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Hoje em dia parece comum nos depararmos com relacionamentos não-monogâmicos. Das várias alternativas à monogamia, a mais recorrente é definida pela categoria de “relacionamento aberto”. Neste texto nós vamos comparar o “relacionamento aberto” com o que podemos chamar de “relacionamento livre”. Em resumo, nossa proposta é demonstrar que o relacionamento aberto deriva de uma teoria e prática liberal e o relacionamento livre de uma teoria e prática libertária. Primeiro vamos abordar as ideias de “indivíduo” e “liberdade” e depois veremos as implicações destas para a definição dos relacionamentos citados.
1. Liberais e Libertários:
Os liberais partem do pressuposto de que existe uma unidade mínima de existência que eles chamam de “indivíduo”: algo ou alguém que é em si mesmo uno. Apesar da diversidade de noções sobre individualidade, vamos tomar a mais hegemônica para representar essa visão, qual seja: a pessoa é um sujeito que age para si mesmo visando sempre maximizar prazer e minimizar a dor (definição utilitarista do que pode ser considerado “bom”). Neste caso, para ser livre basta desobstruir as barreiras que impedem as pessoas de atingir o objetivo do “agir para si mesmo”. O sujeito seria, a priori, livre e os constrangimentos de sua liberdade sempre viriam de causas exteriores. O pressuposto é o seguinte: ser livre é uma questão de fazer o que se quer, pois o que se quer é, por definição, “bom” e autodeterminado.
Para os libertários, a liberdade não está “dada” a priori no sujeito, sendo necessário conquistá-la a despeito de sua própria condição de “sujeito” (a liberdade está necessariamente além da individualidade). Como dizia Bakunin: “A liberdade dos indivíduos não é um facto individual, é um facto, um produto coletivo. Nenhum homem conseguiria ser livre isolado e sem a contribuição de toda sociedade humana” (BAKUNINE, 1975, p. 23). Neste caso, a condição de possibilidade da liberdade é social (“facto coletivo”) e um “indivíduo” só conseguiria ser livre se sua condição estivesse amparada numa comunidade libertária. Além disso, o próprio conceito de “indivíduo” não é assumido enquanto tal. Para os libertários, o “indivíduo” é o resultado de um processo de individuação, não o pressuposto da abstração. Uma pessoa não é uma “unidade autocentrada”, mas uma multiplicidade de tendências sociais contraídas (cada pessoa singular pode ser pensada como um “quantum” social, ou seja: uma síntese localizada e variável de quantidade e qualidade no continuum da existência imanente).
Uma outra questão que diferencia o libertário do liberal é a seguinte: o libertário diz que aquilo que alguém quer é determinado socialmente. Para os libertários é bem possível (e isso é frequente em nossa sociedade capitalista) ser passivo buscando prazer. Por exemplo, Bakunin dizia que existe uma razão que explicaria tanto o sentimento religioso do povo quanto seus impulsos hedonistas:
Esta razão é a situação miserável à qual ele se encontra fatalmente condenado pela organização econômica da sociedade (…). Reduzido, sob o aspecto intelectual e moral, tanto quanto sob o aspecto material, ao mínimo de uma existência humana, recluso em sua vida como um prisioneiro em sua prisão, sem horizontes, sem saída, até mesmo sem futuro, se acredita nos economistas, o povo deveria ter a alma singularmente estreita e o instinto aviltado dos burgueses para não sentir a necessidade de sair disso; mas, para isso, há somente três meios: dois fantásticos, e o terceiro real. Os dois primeiros são o cabaré e a igreja; o terceiro é a revolução social. Esta última, muito mais que a propaganda antiteológica dos livres-pensadores, será capaz de destruir as crenças religiosas e os hábitos de libertinagem no povo, crenças e hábitos que estão mais intimamente ligados do que se pensa. Substituindo os gozos simultaneamente ilusórios e brutais da orgia corporal e espiritual pelos gozos tão delicados quanto ricos da humanidade desenvolvida em cada um e em todos, a revolução social terá a força de fechar ao mesmo tempo todos os cabarés e todas as igrejas (2002, p. 15, grifos nossos).
Ou seja: a questão não é “sentir-se bem” de forma utilitária e individualista. A questão libertária consiste na conquista de uma condição onde será possível a realização de uma felicidade autodeterminada socialmente, pois só assim a pessoa singular é autenticamente livre (uma vez que o singular terá sua liberdade confirmada e estendida no universal). A conquista da atividade, isto é, da autodeterminação de nossas ações, tanto no princípio de nosso desejo, quanto de nossa prática, depende de como construímos o mundo coletivamente através de nossas associações mútuas.
