sexta-feira, 22 de maio de 2020

A vida e a ciência no pensamento de Mikhail Bakunin (extratos)


Observações preliminares: os trechos que selecionamos foram extraídos de O Império Knuto-Germânico e a Revolução Social, uma obra de Mikhail Bakunin que nunca foi concluída, publicada postumamente nos meios libertários a partir da edição e organização de seus manuscritos. Trata-se de um compilado de anotações em que o autor escreve suas concepções sobre a humanidade, a Natureza, dentre outras coisas, no quadro de uma reflexão mais ampla sobre o socialismo (no que diz respeito às necessidades da revolução social).

Publicaremos aqui esses extratos, pois são importantes contribuições onto-epistemológicas que Bakunin legou ao movimento anarquista. Além disso, possuem uma crítica muito contundente à intelligentsia, no que diz respeito às pretensões autoritárias desta.

A Vida e as Ideias Gerais:


Segundo Mikhail Bakunin: “A vida domina o pensamento e determina a vontade” (BAKUNIN, 2014, p. 202, grifos originais). Partindo dessa premissa, ele conclui que é um absurdo tentar subordinar a vida através da vontade de um “governo de cientistas” na forma de intelectuais alienados da coletividade. Vejamos, portanto, como Bakunin constrói sua crítica aos positivistas e ideólogos cientificistas no geral:

“A ideia geral é sempre uma abstração, e por isto mesmo, de certa forma, uma negação da vida real. Constatei no Apêndice esta propriedade do pensamento humano, e consequentemente da ciência também, de conseguir apreender e nomear, nos fatos reais, apenas seu sentido geral, suas relações gerais, suas leis gerais; numa palavra, o que é permanente em suas transformações contínuas, mas nunca de seu lado material, individual, e, por assim dizer, palpitante de realidade e de vida, mas por isto mesmo fugitivo e inapreensível. A ciência compreende o pensamento da realidade, e não a realidade em si; o pensamento da vida, e não a vida. Eis o seu limite, o único limite realmente intransponível para ela, porque se funda na própria natureza do pensamento humano, que é o único órgão da ciência.

Sobre esta natureza fundam-se os direitos incontestáveis e a grande missão da ciência, mas também sua impotência vital e até sua ação maléfica, todas as vezes que, através de seus representantes oficiais, patenteados, se arroga o direito de governar a vida. A missão da ciência é esta: constatando as relações gerais das coisas passageiras e reais, reconhecendo as leis gerais que são inerentes ao desenvolvimento dos fenômenos tanto do mundo físico quanto do mundo social, planta, por assim dizer, as balizas imutáveis da marcha progressiva da humanidade, indicando aos homens as condições gerais cuja observação rigorosa é necessária e cuja ignorância ou esquecimento serão sempre fatais. Numa palavra, a ciência é a bússola da vida; mas não é a vida. A ciência é imutável, impessoal, geral, abstrata, insensível, como as leis, das quais ela não é nada além da reprodução ideal, refletida ou mental, ou seja, cerebral (para que nos lembremos que a própria ciência é apenas um produto material de um órgão material da organização material do homem, do cérebro). A vida é toda fugitiva e passageira, mas também toda palpitante de realidade e de individualidade, de sensibilidade, de sofrimentos, de alegrias, de aspirações, de necessidades e de paixões. É só ela que, espontaneamente, cria as coisas e todos os seres reais. A ciência não cria nada, constata e reconhece, somente, as criações da vida. E todas as vezes que os homens da ciência, saindo de seu mundo abstrato, se metem no mundo real através de criações vivas, tudo o que propõem ou que criam é pobre, ridiculamente abstrato, privado de sangue e de vida, natimorto, igual ao homunculus criado por Wagner, o discípulo pedante do imortal doutor Fausto. Resulta disto que a ciência tem por missão única esclarecer a vida, e não governá-la.

O governo da ciência e dos homens de ciência, mesmo que se chamem positivistas, discípulos de Auguste Comte, ou até discípulos da Escola doutrinária do comunismo alemão, só pode ser impotente, ridículo, inumano, cruel, opressivo, explorador, maléfico. Podemos dizer dos homens de ciência, enquanto tais, o que eu falei dos teólogos e dos metafísicos: não têm sentidos nem coração para os seres individuais e vivos. Nem podemos nos queixar disto para eles, pois é a consequência natural de seu ofício. Enquanto homens de ciência, só se preocupam, só podem interessar-se pelas generalidades; só pelas leis” (BAKUNIN, 2014, pp. 291-292, sublinhados nossos).

Depois de uma falha de duas folhas no manuscrito (aparentemente perdidas), Bakunin ainda continua desenvolvendo esse problema:

Em sua organização atual, monopolistas da ciência, mantendo-se, enquanto tais, fora da vida social, os sábios formam, certamente, uma casta à parte, que oferece muita analogia com a casta dos sacerdotes. A abstração científica é seu Deus, as individualidades vivas e reais são as vítimas, e eles são os imoladores consagrados e patenteados destas.

A ciência não pode sair da esfera das abstrações. Deste ponto de vista, ela é infinitamente inferior à arte, que também só mexe, propriamente, com tipos gerais e situações gerais, mas que, por um artifício que lhe é próprio, sabe encarná-los em formas que, mesmo não sendo vivas, no sentido da vida real, não deixam de provocar, na nossa imaginação, o sentimento ou a lembrança desta vida; ele individualiza, de certa forma, os tipos e as situações que concebe, e, através destas individualidades sem carne e sem osso, e, enquanto tais, permanentes ou imortais, que ela tem o poder de criar, lembra-nos as individualidades vivas, reais, que aparecem e que desaparecem à nossa vista. A arte é, pois, de certa forma, a volta da abstração à vida. A ciência é, ao contrário, a imolação perpétua da vida fugitiva, passageira, mas real, sobre o altar das abstrações eternas.

A ciência é tão pouco capaz de apreender a individualidade de um homem quanto a de um coelho. Ou seja, ela é tão indiferente para uma quanto para a outra. Não é que ela ignore o princípio da individualidade. Ela a concebe perfeitamente como princípio, mas não como fato. Ela sabe muito bem que todas as espécies animais, inclusive a espécie humana, tem existência real apenas num número indefinido de indivíduos que nascem e que morrem, dando lugar a indivíduos novos igualmente passageiros. Ela sabe que, à medida que nos elevamos das espécies animais às espécies superiores, o princípio da individualidade determina-se mais, os indivíduos aparecem mais completos e mais livres. (…) Ela sabe, quando não está viciada pelo doutrinarismo teológico, metafísico ou, político e jurídico, ou até mesmo por um orgulho estreitamente científico, e quando não está surda aos instintos e às aspirações espontâneas da vida, ela sabe, e eis sua última palavra, que o respeito do homem é a lei suprema da humanidade, e que o grande, o verdadeiro fim da história, o único legítimo, é a humanização e a emancipação, é a liberdade real, a prosperidade real, a felicidade de cada indivíduo que viva na sociedade. Pois, no fim das contas, a não ser eu se recaia na ficção liberticida do bem público representado pelo Estado, ficção ainda fundada na imolação sistemática das massas populares, é preciso reconhecer que a liberdade e a prosperidade coletivas só são reais quando representam a soma das liberdades e das prosperidades individuais.

A ciência sabe tudo isto, mas não vai, não pode ir além. Como a abstração constitui sua própria natureza, pode muito bem conceber o princípio da individualidade real e viva, mas não pode ter nada a ver com os indivíduos reais e vivos. Ela preocupa-se com os indivíduos em geral, mas não com Pedro ou José, não de tal ou qual outro indivíduo, que só existem, que só podem existir para ela. Os indivíduos dela são, mais uma vez, apenas abstrações.

Entretanto, não são estas individualidades abstratas, são os indivíduos reais, vivos, passageiros, que fazem história. As abstrações não têm pernas para andar, só andam quando são carregadas por homens reais. Para estes seres reais, compostos, não somente em ideia, mas realmente de carne e sangue, a ciência não tem coração. Ela considera-os, no máximo, como carne para desenvolvimento intelectual e social. O que quer saber das condições particulares e da sorte fortuita de Pedro e de José? Ela iria tornar-se ridícula, abdicaria e iria aniquilar-se, se quisesse se preocupar destas, a não ser como um exemplo para apoiar suas teorias (…). Ela não consegue apreender o concreto; só consegue se mexer nas abstrações. Sua missão é preocupar-se com a situação e as condições gerais da existência e do desenvolvimento da espécie humana em geral, ou de tal raça, de tal povo, de tal classe ou categoria de indivíduos; com as causas gerais de sua prosperidade ou de sua decadência, e com os meios gerais para fazê-las avançar em todo tipo de progresso. Com a condição de cumprir larga e racionalmente esta demanda, terá cumprido todo o seu dever, e seria realmente ridículo e injusto pedir-lhe mais” (BAKUNIN, 2014, pp. 293-295, grifos originais, sublinhados nossos).

Não obstante, Bakunin reconhece a importância da ciência, ao afirmar que: “Tudo o que temos direito de exigir dela [da ciência] é que nos indique, com uma mão firme e fiel, as causas gerais dos sofrimentos individuais – e entre estas causas ela não esquecerá, sem dúvida, a imolação e a subordinação, infelizmente ainda costumeiras demais, indivíduos vivos às generalidades abstratas; e que ao mesmo tempo nos mostre as condições gerais necessárias à emancipação real dos indivíduos que vivem na sociedade. Eis a sua missão, eis também os seus limites, além dos quais a ação da ciência social só saberia ser impotente e funesta. Pois além destes limites começam as pretensões doutrinárias e governamentais de seus representantes patenteados, de seus sacerdotes. E já está mais do que na hora de acabar com todos os papas e sacerdotes: não os queremos, mesmo que se chamem democratas socialistas” (BAKUNIN, 2014, p. 297, grifos originais).

Qual a solução que ele propõem para a “antinomia” entre ciência (ideias gerais, portanto, abstrações sobre as tendências desenvolvimento das condições) e “vida concreta” (as individualidades vivas que fazem a história) que ele descreveu acima? Seguindo o princípio de que as condições de resolução de um problema nascem do próprio problema, Bakunin afirma que:

“Por um lado, a ciência é indispensável à organização racional da sociedade; por outro lado, sendo incapaz de se interessar ao que é real e vivo, não deve se meter na organização real ou prática da sociedade.

Esta contradição só pode ser resolvida de uma única maneira: a liquidação da ciência enquanto ser moral existente fora da vida social de todo mundo, e representado, enquanto tal, por um corpo de sábios patenteados, e sua difusão nas massas populares. A ciência, sendo chamada, a partir de agora, a representar a consciência coletiva da sociedade, deve realmente tornar-se propriedade de todo mundo. Através disto, sem perder nada de seu caráter universal, do qual nunca poderá desligar-se, sob pena de deixar de ser a ciência, e continuando a se preocupar exclusivamente com as causas gerais, com as condições gerais e com as relações gerais dos indivíduos e das coisas, vai fundar-se no fato com a vida imediata e real de todos os indivíduos humanos. Será um movimento análogo ao que fez dizer aos protestantes, no começo da Reforma religiosa, que não havia mais necessidade de padres, cada homem tornando-se, a partir daí, seu próprio padre, cada homem, graças à intervenção invisível, única, de Nosso Senhor Jesus Cristo, tendo enfim conseguido engolir seu bom Deus. Mas aqui não se trata nem de Nosso Senhor Jesus Cristo nem do bom Deus, nem da liberdade política, nem do direito jurídico, todas estas coisas tendo sido teológica ou metafisicamente reveladas, e todas sendo igualmente indigestas, como sabemos. O mundo das abstrações científicas não é revelado; ele é inerente ao mundo real, do qual é apenas a expressão e a representação geral ou abstrata. Enquanto ele forma uma região separada, representada especialmente pelo corpo dos sábios, este mundo ideal ameaça tomar-nos, em relação ao mundo real, o lugar do bom Deus, e de reservar aos seus representantes patenteados o ofício dos padres. É por isto que, através da instrução geral, igual para todos e para todas, é preciso dissolver a organização social separada da ciência; afim de que as massas, deixando de ser rebanhos conduzidos e tosados por pastores privilegiados, possam tomar, a partir de então, seus próprios destinos históricos nas mãos.

Mas enquanto as massas não tiveram chegado a este grau de instrução, será preciso que se deixem governar por homens da ciência? Deus queira que não! Seria melhor, para elas, deixar de lado a ciência do que permitir que sejam governadas por sábios. O governo dos sábios teria, como primeira consequência, tornar a ciência inacessível ao povo e seria necessariamente um governo aristocrático, pois a instituição atual da ciência é uma instituição aristocrática. A aristocracia da inteligência! Do ponto de vista prático, a mais implacável, e do ponto de vista social, a mais arrogante e a mais insultante: tal seria o poder constituído em nome da ciência. Este regime seria capaz de paralisar a vida e o movimento na sociedade. Os sábios, sempre presunçosos, sempre vaidosos, e sempre impotentes, gostariam de se meter em tudo, e todas as fontes da vida iriam secar sob o sopro abstrato e sábio destes.

Mais uma vez, a vida, e não a ciência, cria a vida: só a ação espontânea do próprio povo pode criar a liberdade popular. Sem dúvida, seria muito feliz que a ciência pudesse, a partir de hoje, esclarecer a marcha espontânea do povo rumo à sua emancipação. Porém, mais vale a ausência de luz do que uma falsa luz, acendida parcimoniosamente de fora, com o objetivo evidente de fazer o povo se perder. Além disto, o povo não carecerá de luz, em absoluto. Não é em vão que um povo percorreu uma longa carreira histórica e que pagou seus erros através de séculos de sofrimentos horríveis. O resumo prático destas dolorosas experiências constitui uma espécie de ciência tradicional que, sob certos ângulos, vale tanto quanto a ciência teórica. Enfim, uma parte da juventude estudiosa, aqueles, entre os burgueses estudiosos, que sentirem em si ódio o bastante contra a mentira, contra a hipocrisia, contra a iniquidade e contra a covardia da burguesia, para encontrar neles mesmos a coragem de virar as costas a esta, e paixão suficiente para abraçar sem reserva a causa justa e humana do proletariado, estes serão, como eu já disse, os instrutores fraternos do povo; levando-lhe os conhecimentos que ainda lhe faltam, tornarão perfeitamente inútil o governo dos sábios.

