para-o-risco-de-uma-crise-financeira/>, publicada em: 17 out 2019.

A situação que já se desenhava era de desaceleração do crescimento econômico devido à crescente expansão dos endividamentos, tanto corporativos quanto públicos. O “receituário” do FMI ainda era a política fiscal de austeridade e a linha de “livre comércio” de acordo com a reunião do G20 do ano de 2019.

Chama atenção a seguinte opinião compartilhada por Christine Lagarde (diretora-geral do FMI até setembro de 2019) e o Fórum Econômico de Davos acerca do envelhecimento da população e das mudanças climáticas. Os integrantes da reunião “concordaram em apontar o envelhecimento da população e a mudança climática como os maiores perigos para o crescimento global” [1].

Fica evidente, portanto, que “longevidade” nesse modo de produção destrutivo significa um “risco econômico” e que as consequências de seu próprio processo explorador dos “recursos” possuem um efeito retroativo sobre sua reprodução ampliada. Em outras palavras: o progresso em contradição com o envelhecimento e com os efeitos de sua própria dinâmica.

Uma vez que essas continuavam sendo as posições desse órgão que exprime os interesses do setor financeiro, as prioridades ainda eram implementar em todos os estados a reforma da previdência d prosseguir com os “ajustes fiscais”. Em outra ocasião comentaremos as propostas do Capital diante das consequências ambientais de sua própria existência.

3. O FMI diante das condições postas pela Pandemia e uma breve retomada histórica das crises de 1929 e 2008/2009:


Diante da brusca interrupção das atividades econômicas no mundo inteiro com a pandemia do novo coronavírus, temos novas projeções do FMI e uma mudança nas suas orientações. No dia 14 de abril desse ano (2020), o Fundo Monetário Internacional publicou um relatório que prevê uma retração de 3% na economia global [2]. Esta projeção, caso confirmada, representaria a maior recessão mundial desde a Grande Depressão de 1929.

Na imagem abaixo temos as projeções de desempenho do relatório mencionado numa perspectiva comparativa. Extraímos esse quadro de uma notícia do jornal da RBS:

VIECELI, Leonardo. FMI prevê maior recessão mundial desde 1929; entenda os impactos no Brasil. GaúchaZH (ClicRBS), 2020. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/economia/noticia/2020/04/fmi-preve-maior-recessao-mundial-desde-1929-entenda-os-impactos-no-brasil-ck90frm30032q01qw75wq7a2d.html>, publicada em: 14 abr 2020.

Os noticiários costumam comparar esse decréscimo no PIB com as crises de 29 e de 2008/2009. Consideramos que é importante a perspectiva comparativa, mas não apenas na questão dos dados acerca da variação do crescimento econômico, mas também nas demais implicações históricas que acompanharam essas mudanças na acumulação de capital.

Entre 1929-1933, “o desvio do PIB mundial do seu trend [tendência] chegou a se aproximar de 12%. Entre 1929 e 1932-1933, o PIB caiu 30% nos Estados Unidos, 15% na América Latina, 9% na Europa, 5% na Itália. Permaneceu estável na União Soviética e na Ásia. No mundo, o nível de 1932 era 17% inferior ao de 1929” (CIOCCA, 2009, p. 82).

Nos EUA, epicentro da Grande Depressão, ocorreu uma mudança significativa de política econômica. Trata-se do New Deal: uma série de programas implementados nos Estados Unidos entre 1933 e 1937, sob o governo do presidente Franklin Delano Roosevelt.

Resumidamente, os componentes do projeto eram: (I) investimento maciço em obras públicas: o governo investiu US$ 4 bilhões (valores não corrigidos pela inflação) em infraestrutura, gerando milhões de novos empregos; (II) queima dos estoques de gêneros agrícolas, como algodão, trigo e milho, a fim de conter a queda de seus preços; (III) intervenção do Estado no controle sobre os preços e a produção, para evitar a superprodução na agricultura e na indústria; e (IV) diminuição da jornada de trabalho, com o objetivo de abrir novos postos.

O mais importante nessa política econômica é seu caráter anticíclico, uma vez que buscava reverter a situação de depressão econômica e decadência nos investimentos privados com investimentos públicos que gerassem emprego e, consequentemente, mantinham os mercados funcionando. Portanto, foi importante para manter a acumulação de capital em funcionamento.

Fonte: (FRANCO JR; ANDRADE FILHO, 1993, p. 70).

É necessário destacar que tal política econômica centra-se no Trabalho como um dos polos da contradição que se exprime na unidade dialética do Capital-Trabalho (que constitui a reprodução do modo de produção capitalista). No texto do GCI que publicamos aqui no blog é possível compreender adequadamente essa equação, portanto sugerimos como leitura complementar: COMUNISMO No.3 - CONTRA O TRABALHO (Janeiro 2000).

Esse programa aplicava, em grande parte, as exigências do partido capitalista da social-democracia. Para uma discussão sobre a dinâmica específica deste partido e seus interesses, veja nosso documento sobre essa questão: A formação histórica do partido social-democrata.

No que diz respeito à “Crise de 2009”, apresentamos um estudo publicado pelo IPEA, que nos oferece os seguintes resultados:

Fonte: (PINTO, 2011, p. 14).

A profundidade e a amplitude da crise ficaram evidentes em virtude dos seus impactos na economia mundial. Todos os países foram atingidos pela crise, o que se refletiu na queda mundial do nível de atividade econômica (o PIB mundial apresentou variação negativa de 0,6, em 2009 […]), do nível de emprego, do fluxo de comércio (o volume do comércio caiu 10,7%, em 2009 […]) e dos investimentos (a taxa de investimento mundial contraiu-se quase 10%, de 23,7% do PIB, em 2008, para 21,4% do PIB, em 2009 – como demonstra o gráfico 1) (PINTO, 2011, p. 23).