2. Monogamia:
Primeiramente, será necessário fazer algumas distinções. Começaremos pela “monogamia”, especificaremos de que tipo de relacionamento socioafetivo estamos tratando e, finalmente, vamos comparar a ética liberal dos relacionamentos abertos com a ética libertária dos relacionamentos livres. Somos evidentemente adeptos da ética libertária e por isso criticamos a lógica liberal.
A monogamia, como se sabe, é uma instituição social historicamente construída e variável de acordo com as formações sociais (e não existiu apenas no capitalismo, ainda que também devenha neste de uma forma particular). Uma discussão genealógica da monogamia em nossa sociedade seria objeto de um estudo que não cabe nesse ensaio. Conscientes de nossos limites, gostaríamos de apenas sintetizar aquelas que poderiam ser as premissas mínimas desta instituição. Não abordaremos a função da monogamia dentro da formação social, apenas as suas regras mais elementares (ou seja: a questão de saber “como funciona?”).
Antes de prosseguirmos, gostaríamos deixar evidente que estamos tratando de relacionamentos que estão fora da “esfera da amizade”. Não que as pessoas não possam ser, ao mesmo tempo, “amigas”, mas, por exemplo, dizer que esta ou aquela pessoa é nossa amiga é diferente de dizer que ela é nossa “namorada”. A existência de uma outra ordem de relacionamentos pode ser inferida da existência da categoria social de “namoro”, ainda que não se use muito esse termo hoje em dia. Portanto, toda a vez que nos referirmos à “relacionamentos” nesse texto, estamos falando de associações que são organizadas segundo princípios próprios que não se reduzem à amizade (mesmo que possam conter amizade nessas associações).
Neste sentido, vamos definir (e reduzir) a relação monogâmica da seguinte forma: trata-se de um relacionamento socioafetivo que é contraído em uma união de duas pessoas que possuem direitos de exclusividade uma sobre a outra. “Duas pessoas”, ou seja: se faz aos pares. E “exclusividade”, ou seja: os parceiros não podem contrair outras relações para além do par constituído. Essa é a sua generalidade em termos de “princípios”.
3. Relacionamento Aberto e Relacionamento Livre:
A resposta liberal à monogamia é o relacionamento aberto. Suas concepções e práticas partem do pressuposto de que existe uma “esfera da intimidade”, uma vida pessoal que existe de forma “privada”, na “privacidade”. Vamos ilustrar essa ideia de privacidade recorrendo a uma representante do liberalismo.
Susana Moller Okin, enquanto representante de uma teoria feminista liberal, argumenta que (2008, p. 327): “as mulheres, tanto quanto os homens, precisam de privacidade para o desenvolvimento de relações íntimas com outras pessoas, para que tenham espaço para se afastarem de seus papéis temporariamente e para que tenham tempo de ficarem sozinhas, o que contribui para o desenvolvimento da mente e da criatividade”. A autora critica a associação entre “privado” e “doméstico” para defender uma vida “autenticamente” privada para as mulheres, onde estas poderiam desfrutar, finalmente, uma privacidade para além dos afazeres domésticos que o patriarcado havia imposto. Em outras palavras: “afastar-se dos papéis sociais” pressupõem que a “criatividade” é constrangida pelo ambiente social e, portanto, que o “desenvolvimento individual” se faz em oposição com o social. Isso está de acordo com o que havíamos dito acima sobre a lógica liberal.
O que nos interessa destacar aqui é o seguinte: a lógica liberal, que é uma ideologia capitalista, “privatiza” uma série de relações da socialidade e as coloca em “redomas de privacidade”. Os relacionamentos aparecem dentro dessas “redomas de romantismo”: as pessoas se relacionam como se tivessem o “seu mundinho próprio”, só delas. Uma espécie de sociofobia, resultado de anos de desagregação dos laços sociais humanos, pois o capitalismo precisa romper a comunidade das pessoas para criar uma comunidade de coisas (escrevemos amplamente sobre esse processo em: Das comunidades originárias ao processo de extraenisação em termos capitalistas).
Enquanto ética liberal, o relacionamento aberto contem: a privacidade e a ideia de indivíduo que busca prazeres. A exclusividade entre parceiros dá lugar a uma abertura para a contingência das escolhas individuais (lembrando que tais escolhas visam maximizar prazer e minimizar a dor – utilitarismo). Na realidade, essa liberalização faz parte do processo geral do capitalismo em “desmanchar pelo ar” tudo que era sólido nos costumes tradicionais, uma vez que a lógica do vínculo social por aliança é substituída pela lógica do contrato. A forma contrato pressupõem a troca mercantil e a forma aliança pressupõem as prestações e contraprestações (sobre “Economias da Dádiva”, indicamos: Marcel Mauss).