Se o povo deve se preservar do governo dos sábios, com mais razão deve prevenir-se contra aquele dos idealistas inspirados. Quanto mais estes crentes e estes poetas do céu são sinceros, mais perigosos se tornam. A abstração científica, eu disse, é uma abstração racional, verdadeira em sua essência, necessária à vida, da qual é a representação teórica, a consciência. Ela pode, ela deve ser absorvida e digerida pela vida. A abstração idealista, Deus, é um veneno corrosivo que destrói e decompõe a vida, que a falseia e a mata. O orgulho dos idealistas não sendo pessoal, mas um orgulho divino, é invencível e implacável. Ele pode, ele deve morrer, mas não cederá nunca, e, enquanto ainda lhe restar um suspiro, ele tentará subjugar o mundo sob os pés de seu Deus, como os tenentes da Prússia, estes idealistas práticos da Alemanha, gostariam de vê-lo sendo esmagado sob a bota esporeada do rei deles. É a mesma fé – seus objetos nem são muito diferentes – e o mesmo resultado da fé, a escravidão” (BAKUNIN, 2014, pp. 297-299, grifo original, sublinhados nossos).


Referência:


FERREIRA, Andrey Cordeiro; TONIATTI, Tadeu Bernardes de Souza. De baixo para cima e da periferia para o centro: textos políticos, filosóficos e de teoria sociológica de Mikhail Bakunin. Niterói: Alternativa, 2014 (Volume I – Coleção Pensamento Insurgente).

quinta-feira, 14 de maio de 2020

A Grande Revolução (1789-1793). Piotr Kropotkin [1909]

Contracapa da edição utilizada pelo blog



Comentário introdutório:


O blog Communismo Libertário passará a publicar trechos da obra de Kropotkin sobre a, assim chamada, “Grande Revolução Francesa”. Nosso objetivo é fazer conhecer esse estudo e utilizar suas contribuições no que diz respeito à reconstrução histórica das linhas gerais que fundamentam o programa revolucionário de nossa classe, pois as chamadas “revoluções burguesas” não eclodiram sem que fossem perpassadas pelos antagonismos de classe já constitutivos do capitalismo. Portanto, quando se estuda as insurreições proletárias de 1830-1848, percebe-se que o povo em luta declarava que buscavam resolver a “questão social” que não havia sido resolvida pela Revolução Francesa, que lutaria pela “igualdade de fato” e não simplesmente pela igualdade jurídica do regime burguês, ou seja, pelo que se chamava de “igualdade de condições materiais”.

Vejamos, por exemplo, o que um dos antecessores do programa comunista de nossa classe já declarava durante o período da “Grande Revolução”. O filósofo François Boissel, em Le Cathéchisme du genre humaine (originalmente publicado em 1789), advertia que (p. 6, tradução grifos e acréscimos nossos): “o experimento de todos os séculos conhecidos nos ensina que as religiões, os casamentos e as propriedades não serviam [para a união] e ainda hoje servem apenas para a divisão, a degradação, o infortúnio e a destruição dos homens uns pelos outros”. Boissel defendia a abolição do matrimônio (pois considerava que esta instituição servia, sobretudo, para tornar as mulheres servas – e ele defendia a igualdade do “gênero humano”, sem distinção entre “homens” e “mulheres”), defendia a abolição da propriedade (para instituir a “comunidade de bens”) e a supressão de todas as religiões (uma vez que estas tornavam os seres humanos dominados pela superstição).

Outro exemplo. Um dos representantes da reação, Jacques-Pierre Brissot, taxava de “anarquistas” alguns grupos como os Enragés, pois cometiam, segundo Brissot, os seguintes “crimes”: 1) Dividiam a nação em duas classes, a que possui e a que carece de tudo; 2) Excitaram uma contra a outra; 3) Exigiam pão, pão antes de tudo para os que trabalham (KROPOTKIN, 1935, p. 364). Um discurso que não difere muito do que os reacionários de hoje em dia falam sobre os socialistas: que fomos nós que “inventamos a luta de classes”, que tal fato não seria uma condição inerente da própria sociedade. Mas nós, obviamente, não inventamos as classes sociais e o antagonismo que existe entre os dominantes e os dominados, entre os exploradores e os explorados. O que fazemos é participar ativamente nesse antagonismo, como elementos da própria classe proletária que somos, para levá-lo até o seu paroxismo e, portanto, desencadear o movimento revolucionário que vai abolir as classes sociais e todas as relações de opressão, exploração e dominação que reina entre nós.

Sinopse do livro de Kropotkin e estrutura do texto:


La grande révolution (em português: A grande revolução) é uma obra escrita e publicada em 1909 por Pierre Kropotkin – geógrafo, escritor e ativista político russo do final do século XIX e início do XX (um dos principais teóricos do anarco-comunismo). Neste livro, Kropotkin narra de maneira crítica a história da Revolução Francesa, ocorrida entre os anos de 1789 e 1793, concentrando-se no drama do povo camponês e sua luta, primeiramente, contra o absolutismo do Ancien Régime e, em seguida, em defesa da tomada de seu próprio destino através dos comitês revolucionários. Para o autor, a história apresenta lacunas por conta dos milhares de fatos e movimentos paralelos que compõem a Revolução, algo que por si só explicaria o grande trabalho a ser ainda realizado. Com vistas a tapar algumas dessas lacunas, o autor debruça-se, então, sobre os levantes dos camponeses em 1789, sobre suas lutas pela abolição dos direitos feudais. Partindo de uma ordem cronológica aparentemente clássica dos eventos, mas valorizando não apenas os eventos em si como também a visão singular do autor – obra tratará do período considerado “heroico” da Revolução, que se estendeu de maio a outubro de 1789; da luta surda entre a realeza decadente e o novo poder constitucional até junho de 1792; dos esforços empreendidos pelos Girondinos para parar a Revolução até junho de 1793; passando, então, para a Revolução Popular e concluindo com o fim do chamado “regime do terror”: a morte de Robespierre, o triunfo da reação sobre Revolução, segundo o autor.

Entre colchetes se encontram os números referentes às páginas da edição do livro de Kropotkin que utilizamos aqui.

A referência da obra da qual extraímos o texto abaixo é esta: KROPOTKIN, Piotr. A Grande Revolução (1789-1793). Rio de Janeiro: Athena, 1935. O link anexado no título dessa referência leva até a obra completa, disponibilizada num site onde a encontramos.

Obs.: iremos atualizar essa publicação para incluir mais trechos, na medida de nossas capacidades.

[5] Prefácio:


Quanto mais se estuda a Revolução Francesa tanto mais se verifica como está ainda incompleta história dessa grande epopeia e quantas lacunas e pontos obscuros contém.

É que a Grande Revolução, abalando, perturbando e principiando a reconstruir tudo no decurso de alguns anos, foi um mundo em ação. E se, estudando os primeiros historiadores dessa época, mormente Michelet, se admira o incrível esforço que alguns homens empregaram com êxito, no sentido de discernir as mil séries de fatos e movimentos paralelos de que se compõe a Revolução, verifica-se ao mesmo tempo a enormidade de trabalho que resta a fazer.

As investigações operadas, durante estes trinta últimos anos, pela escola histórica de que são representantes o senhor Aulard e a Sociedade da Revolução Francesa, têm, certamente, fornecido materiais preciosos que jorram ondas de luz nos atos da Revolução, na sua história política e na luta dos partidos que entre si disputavam o poder. No entanto, o estudo dos aspectos econômicos da Revolução e das suas lutas ainda está por ser feito e, como muito bem disse o senhor Aulard, uma vida inteira não chegaria para desempenhar semelhante tarefa, sem a qual, preciso é reconhecê-lo, a história política permanece incompleta e, por vezes, incompreensível. Uma perfeita série de novos problemas, vastos e complicados, se oferece ao historiador quando ele aborda este aspecto da tormenta revolucionária.

[6] Para tentar esclarecer alguns desses problemas, é que empreendi, desde 1886, estudos separados sobre as origens populares da Revolução, sobre as revoltas dos camponeses em 1789, sobre as lutas pró e contra a abolição dos direitos feudais, sobre as verdadeiras causas do movimento de 31 de maio, etc. Infelizmente, para tais estudos, tive que me limitar às coleções impressas – sem dúvida riquíssima – do Museu Britânico, e não pufe entregar-me a pesquisas nos Arquivos nacionais de França.

Como, porém, não poderia o leitor orientar-se em estudos deste gênero se não tivesse uma exposição sumária de todo o desenvolvimento da Revolução, fui levado a fazer uma narração mais ou menos seguida dos sucessos. Não quis repetir o lado dramático de grandiosos episódios tantas vezes narrados, e apliquei-me especialmente a utilizar as investigações modernas, a fim de ressaltar a ligação íntima e as causas dos diversos acontecimentos cujo todo forma a grande epopeia que coroa o século XVIII.

O método que consiste em estudar a Revolução separando diversas partes da sua obra, apresenta certos inconvenientes: provoca, necessariamente, repetições. No entanto, preferi incorrer nessa censura, esperando gravar melhor no espírito do leitor poderosas correntes de pensamento e de ação que se entrechocavam durante a Revolução Francesa, –  correntes que se relacionam tão intimamente com a essência da natureza humana, que reaparecerão fatalmente nos sucessos históricos do futuro.

Quem conhece a história da Revolução sabe como é difícil evitar os erros de fatos nos pormenores das lutas apaixonadas cujo desenvolvimento se pretende narrar. Ficarei, pois, extremamente reconhecido àqueles que me indiquem os erros que devo ter cometido. E principalmente por testemunhar o mais intenso reconhecimento aos meus amigos James Guillaume e Ernest Nys, que tiveram a extrema bondade de ler o manuscrito e as provas e de me auxiliar nesse trabalho com os seus vastos conhecimentos e espírito crítico.

Piotr Kropotkin, 15 de março de 1909.

[7] 1. As Duas Grandes Correntes da Revolução


Duas grandes correntes prepararam e fizeram a Revolução. Uma, a corrente de ideias – a onda de ideias novas sobre a reorganização política dos Estados – vinha da burguesia. A outra, a da ação, vinha das massas populares – dos camponeses e dos proletários nas cidades, que queriam obter melhorias imediatas tangíveis para as suas condições econômicas. E quando essas duas correntes se encontraram num objetivo inicialmente comum, quando, durante certo tempo, se auxiliaram por uma forma recíproca, a Revolução desencadeou-se.

De há muito que os filósofos do século XVIII tinham minado as bases das sociedades cultas da época, nas quais o poder político e uma imensa parte das riquezas pertenciam à aristocracia e ao clero, enquanto a massa do povo continuava a ser a besta de carga dos poderosos. Proclamando a soberania da razão, pregando a confiança na natureza humana e declarando que esta, corrompida pelas instituições que, no decurso da história, impuseram ao homem a servidão, recuperaria, entretanto, integralmente, a sua liberdade, os filósofos abriram à humanidade novos horizontes.

Proclamando a igualdade de todos os homens, sem distinção de origem, e pedindo a obediência de todo o [8] cidadão – rei ou camponês – à lei, considerada a expressão da vontade da nação, visto que era feita pelos representantes do povo; pedindo, enfim, a liberdade dos contratos entre homens livres e a abolição das servidões feudais; formulando todas essas reclamações ligadas entre si pelo espírito sistemático e o método que caracterizam o pensamento do povo francês – os filósofos prepararam, pelo menos espiritualmente, a queda do antigo regime.

Isto, porém, por si só, não era bastante para fazer explodir a Revolução. Era ainda preciso passar da teoria à ação, do ideal concebido à sua realização em fatos; o estudo que, sobretudo, importa hoje à história é o das circunstâncias que permitiram à nação francesa, num dado momento, fazer o esforço preciso: começar a realização do ideal.

Por outro lado, muito tempo antes de 1789, já a França entrara num período de insurreição. O advento de Luiz XVI ao trono, em 1774, foi o prelúdio de uma série de motins da fome, que duraram até 1783. Seguiu-se um período de relativa calma; mas, desde 1786 e, principalmente, desde 1788, as insurreições dos camponeses recomeçaram com energia nova. A fome fora o motivo principal da primeira série de tumultos. Se a falta de pão continuava sendo uma das causas das sublevações, agora era, sobretudo, o desejo de não pagar os censos feudais que impelia os camponeses à revolta. Até 1789, o número desses motins foi aumentando e em 1789, enfim, generalizaram-se por todo o leste, o nordeste e o sudoeste da França.

Assim se decompunha o organismo social. Um levante popular, todavia, não é ainda uma revolução, mesmo quando assume proporções tão terríveis como as da sublevação dos camponeses russos em 1773, sob a bandeira de Pugatchov. Uma revolução é infinitamente mais do que unia série de insurreições nos campos e nas cidades. É mais que uma simples luta de partidos, por muito sangrenta que esta seja, mais que um combate nas ruas, e muito mais que uma simples mudança de governo, como a França realizou em 1830 e 1848. Uma revolução é o derrubamento rápido, em poucos anos, de instituições que levaram séculos a enraizar-se e que pareciam tão estáveis, tão imutáveis, [9] que os mais ardentes reformadores mal ousavam atacá-las nos seus escritos. É a queda, o despedaçamento, num reduzido número de anos, de tudo quanto constituía, até então, a essência da vida social, religiosa, política e econômica de uma nação, o derrubamento das ideias e das noções correntes sobre as complicadíssimas relações entre todas as unidades do rebanho humano. É finalmente, o desabrochar de novas concepções igualitárias quanto ao comércio entre cidadãos – concepções que breve se tornam realidades e começam, daí por diante, a irradiar-se pelas nações vizinhas, convulsionando o mundo e dando ao século seguinte a sua senha, os seus problemas, a sua ciência, as linhas gerais do desenvolvimento econômico, politico e moral.

Para adquirir tal importância, para um movimento assumir as proporções de uma revolução, como sucedeu em 1648-1688 na Inglaterra e em 1789-1793 em França, não basta produzir-se um movimento de ideias nas classes instruídas, seja qual for a sua profundeza, e não basta produzirem-se tumultos no seio do povo, por maiores que sejam o seu número e a sua extensão. É preciso que a ação revolucionária procedente do povo coincida com o movimento da ideia revolucionária dimanando das classes instruídas. É preciso a união de ambas.

Eis porque a Revolução Francesa, assim como a revolução inglesa do século precedente, se produziu no momento em que a burguesia, depois de se instruir largamente na filosofia do seu tempo, chegou à consciência dos seus direitos, concebeu um novo plano de organização política e, forte no seu saber, pertinaz na sua tarefa, sentiu-se capaz de se apoderar do governo, arrancando-o a uma aristocracia palaciana que impelia o reino à completa ruína, pela sua incompetência, pela tua leviandade, pela sua dissipação. Por si sós, porém, a burguesia e as classes instruídas nada teriam feito se, em consequência de múltiplas circunstâncias, a massa dos camponeses não se tivesse agitado também, e, por uma série contínua de insurreições que duraram quatro anos, não facultasse aos descontentes das classes médias a possibilidade de combater o rei e a Corte, derrocar as velhas instituições e mudar completamente o regime político do reino.

[10] Mas, a história desse duplo movimento ainda está por ser escrita.