Também nessa crise, a resposta em termos de política econômica, pelo menos no caso brasileiro, foi anticíclica, como observado nesse outro estudo: As políticas anticíclicas brasileiras da crise financeira de 2008.

Mas qual era o receituário do FMI nessa ocasião? Continuava sendo neoliberal, nos moldes que afirmamos na seção 2 desse ensaio.

Qual o receituário atual do FMI? Primeiro, é necessário considerar que as projeções desse órgão do capital financeiro apontam para uma variação negativa de 3% do PIB em média global, algo que é mais do que 300% superior à queda que ocorreu com a crise de 2008/2009 (que foi de 0,6%). Neste caso, esse órgão apresentou uma ruptura evidente em termos de orientação das políticas econômicas necessárias para responder aos efeitos da pandemia que multiplicaram os já mencionados indícios de uma nova crise financeira. As seguintes medidas [3] foram exigidas: 1) os governos devem gastar “o que for necessário” para manter a sobrevivência das pessoas e 2) “o FMI aponta a necessidade de os Estados participarem ativamente para proteção da população e empresas”, ou seja, defende explicitamente uma política intervencionista.

Antes dessas análises e projeções, a presidente da Comissão Européia, Ursula von der Leyen, havia anunciado no dia 20 de março a ativação da cláusula de salvaguarda do Pacto de Estabilidade e Crescimento, um documento da União Européia que determina as diretrizes orçamentárias para os países do bloco.

Com isso, nas palavras de Von der Leyen, os Estados-membros poderão “bombear [dinheiro] na economia o quanto for necessário”. “Estamos relaxando as regras orçamentárias para permitir que eles façam isso”, declarou a líder do poder Executivo da União Europeia (IstoÉ, 2020).

Von der Leyen também chegou a afirmar [4] que a Europa precisaria de um “novo Plano Marshall”. Nas palavras dela: “Precisamos de investimentos maciços, tanto públicos como privados, para reativar a economia, reconstruí-la e criar novos empregos” (Valor Econômico, 2020).

Em síntese: podemos dizer que o efeito multiplicador da pandemia do novo coronavírus acelerou um processo de mudanças na política econômica dos países que compõem o modo de produção capitalista. Essas mudanças não significam (de nenhuma forma) que o coronavírus teria dado “Um golpe letal no capitalismo para reinventar a sociedade”, como pensam alguns ideólogos da social-democracia. Esse tipo de discurso apologético já foi denunciado por nós aqui:

alguns setores sociais-democratas estão meio entusiasmados com o que chamam de “morte do neoliberalismo”, dado que essa conjuntura pode ser decisiva para esse partido do capital assumir a gestão da acumulação novamente e determinar uma linha desenvolvimentista de gerenciamento do capitalismo (Communismo Libertário, 2020).

4. Conjuntura da política econômica brasileira:


Aqui no blog, já mencionamos o tal do “Orçamento de Guerra” em processo de aprovação nesse período de calamidade pública diante da pandemia do novo coronavírus. Essa é a resposta mais imediata diante da “CoronaCrise”. Vejamos, agora, que programa político econômico se projeta para a “recuperação da economia”.

Como já é amplamente sabido, temos um governo composto por vários militares:

MONTEIRO, Tânia; FRAZÃO, Felipe. Quem é Braga Netto: conheça o currículo do novo ministro da Casa Civil. O Estado de S.Paulo, 2020. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,novo-ministro-da-casa-civil-braga-netto-foge-dos-holofotes,70003195109>, publicada em: 12 fev 2020.

Vale lembrar que os militares brasileiros tem sido a ponta de lança das transformações ditas “modernizantes” nesse país (de forma autocrática, como geralmente acontece em países de “capitalismo tardio”). Mas não podemos negar o quanto as intervenções militares só se tornaram possíveis em situações de crise do poder das classes dominantes (que recorrem a eles em última instância).

Em breve recapitulação da história brasileira, podemos sinalizar os seguintes eventos: são os militares que “proclamam” a República (isto é, dão um golpe), ao destituírem Dom Pedro II. Após isso, os dois primeiros governos republicanos (os “da espada”, como diz nossa historiografia) são militares: Deodoro e Floreano. Não obstante, o projeto modernizante dos milicos entra em contradição com os interesses dos cafeicultores paulistas, portanto eles logo são substituídos pela política do café com leite (paulista-mineira).

Não obstante, na República Velha aparecem outras contestações militares do regime (ainda que por pessoas de baixa categoria hierárquica), vindas dos tenentes (movimento tenentista). Os militares também apoiaram Vargas em toda a sua “Era” (contribuindo com seus golpes), até que estes mesmos militares acabam retirando este do poder (golpe de novo), a despeito do “queremismo” populista.

O primeiro a ser posto no poder durante o período democrático é um militar: Dutra. E quando Vargas retorna ao poder como presidente eleito, há toda uma agitação militar golpista contra ele, mas que será postergada para 10 anos mais tarde, devido às repercussões do suicídio. Até que em 1964 temos novamente um golpe, mas dessa vez os milicos vieram pra ficar (mais de duas décadas no poder).

A própria transição para a volta da democracia no Brasil foi articulada por militares, como, por exemplo, o general estrategista Golbery do Couto e Silva e seu programa de “distensão lenta, gradual e segura”.

Na questão econômica é importante destacar que os militares fizeram escola no nacional-desenvolvimentismo e possuem uma doutrina de proteção dos chamados “setores estratégicos” (petróleo, energia hidroelétrica, infraestrutura, etc.) que permanece sendo um fator de influência nas suas decisões (como havia sido no processo de substituição de importações).

A partir dessas considerações, podemos compreender que o cenário brasileiro que se projeta está tendencialmente mais orientado a ampliar sua direção conservadora e autoritária, mas com uma contração (provavelmente temporária) da política fiscal neoliberal.