Neste caso, as relações socioafetivas continuam privatizadas no relacionamento aberto. Se quisermos atualizar Bakunin, até poderíamos afirmar que, além do cabaré e da Igreja, as pessoas possuem elas mesmas para se entorpecerem (discutimos sobre isso em nossa interpretação da música “Fake Plastic Trees”).
As relações abertas dão a aparência de que é possível ter mais alteridade na vida, mas apenas reproduzem, de forma mais liberal, os padrões do narcisismo moderno. Uma pessoa está para as demais como “opção” em termos das sensações que ela pode oferecer e, reciprocamente, as demais estão para ela na medida dos prazeres possíveis para receber. A existência do outro enquanto outro é obliterada. A qualidade do prazer é reduzida a uma medida de quantidade equivalente: “mais” ou “menos” (nunca se coloca a questão de saber “que prazer é esse?”).
O relacionamento aberto, como qualquer lógica mercantil, é baseado na reciprocidade dos equivalentes: “aquilo que te dou, você me devolve numa medida capaz de me pagar”. A relação nem é o fim, mas o meio: ficar com alguém para sentir-se bem.
No relacionamento livre, por outro lado, o que está em jogo é a mutualidade e não a reciprocidade, a complementariedade que envolve a relação: sentir-se bem porque se fica com alguém. Nenhum libertário busca no outro se encontrar novamente consigo mesmo, mas superar seu isolamento. A relação não é pretexto para consumos recíprocos, pois a relação é o início e o fim, ou seja: o meio na qual as sensações podem ser experimentadas. Não se busca as “sensações em si”, mas a intensidade por trás delas: a associação, a socioafetividade e sua alegria imanente (a parte qualitativa do prazer: a vitalidade de “estar com”, de partilhar e estender sua vida na vida alheia).
Esse relacionamento é libertário, pois ele busca superar o isolamento da “privacidade”, do “indivíduo autocentrado”. Isso pode se expressar desde o poliamor até as relações entre duas pessoas apenas, mas o importante é que seja determinado, não por um contrato entre indivíduos, mas por convenções sociais autodeterminadas conjuntamente (pela comunidade). Mas para que seja possível tais “convenções”, é necessário um processo revolucionário que destrua o capitalismo, uma vez que a ética libertária é indissociável do mundo que visa construir na prática.
O relacionamento livre volta-se para o desejo e não para o prazer. Não é correto dizer que as pessoas buscam o que lhes falta, pois falta à busca algo como uma “meta”: todo o desejo é uma potência intransitiva de perseverar-se na existência coletiva. E o processo desejante é o processo da construção de mundos possíveis através da associação social (sobre essa questão, recomendamos o estudo da esquizoanálise: DELEUZE, G; GUATTARI, F. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Luiz Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2012).
Por fim, a ética libertária do relacionamento livre não é baseada na “lógica do reconhecimento”, pois isso obliteraria a possibilidade da mutualidade, uma vez que a confirmação mútua das potências humanas é necessariamente gratuita, não envolvendo “cobranças”. Para o libertário, ninguém “quer ser amado” (ser “reconhecido”), mas construir comunidades afetivas que estendem a potência de cada um e de todos (veja-se nosso texto crítico da “Lei do Valor”).
Referências:
BAKUNINE, Mikhail. Conceito de liberdade. Tradução: Jorge Dessa. Lisboa: Edições Rés, 1975.
BAKUNINE, Mikhail. Deus e o Estado. Tradução: Plínio Augusto Coêlho. [S.I.]: Sabotagem, 2002.
OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 16, n. 2, pp. 305-332, ago. 2008.
Vocês têm mais algum texto sobre isso? gostei, queria compreender melhor.
ResponderExcluirEstamos reunindo material para uma discussão mais aprofundada no futuro. Gostaríamos de discutir a questão da gênese geo-histórica da instituição da monogamia para uma abordagem mais abrangente sobre esse assunto. Neste sentido, uma revisão de material explorando algumas questões antropológicas relacionadas com o tema foi publicada por nós aqui: https://communismolibertario.blogspot.com/2020/08/primatas-humanos-e-seus-hermanos.html [Título: “Ensaio sobre sexualidade humana”].
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