A história da Grande Revolução Francesa foi feita e refeita muitas vezes, sob o ponto de vista de outros tantos partidos diferentes; mas, até hoje, os historiadores dedicaram-se, principalmente, a narrar a história política, a história das conquistas da burguesia sobre o partido da Corte e sobre os defensores das instituições da velha monarquia. Conhecemos perfeitamente o alvorecer da ideia que precedeu a Revolução; conhecemos os princípios que dominaram a Revolução, os quais se traduziram na sua obra legislativa; extasiamo-nos diante das grandes ideias que ela lançou no mundo e que o século XIX, mais tarde, procurou realizar nos países civilizados. Em suma, a história parlamentar da Revolução, as suas guerras, a sua política e a sua diplomacia foram estudadas e discutidas com todos os pormenores; mas a história popular da Revolução continua ignorada. O papel do povo dos campos e das cidades, nesse movimento, jamais foi narrado nem estudado em conjunto.

Das duas correntes que fizeram a Revolução, conhece-se a do pensamento, mas a outra corrente, a ação popular, nem sequer foi delineada.

A nós, descendentes daqueles a que os contemporâneos chamavam “anarquistas”, cabe o estudo dessa corrente popular, realçando-lhe, ao menos, os traços essenciais.

[11] 2. A Ideia


Para compreender bem a ideia que inspirou a burguesia de 1789, é mister apreciá-la segundo os seus resultados – os Estados modernos.

Os Estados cultos, que hoje vemos na Europa, mal se esboçavam pelo fim do século XVIII. A centralização dos poderes, que atualmente funciona, ainda não atingira a perfeição nem a uniformidade que em nossos dias lhe notamos. Esse formidável mecanismo que, a uma ordem dimanada de certa capital, põe em movimento todos os homens de uma nação, equipados para a guerra, e os leva a lançar a devastação nos campos e o luto nas famílias; esses territórios pejados de administradores cuja personalidade é totalmente apagada pela sua servidão burocrática e que obedecem maquinalmente às ordens provenientes de uma vontade central; essa obediência passiva dos cidadãos à lei, e esse culto da lei, do Parlamento, do juiz e dos seus agentes, que hoje verificamos; esse conjunto hierárquico de funcionários disciplinados; esse enxame de escolas mantidas ou dirigidas pelo Estado, nas quais se ensinam o culto do poder e a obediência; essa indústria cujas engrenagens trucidam o trabalhador que o Estado lhe entrega à discrição; esse comércio que acumula riquezas inauditas nas mãos dos açambarcadores do solo, das minas, das vias de comunicação e das riquezas naturais, e que mantém o Estado; enfim, essa ciência que, embora liberte o pensamento, embora centuplique as forças produtivas da humanidade, quer, no entanto, submetê-las ao direito [12] do mais forte e ao Estado, nada disto existia antes da Revolução.

Muito antes, contudo, da Revolução se anunciar pelos seus rumores, já a burguesia francesa, o Terceiro Estado, entrevira o organismo político que se ia desenvolver sobre as ruínas da realeza feudal. É muitíssimo provável que a Revolução inglesa contribuísse para mostrar ao vivo o papel que a burguesia iria desempenhar no governo das sociedades. E é certo ter a revolução em América estimulado a energia dos revolucionários em França; mas, já desde o começo do século XVIII, o estudo do Estado e da constituição das sociedades cultas fundadas na eleição de representantes, se tornara – devido a Hume, Hobbes, Montesquieu, Rosseau, Voltaire, Mably, d'Argenson, etc., – um estudo favorito a que Turgot e Adam Smith acrescentaram o estudo das questões econômicas e da missão da propriedade na constituição política do Estado.

É que, muito antes da Revolução explodir, o ideal de um Estado centralizado e bem-ordenado, governado pelas classes que possuem propriedades prediais ou industriais, ou que se entregam às profissões liberais, fora previsto e exposto num grande número de livros e de panfletos, nos quais os homens de ação da Revolução bebem, mais tarde, a sua inspiração e energia racional.

Eis porque a burguesia francesa, em 1789, no momento de entrar no período revolucionário, sabia bem o que queria.

Claro que não era republicana – e, hoje mesmo, sê-lo-á? – mas já não queria poder arbitrário do rei, do governo, dos príncipes e da corte, dos privilégios dos nobres que açambarcavam os melhores lugares no governo, e que só sabiam saquear o Estado, como saqueavam suas imensas propriedades, sem as valorizar. Era republicana nos seus sentimentos e queria a simplicidade republicana nos costumes, como nas nascentes repúblicas da América, mas também queria o governo das classes possuidoras.

Sem ser ateia, era um tanto livre-pensadora, mas de forma alguma detestava o culto católico. O que detestava, principalmente, era a Igreja com sua hierarquia e os seus bispos, a fazerem causa comum com os [13] príncipes, e os seus curas tornados instrumentos dóceis nas mãos dos nobres.

A burguesia de 1789 compreendia que – como cento e quarenta anos antes para a Inglaterra – chegara para a França o momento do Terceiro Estado apanhar o poder que caía das mãos da realeza; e sabia o que queria fazer dele.

Seu ideal era dar à França uma Constituição modelada sobre a Constituição inglesa. Reduzir o rei ao papel de simples escrivão depositador – por vezes poder ponderador – mas, sobretudo, encarregado de representar, simbolicamente, a unidade nacional.

Quanto ao verdadeiro poder eleito, devia ser entregue a um parlamento onde a burguesia instruída, representando a parte ativa e pensante da nação, dominaria o resto.

Ao mesmo tempo, o seu ideal era abolir todos os poderes locais ou parciais que constituíam outras tantas unidades autônomas no Estado; concentrar toda a força governamental nas mãos de um poder executivo central, estritamente vigiado pelo parlamento, – estritamente obedecido no Estado, e englobando tudo: imposto, tribunais, polícia, força militar, escolas, vigilância policial, direção geral do comércio e indústria, – tudo; proclamar, além disso, a liberdade completa das transações comerciais e, ao mesmo tempo, dar carta branca às empresas industriais para a exploração das riquezas naturais e igualmente dos trabalhadores entregues assim, sem defesa, àquele que lhes quisesse dar trabalho.

E tudo devia ser colocado sob fiscalização do Estado que favorecia o enriquecimento dos particulares e a acumulação das grandes fortunas – condições a que a burguesia desse tempo atribuía, necessariamente, grande importância, pois até a convocação dos Estados Gerais se realizara para impedir a ruína do Estado.

Sob o ponto de vista econômico, o pensamento dos homens do Terceiro Estado não era menos definido. A burguesia francesa lera e estudara Turgot e Adam Smith, criadores da economia política. Sabia que na Inglaterra já as suas teorias haviam sido aplicadas e invejava aos seus vizinhos burgueses de além-Mancha a sua poderosa organização econômica, assim como lhes [14] invejava o poder político. Sonhava com a apropriação das terras pela grande e pequena burguesia, e a exploração das riquezas do solo, até então improdutivo nas mãos dos nobres e do clero. E nisto tinha por aliados os pequenos burgueses camponeses, já numerosos nas aldeias, antes mesmo da Revolução lhes multiplicar o número. Entrevia já o rápido desenvolvimento da indústria e da produção das mercadorias em grande escala, com o auxílio da máquina, o comércio externo e a exportação dos produtos da indústria para além dos oceanos: os mercados do Oriente, as grandes empresas – e as fortunas colossais. Compreendia que, para chegar nesse ponto, era preciso, primeiro, quebrar os liames que prendiam o camponês à aldeia. Era preciso que ele tivesse a liberdade de deixar a sua cabana e fosse forçado a fazê-lo: que, levado a emigrar para as cidades em busca de trabalho, a mudar de patrão, desse ouro à indústria, em vez dos rendimentos que dantes pagava ao senhos – elevadíssimos para ele, mas, afinal, pouco lucrativos para o amo. Enfim, era preciso ordem nas finanças do Estado, impostos mais fáceis de pagar e mais produtivos.

Em suma, era necessário aquilo a que os economistas chamaram liberdade de indústria e de comércio, mas que significava, por um lado, libertar a indústria da vigilância meticulosa e prejudicial do Estado, e, por outro, obter a liberdade de explorar o trabalhador privado de liberdade. Acabavam-se as uniões de ofício, as associações operárias, as jurandas, que poderiam por qualquer freio à exploração do trabalho assalariado; acaba-se, também, a vigilância do Estado, que poderia contrariar o industrial; não mais impedimentos interiores para os patrões – e estrita proibição de “coligações” entre trabalhadores. “Deixar proceder” uns e impedir os outros de se coligarem.

Tal foi o duplo plano previsto pela burguesia. Por isso, quando se apresentou a ocasião de o realizar – forte pelo saber, pela clareza de vistas e pelo hábito dos “negócios”, a burguesia, sem hesitar sobre o conjunto nem sobre as minudências, trabalhou para fazer passar essas opiniões para a legislação. E usou de uma energia consciente e seguida, que o povo nunca teve, [15] devido a não conceber nem elaborar um ideal que pudesse opor ao dos senhores do Terceiro Estado.

Seria injusto dizer, é claro, que a burguesia de 1789 foi exclusivamente guiada por propósitos estreitamente egoístas. Si assim fosse, jamais teria alcançado êxito. É preciso sempre um pouco de ideal para vencer nas grandes transformações. Os melhores representantes do Terceiro Estado tinham, de fato, bebido nessa fonte sublime – a filosofia do século XVIII, que continha em germe todas as grandes ideias que depois surgiram. O espírito eminentemente científico dessa filosofia, o seu caráter profundamente moral, pois zombava da moral convencional, a sua confiança na inteligência, a força e a grandeza do homem livre quando vivesse rodeado de iguais, o seu ódio às instituições despóticas – tudo isso se encontra nos revolucionários da época. Onde teriam eles ido buscar força de convicção e de dedicação de que deram prova na luta? Também é preciso reconhecer que, mesmo entre aqueles que mais trabalharam para realizar o programa de enriquecimento da burguesia, havia quem acreditasse sinceramente que o enriquecimento dos particulares seria o melhor meio de enriquecer a nação em geral. Não estavam disso convencidos os melhores economistas, com Smith à frente?

Mas, por muito elevadas que fossem as ideias abstratas de liberdade, igualdade, progresso livre, em que se inspiravam os homens sinceros da burguesia de 1798-1793, é pelo seu programa prático, pela aplicação da teoria, que devemos apreciá-los. Por que fatos se traduziria a ideia abstrata na vida real? Isso é que revelaria o seu verdadeiro valor.

Pois bem! Se é justo reconhecer que a burguesia de 1789 se inspirava em ideias de liberdade, igualdade (perante a lei) e de libertação política e religiosa – essas ideias, desde que se avolumavam, traduziam-se positivamente pelo duplo programa que acabamos de esboçar: liberdade de utilizar as riquezas de toda espécie para o enriquecimento pessoal, assim como a de [16] explorar o trabalho humano, sem nenhuma garantia para as vítimas da exploração e organização do poder político, entregues à burguesia de forma a assegurar-lhe a liberdade dessa exploração. E breve veremos as lutas terríveis que se travaram em 1793 quando uma parte dos revolucionários quis ultrapassar esse programa.

[17] 3. A Ação


E o povo? Qual era sua ideia?

Também o povo sofrerá, até certo ponto, a influência da filosofia do século. Por mil vias indiretas, os grandes princípios de liberdade e libertação tinham-se infiltrado até nas aldeias e nos arrabaldes das grandes cidades. Desaparecia o respeito pela realeza e pela aristocracia. Ideias igualitárias penetravam nos meios mais obscuros. Clarões de revolta atravessavam os espíritos. A esperança de uma próxima transformação fazia, por vezes, bater mais forte os corações dos mais humildes. — “Não sei o que vai suceder, mas alguma coisa deve suceder, e dentro de pouco tempo”, dizia, em 1787, uma anciã a Artur Young, que percorria a França nas antevésperas da Revolução. E “alguma coisa” devia trazer um alívio às misérias do povo.

Discutiu-se, ultimamente, si o movimento que precedeu a Revolução e a própria Revolução conteria um elemento de socialismo. A palavra “socialismo” não existia ainda, certamente, pois data de meados do século XIX. A concepção do Estado capitalista a que a fração social-democrata do grande partido socialista procura reduzir hoje o socialismo, não dominava, de certo, ao ponto em que domina atualmente, pois os fundadores do “coletivismo” social-democrata, Vidal e Pecqueur, só escreveram de 1840 e 1849. Não podemos, contudo, ler hoje as obras dos escritores precursores da Revolução, sem nos sentirmos impressionados pela forma como esses escritos estavam imbuídos das [18] ideias que constituem propriamente a essência do socialismo moderno. 

Duas ideias fundamentais – da igualdade de todos os cidadãos nos seus direitos a terra, e aquela que presentemente conhecemos pelo nome de comunismo, encontravam dedicados partidários entre os enciclopedistas, assim como entre os mais populares escritores da época, como Mably, d'Argenson e outros de menor importância. É muito natural que, estando ainda a grande indústria na sua infância, e sendo a terra o capital por excelência, o instrumento da exploração do trabalho, e não a fábrica, que mal começava a constituir-se – é muito natural que fosse para a posse em commum do solo que se voltasse especialmente o pensamentos dos filósofos e, mais tarde, o pensamento dos revolucionários do século XVIII. De fato, desde 1768 (Dúvidas sobre a Ordem Natural e Essencial das Sociedades), não pedia Mably – que, muito mais do que Rousseau, inspirou os homens da Revolução, – a igualdade para todos no direito ao solo e à posse comunista do solo? e a ideia dominante dos escritores precursores da Revolução, assim como da ala esquerda dos revolucionários durante a própria tormenta, não era o direito da nação a todas as terras e propriedades urbanas, assim como a todas as riquezas naturais – florestas, rios, quedas d'água, etc.?

Infelizmente, essas inspirações comunistas não assumiram forma clara, concreta, nos pensadores que queriam a felicidade do povo. Enquanto, na burguesia instruída, as ideias de libertação se traduziam por um programa completo de organização política e econômica, ao povo só se apresentavam sob a firma de vagas aspirações as ideias de libertação e de reorganização econômicas. Muitas vezes, eram até simples negações. Aqueles que falavam ao povo não tentavam definir a forma concreta sob a qual esses objetivos ou essas negações se poderiam manifestar. Dir-se-ia mesmo que evitavam defini-las. Conscientemente ou não, pareciam dizer consigo: “Para que falar ao povo da forma por que se organizará mais tarde? Isso amortecer-lhe-ia a energia revolucionária. Basta-lhe a força de ataque para marcar para o assalto das velhas instituições. Depois, veremos como nos havemos de arranjar”.

[19] Quantos socialistas e comunistas procedem ainda da mesma maneira! Impacientes por apressarem o dia da revolta, acusam de utópicas todas as tentativas de lançar alguma luz sobre o que a Revolução deverá procurar introduzir. 