O general Walter Souza Braga Netto (atual ministro da Casa Civil) [5] está na frente do processo que nos referimos. A proposta que este militar se encarregou de coordenar recebeu o nome de “Pró-Brasil” e busca adotar uma linha de política econômica anticíclica aos moldes do New Deal (mas que eles insistem em comparar com o Plano Marshall).

A avaliação na equipe que trabalha na elaboração do plano é que realizar um conjunto de investimentos [públicos] em infraestrutura e inovação pode auxiliar no momento pós-crise. Seriam rodovias, ferrovias, residências outras obras de infraestrutura que, na visão do governo, ajudariam a gerar emprego e renda no curto prazo e alavancar o potencial de crescimento da economia no longo prazo.
(…)
O plano teria caráter plurianual (…). O ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, quer algo para “uns 30 anos” (TOMAZELLI, 2020).

Isso provavelmente terá implicações na composição do governo. O próprio Braga Netto assumiu com a saída de Onyx Lorenzoni. Essa troca já havia sido sintomática, uma vez que evidencia que a confiança e articulação do governo reside nas forças militares que o apoiam. Os atritos envolvendo à saída de Sérgio Moro também demonstram como o bolsonarismo é intransigente com as demais alas da política burguesa. Portanto, Paulo Guedes é um forte candidato como o próximo ministro que pode ser “convidado a se retirar”.

5. Dívidas:


Segundo avaliação do secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida: “O buraco fiscal no ano passado foi em torno de R$ 61 bilhões e, este ano, estamos caminhando tranquilamente para algo em torno de R$ 450, R$ 500 bilhões de buraco fiscal” (NASCIMENTO, 2020).

No que diz respeito à situação financeira das unidades domésticas (famílias), remetemos à seguinte notícia: “Endividamento das famílias bate recorde e 2 milhões pedem para adiar pagamentos” (FERNANDES, 2020).

Isso indica que, muito provavelmente, após o período de recuperação através de políticas econômicas anticíclicas, a dinâmica do “ajuste fiscal” (pacotes de austeridade) voltará de forma brutal para cobrar custos contraídos nesse momento, e a conta vai vir com juros.

Se o “neoliberalismo” realmente “morrer” como alguns andam dizendo por aí, é possível dizer que ele voltará das cinzas como uma fênix e será muito mais intenso, uma vez que a recomposição da taxa de lucro da acumulação capitalista exigirá novos e mais dramáticos processos de espoliação (veja a seção 10 “Imperialismo e espoliação” do nosso texto: Das comunidades originárias ao processo de extraenisação em termos capitalistas).

6. Conclusões:


No nosso texto supracitado, dizíamos:

Provavelmente vamos passar por uma transição no regime de acumulação mundial do Capital, talvez recuperando um pouco das formas de intervenção estatal do pós-segunda guerra em matéria de políticas econômicas anticíclicas, acompanhadas de um regime de “segurança social” mais militarizada do que nunca (Communismo Libertário, 2020).

As questões levantadas nas seções desse ensaio endossam esse panorama por nós delineado e trazem mais elementos para o debate. É importante destacar que estamos focando somente nas dinâmicas dos nossos inimigos na luta de classes. Talvez, em outra ocasião, nós também possamos incluir um debate sobre as respostas autônomas do proletariado frente à esses processos.

Muita coisa foi deixada de lado, de modo que restringimos nossa análise para tratar especificamente das políticas econômicas. Não obstante, esperamos que essa nossa contribuição para o debate seja útil para nossa classe proletária de alguma forma. Nosso objetivo é compreender nossas condições atuais e organizar nossa própria estratégia contra a recuperação do capitalismo, pela destruição desse modo de produção e construção, sob suas ruínas, do modo de produção comunista.

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Notas:


[1] – Sobre as mudanças climáticas, a ex-diretora do FMI disse que “é um assunto tão sério” que cabe também aos bancos centrais e ao mercado financeiro. Veja-se: EFE. FMI destaca envelhecimento e mudança climática como perigos para economia. Exame, 2019. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/economia/fmi-destaca-envelhecimento-e-mudanca-climatica-como-perigos-para-economia/>, publicada em: 25 jan 2019.

[2] – A diretora-gerente do Fundo, Kristalina Georgieva, traça o seguinte panorama: “projetamos que mais de 170 países terão crescimento negativo este ano”. Veja-se: GUIMÓN, Pablo. FMI prevê para este ano a maior recessão desde a Grande Depressão de 1929. El País, 2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/economia/2020-04-09/fmi-preve-para-este-ano-a-maior-recessao-desde-a-grande-depressao-de-1929.html>, publicada em: 09 abr 2020.

[3] – O Fundo Monetário Internacional revisou seu prognóstico para a economia mundial no ano de 2020 devido à crise econômica e à pandemia do coronavírus. Na atualização da World Economic Outlook, publicada nesta terça-feira, 14-04-2020, o organismo prevê uma queda de 3% no PIB mundial, uma diferença de 6 pontos da projeção divulgada em janeiro. Para a América Latina e Caribe a recessão deve ser ainda maior que a mundial: perda de -5,2%, em relação ao crescimento do ano passado. Para o FMI essa será “uma crise como nunca vista antes”, e defende que os países “gastem o que for necessário” para salvar vidas. Veja-se: AZEVEDO, Wagner Fernandes de. Diante da maior crise desde 1929, o FMI muda a orientação: ‘Estados devem gastar o que for necessário’. Instituto Humanitas Unisinos, 2020. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/598046-alertas-do-fmi-diante-da-maior-crise-desde-1929-economia-latino-americana-deve-cair-5-2-em-2020-e-estados-devem-priorizar-as-vidas-a-economia>, publicada em: 15 abr 2020.

[4] – Presidente da Comissão Europeia diz que continente requer investimentos maciços, tanto públicos como privados, para reativar a economia. Veja-se: VALOR SP. Europa precisa de novo Plano Marshall diante de coronavírus, diz Von der Leyen. Valor Econômico, 2020. Disponível em: <https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/04/15/europa-precisa-de-novo-plano-marshall-diante-de-coronavirus-diz-von-der-leyen.ghtml>, publicada em: 15 abr 2020.

[5] – Para uma biografia resumida do General Walter Souza Braga Netto, veja-se: SCHREIBER, Mariana. Quem é Braga Netto, general que assume a Casa Civil do governo Bolsonaro. BBC News Brasil, 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51482928>, publicada em: 13 fev 2020.

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Referências:


ANSA. UE derruba limite de gastos para Estados-membros. IstoÉ, 2020. Disponível em: <https://istoe.com.br/ue-derruba-limite-de-gastos-para-estados-membros/>, publicada em: 20 mar 2020.

CIOCCA, Pierluigi. 1929 e 2009: duas crises comensuráveis?. Estudos avançados, São Paulo, v. 23, n. 66, pp. 81-89, 2009.

FERNANDES, Adriana. Endividamento das famílias bate recorde e 2 milhões pedem para adiar pagamentos. Uol [Estadão conteúdo], 2020. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/04/07/endividamento-das-familias-bate-recorde-e-2-milhoes-pedem-para-adiar-pagamentos.htm>, publicada em: 07 abr 2020.

FRANCO JR., Hilário; ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Atlas de História Geral. São Paulo: Scipione, 1993.

NASCIMENTO, Luciano. Déficit público deve caminhar para R$ 500 bilhões, diz secretário. Agência Brasil, 2020. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/deficit-publico-deve-caminhar-para-r-500-bilhoes-diz-secretario>, publicada em: 07 abr 2020.

PINTO, Eduardo C. O eixo sino-americano e a inserção externa brasileira: antes e depois da crise. Texto para Discussão – IPEA – No. 1652, Brasília: IPEA, 2011.

TOMAZELLI, Idiana. Sem Guedes, governo articula plano para elevar investimento em infraestrutura após crise da covid-19. O Estado de S.Paulo, 2020. Disponível em: <https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,governo-articula-plano-para-elevar-investimento-em-infraestrutura-apos-crise-da-covid-19,70003278989>, publicada em: 22 abr 2020.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Esboços de análise sobre possíveis implicações sociais do novo coronavírus

Imagem de microscópico do novo coronavírus (SARS-CoV-2),
responsável pela doença chamada Covid-19 — Foto: NIAID-RML/AP.

Atualmente vemos o conjunto dos Estados que compõem o modo de produção capitalista declarando “guerra contra o coronavírus”. De fato, as “autoridades” estão realmente lidando com essa situação acionando os mecanismos institucionais que estão amparados em jurisdições de guerra (ou inventando novos, como o “Orçamento de Guerra” aqui no Brasil). Provavelmente vamos passar por uma transição no regime de acumulação mundial do Capital, talvez recuperando um pouco das formas de intervenção estatal do pós-segunda guerra em matéria de políticas econômicas anticíclicas, acompanhadas de um regime de “segurança social” mais militarizada do que nunca. Isso são especulações que precisam ser confirmadas na prática.

No que diz respeito à situação presente, existe uma oposição artificialmente construída entre “salvar vidas” ou “salvar a economia”. É uma falsa oposição, pois a diferença no discurso não altera a dinâmica sistêmica do capitalismo: sempre se trata da economia (ou melhor: da Propriedade Privada), mesmo quando a alternativa é o que andam chamando de “salvar vidas”. A diferença consiste na forma como os administradores da acumulação capitalista vão lidar com essa “pressão seletiva” posta pelo novo coronavírus. Por isso que alguns setores sociais-democratas estão meio entusiasmados com o que chamam de “morte do neoliberalismo”, dado que essa conjuntura pode ser decisiva para esse partido do capital assumir a gestão da acumulação novamente e determinar uma linha desenvolvimentista de gerenciamento do capitalismo (daí aquilo que falei no primeiro parágrafo sobre outra possível política econômica).

Além disso, o nível de reacionarismo continua crescendo a despeito da (ou, até mesmo, conjuntamente com a) retomada de “autoridade” da ciência (ainda que seja questionável que isso realmente esteja acontecendo). Esse nível de reacionarismo vai ter um terreno fértil para germinar caso a social-democracia assuma o poder por algum tempo, permitindo que os neofascistas se reorganizem e acumulem forças.

Sobre a questão da biossegurança: a diferença das medidas mais extremas (como a da Índia e da Filipinas, por exemplo) é de grau e não difere em natureza das medidas dos demais Estados que compõem o capitalismo mundialmente integrado nesta conjuntura de pandemia. Em outras palavras: “salvar vidas” pode muito bem significar “dar carta branca” para as forças repressivas atirarem para matar nos “transgressores da quarentena” (isso que significa, grosso modo, “salvar vidas”). Se a moda pega, as autoridades dos estados capitalistas não terão tanto pudor em autorizar mais mortes para “salvar vidas” noutros períodos de crise, principalmente na recessão econômica porvir. Em defesa da propriedade privada, ou seja, para “salvar vidas” contra, por exemplo, os saques aos supermercados, teremos policiais atirando para matar.