É preciso dizer, também, que à ignorância dos escritores – quasi todos cidadãos e estudantes – cabe a maior culpa. Por isso, em toda aquela multidão de homens instruídos e habituados aos “negócios do Estado”, que foi a assembleia, etc., – só dois ou três membros legistas conheciam os direitos feudais, e sabe-se que na Assembleia havia pouquíssimos representantes dos camponeses que, por experiência pessoal, estivessem ao par das necessidades da aldeia. 

Por essas razões diversas é que a ideia popular se exprimia principalmente por meras negações. — “Queimem-se os registros onde estão consignados os censos feudais! Abaixo os dízimos! Abaixo o Beto! À fôrca os aristocratas!” Mas, para quem a terra livre? Para quem a herança dos aristocratas guilhotinados? Para quem o poder do Estado, que caía das mãos do Veto para se tornar nas da burguesia uma força tão formidável como sob o antigo regime?

Esta falta de clareza nas concepções do povo, quanto ao que podia esperar da Revolução, ficou impressa em todo o movimento. Enquanto a burguesia caminhava com passo firme e decidido para a constituição do seu líder político num Estado que procurava amoldar as intenções, o que poderia fazer do poder conquistado, afim de o tornar vantajoso a lei Agrária e de nivelamento das fortunas começaram a definir-se, encontraram obstáculos em todos os preconceitos sobre a propriedade, dos quais estavam imbuídos mesmo aqueles que tinham esposado sinceramente a causa do povo. 

Igual conflito se produziu nas concepções sobre a organização política do Estado. Vê-se isso, sobretudo, na luta que se trava entre os prejuízos governamentais dos democratas da época e as ideias que desabrocharam no seio das massas, a respeito da descentralização [20] política, do papel preponderante que o povo queria dar as suas municipalidades, as suas secções nas grandes cidades, e assembléias de aldeia. Daí toda essa série de conflitos sangrentos que surgiram na Convenção. E daí, também, a incerteza dos resultados da Revolução para a grande massa do povo, a não ser no que respeita as terras retomadas aos senhores laicos e religiosos e livres dos direitos feudais. 

Si as ideias do povo, porém, eram confusas sob o ponto-de-vista positivo, eram pelo contrário muito nítidas, a certos respeitos, nas suas negações. 

Em primeiro lugar, o ódio do pobre contra toda essa aristocracia indolente, ociosa, perversa, que o domina, quando a negra miséria reinava nos campos e nas escuras ruelas das grandes cidades; depois, o ódio ao clero que, pelas suas simpatias, mais pertencia à aristocracia do que ao povo que o mantinha; o ódio contra as instituições do antigo regime, as quais tornavam a pobreza ainda mais dolorosas visto que se recusavam a reconhecer ao pobre os direitos humanos; o ódio pelo regime feudal e pelos seus censos, que punham o cultivador num estado de servidão para com o proprietário, isto quando a servidão pessoal já não existia; e, enfim, o desespero do camponês quando, nesses anos de escassez, via a terra ficar inculta nas mãos dos senhores, ou a servir de lugar de divertimento para os nobres, enquanto a fome invadia as aldeias – esse ódio, que há tanto tempo crecia e chegará a maturação, à medida que o egoísmo dos ricos se afirmava cada vez mais no decorrer do século XVIII, e essa necessidade da terra, esse grito do camponês, esfaimado e revoltado contra o senhor que o impedia de a cultivar, atiçaram o espírito de revolta desde 1788. E foram esse mesmo ódio e essa mesma necessidade – juntamente com a esperança de êxito – que ampararam, durante os anos de 1789-1793, as contínuas revoltas dos camponeses – revoltas que a burguesia permitiram derrubar o antigo regime e organizar o seu poder sob outro regime, o do governo representativo. 

Sem essas insurreições, sem essa completa desorganização dos poderes na província, produzida pelos incessantes tumultos, sem essa disposição do povo de [21] Paris e de outras cidades a armar-se e marchar contra as fortalezas da realeza todas as vezes que os revolucionários apelavam para o povo – sem isso, o esforço da burguesia de-certo não alcançaria êxito. Mas, é também a essa força sempre viva da Revolução – ao povo pronto a pegar em armas – que os historiadores da Revolução ainda não prestaram a justiça que a história da civilização lhe deve.

[23] 4. O Povo Antes da Revolução


Séria inútil determo-nos aqui para descrever minuciosamente a existência dos camponeses nos campos e das classes pobres nas cidades, antes de 1789. Todos os historiadores da grande Revolução tem consagrado páginas eloqüentissimas ao assunto. O povo gemia sob o fardo dos impostos cobrados pelo Estado, dos censos pagos ao senhor, dos dizimos percebidos pelo clero e dos rudes trabalhos impostos pelos três. Populações inteiras estavam reduzidas a mendicidade e percorriam as estradas em número de cinco, dez, vinte mil homens, mulheres e crianças em cada província; cento e onze mil mendigos se verificavam, oficialmente, em 1777. Nas aldeias, a penúria passara a estado crônico; chegava a curtos intervalos e dizimava províncias inteiras. Então, os aldeões fugiam em massa das suas províncias, na esperança, cedo desiludida, de encontrar melhores condições noutra parte. Ao mesmo tempo, nas cidades, a multidão dos pobres crecia de ano para ano. Faltava constantemente o pão; e, como a municipalidade se encontravam incapazes de abastecer os mercados, os tumultos da fome, sempre seguidos de matanças, eram comuns na vida do reino. 

Por outro lado, essa requintada aristocracia do século XVIII dispendia, num luxo desenfreado, absurdo, fortunas colossais – centenas de milhares e milhões de francos de rendimento por ano. Perante a vida que levavam, um Taine pode hoje extasiar-se, porque só a conhece de longe, a cem anos de distância, pelos livros; mas, [24] na realidade, sob os exteriores ensaiados pelo mestre-sala e por detrás de uma cega dissipação, a mais cruel sensualidade, a ausência de utilidade, de todo pensamento, e até dos mais simples sentimentos humanos. 

O tédio costumava bater a porta desses ricos, que contra eles usavam, em vão, é claro, de todos os meios, os mais fúteis, os mais infantis. Bem se viu, aliás, o que valia essa aristocracia quando a Revolução explodiu: os aristocratas, importando-se pouco de defender o “seu” rei e a “sua” rainha, se apressaram a emigrar e a chamar em seu socorro a inversão estrangeira, afim de os proteger contra o povo revoltado. A sua coragem e “nobreza” de caráter podem ser apreciadas nas colônias de emigrados que se formavam em Coblentz, em Bruxelas e Mitau…

Esses extremos de luxo e de miséria, tão freqüentes no século XVIII, foram admiràvelmente descritos por todos os historiadores da Grande Revolução. É preciso, porém, acrecentar um ponto, cuja importância ressalta principalmente quando se estudam as condições atuais dos camponeses na Rússia, antes da grande Revolução russa. 

A miséria da grande massa dos camponeses franceses era, de-certo, medonha. Fora-se agravando sem cessar, desde o reinado de Luiz XIV, a medida que as despesas do Estado aumentavam e que o luxo dos senhores refinava, tomando esse carater de extravagância de que nos falam tão bem certas memórias da época. O que, sobretudo, é que uma grande parte da nobreza, na realidade arruinada, mas ocultando a sua pobreza sob aparência de luxo, se encarniçava em arrancar aos camponeses o máximo possível de rendimentos, exigindo deles até os menores pagamentos e censos em gêneros outrora estabelecidos pelo costume, e tratando-se, por intermédio de intendentes, com todo o rigor de simples usurarios. O empobrecimento da nobreza tornava nobres, mas suas relações com os ex-servos, burgueses ávidos de dinheiro, incapazes de encontrar outras fontes de rendimento que não fosse a exploração dos antigos privilégios, restos da época feudal. 

Eis porque se encontram, num certo número de documentos, vestígios incontestáveis de uma [25] recrudecência das exações dos senhores durante os quinze anos de reinado de Luiz XVI, que precederam 1789.

Mas, si os historiadores da grande Revolução têm razão de desenhar quadros muito sombrios da condição dos camponeses, seria falso concluir que os outros historiadores (como Tocqueville, por exemplo) que falam de melhoramento das condições nos campos, nos mesmos anos precedentes à Revolução, não estejam com a verdade. O fato é que um duplo fenômeno se realizava, então, nas aldeias: o empobrecimento em massa dos camponeses e o melhoramento da sorte de alguns deles. Vê-se isso, hoje, muito bem, na Rússia, após a abolição da servidão. 

A massa dos camponeses empobrecida. De ano para ano, a sua existência se tornava mais incerta; a menor seca produzia a carestia e a fome. Uma nova classe, porém, de camponeses um tanto remediados e ambiciosos, se constituía ao mesmo tempo – principalmente onde a decomposição das fortunas nobiliarias se efetuará mais rápidamente. Surgia a burguesia da aldeia, o camponês emburguesado, e foi ele que, aos primeiros albores da Revolução, primeiro falou contra os direitos feudais e pediu a sua abolição. Foi ele que, durante os quatro ou cinco anos que durou a Revolução, exigiu tenazmente a abolição dos direitos feudais sem indenização – isto é, a confiscação dos bens e a divisão dos bens confiscados.

Foi ele, enfim, que mais se encarniçou em 1793 contra os “azues”, os ex-nobres – os ex-senhores.

Nesse momento, as proximidades da Revolução, é com ele, esse camponês tornado notável na sua aldeia, que a esperança entra nos corações e o espírito de revolta amadurece.

São evidentes os vestígios desse despertar, porque, de 1786 em diante, as revoltas se tornavam cada vez mais freqüentes. É preciso dizer que, si o desespero da miséria impelia o povo ao motim, era a esperança de obter alguma melhoria que o levava a revolução.

Como todas as revoluções, a de 1789 foi movida pela esperança de chegar a certos resultados importantes. 

quarta-feira, 13 de maio de 2020

O Povo (1840), por: Jean-Jacques Pillot

Retrato de Jean Jacques Pillot, provavelmente de 1865


Essa pequena tradução é feita a partir de uma coletânea de textos intitulada “Before Marx: Socialism and Communism in France, 1830–48”. Essa é primeira publicação do blog onde buscamos difundir as ideias dos comunistas franceses que participaram das lutas de classes do período conhecido como Primavera dos Povos (lutas que lançaram as bases do programa comunista-anarquista-socialista do proletariado moderno dos séculos XIX, XX e XXI). Consideramos que a importância da contribuição destes autores e autoras não pode ser negada na história de nossa classe.

As páginas do livro editado por Paul Corcoran da qual extraímos esse texto estão indicadas entre colchetes. Entre chaves são indicadas as notas.

[68]

JEAN-JACQUES PILLOT (1808-77) nasceu em Charente, estudou em um seminário e cursou medicina. Ele serviu como sacerdote até que suas visões políticas avançadas o levou a uma sentença de prisão em Versalhes em 1836 por associações ilícitas, quebrando seus votos e usurpando vestes sacerdotais. Em 1839, Pillot começou a propaganda neobabeuvista com o La Tribune du Peuple [A Tribuna do Povo], um jornal comunista radical que ele editou. O pequeno livro Ni Chateaux ni chaumieres [Nem castelos nem cabanas de palha], parte do qual é apresentado aqui, apareceu no mesmo ano de 1840, no qual ele trabalhou com Dézamy na organização do primeiro banquete comunista e também passou mais seis meses na prisão. Em 1841, ele cumpriu outra sentença de seis meses por pertencer a um grupo comunista que defendia a destruição dos direitos de propriedade e a construção de um ‘systeme de communaute egalitaire’ [sistema comunitário igualitário]. Candidato mal sucedido à Assembléia Nacional em 1848, ele foi deportado depois que o Segundo Império foi declarado em 1851. Sua vida política foi retomada após a proclamação da nova República em 1870. Ele trabalhou com Blanqui, tornou-se membro eleito da Comuna e ganhou a reputação de ser um dos membros mais radicais. Preso novamente após a queda da Comuna, foi condenado à prisão perpétua. Seus três pedidos de misericórdia foram ignorados e ele morreu na prisão.

O Povo (*)


O povo! Ele é o rei dos reis, o dispensador soberano de cetros e impérios, o produtor e o mestre de todas as riquezas da terra. São eles que morrem de fome, de frio ou de [69] desespero. São eles que são escravizados em todos os cantos da terra! Não existe uma única palavra em qualquer idioma que tenha sido tão abusada quanto esta. Vamos, portanto, tentar determinar seu verdadeiro significado. Fazer isso seria um grande avanço em direção à solução da questão social.

A palavra povo, como termo de história ou geografia, significa uma reunião de homens, ocupando uma extensão determinada de terra, falando a mesma língua, respeitando os mesmos costumes e moral e tendo um nome comum a todos, como: os franceses, os ingleses, os espanhóis etc.

Na linguagem política, a palavra povo tem um significado totalmente diferente. Representa todos aqueles que não possuem nada ou praticamente nada. O povo é para a sociedade moderna o que os escravos eram para a sociedade antiga; nada podem exigir do empregador quando passam a vida a serviço dele, ou quando lhe agrada o capricho de não precisar mais dos serviços deles. Então eles devem implorar a ele por sua existência insignificante. Se ele os recusar, o que ele permanece livre para fazer, nada resta, finalmente, exceto desonra ou morte. Estes são os elementos que constituem o que é chamado de povo ou população {1}. Desde a ascensão do Cristianismo, como dizem alguns, se aboliu a escravidão, e não é mais suficiente que nossos senhores bons e virtuosos, com seus corações formados e espíritos iluminados por essa moralidade divina, devorem os frutos de nosso trabalho em tranquilidade, como seus predecessores costumavam fazer, para quem conhecia apenas a moralidade monstruosa e infame do paganismo. Agora, para aumentar suas delícias, eles devem ter o prazer de nos fazer mendigos, nos provocando e degradando!

Que assim seja! Nem cristãos nem pagãos, nem nada do tipo, não queremos viver do suor da população nem fazê-los implorar. Para aqueles que recusamos desprezar ou degradar, dizemos: a terra não pertence a ninguém, seus frutos pertencem apenas àqueles que a cultivam.

Se essas criaturas, desprovidas e desprezadas até hoje, duvidarem de seu poder, lembramos: o tipo de parasita que o devora é covarde e pouco em número. Você o supera em duzentos a um! [70]

A questão principal


Há uma questão fundamental sobre a qual é necessário fixar a consciência de uma nação antes de invocá-la para garantir um sistema diferente daquele que agora a governa. Aqui estão os termos desta questão.

As pessoas têm o direito de mudar de organização social quando quiserem? É da maior certeza que a liberdade ou a escravidão estão no fundo desta questão. É igualmente claro que os capangas da tirania sempre fazem o possível para obscurecer a questão, tentando ocultar sua admirável simplicidade e a resposta óbvia.

Apoiados pela autoridade dos homens mais ilustres, conhecidos por sua profunda genialidade e amor à humanidade, socialistas ao mesmo tempo mais conscientes e corajosos, nós respondemos: Sim, as pessoas podem e devem mudar sua organização social assim que uma mudança parecer necessária ou até mesmo útil. Que estranho! Mesmo após a abolição do direito divino, a ideia ainda é invocada para tentar permanecer no poder. Ninguém abandonou voluntariamente o poder sem ser forçado a sair pela guerra! Não é essa uma dessas contradições, uma daquelas infâmias políticas que é impossível rotular ou descrever devido à própria inadequação das palavras?

O que! Você está disposto a concordar que chegou ao poder não porque se chama isto ou aquilo, nem porque esse sangue flui em suas veias em vez de algum outro tipo, mas ainda mais singularmente porque a nação escolheu você. E dificilmente sendo investido com a autoridade que lhe é confiada tão livremente, você tem o descaramento de declarar à nação que essa autoridade é sua própria propriedade e a de seus descendentes em perpetuidade {2}. E então proíbe a nação, sob as penas mais extremas, de pensar em retirá-la de você, ou mesmo examinar o uso que faz dela, sob o pretexto de que é inviolável! Mas você sabe muito bem que essa é a altura da insolência e da astúcia!

O que! Ao admitir que a nação realmente o escolheu, que realmente confiou em você por um único instante - o que eu nego estritamente -, deve-se seguir que você poderá despojá-la, humilhá-la, torturá-la e matá-la, sem que a nação tenha uma palavra solitária para dizer? Existe, realmente, na face da terra, um homem solteiro, tão ignorante que não se sinta indignado com uma pretensão assim?

Vamos declarar, portanto, como uma tese geral: quando uma nação se encontra sob o jugo de um homem que finge ter o direito de governá-la, apesar de si mesma, essa nação tem o direito próprio, a qualquer momento, [71] para atacá-lo, surpreendê-lo e aniquilá-lo sem o devido processo, porque seu crime é patente. Ele não consegue encontrar uma desculpa, nem no direito natural nem no direito social. Se, pelo contrário, o chefe de Estado obteve soberania apenas em virtude do consentimento formal ou tácito da nação, a opinião pública deve estar continuamente em posição de tornar seus desejos livremente conhecidos, apreciar as ações do soberano, aplaudi-lo ou culpá-lo abertamente, para que possam dizer a ele, quando bem entender: Fique mais tempo ou vá embora. Mas, se ele impõe silêncio à opinião pública, corrompendo-a, intimidando-a ou suprimindo-a, ele cai na condição de absolutismo. Ele deveria sofrer todas as consequências. Portanto, a realeza absoluta e a realeza limitada não têm outra autoridade senão aquela que as pessoas lhes permitem ou dão. Quando as pessoas desejam retomar seus direitos, os da realeza desaparecem. O povo é o único soberano. Que eles defendam fortemente essa visão. Isto é da maior importância.


Notas e Referências:


(*) Extraído de: Ni Chateaux ni chaumieres, ou, Etat de la question sociale (Paris, 1840), ‘Quatre definition’, pp. 22-8.

{1} – O termo “população” é um termo depreciativo [naquele contexto], aproximadamente equivalente a “multidão” ou “ralé”.

{2} – Esta passagem é dirigida a Louis-Philippe, convidado ao trono após a abdicação de Carlos X pelo governo provisório estabelecido durante a Revolução de julho de 1830.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Reflexões acerca do conceito de proletariado (Ensaio)

Brass Casting (1914), óleo sobre tela, de Hermann Heyenbrock.



Resumo: Neste texto, buscamos discutir de forma ensaística e improvisada as questões que envolvem a auto-definição do proletariado como classe social e seu movimento comunista.



1. Introdução: condições de vida, afetividade e implicações na expressão intelectual da perspectiva revolucionária


As questões teóricas não são irrelevantes para a discussão entre os revolucionários (pelo contrário: possuem uma importância fundamental). Aqueles que pretendem nos convencer de que os assuntos teóricos não devem nos atrapalhar nas coisas práticas apenas escondem suas próprias teorias e reais interesses (o mesmo vale para aqueles que falam de “questões imediatas” como se estas fossem questões consensuais mínimas). Como disse Piotr Kropotkin: “No fundo, estas palavras: ‘Não discutamos estas questões teóricas’ reduzem-se a isso: ‘Não colocai em discussão nossa teoria, mas ajudai-nos a colocá-la em execução’” (2005, p. 225, grifo original). E nós demonstraremos como isso, de fato, ocorre (muitas vezes sob o disfarce de uma “objetividade dada”).

Longe de ser puro interesse especulativo, a teoria nos ajuda a ter as ideias que estão mais adequadas com as necessidades históricas de nossa classe (o proletariado). Portanto, não podemos negligenciar a formulação teórica sobre os rumos do movimento comunista, pois não existe prática revolucionária sem teoria revolucionária e vice-versa.

Uma vez que temos interesse em compreender os rumos que nossa auto-atividade de classe assume historicamente, precisamos refletir profundamente sobre a natureza das relações sociais constitutivas do capitalismo e, consequentemente, compreender o sentido da nossa condição de classe social nesse modo de produção. Não apenas para determinar que função o proletariado possui na reprodução sistêmica do capitalismo, mas, sobretudo, para analisar nossas capacidades com relação à possibilidade de libertação do jugo da exploração e da opressão que sofremos constantemente nesse modo de existência.

Neste caso, não podemos esconder o sentido ético de nossas premissas e conclusões, como fazem os profetas que dizem apenas “interpretar sinais divinos” que revelam os mandamentos de Deus, ou como fazem aqueles que buscam secularizar essa atitude e dizem apenas revelar as “leis da natureza”. Lembremo-nos aqui da controvérsia entre Belarmino e as ciências no seio da sociedade burguesa: que os cientistas não se coloquem questões ontológicas, pois estas se reduzem às gnosiológicas.

De nossa parte, podemos dizer que nossas reflexões só revelam nossa condição de seres mundanos que buscam lutar pela sua existência como qualquer organismo vivo e, portanto, não é porque somos iluminados por um “intelecto universal” que lutamos pela emancipação humana. Na verdade, ocorre algo oposto aqui: porque desejamos a libertação da humanidade que buscamos um conhecimento que seja universal (no sentido de afirmar a multiplicidade sem torná-la homogênea, ao mesmo tempo em que se afirma o absoluto sem torná-lo relativo).

Não obstante, nossa posição como “classe sem reservas”, como grupo social e histórico engendrado pelo processo de proletarização, nos deixa em condições diferenciais no que diz respeito ao processo de produção heterogênea de formas de consciência social. Da mesma forma que somos despossuídos de meios de produção e, portanto, não temos posses materiais vantajosas a perder, também somos privados dos saberes que envolvem a organização da sociedade burguesa. Portanto, na medida em que nossa atividade intelectual não é um elemento convocado a compor esse modo de existência, a não ser de forma obediente e passiva (aceitando as pré-ideações já estabelecidas), nossa relação com a produção de ideias é também uma relação de não garantia, de insegurança ontológica.

Neste caso, temos uma relação ambígua com as ideias que aprendemos vivendo nesse modo de produção. Na condição de proletários, nós nos apropriamos dessas ideias, mas elas não assumem a forma de dogmas sem os quais nossa existência como classe social ficaria comprometida (pois nosso trabalho não tem a ver com inventar ideias para garantir a estabilidade desse sistema – essa função foi relegada a outro grupo social encarregado de organizar a reprodução da sociedade burguesa). Ou seja: tanto faz que tipo de consciência nós, relegados ao trabalho manual na divisão social do trabalho, tenhamos.

É essa indiferença com relação aos nossos processos subjetivos que muitas vezes tem nos levado ao niilismo. Não obstante, as mesmas condições diferenciais que são a  causa de nossa doença (niilismo) podem ser a fonte de nossa cura (subjetividade revolucionária). Uma vez que tenhamos levado ao paroxismo as premissas de nossa existência, veremos que: não temos pré-concepções a salvaguardar, não temos dogmas a defender e nada a esconder (da mesma forma que não temos meios de produção para proteger). Se estamos estranhados com relação às ideias produzidas para manter a reprodução orgânica dessa sociedade, então essas ideias alheias à nossa ideação só poderiam ter conosco uma relação de estranhamento. Portanto, por mais que durante toda nossa vida neste modo de produção nós acabemos por reproduzir seus processos prático-ideativos, algo sempre fica instável, pois nada fica plenamente fixado num modo de vida baseado em laços sociais frouxos (resultantes da desagregação das formas de vida comunitárias).

Neste caso, em nossa atividade intelectual já se encontram dissolvidos o trabalho intelectual de todas as gerações que participaram da composição dos modos de produção anteriores, pois as crenças que nos restaram são expressões da nossa própria miséria existencial, uma vez que mesmo nossas fantasias mais delirantes são apenas uma forma de preencher o vazio de sentido em nossa vida. Portanto, o ápice de nossa consciência social, enquanto expressão ideal das relações sociais atuais, é consciência nonsense ou nonsense de consciência.

Não precisamos afirmar essas ideias para manter nossa posição social, pelo contrário: precisamos manter uma posição social que nos é estranha e, consequentemente, afirmamos ideias estranhadas para a sublimação de nossa miséria existencial (“toda filosofia da miséria é uma miséria de filosofia”). Por isso que religiões cristãs e a constante auto-comiseração nos é tão suscetível e viciante, uma vez que viver de modo gregário é uma exigência de uma forma de produção que leva milhões de humanos a se auto-esfolarem trabalhando para gerar mais-valor ao Capital.

Os paradoxos ao qual nos referimos até aqui podem ser resumidos da seguinte forma:

De fato, queremos dizer que o capitalismo, no seu processo de produção, produz uma formidável carga esquizofrênica sobre a qual ele faz incidir todo o peso da sua repressão, mas que não deixa de se reproduzir como limite do processo. Isto porque o capitalismo nunca para de contrariar, de inibir sua tendência, ao mesmo tempo em que nela se precipita; não para de afastar o seu limite, ao mesmo tempo em que tende a ele. O capitalismo instaura ou restaura todos os tipos de territorialidades residuais e factícias, imaginárias ou simbólicas, sobre as quais ele tenta, bem ou mal, recodificar, reter as pessoas derivadas das quantidades abstratas. Tudo repassa ou regressa, os Estados, as pátrias, as famílias. É isto que faz do capitalismo, na sua ideologia, ‘a pintura mesclada de tudo aquilo em que se acreditou’. O real não é impossível, ele é cada vez mais artificial. (…) Quanto mais a máquina capitalista desterritorializa, descodificando e axiomatizando os fluxos para deles extrair a mais-valia, mais os seus aparelhos anexos, burocráticos e policiais reterritorializam à força, enquanto vão absorvendo uma parte crescente de mais-valia (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 53, grifos nossos).

Neste sentido, como afirmava Bakunin, existe uma razão que explicaria tanto o sentimento religioso dos homens e mulheres da classe proletária de todos os países quanto seus impulsos hedonistas:

Esta razão é a situação miserável à qual ele se encontra fatalmente condenado pela organização econômica da sociedade (…). Reduzido, sob o aspecto intelectual e moral, tanto quanto sob o aspecto material, ao mínimo de uma existência humana, recluso em sua vida como um prisioneiro em sua prisão, sem horizontes, sem saída, até mesmo sem futuro, se acredita nos economistas, o povo deveria ter a alma singularmente estreita e o instinto aviltado dos burgueses para não sentir a necessidade de sair disso; mas, para isso, há somente três meios: dois fantásticos, e o terceiro real. Os dois primeiros são o cabaré e a igreja; o terceiro é a revolução social. Esta última, muito mais que a propaganda antiteológica dos livres-pensadores, será capaz de destruir as crenças religiosas e os hábitos de libertinagem no povo, crenças e hábitos que estão mais intimamente ligados do que se pensa. Substituindo os gozos simultaneamente ilusórios e brutais da orgia corporal e espiritual pelos gozos tão delicados quanto ricos da humanidade desenvolvida em cada um e em todos, a revolução social terá a força de fechar ao mesmo tempo todos os cabarés e todas as igrejas (2002, p. 15, grifos nossos).

Todavia, uma vez que o mar de lágrimas religioso e a frenesi entorpecente tenham se transformado em uma efervescente energia de revolta, nossa crítica como proletários fora da lei é aquela que vai mais longe. O próprio capitalismo, em seu devir paradoxal, tende a fazer com que tudo que outrora foi sólido se desmanchar pelo ar. Esse é seu processo esquizofrênico de produção (e sua produção de esquizofrenia).

Neste sentido, a classe proletária é cada vez mais neurotizada até atingir o limiar entre a psicose e o niilismo ativo, isto é, entre dois processos subjetivos ambivalentes: 1) a conversão da perda de sentido em sentido da perda (adoecimento mental causado pela patologia capitalista – angústia, ansiedade, depressão, etc.); 2) e a negação da própria negação de vida ao qual estamos submetidos (consequentemente: a necessidade de produzir novos sentidos para a existência que nada mais é do que a expressão subjetiva da necessidade de produzir um novo modo de produção).

Quando nos revoltamos contra esse modo de vida destrutivo, ampliamos nossa percepção assim como ampliamos nossas forças coletivas. Nossa atividade intelectual torna-se uma arma espiritual (a crítica revolucionária) a ser usada concomitantemente com nossas armas físicas (o conjunto das práticas subversivas que acionamos na luta de classes por meio da ação direta).

Forma-se para nós o caminho real: o caminho revolucionário. Nossos afetos destrutivos vibram na mesma frequência de nossa revolta, tornando-se afetos produtivos. Neste caso, canalizamos nossos esforços em construir uma crítica desapiedada de todos os elementos que compõem esse modo de produção embrutecedor. Pois a paixão pela destruição é a paixão criativa:

Ninguém pode querer destruir sem ter pelo menos uma imaginação distante, verdadeira ou falsa, da ordem das coisas que deveria, segundo ele, suceder à que existe presentemente: e quanto mais viva é a imaginação nele, mais forte se torna a sua força destrutiva, e mais ela se aproxima da verdade, isto é, mais está conforme ao desenvolvimento necessário do mundo social actual, mais os efeitos da sua acção destrutiva se tornam salutares e úteis. Pois a acção destrutiva é sempre determinada, não só na sua essência e no grau da sua intensidade, mas também nos seus modos, nas suas vias e nos meios que ela emprega, pelo ideal positivo que constitui a sua inspiração primeira, a sua alma (BAKUNIN, 1975, p. 207, grifos nossos).