Em síntese: do lado do “salvamento de vidas” está também a política econômica anticíclica e, portanto, o partido social-democrata de administração da acumulação capitalista. É uma alternativa ao neoliberalismo, por isso que estão entusiasmados. Nas suas mãos, a repressão se torna uma questão puramente técnica e/ou é uma medida necessária para evitar o que eles ideologicamente construíram como “legado golpista de 2013”, ou seja, para aniquilar “democraticamente” as revoltas sociais. O cientificismo (que não representa “as ciências” enquanto tais) também está do lado deles, portanto não se surpreendam se vários cientistas ingressarem nas fileiras desse partido, afinal “quadros técnicos” de “intelectuais orgânicos” sempre são uma necessidade.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

O relacionamento aberto como ética liberal e o relacionamento livre como ética libertária

[Não conseguimos ampliar o tamanho da imagem]

Hoje em dia parece comum nos depararmos com relacionamentos não-monogâmicos. Das várias alternativas à monogamia, a mais recorrente é definida pela categoria de “relacionamento aberto”. Neste texto nós vamos comparar o “relacionamento aberto” com o que podemos chamar de “relacionamento livre”. Em resumo, nossa proposta é demonstrar que o relacionamento aberto deriva de uma teoria e prática liberal e o relacionamento livre de uma teoria e prática libertária. Primeiro vamos abordar as ideias de “indivíduo” e “liberdade” e depois veremos as implicações destas para a definição dos relacionamentos citados.

1. Liberais e Libertários:


Os liberais partem do pressuposto de que existe uma unidade mínima de existência que eles chamam de “indivíduo”: algo ou alguém que é em si mesmo uno. Apesar da diversidade de noções sobre individualidade, vamos tomar a mais hegemônica para representar essa visão, qual seja: a pessoa é um sujeito que age para si mesmo visando sempre maximizar prazer e minimizar a dor (definição utilitarista do que pode ser considerado “bom”). Neste caso, para ser livre basta desobstruir as barreiras que impedem as pessoas de atingir o objetivo do “agir para si mesmo”. O sujeito seria, a priori, livre e os constrangimentos de sua liberdade sempre viriam de causas exteriores. O pressuposto é o seguinte: ser livre é uma questão de fazer o que se quer, pois o que se quer é, por definição, “bom” e autodeterminado.

Para os libertários, a liberdade não está “dada” a priori no sujeito, sendo necessário conquistá-la a despeito de sua própria condição de “sujeito” (a liberdade está necessariamente além da individualidade). Como dizia Bakunin: “A liberdade dos indivíduos não é um facto individual, é um facto, um produto coletivo. Nenhum homem conseguiria ser livre isolado e sem a contribuição de toda sociedade humana” (BAKUNINE, 1975, p. 23). Neste caso, a condição de possibilidade da liberdade é social (“facto coletivo”) e um “indivíduo” só conseguiria ser livre se sua condição estivesse amparada numa comunidade libertária. Além disso, o próprio conceito de “indivíduo” não é assumido enquanto tal. Para os libertários, o “indivíduo” é o resultado de um processo de individuação, não o pressuposto da abstração. Uma pessoa não é uma “unidade autocentrada”, mas uma multiplicidade de tendências sociais contraídas (cada pessoa singular pode ser pensada como um “quantum” social, ou seja: uma síntese localizada e variável de quantidade e qualidade no continuum da existência imanente).

Uma outra questão que diferencia o libertário do liberal é a seguinte: o libertário diz que aquilo que alguém quer é determinado socialmente. Para os libertários é bem possível (e isso é frequente em nossa sociedade capitalista) ser passivo buscando prazer. Por exemplo, Bakunin dizia que existe uma razão que explicaria tanto o sentimento religioso do povo quanto seus impulsos hedonistas:

Esta razão é a situação miserável à qual ele se encontra fatalmente condenado pela organização econômica da sociedade (…). Reduzido, sob o aspecto intelectual e moral, tanto quanto sob o aspecto material, ao mínimo de uma existência humana, recluso em sua vida como um prisioneiro em sua prisão, sem horizontes, sem saída, até mesmo sem futuro, se acredita nos economistas, o povo deveria ter a alma singularmente estreita e o instinto aviltado dos burgueses para não sentir a necessidade de sair disso; mas, para isso, há somente três meios: dois fantásticos, e o terceiro real. Os dois primeiros são o cabaré e a igreja; o terceiro é a revolução social. Esta última, muito mais que a propaganda antiteológica dos livres-pensadores, será capaz de destruir as crenças religiosas e os hábitos de libertinagem no povo, crenças e hábitos que estão mais intimamente ligados do que se pensa. Substituindo os gozos simultaneamente ilusórios e brutais da orgia corporal e espiritual pelos gozos tão delicados quanto ricos da humanidade desenvolvida em cada um e em todos, a revolução social terá a força de fechar ao mesmo tempo todos os cabarés e todas as igrejas (2002, p. 15, grifos nossos).

Ou seja: a questão não é “sentir-se bem” de forma utilitária e individualista. A questão libertária consiste na conquista de uma condição onde será possível a realização de uma felicidade autodeterminada socialmente, pois só assim a pessoa singular é autenticamente livre (uma vez que o singular terá sua liberdade confirmada e estendida no universal). A conquista da atividade, isto é, da autodeterminação de nossas ações, tanto no princípio de nosso desejo, quanto de nossa prática, depende de como construímos o mundo coletivamente através de nossas associações mútuas.

2. Monogamia:


Primeiramente, será necessário fazer algumas distinções. Começaremos pela “monogamia”, especificaremos de que tipo de relacionamento socioafetivo estamos tratando e, finalmente, vamos comparar a ética liberal dos relacionamentos abertos com a ética libertária dos relacionamentos livres. Somos evidentemente adeptos da ética libertária e por isso criticamos a lógica liberal.

A monogamia, como se sabe, é uma instituição social historicamente construída e variável de acordo com as formações sociais (e não existiu apenas no capitalismo, ainda que também devenha neste de uma forma particular). Uma discussão genealógica da monogamia em nossa sociedade seria objeto de um estudo que não cabe nesse ensaio. Conscientes de nossos limites, gostaríamos de apenas sintetizar aquelas que poderiam ser as premissas mínimas desta instituição. Não abordaremos a função da monogamia dentro da formação social, apenas as suas regras mais elementares (ou seja: a questão de saber “como funciona?”).