É neste sentido que compreendemos o que Karl Marx expressa, nos Manuscritos de 1844, acerca da situação singular do proletariado alemão (mas, de certa forma, também resume a situação de toda a classe proletária):

uma classe da sociedade burguesa que não é uma classe da sociedade burguesa; de um estado que é a dissolução de todos os estados; uma esfera que possui um caráter universal por seus sofrimentos universais e que não reclama nenhum direito especial para si, porque não se comete contra ela nenhuma violência especial, senão a violência pura e simples; que já não pode apelar a um título histórico, mas simplesmente ao título humano; que não se encontra em nenhuma espécie de contraposição particular com as conseqüências, senão numa contraposição universal com as premissas do Estado alemão [de qualquer Estado]; de uma esfera, finalmente, que não pode emancipar-se sem se emancipar de todas as demais esferas da sociedade e, simultaneamente, de emancipar todas elas; que é, numa palavra, a perda total do homem e que, por conseguinte, só pode atingir seu objetivo mediante a recuperação total do homem. Esta dissolução da sociedade como uma classe especial é o proletariado.
(…)
Ao proclamar a dissolução da ordem universal anterior, o proletariado nada mais faz do que proclamar o segredo de sua própria existência, já que ele é a dissolução de fato desta ordem universal. Ao reclamar a negação da propriedade privada, o proletariado não faz outra coisa senão erigir a princípio de sociedade aquilo que a sociedade erigiu em princípio seu, o que já se personifica nele, sem intervenção de sua parte, como resultado negativo da sociedade (Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, grifos nossos).

2. A atividade intelectual da crítica proletária se expressa como produção teórica científica:


Compreendemos que somos imanentes a um processo de transformação social que torna-se cada vez mais necessário na medida em que nossa classe avança na luta de classes. Portanto, quando estudamos as condições de nossa existência e as possibilidades da nossa luta pela emancipação humana, nós buscamos compreender o conjunto das determinações gerais do processo histórico. Trata-se, sobretudo, de um estudo das tendências presentes na própria realidade:

Quanto ao método seguido pelo pensador anarquista, ele difere em grande parte do seguido pelos utópicos. O pensador anarquista não recorre a concepções metafísicas (como os “direitos naturais”, os “deveres do Estado” e assim por diante) para estabelecer quais são, em sua opinião, as melhores condições para realizar a maior felicidade da humanidade. (…) Ele estuda a sociedade e tenta descobrir suas tendências, passadas e presentes, suas necessidades crescentes, intelectuais e econômicas; e, em seu ideal, ele apenas aponta em que direção a evolução segue. (…) O ideal do anarquista é, portanto, um mero resumo do que ele considera ser a próxima fase da evolução. Não é mais uma questão de fé; é um assunto para discussão científica (KROPOTKIN, 1887, pp. 238-239).

Esses estudos, em vez de nos conduzir a uma conformação passiva (como se fossem “questões de fato” sem interferência das “questões de interesse”), pelo contrário, se tornam conhecimentos que servem aos interesses práticos dos revolucionários. Portanto, o conhecimento científico, quando utilizado de forma crítica por pensadores revolucionários, está subordinado ao nosso sentido ético, uma vez que queremos agir a favor daquelas tendências que oferecem “as melhores condições para realizar a maior felicidade da humanidade” (idem). Em síntese: não negamos nossa própria existência e influência na ordem das coisas, isto é, consideramos nós mesmos como força histórica em correlação com outras forças. Os estudos servem, portanto, para definir a forma mais adequada de realizarmos nossos objetivos, já que não somos “meros joguetes da evolução histórica”:

A História não faz nada, “não possui nenhuma riqueza imensa”, “não luta nenhum tipo de luta”! Quem faz tudo isso, quem possui e luta é, muito antes, o homem, o homem real, que vive; não é, por certo, a “História”, que utiliza o homem como meio para alcançar seus fins – como se se tratasse de uma pessoa à parte –, pois a História não é senão a atividade do homem que persegue seus objetivos (MARX, 2011, p. 111, grifos originais).

Agora que já introduzimos nossa situação onto-epistemológica de classe, podemos prosseguir no tema que nos propomos discutir.

3. O que é classe proletária?


Saber como conceituar adequadamente nossa classe (o proletariado) é uma questão essencial para pensar o processo revolucionário imanente. Vale destacar que o uso do conceito de causa imanente aqui se refere à questão de pensar a própria Revolução Social como resultado imanente da luta de classes no capitalismo. Esse texto mesmo exprime certas sínteses teóricas que emergem com o desenvolvimento do antagonismo prático-crítico de nossa classe.

Com efeito, existem várias tentativas ideológicas de definir o proletariado, ou seja, de conceituá-lo a partir de ideias funcionais ao modo de produção capitalista (ou seja: ideias que reproduzem as próprias relações de produção capitalistas como formas de consciência). Nosso objetivo não é somente negar tais definições, mas demonstrar, na medida do possível, a própria condição de gênese das mesmas (tal é o sentido da própria crítica). Portanto, também vamos caracterizar algumas dessas visões no que se segue.

Começaremos pela nossa auto-definição histórica e social como tais, na medida em que gerações de lutas de classes nos herdaram um acúmulo sobre o sentido de nossa existência e nosso programa libertário.

4. Como nos tornamos proletários?


As relações sociais atuais foram forjadas na transformação social que a burguesia foi obrigada a realizar para se tornar a classe dominante. A burguesia funda seu poder de classe na propriedade privada dos meios de produção, ou seja, no processo de apropriação exclusiva dos pressupostos objetivos da atividade produtiva. Portanto, a história da propriedade privada da burguesia (conhecida como “acumulação originária”) é a história do roubo dos bens comuns da vida coletiva dos seres humanos.

Nesse processo, os expropriados passam inicialmente por uma “subsunção formal ao processo de trabalho” (dinâmica social de produção capitalista sob condições técnicas pré-capitalistas) e depois por uma “subsunção real ao processo de trabalho” (dinâmica social de produção capitalista sob condições técnicas propriamente capitalistas). A transição para o modo de produção capitalista ocorreu, em primeiro lugar, numa mudança das relações de apropriação seguida de uma mudança nas relações de produção, processo histórico que vai desencadear novas relações socioténicas. Portanto, é errado afirmar que “foi o grau de desenvolvimento das forças produtivas que determinou o engendramento do capitalismo”, algo que vamos explicar a seguir.

Antes de continuarmos, é necessário destacar aqui que existe um gênero de explicações da origem do capitalismo que pode ser definido, como faz Ellen Meiksins Wood, como o paradigma do “modelo mercantil”. Esse paradigma é resultado da própria ideação dos capitalistas sobre si mesmos e o mundo que produziram (uma ideologia). O ideólogo que sistematicamente elaborou tal concepção foi Henri Pirenne. Segundo Wood, esse historiador pressupõe que o capitalismo está, em estado latente, em todas as sociedades ditas “pré-capitalistas” e que, para amadurecer e emergir, bastava ocorrer uma liberação de aspectos externos, de “contingências” sociais e culturais que o “entravavam”. Esse modelo afirma que o capitalismo seria o estágio mais elevado do progresso, surgindo necessariamente devido a fatores não-funcionais das formas de produção precedentes e, particularmente, após a desagregação do feudalismo pelas forças mercantis. Destaca-se com frequência o comercio e as cidades, colocando os burgueses como agentes do progresso. Mas o essencial aqui é o seguinte: essa ideologia se baseia na ideia de que o capitalismo surge em consequência das “leis do mercado” ou do “progresso” (supostamente existentes) que, invariavelmente, levam aos mesmos resultados necessários após terem se desfeito de questões contingenciais.

Já vimos que não podemos acreditar em profetas que dizem revelar as “leis da existência” como se revelassem uma verdade divina. O capitalismo não surge das “pressões seletivas” do mercado. O próprio mercado pré-capitalista se organizava de modo diferente do mercado capitalista, algo que tornou necessário uma grande transformação, segundo Karl Polanyi, para converter “sociedades com mercado” (em era apenas um complemento na sociedade, uma vez que os bens de subsistência geralmente eram produzidos pelos produtores diretos) em “sociedades de mercado” (onde temos os imperativos da compulsão, da competitividade e os bens de subsistência se tornam mercadoria junto com a força de trabalho). Não obstante, Polanyi acredita que o fator dessa transformação teria resultado de um avanço tecnológico inexorável na Europa, o que reproduz o discurso ideológico do progresso.

O que essas visões não explicam é como a mercantilização mesma emerge historicamente. Já falamos sobre isso em nosso texto: Das comunidades originárias ao processo de extraenisação em termos capitalistas. Neste texto afirmamos que: “somente quando é possível alienar um bem comum, isto é, apenas quando se privatiza um bem expropriado-o de sua própria comunidade é que podemos falar em troca mercantil” (Communismo Libertário). Portanto, na medida em que uma classe de pessoas consegue exclusividade sobre uma parte do bem comum, temos uma situação em que “parte do produto do trabalho [será] intencionalmente feita para a troca” (MARX, 1996, p. 213). Neste caso, “consolida-se (…) a separação entre a utilidade das coisas para as necessidades imediatas e sua utilidade para a troca” (idem, grifos nossos).

O efeito dessa separação é a alienação, ou seja, a conversão da atividade produtiva que realiza necessidades para trabalho que produz segundo as necessidades de algo alheio (estranho) na forma de valor (o surgimento da troca mercantil, o trabalho e o valor coincidem). O processo de alienação, da extraenisação (Entfremdung) do trabalho, surge quando: “o objeto (Gegenstand) que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor” (MARX, 2004, p. 80). Assim se afirma a lei do valor (ver: 9. A Lei do Valor e a extraenisação, do nosso texto mencionado acima). O desenvolvimento do valor é um processo de desumanização, pois  “a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta à desvalorização do mundo [humano] (Menschewelt)” (idem). Esse processo se estende e se intensifica, ampliando a condição na qual é preciso alienar reciprocamente os bens de sua comunidade com relação aos bens de outras, tornando essa dinâmica uma parte da própria reprodução social das pessoas em suas comunidades (que se tornam interdependentes pela divisão social do trabalho que envolvem tais trocas).

Em suma: todos os processos envolvendo transações mercantis (pré-capitalistas ou não) resultam numa desumanização, caracterizada pelo estranhamento do outro que se torna alheio à sua existência propriamente social, ou seja, a dissolução do ser coletivo da vida comunitária na ditadura do valor. Marx nos oferece a seguinte descrição do que está envolvido na troca de mercadorias:

Em ambos os lados, portanto, a troca é necessariamente mediada pelo objeto que cada lado produz e possui. A relação ideal com os respectivos objetos da nossa produção é, evidentemente, a necessidade mútua. Mas a relação real, verdadeira, que realmente ocorre e produz efeitos, é apenas a posse mutuamente exclusiva de nossos respectivos produtos. O que dá à tua necessidade de meu artigo valor, importância e efetividade para mim é apenas o teu objeto como o equivalente do meu objeto. Nosso produto recíproco, portanto, é o meio, o mediador, o instrumento, o poder reconhecido de nossas necessidades mútuas. Tua demanda e o equivalente de tua posse, portanto, são para mim termos que são iguais em importância e validade, e tua demanda só adquire um significado, devido a ter um efeito, quando ela tem um significado e efeito em relação a mim. Como um mero ser humano, sem este instrumento, tua demanda é uma aspiração frustrada de tua parte e uma ideia que não existe para mim. Como um ser humano, portanto, você não tem nenhuma relação com meu objeto, porque eu mesmo não tenho nenhuma relação humana com ele. Mas o meio é o verdadeiro poder sobre o objeto e, portanto, nós consideramos mutuamente nossos produtos como o poder de cada um sobre o outro e sobre nós mesmos. Ou seja, o nosso próprio produto se levantou contra nós; ele parecia ser nossa propriedade, mas de fato nós somos propriedade dele. Nós mesmos somos excluídos da verdadeira propriedade porque nossa propriedade exclui os outros homens (Comentários sobre “Os Elementos de Economia Política de James Mill”, 1844).

No caso da emergência do capitalismo (que é o modo mais desenvolvido do mundo das mercadorias), temos uma intensificação e um salto de qualidade nesse processo de desumanização na extraenisação. O modo de produção capitalista é historicamente específico na forma como conduz essa alienação, uma vez que, diferentemente dos modos precedentes, faz com que a lei do valor se expresse na forma de acumulação de valor, isto é, de valor que se valoriza (Capital). O capitalismo passa a existir e persevera na sua existência como modo de produção mundialmente integrado. Essa forma social de produção se reproduz através de sua própria expansão, pois funciona segundo os imperativos do progressivo aumento da produtividade do trabalho (algo que deriva da necessidade da reprodução ampliada do Capital). Essa transformação surge especificamente como resultado da luta de classes na Inglaterra.

Na medida em que a classe dominante inglesa teve sua auto-reprodução atrelada com a produtividade da terra dos seus arrendatários, seus interesses se identificaram com a necessidade de impor a relação mercantil de forma cada vez mais intensa (surgimento de uma competitividade de mercado). Essa imposição veio acompanhada do roubo de terras dos camponeses, conhecido como os enclosures (cercamentos). Nesta conjuntura história surge o que ficou conhecido como capitalismo agrário (ideia defendida por historiadores como Brenner e Wood). Com efeito, essa situação surge precisamente quando o comércio global já estava estabelecido com a expansão colonial dos europeus pelo mundo. Ainda que essa premissa (mercado mundial) seja importante para o nascimento do Capital, ela por si só não explica, pois não demonstra a diferença específica dessa dinâmica: “uma explicação que não dá a differentia specifica não é uma explicação” (MARX, 2010, p. 34). Neste caso, a fundamental transformação desse período histórico é essa espoliação dos produtores diretos mediante imperativos de mercado. Como afirma Wood (2001, p. 101):

Somente uma transformação das relações sociais de propriedade que obrigou as pessoas a produzirem competitivamente (e não apenas a comprarem barato e venderem caro), uma transformação que fez com que o acesso aos meios de auto-reprodução passassem a depender do mercado, é capaz de explicar a drástica revolução das forças produtivas que foi singularmente característica do capitalismo.

A burguesia participa ativamente nesse roubo, como descreve Marx no capítulo que trata da acumulação originária de capital:

Na base do sistema capitalista reside, portanto, a separação radical entre produtor e seus meios de produção […] a base de toda essa evolução é a expropriação dos agricultores [cultivateurs]. Ela só se realizou de modo radical na Inglaterra […] Mas todos os outros países da Europa Ocidental percorrem o mesmo processo [mouvement] (MARX, 2013, p. 114).

Neste sentido, o capitalismo surge historicamente por meio de uma imposição violenta e não por um suposto “desenvolvimento” de uma forma social que apenas esperava as “condições favoráveis” para emergir como proclama o “modelo mercantil” (concepção que, além de teleológica, também precisa se sustentar em essencialismos da “natureza humana”, como o mito de que “as pessoas são naturalmente egoístas”). O modelo mercantil não busca acompanhar o desenvolvimento imanente da história, portanto cai numa “teoria histórico-filosófica geral cuja suprema virtude consiste em ser suprahistórica” (Carta ao Diretor da Revista Russa Otiechéstvennie Zapiski, 1877).