Antes de prosseguirmos, gostaríamos deixar evidente que estamos tratando de relacionamentos que estão fora da “esfera da amizade”. Não que as pessoas não possam ser, ao mesmo tempo, “amigas”, mas, por exemplo, dizer que esta ou aquela pessoa é nossa amiga é diferente de dizer que ela é nossa “namorada”. A existência de uma outra ordem de relacionamentos pode ser inferida da existência da categoria social de “namoro”, ainda que não se use muito esse termo hoje em dia. Portanto, toda a vez que nos referirmos à “relacionamentos” nesse texto, estamos falando de associações que são organizadas segundo princípios próprios que não se reduzem à amizade (mesmo que possam conter amizade nessas associações).

Neste sentido, vamos definir (e reduzir) a relação monogâmica da seguinte forma: trata-se de um relacionamento socioafetivo que é contraído em uma união de duas pessoas que possuem direitos de exclusividade uma sobre a outra. “Duas pessoas”, ou seja: se faz aos pares. E “exclusividade”, ou seja: os parceiros não podem contrair outras relações para além do par constituído. Essa é a sua generalidade em termos de “princípios”.

3. Relacionamento Aberto e Relacionamento Livre:


A resposta liberal à monogamia é o relacionamento aberto. Suas concepções e práticas partem do pressuposto de que existe uma “esfera da intimidade”, uma vida pessoal que existe de forma “privada”, na “privacidade”. Vamos ilustrar essa ideia de privacidade recorrendo a uma representante do liberalismo.

Susana Moller Okin, enquanto representante de uma teoria feminista liberal, argumenta que (2008, p. 327): “as mulheres, tanto quanto os homens, precisam de privacidade para o desenvolvimento de relações íntimas com outras pessoas, para que tenham espaço para se afastarem de seus papéis temporariamente e para que tenham tempo de ficarem sozinhas, o que contribui para o desenvolvimento da mente e da criatividade”. A autora critica a associação entre “privado” e “doméstico” para defender uma vida “autenticamente” privada para as mulheres, onde estas poderiam desfrutar, finalmente, uma privacidade para além dos afazeres domésticos que o patriarcado havia imposto. Em outras palavras: “afastar-se dos papéis sociais” pressupõem que a “criatividade” é constrangida pelo ambiente social e, portanto, que o “desenvolvimento individual” se faz em oposição com o social. Isso está de acordo com o que havíamos dito acima sobre a lógica liberal.

O que nos interessa destacar aqui é o seguinte: a lógica liberal, que é uma ideologia capitalista, “privatiza” uma série de relações da socialidade e as coloca em “redomas de privacidade”. Os relacionamentos aparecem dentro dessas “redomas de romantismo”: as pessoas se relacionam como se tivessem o “seu mundinho próprio”, só delas. Uma espécie de sociofobia, resultado de anos de desagregação dos laços sociais humanos, pois o capitalismo precisa romper a comunidade das pessoas para criar uma comunidade de coisas (escrevemos amplamente sobre esse processo em: Das comunidades originárias ao processo de extraenisação em termos capitalistas).

Enquanto ética liberal, o relacionamento aberto contem: a privacidade e a ideia de indivíduo que busca prazeres. A exclusividade entre parceiros dá lugar a uma abertura para a contingência das escolhas individuais (lembrando que tais escolhas visam maximizar prazer e minimizar a dor – utilitarismo). Na realidade, essa liberalização faz parte do processo geral do capitalismo em “desmanchar pelo ar” tudo que era sólido nos costumes tradicionais, uma vez que a lógica do vínculo social por aliança é substituída pela lógica do contrato. A forma contrato pressupõem a troca mercantil e a forma aliança pressupõem as prestações e contraprestações (sobre “Economias da Dádiva”, indicamos: Marcel Mauss).

Neste caso, as relações socioafetivas continuam privatizadas no relacionamento aberto. Se quisermos atualizar Bakunin, até poderíamos afirmar que, além do cabaré e da Igreja, as pessoas possuem elas mesmas para se entorpecerem (discutimos sobre isso em nossa interpretação da música “Fake Plastic Trees”).

As relações abertas dão a aparência de que é possível ter mais alteridade na vida, mas apenas reproduzem, de forma mais liberal, os padrões do narcisismo moderno. Uma pessoa está para as demais como “opção” em termos das sensações que ela pode oferecer e, reciprocamente, as demais estão para ela na medida dos prazeres possíveis para receber. A existência do outro enquanto outro é obliterada. A qualidade do prazer é reduzida a uma medida de quantidade equivalente: “mais” ou “menos” (nunca se coloca a questão de saber “que prazer é esse?”).

O relacionamento aberto, como qualquer lógica mercantil, é baseado na reciprocidade dos equivalentes: “aquilo que te dou, você me devolve numa medida capaz de me pagar”. A relação nem é o fim, mas o meio: ficar com alguém para sentir-se bem.

No relacionamento livre, por outro lado, o que está em jogo é a mutualidade e não a reciprocidade, a complementariedade que envolve a relação: sentir-se bem porque se fica com alguém. Nenhum libertário busca no outro se encontrar novamente consigo mesmo, mas superar seu isolamento. A relação não é pretexto para consumos recíprocos, pois a relação é o início e o fim, ou seja: o meio na qual as sensações podem ser experimentadas. Não se busca as “sensações em si”, mas a intensidade por trás delas: a associação, a socioafetividade e sua alegria imanente (a parte qualitativa do prazer: a vitalidade de “estar com”, de partilhar e estender sua vida na vida alheia).

Esse relacionamento é libertário, pois ele busca superar o isolamento da “privacidade”, do “indivíduo autocentrado”. Isso pode se expressar desde o poliamor até as relações entre duas pessoas apenas, mas o importante é que seja determinado, não por um contrato entre indivíduos, mas por convenções sociais autodeterminadas conjuntamente (pela comunidade). Mas para que seja possível tais “convenções”, é necessário um processo revolucionário que destrua o capitalismo, uma vez que a ética libertária é indissociável do mundo que visa construir na prática.

O relacionamento livre volta-se para o desejo e não para o prazer. Não é correto dizer que as pessoas buscam o que lhes falta, pois falta à busca algo como uma “meta”: todo o desejo é uma potência intransitiva de perseverar-se na existência coletiva. E o processo desejante é o processo da construção de mundos possíveis através da associação social (sobre essa questão, recomendamos o estudo da esquizoanálise: DELEUZE, G; GUATTARI, F. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Luiz Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2012).

Por fim, a ética libertária do relacionamento livre não é baseada na “lógica do reconhecimento”, pois isso obliteraria a possibilidade da mutualidade, uma vez que a confirmação mútua das potências humanas é necessariamente gratuita, não envolvendo “cobranças”. Para o libertário, ninguém “quer ser amado” (ser “reconhecido”), mas construir comunidades afetivas que estendem a potência de cada um e de todos (veja-se nosso texto crítico da “Lei do Valor”).


Referências:


BAKUNINE, Mikhail. Conceito de liberdade. Tradução: Jorge Dessa. Lisboa: Edições Rés, 1975.

BAKUNINE, Mikhail. Deus e o Estado. Tradução: Plínio Augusto Coêlho. [S.I.]: Sabotagem, 2002.

OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 16, n. 2, pp. 305-332, ago. 2008.

Ditadura do Valor e Álcool Gel



Em uma notícia do G1 de Campinas sobre a venda de álcool gel lê-se: “O aumento na procura por álcool em gel por conta da pandemia do novo coronavírus fez o preço do produto disparar em alguns comércios na região de Campinas (SP). Em uma loja de Valinhos (SP), por exemplo, o produto já é vendido pelo dobro: de R$ 10 para R$ 19,90” [1]. Para um economista (ou seja: ideólogo da burguesia), isso é uma constatação trivial do funcionamento da “oferta e demanda” no sistema de preços de economias mercantis.

Mas foda-se esse ideólogo, isso nos afeta e por isso que nos revoltamos!

Contudo, é necessário sermos mais profundos para perceber que essa nossa revolta é aplicável a qualquer produto que compramos no nosso cotidiano. Acontece que nossas necessidades estão subordinadas à ditadura do valor a todo o momento e só nos surpreendemos tardiamente em situações extraordinárias como a pandemia que estamos vivemos atualmente. Não obstante, é melhor se indignar e se revoltar tarde do que nunca fazer isso.

Mas que fique registrado de agora em diante que: a ditadura do valor está constantemente especulando encima das necessidades humanas para gerar lucros. A própria categoria de “demanda” reifica esse processo, pois não significa “consumo” no sentido material (por exemplo: comer é consumir, comprar comida é uma transação comercial). 

Os militantes estadunidenses Mike Pappas e Tatiana Cozzarelli, no artigo “Capitalism is an Incubator for Pandemics: Socialism is the Solution” [2], descrevem a seguinte situação:

“Suprimentos como sabonete, desinfetante para as mãos e toalhetes ou sprays para higienização da superfície estão em alta demanda neste momento. Já estamos vendo falta de suprimentos importantes em todo o mundo. A necessidade de maximização do lucro no capitalismo levou as empresas a aumentar drasticamente seus preços neste período de alta demanda. Por exemplo, o Washington Post relatou aumentos drásticos nos preços de produtos como o Purell Hand Sanitizer. Sob o capitalismo, a escassez leva a maior lucro”.

Em outras palavras: a escassez (que é a “pedra angular” da ideologia econômica) no capitalismo é uma produção artificial baseada na sua própria rentabilidade.

Que isso sirva de lição para que possamos compreender o quanto a ditadura do valor é violenta e anti-humana. Que isso possa alimentar nossa revolta contra esse modo de produção mundial!

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Notas:

[1] – “Coronavírus: preço do álcool em gel chega a dobrar em algumas lojas e Procon reforça fiscalização” | Campinas e Região | G1 – https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2020/03/14/coronavirus-preco-do-alcool-em-gel-chega-a-dobrar-em-algumas-lojas-e-procon-reforca-fiscalizacao.ghtml;

[2] – PAPPAS, Mike; COZZARELLI, Tatiana. “Capitalism is an Incubator for Pandemics: Socialism is the Solution”. Left Voice. Publicado em: 9 mar. 2020. Disponível em: <https://www.leftvoice.org/capitalism-is-an-incubator-for-pandemics-socialism-is-the-solution>.

Coletânea de textos tratando a questão da pandemia do novo coronavírus sob várias perspectivas



Reunimos uma série de contribuições para o debate acerca das questões que envolvem a pandemia do novo coronavírus. Tratam-se de reflexões necessárias para compreender as implicações sociais globais que tal processo produzirá em nossas vidas.

– Artigos de Autores:


ZIBECHI, Raúl. Coronavírus: a militarização das crises. 29 fev. 2020. Disponível em <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596663-coronavirus-a-militarizacao-das-crises-artigo-de-raul-zibechi>.

  • Trecho síntese que serve de resumo: “Considero que estamos diante de um ensaio que será aplicado em situações críticas, como desastres naturais, tsunamis e terremotos, mas, sobretudo, diante das grandes convulsões sociais capazes de provocar devastadoras crises políticas para os de cima. Em suma, eles se preparam para eventuais desafios à sua dominação”.