Os capitalistas passam a impor aos privados dos meios de produção a obrigação de trabalhar, pois para ter acesso a meios de subsistência (transformados em mercadorias) é necessário uma fonte de renda e para obter renda é necessário vender algo. Essa situação se impõe, uma vez que mercado tenha dominado a reprodução material de toda a sociedade. Nesse processo, uma classe social “sem bens para vender” surge da expropriação dos meios de produção, portanto não resta nada a vender para essas pessoas do que sua própria capacidade de trabalhar no “mercado de trabalho”.

Uma vez que acumulação originária de capital foi um processo brutal e sanguinário, devemos considerar que o próprio fundamento do capitalismo não poderia ter ocorrido senão com a destruição de certos modos de existência pré-capitalistas. Em outras palavras: para efetuar a imposição do capitalismo, foi necessário a negação do seu contrário, ou seja, do não-capitalismo. Em outras palavras: a negação do não-capitalismo surge primeiro que a negação do capitalismo.

Qualquer modo de produção que tivesse alguma incongruência com o capitalismo foi confrontado violentamente pela reprodução ampliada das relações capitalistas. Nesse processo, o comunismo originário foi o modo de existência mais oposto à expansão do capitalismo. Também já é amplamente reconhecido que as sociedades onde não existiam hierarquias sociais sempre foram as que mais causavam abjeção às classes dominantes de todos os países (por isso sempre foram os maiores alvos dos processos coloniais da acumulação originária). Em suma: se a reprodução social desta ou daquela coletividade era baseada nas necessidades e não na mercantilização e acumulação de valor, esse agrupamento era logo identificado como um inimigo natural do mundo das mercadorias, uma vez que a mera existência de uma forma de vida baseada nas necessidades atesta contra o imperativo compulsório da lei do valor.

Neste caso, não faz sentido dissociar a proletarização da expropriação dos meios de subsistência das pessoas no processo de formação da classe proletária. Portanto, tornar-se proletário, historicamente falando, significa ter sido expropriado, ter seu modo de vida desagregado, ser socializado no mercado de trabalho (enquanto se é “dessocializado” da comunidade), ser submetido à escravidão do trabalho assalariado (além da escravidão doméstica que recai sobre as mulheres na forma de “trabalho reprodutivo”). Em suma: nos tornamos proletários quando somos transformados em capacidade puramente subjetiva para trabalhar.

Como resumiu o grupo Réseau de Discussion International (que vamos abreviar para RDI): “proletariado é o herdeiro de todas as classes exploradas do passado porque as suas condições de sobrevivência levam ao seu paroxismo a inumanidade das condições de vida de todas as classes exploradas do passado, e porque concentra em si todas as causas profundas das lutas anteriores” (2004).

5. O que é nossa classe?


Vimos que o capitalismo surge a partir do encontro entre duas séries: uma classe de expropriados que apenas ficaram com suas próprias capacidades e uma classe de expropriadores que ficaram com os pressupostos objetivos (os meios de produção) que possibilitam a realização dessas capacidades. A propriedade privada capitalista é de um gênero diferente das demais, na medida em que a burguesia, enquanto capitalista, controlaria a objetividade “pura” da produção e subordinaria a “pura subjetividade” do trabalho vivo, condição do proletariado.

Mas se nos limitarmos a ficar apenas nas condições de reprodução funcional da sociedade capitalista, não conseguiremos compreender o movimento interno de sua própria dissolução. Ora, se afirmamos que nossa classe é revolucionária, isso deriva das próprias condições de existência do proletariado e, portanto, o movimento real de superação do capitalismo não existe como uma determinação vinda de fora do modo de produção. Trata-se da luta entre comunismo e capitalismo. Mas essa luta não pode se dissociar dos sujeitos em luta, isto é, das classes sociais portadoras desse antagonismo (RDI, 2004):

O valor (enquanto sujeito, dinâmica) divide permanentemente a sociedade em dois campos: aqueles que são cooptados pela propriedade (gestão, controlo da sua produção, luta pela sua defesa) e aqueles desapossados de tudo, que, na sua vida, se opõem à propriedade (a venda da força de trabalho é esta oposição conciliada e enquadrada, da mesma maneira que o são as outras formas de arranjar meios de vida: direito ao desemprego, o roubo, …).

Já vimos que, para ser possível, o capitalismo precisa tornar impossível para uma massa de pessoas a condição de se reproduzirem materialmente sem que elas recorram ao mercado. Neste caso, o capitalismo produz sua possibilidade na impossibilidade do não-capitalismo, algo que precisa constantemente manter assim (como o não-possível que lhe torna possível). Neste caso, a classe dominante (lado positivo da propriedade privada) consegue efetuar a reprodução do capitalismo através do constrangimento reiterado de outros modos de vida. Já a classe proletária (lado negativo da propriedade privada) vive uma sobrevida, constrangida por forças repressivas e ideológicas, pois é a exploração de sua força de trabalho (na forma de capital variável que gera mais-valor) que faz o capital se reproduzir. Em síntese: negação da autodeterminação da classe dominada é a afirmação da autodeterminação da classe dominante.

Como afirmou Marx (2011, p. 47): “Proletariado e riqueza são antíteses. E nessa condição formam um todo. Ambos são formas do mundo da propriedade privada”. Logo:

A propriedade privada na condição de propriedade privada, enquanto riqueza, é obrigada a manter sua própria existência e com ela a existência de sua antítese, o proletariado. Esse é o lado positivo da antítese, a propriedade privada que se satisfaz a si mesma. O proletariado na condição de proletariado, de outra parte, é obrigado a suprassumir a si mesmo e com isso à sua antítese condicionante, aquela que o transforma em proletariado: a propriedade privada. Esse é o lado negativo da antítese, sua inquietude em si, a propriedade privada que dissolve e se dissolve (MARX, 2011, p. 48, grifos originais).

É neste sentido que nosso constrangimento enquanto classe proletária nos obriga, não somente a produzir mais-valor, mas também a nos revoltar contra o capitalismo. Nossa classe contém o não-ser do capitalismo em si, na forma de negatividade negada pelo capital. Quando o proletariado entra em luta contra a burguesia (classe portadora das relações sociais capitalistas), ele anuncia a recomposição do ser que o capitalismo precisa manter constrangido (o não-capitalismo). Portanto, nossa classe é obrigada, pela sua própria condição no capitalismo, a lutar contra o constrangimento que o capitalismo faz do não-capitalismo.

O interesse de classe de uma classe que surge a partir do roubo é necessariamente um interesse por seu próprio fim, pois se tudo nos foi expropriado, o ato de nossa reapropriação é, efetivamente, a reapropriação de tudo. O proletariado, como perca total das condições objetivas da atividade humana personificada em classe social, só pode tomar de volta o que lhe foi roubado através de uma retomada total dessas condições. Tal retomada é um ato de supressão do ser-capitalista, justamente porque é afirmação de um não-ser capitalista que só pode ser comunista, porque o comunismo é essa recuperação total de todos os pressupostos objetivos da atividade humana de modo integral e universal.

Não se trata do que este ou aquele proletário, ou até mesmo do que o proletariado inteiro pode imaginar de quando em vez como sua meta. Trata-se do que o proletariado é e do que ele será obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu ser. Sua meta e sua ação histórica se acham clara e irrevogavelmente predeterminadas por sua própria situação de vida e por toda a organização da sociedade burguesa atual (MARX, 2011, p. 49, grifos originais).

É nisto que consiste afirmar que nossa classe proletária é, coletivamente, o sujeito revolucionário e que nossa revolução social é também o movimento da dissolução das sociedades de classe: “A condição de libertação da classe laboriosa é a abolição de toda a classe, assim como a condição de libertação do terceiro estado, da ordem burguesa, foi a abolição de todos os estados e de todas as ordens” (MARX, 1985, p. 160).

Em resumo: o proletariado é, simultaneamente, classe obrigada a trabalhar para valorizar o capital (trabalhador), ou seja, personificação da fonte produtora do Capital (que é o trabalho), mas também é uma classe antagônica da burguesia (que é a personificação do Capital), na medida em que luta para não trabalhar, ou seja, enquanto busca realizar suas necessidades e capacidades sem reproduzir a sociedade capitalista.

A definição do proletariado não envolve “duas situações históricas distintas” (um momento mais revolucionário, um momento mais assimilado), pois é sua própria constituição de classe que contém, como premissa, dois desenvolvimentos históricos possíveis que são mutuamente excludentes, pois são incompossíveis entre si na ordem da convergência das séries, ou seja, um mundo onde proletariado deixa de ser explorado (seu interesse de classe) é um mundo incompossível com a existência do Capital (e suas instituições: Estado, dinheiro, patriarcado, racismo, etc.). Neste sentido, as revoluções, as greves insurreccionais, enfim, a luta de classes em seus processos históricos possuem resultados heterogêneos justamente porque as premissas que envolvem a existência da classe proletária permitiram isso. Em outras palavras: são imanentes à constituição do proletariado.

Se o proletariado luta pela riqueza, não é para tomá-la como está “dada” pelo capitalismo, mas para fundá-la numa nova relação com o tempo, ou seja, a riqueza como tempo disponível cada vez maior (em vez da versão produtivista do capitalismo, baseada no tempo de trabalho socialmente necessário). Essa nova relação não é possível sem abolir todas as formas de dominação que reproduzem a sociedade capitalista: o patriarcado do salário (baseado na separação entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo), o racismo (estratificação do proletariado em raças, para dominá-lo através da imposição de uma hierarquia artificial na sua classe), divisão social do trabalho em trabalho intelectual que organiza a produção exclusivamente e trabalho manual que executa a produção sem participar de sua organização, separação abstrata entre seres humanos e natureza (uma vez que a propriedade privada gera a projeção de uma pretensa “dominação” que os “donos do mundo” teriam direito), dentre outras que não listaremos aqui para não sermos exaustivos.

Agora é necessário desenvolver melhor essa auto-definição contrapondo-a às abstrações ideológicas que fazem contra nossa classe.

6. Materialismo vulgar, economicismo e obreirismo


Quando os cientistas sociais (que geralmente são intelectuais burgueses) são afetados pelas variáveis que envolvem a reprodução do modo de produção capitalista, eles são levados a definir a classe proletária a partir de uma lógica formal que reifica nossa classe num funcionalismo abstrato. Neste caso, temos uma das concepções ideológicas do proletariado conhecida como “economicista”.

A definição economicista do proletariado consiste em afirmar como “seus critérios” as condições de reprodução regular das relações sociais de produção do capitalismo. Neste caso, toma o proletariado como simples “engrenagem” do modo de produção e considera que: “o proletariado é uma classe social que se define de acordo com sua ‘posição’ no modo de produção, sendo tal ‘posição’ dada de acordo com o ‘poder econômico’ sobre as forças produtivas da sociedade”.

Essa concepção é efeito do juízo de generalidade sobre o que é estável, considerando o instável como mero acidente. Essa forma de compreensão da realidade mediante padrões assinaláveis tende a projetar teleologicamente a regularidade das condições como se fossem as condições da regularidade. Trata-se de uma tautologia disfarçada de objetividade.

O problema dessa definição é que ela não introduz a luta de classes como fator positivo e constitutivo que está por trás dessa “posição social” que cada classe possui. Ao se analisar a “estrutura econômica” abstratamente, as relações sociais tornam-se relações entre coisas e os seres humanos são reificados em suas relações com estas coisas [veja-se a nota 1].

Novamente, é o grupo RDI que adverte: “A definição economicista de proletariado só toma em conta o mecanismo de funcionamento do capitalismo”. Neste caso, se ignora a imanência do próprio anticapitalismo no capitalismo (e nenhuma objeção empírica poderia atestar contra esse fato).

O RDI critica o que chama de “materialismo vulgar” que identifica o proletariado com a classe operária (que podemos chamar de “ideologia operaísta” ou “obreirismo”). Uma das principais debilidades do pseudo-materialismo (ou “materialismo vulgar”) é sua impossibilidade em compreender o processo revolucionário como “acontecimento material”, como atividade sensível e prático-crítica.

No que diz respeito aos postulados do “obreirismo”, o grupo Antagonism considera que essa ideologia baseia-se na afirmação de que os “trabalhadores produtivos” (ou, numa concepção mais estreita ainda, apenas os operários) são “a fonte” da atividade revolucionária (ou ainda: o grupo social que deve exercer sua hegemonia sobre os demais), portanto somente a estes é dado o “privilégio” de determinar os rumos do processo revolucionário.

Os obreiristas dizem que os operários produtivos assumem uma posição crucial porque eles podem, parando de trabalhar, destruir o capitalismo. Efetivamente, a centralidade dos operários produtivos é um exagero: a produção é apenas uma parte do ciclo de acumulação. Os operários envolvidos na comunicação, distribuição e circulação também possuem elementos de força. Uma greve de bancários pode ter um efeito maior, para o capital, do que uma greve de operários numa fábrica de automóveis. Uma onda de lutas urbanas pode ter um efeito maior que ambas (Antagonism, 1995).

É necessário destacar que a questão da luta como relação social também aparece em segundo plano nas concepções obreiristas, uma vez que o ponto de partida destes é reafirmar a “posição privilegiada” do grupo da qual se explora parcela significativa do mais-valor. Não obstante, essa concepção reproduz os critérios de funcionalidade do Capital, ignorando que a reprodução social deste modo de produção também passa, dentre outras coisas, pelo trabalho reprodutivo que é convertido em trabalho doméstico na esfera familiar convertida em família burguesa. Ou seja, também ignora a dominação patriarcal sobre as mulheres (para citar apenas um exemplo do que fica de lado quando se toma como “dado” o “trabalhador produtivo”, isto é, quando se abstrai todas as relações sociais que são necessárias para que os trabalhadores produtivos exerçam seu papel funcional na sociedade capitalista).

O obreirismo também ignora as lutas concretas do proletariado (aquelas que existiram historicamente). Apesar de alguns equívocos em termos de compreensão do processo histórico global que o texto do Antagonism possui, suas premissas continuam válidas.

O obreirismo vê a revolução como uma escalada das lutas cotidianas dos operários, no capitalismo. (…) O obreirismo falsifica a história para manter a ideologia. Em qualquer caso, o papel assumido pelos não-operários é subestimado ou negado. A teoria revolucionária, ao invés, analisa os eventos reais para compreender as debilidades do capitalismo (Antagonism, 1995).