AGAMBEN, Giorgio. O estado de exceção provocado por uma emergência imotivada. 27 fev. 2020. Disponível em <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596584-o-estado-de-excecao-provocado-por-uma-emergencia-imotivada>.

  • Trecho síntese que serve de resumo: “Assim, em um perverso círculo vicioso, a limitação da liberdade imposta pelos governos é aceita em nome de um desejo de segurança que foi induzido pelos próprios governos que agora intervêm para satisfazê-lo”.


PAUL, Ian Alan. Dez premissas para uma pandemia. 22 mar. 2020. Disponível em <https://medium.com/@joaolucasxavier/dez-premissas-para-uma-pandemia-5f4dfd36f144>.

  • Trecho síntese que serve de resumo: “Uma pandemia não é uma coleção de vírus, mas sim uma relação social entre pessoas, mediada por vírus”.


Observações críticas: os textos de Zibechi e Agamben colocam em questão uma suposta “desproporção” com relação às medidas adotadas e destacam o “alarmismo” induzido midiaticamente. Não obstante, as leituras destes autores parecem muito simplistas com relação à questão epidemiológica mesma, usando o novo coronavírus como pretexto para afirmarem suas próprias teses (que já são mais ou menos conhecidas por quem os lê). A questão é diferente com relação ao texto de Ian Alan Paul, pois o novo coronavírus não aparece como um coadjuvante, mas um mediador importante que (re)agencia a vida humana.

– Artigos de Organizações/Grupos:


CCI (Corrente Comunista Internacional). Pandemia da Covid-19: um sintoma da fase terminal da decadência capitalista. 16 mar. 2020. Disponível em <https://pt.internationalism.org/content/390/pandemia-da-covid-19-um-sintoma-da-fase-terminal-da-decadencia-capitalista>.

  • Nesse texto, o grupo CCI (Corrente Comunista Internacional) busca sintetizar as implicações do novo coronavírus durante a, assim chamada, “fase terminal da decadência capitalista”. Apesar da narrativa apologética do “progresso” (de uma providência das forças produtivas), suas críticas às dinâmicas sistêmicas e os precedentes históricos de sucateamento da saúde pública são fundamentalmente pertinentes para o debate.


Chuang. Contágio Social – coronavírus, China, capitalismo tardio e o mundo natural. 26 fev. 2020. Disponível em <http://afita.com.br/outras-fitas-contagio-social-coronavirus-china-capitalismo-tardio-e-o-mundo-natural/>.

  • Neste texto, o grupo comunista chinês “Chuang” desenvolve um estudo amplo sobre questão. Consideramos que esta é, de longe, a melhor reflexão sobre as implicações do novo coronavírus. Trecho que indica a proposta: “Agora não é hora de um simples exercício do ‘Scooby-Doo Marxista’ de tirar a máscara do vilão para revelar que, sim, de fato, era o capitalismo que estava causando o coronavírus o tempo todo! Isso não seria mais sutil do que comentaristas estrangeiros caçando possibilidades de uma mudança de regime. É claro que o capitalismo é o culpado – mas como exatamente a esfera socioeconômica interage com a biológica e que tipo de lições mais profundas podem ser tiradas de toda essa experiência?”.


Emancipação (Internacionalistas). Coronavírus: Salvando Vidas, Não Investimentos. 14 mar. 2020. Disponível em <http://pt.emancipacion.info/coronavirus-salvando-vidas-nao-investimentos/>.

  • O grupo enfatiza a necessidade do internacionalismo proletário para enfrentar a pandemia e indica alguns pontos comuns pelos quais lutar durante a pandemia. Trecho que indica a proposta geral: “A principal lição que o desenvolvimento da epidemia tem que nos deixar como trabalhadores é que as ameaças que enfrentamos como classe são globais: o vírus, como a crise, não conhece fronteiras, e o que acontece em cada lugar afeta o resto. Simplesmente não existem soluções nacionais. Mesmo a «coordenação» não pode ser esperada; os interesses de cada capital nacional impedem as classes dirigentes de fornecer soluções verdadeiramente globais. Eles terão sempre um incentivo para «esperar um pouco mais», para nos chamar a «continuar com a vida» primeiro e depois a «responsabilidade individual»… desde que não percamos a nossa vantagem competitiva”.


CrimethInc. Contra o Coronavírus e o Oportunismo do Estado: Anarquistas na Itália Relatam a Disseminação do Vírus e da Quarentena. 16 mar. 2020. Disponível em <https://pt.crimethinc.com/2020/03/16/contra-o-coronavirus-e-o-oportunismo-do-estado-anarquistas-na-italia-relatam-a-disseminacao-do-virus-e-da-quarentena>.

  • Relato de anarquistas italianos dos primeiros dias da pandemia no país até a data da publicação do texto. Destacamos que a trajetória italiana serve de ilustração para certos dilemas que emergiram no de modo análogo Brasil (como a questão da despreocupação inicial, dentre outras questões apresentadas no texto).



  • O título do texto já é auto-explicativo: trata-se de uma série de elaborações de estratégias de sobrevivência e resistência, sob um prisma anarquista, para aplicar durante a crise do novo coronavírus.


CCE (Círculo de Comunistas Esotéricos). Crisis sanitaria o crisis civilizatoria. Março de 2020. Disponível em <https://mega.nz/#!Sl0CnIJQ!FltAu7X52dpDGB69dC-UTIlTmRfAZYwBm2OaM7plvQs> [documento em pdf].

  • Panfleto difundido pelo grupo chileno CCE (Círculo de Comunistas Esotéricos). Trecho com indicativo do tema (tradução do espanhol): “A única maneira de sair da crise sanitária é colocar em causa os limites e projeções do projeto civilizatório em que nos desenvolvemos e que manifesta a sua crise de forma rampante com milhares, e possivelmente milhões, de mortos em todo o planeta a partir de um episódio específico”.