De todo o modo, precisamos fazer o seguinte adendo dos Cuadernos de Negacíon (Nro. 2, 2009, tradução livre): “Entendemos que a ideologia obreirismo já é obsoleta, mas também entendemos que a posição dos trabalhadores permanece fundamental para qualquer tentativa de revolução”. Diz-se “obsoleta”, porque a identificação do proletariado com os operários de fábrica refere-se a um momento em que “proletariado” e “operariado” se confundiam, isto é, uma concepção que era útil no início do desenvolvimento do modo de produção capitalista, mas que teria sido ultrapassada segundo os Cuadernos (idem).

Em síntese: o materialismo vulgar busca reduzir a existência a umas poucas causas mecânicas e as articula de modo funcionalista, o economicismo dá o fundamento causal para a explicação do capitalismo (a “economia” e suas “leis”) e o obreirismo, como consequência lógica, afirma que os operários ocupam a posição privilegiada de sujeito revolucionário (ainda que tal concepção não assuma a revolução mesma como acontecimento material, como dissemos).

Essas concepções ideológicas convergem e formam um “silogismo” que exprime uma determinada teoria sobre a sociedade de classes. Também aqui se trata da atividade intelectual de um segmento social específico desse modo de produção. Mas que grupo e com quais interesses seria capaz de formular essas ideias?

Trata-se do segmento social dos “intelectuais” (ou intelligentsia) que ganha uma consistência significativa na sociedade burguesa. Jan Wacław Machajski caracterizou profundamente esse processo em suas obras, portanto vamos utilizar suas principais conclusões para discutir os sujeitos históricos por trás dessa concepção vulgar que acabamos de resumir. Além das contribuições de Machajski, utilizaremos a caracterização que Marx faz da burocracia (que é onde a intelligentsia vai fazer carreira na sociedade burguesa).

Em geral, eles afirmam que a classe proletária não é capaz de auto-determinar a consciência de si, portanto concluem que essa tarefa é de responsabilidade de uma linhagem de intelectuais que precisam ensinar o socialismo para as massas. Mas tais proposições não passam de subterfúgios que escondem seus reais interesses como grupo social específico. É o que veremos a seguir.

7. Intelligentsia e burocracia: a utopia social-democrata


Já havíamos discutido em O princípio da autoridade como fundamento da divisão de classe e o surgimento da extraenisação, seção do texto Das comunidades originárias ao processo de extraenisação em termos capitalistas, a questão da autoridade e sua relação com a monopolização de saberes concernentes à reprodução da vida social. Agora vamos desenvolver melhor essa questão no quadro dessa discussão especificamente relacionada ao trabalho intelectual na sociedade capitalista.

É de importância fundamental abordar a questão da divisão social do trabalho no modo de produção capitalista, uma vez que a organização social da produção envolve uma segmentação da atividade produtiva e reprodutiva em diferentes “permutações de trabalho”.  Na Ideologia Alemã (1845), Marx e Engels já afirmavam que:

A divisão do trabalho só se torna realmente divisão a partir do momento em que surge uma divisão entre trabalho material e [trabalho] espiritual ([a] primeira forma dos ideólogos, sacerdotes, coincide). A partir desse momento, a consciência pode realmente imaginar ser outra coisa diferente da consciência da práxis existente, representar algo realmente sem representar algo real – a partir de então, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e lançar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc. “puras” (MARX; ENGELS, 2007, pp. 35-36, grifos nossos).

Portanto, “o trabalho começa a ser distribuído, cada um passa a ter um campo de atividade exclusivo e determinado, que lhe é imposto e ao qual não pode escapar” (MARX; ENGELS, 2007, pp. 37-38). Esse processo já se encontra deveras avançado no capitalismo, onde o proletariado é reduzido a uma capacidade puramente subjetiva para trabalhar, expropriado de todas as condições objetivas para a atividade produtiva (o que inclui seu corpo inorgânico), reduzido ao exercício de tarefas manuais e operacionais das quais não é, portanto, a causa eficiente ativa.

Não obstante, ainda é necessário uma série de atividades subsumidas ao gênero de trabalho intelectual para a manutenção e reprodução da sociedade capitalista. Essas atividades formam um ramo específico de trabalhadores cuja função é essencialmente administrativa.

Segundo Machajski (1981, p. 86): “O crescimento progressivo do capitalismo é impensável sem o crescimento da sociedade culta e da intelligentsia, do exército de trabalhadores intelectuais”. Neste caso: “o desenvolvimento do capitalismo determina o crescimento de uma ‘nova classe média’, que atinge desta forma um nível de vida burguês” (idem).

Para Machajski, a intelligentsia não faz parte do proletariado, uma vez que sua renda provém de parcela do lucro líquido nacional que, por sua vez, é composto do mais-valor total explorado da classe proletária:

Na medida em que o proletariado tomar consciência deste fato, revelar-se-á essa força social que até aqui dissimulava sua natureza e esforçava-se em identificar-se com ele: a intelligentsia. O proletariado tomará consciência do fato de ter-se comportado com demasiada confiança para com essa força que, certamente, ataca com ele ao capital, mas persegue seus próprios fins. Isto ocorre porque a luta do intelectual exprime a exigência de uma partilha “mais justa” do lucro nacional em benefício da sociedade culta; partilha prejudicada por um punhado de plutocratas, de “industriais feudais” (MACHAJSKI, 1981, p. 87).

Esse segmento social composto por trabalhadores intelectuais formam, junto com outras classes de transição, uma coalizão histórica para perseguir seus objetivos específicos. Uma vez associados, eles formarão o partido da social-democracia. Os objetivos desses intelectuais é elevar a produtividade do trabalho, pois o mais-valor relativo aumentaria o nível de renda nacional e “quanto mais o lucro nacional seja elevado, mais aumenta o fundo de consumo da sociedade culta privilegiada” (MACHAJSKI, 1981, p. 90). Logo:

Poder-se-ia compreender que não apenas os capitalistas estejam interessados em ampliar o lucro, mas também toda a sociedade culta; que o operário não é somente explorado com o intuito de permitir a vida ociosa de um punhado de capitalistas, mas também de permitir a existência parasitária de toda a sociedade culta, produtora de “bens imateriais”; que o nível de vida do operário se reduz ao simples meio de sobrevivência para que os “trabalhadores intelectuais” não encontrem nenhum limite para a “realização”, sob a forma de ganhos, de seus “talentos e capacidades especiais”; que o operário não pode se beneficiar dos frutos do crescimento da produtividade de seu trabalho, pois este crescimento não deve favorecer senão o conforto da vida da sociedade culta privilegiada (idem). 

Portanto, não é de se admirar que a intelligentsia diga que luta pelo “progresso social”, uma vez que todo o progresso significa desenvolvimento do valor expresso em termos de “forças técnicas”, em “bens manufaturados” que aumentam a “renda per capita” nacional. Mas se esquecem de dizer que tal progresso significa, literalmente, a mais brutal exploração da força de trabalho, a consumação de milhares de vidas proletárias subsumidas ao processo de trabalho.

Geralmente esses agrupamentos de intelectuais afirmam que sua doutrina é científica, que objeções contra eles são objeções contra a autoridade científica. Daí que afirmem que seu “socialismo” seja “socialismo científico” e que seus objetivos são, como os da ciência, “imparciais”. Que o trabalho deles havia sido um trabalho “simplesmente”  administrativo, que a função dos seus serviços enquanto burocratas de diferentes natureza (tanto os do Estado, quanto os administradores das empresas) era “apenas” elevar a eficiência da produtividade, isto é, “aumentar rendimentos”. Em suma: organizar “racionalmente” (como dizem) o processo produtivo.

Neste sentido, o “socialismo científico” da casta intelectual do partido social-democrata acaba assumindo invariavelmente a forma de um “socialismo de Estado”, conforme dizia Machajski. Mas não se trata aqui, de forma alguma, de “socialismo”, mas pura e simplesmente aquilo que Mikhail Bakunin já denunciava alhures:

Um corpo científico, ao qual se tivesse confiado o governo da sociedade, acabaria logo por deixar de lado a ciência, ocupando-se de outro assunto; e este assunto, o de todos os poderes estabelecidos, seria sua eternização, tornando a sociedade confiada a seus cuidados cada vez mais estúpida e, por conseqüência, mais necessitada de seu governo e de sua direção.
Mas o que é verdade para as academias científicas, o é igualmente para todas as assembleias constituintes e legislativas, mesmo quando emanadas do sufrágio universal. Este último pode renovar sua composição, é verdade, o que não impede que se forme, em alguns anos, um corpo de políticos, privilegiados de fato, não de direito, que, dedicando-se exclusivamente à direção dos assuntos públicos de um pais, acabem por formar um tipo de aristocracia ou de oligarquia política (2002, p. 31).

Essa forma de organização social preconizada pela intelligentsia, no seu limite mais bem acabado (supondo que a propriedade burguesa tenha sido suprimida em favor de uma propriedade estatal completa), não deixaria de possuir as mesmas relações de produção da sociedade capitalista. Se Bakunin conseguiu expressar muito bem a essência da forma de poder que reinaria numa sociedade do gênero preconizada pela intelligentsia, Marx, nos Manuscritos de 1844, expressou aquela que seria a essência da forma de produção:

A ideia de toda propriedade privada como tal [transformada em propriedade distribuída] está pelo menos voltada contra a propriedade mais rica como inveja e desejo de nivelamento, de tal modo que estes inclusive constituem a essência da concorrência. O comunista rude é só o aperfeiçoamento desta inveja e deste nivelamento a partir do mínimo representado. (…)
A comunidade é apenas uma comunidade de trabalho e da igualdade do salário que o capital comunitário, a comunidade enquanto o capitalista universal, paga. Ambos os lados da relação estão elevados a uma universalidade representada, o trabalho como a determinação na qual cada um está posto, o capital enquanto a universalidade reconhecida e como poder da comunidade (MARX, 2004, p. 104, acréscimos e grifos nossos).

Agora só nos resta definir o ramo de atividade na qual se ocupam os trabalhadores intelectuais, qual seja: a burocracia.

Marx desenvolve, nos manuscritos não publicados de sua Crítica da Filosofia de Hegel (1843), uma análise crítica sobre o direito burguês na filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Este documento contém excelentes sínteses sobre a dinâmica historicamente específica da burocracia nos Estados capitalistas e permanece atual.

Antes de abordar a análise de Marx, sugerimos a leitura da seção A Crítica de Marx à Hegel: da “coisa da lógica” à “lógica da coisa” do nosso texto: Ensaio sobre a produção humana: modo de produzir pessoas (Comunidade).

Ao comentar a obra de Hegel, Marx afirma que “as corporações são o materialismo da burocracia e a burocracia é o espiritualismo das corporações. A corporação é a burocracia da sociedade civil; a burocracia é a corporação do Estado” (MARX, 2010, p. 64, grifos originais, sublinhados nossos). Portanto, um mesmo trabalho intelectual é responsável pela burocracia e pela corporação: “o mesmo espírito que cria, na sociedade, a corporação, cria, no estado, a burocracia” (MARX, 2010, p. 65). As corporações ao qual se refere Marx são qualquer instituições que possuem um corpo administrativo próprio com seus quadros compostos de trabalhadores intelectuais.

Neste caso, a “burocracia deve, portanto, proteger a universalidade imaginária do interesse particular, o espírito corporativo, a fim de proteger a particularidade imaginária do interesse universal, seu próprio espírito” (MARX, 2010, p. 65, grifos originais, sublinhados nossos). Quando considerada isoladamente, “cada corporação tem, como seu interesse particular, esta vontade contra a burocracia, mas ela quer a burocracia contra a outra corporação, contra o outro interesse particular” (idem). Isto significa que: “A corporação é a tentativa da sociedade civil de se tornar Estado; mas a burocracia é o Estado que se fez realmente sociedade civil” (idem).

Nas Glosas Críticas ao artigo de Arnold Ruge, Marx faz um complemento à essas afirmações a respeito da sociedade burguesa: “Do ponto de vista político, estado e organização da sociedade não são duas coisas distintas. O Estado é a organização da sociedade” (MARX, 2010, p. 38, grifos originais). Quando o corpo administrativo do Estado se projeta sobre toda a sociedade, como querem os sociais-democratas, temos uma situação extrema daquilo que Marx já afirmava sobre a burocracia:

Os fins do Estado se transmutam em fins da repartição e os fins da repartição se transformam em fins do Estado. A burocracia é um círculo do qual ninguém pode escapar. sua hierarquia é uma hierarquia do saber. A cúpula confia aos círculos inferiores o conhecimento do particular, os círculos inferiores confim à cúpula o conhecimento do universal e, assim, eles se enganam reciprocamente (MARX, 2010, p. 66, grifos originais).

Nestas condições, segundo Marx: “a burocracia tem a posse da essência do estado, da essência espiritual da sociedade; esta é sua propriedade privada” (idem) e a “autoridade é, portanto, o princípio de seu saber e o culto à autoridade é sua disposição”, ou seja (novamente): “A cúpula confia aos círculos inferiores o conhecimento do particular, os círculos inferiores confiam à cúpula o conhecimento do universal e, assim, eles se enganam reciprocamente” (idem). Qualquer social-democrata que leia essas passagens vai confundir Marx com um anarquista, mas não se trata de confusão, uma vez que, a rigor, o anarquismo chega nas mesmas conclusões.

As seguintes sínteses podem ser extraídas dessa Crítica à filosofia do direito de Hegel: a burocracia é, em relação ao seu interior, uma hierarquização e, em relação ao seu exterior, uma corporação, algo fechado em si. Ora, o que são os países organizados segundo os princípios de estatização da social-democracia, senão capitalistas coletivos em relação aos demais capitalistas, assim como são as empresas privadas em relação a outras empresas privadas?

Segundo Marx, um burocrata sofre, interiormente, de um “materialismo crasso”, isto é: de “obediência passiva, da fé na autoridade, do mecanismo de uma atividade formal, fixa, de princípios, ideias e tradições fixos” (idem). O que é isso senão a fonte do materialismo vulgar mencionado acima? Continuemos: “Quanto ao burocrata tomado individualmente, o fim do Estado se torna seu fim privado, uma corrida por postos mais altos, um carreirismo” (idem). O que é esse modus operandi senão a descrição da dinâmica existente em qualquer país de capitalismo social-democrata?

Após essa demonstração (curiosamente esquecida pelos marxistas), Marx coloca o espírito burocrático como “intencionalidade pura”, como se vê neste parágrafo:

o seu espiritualismo crasso se mostra, por outro lado, no fato de ela querer fazer tudo, isto é, de ela fazer da vontade a causa prima, pois ela é mera existência ativa e recebe o seu conteúdo do exterior e, portanto, só pode demonstrar a própria existência ao formar e limitar este conteúdo. Para o burocrata, o mundo é um mero objeto de manipulação (MARX, 2010, p. 67, grifos originais).

Se os marxistas se queixam que tal obra foi publicada postumamente, então sugerimos novamente as Glosas Críticas (MARX, 2010, p. 39, grifos originais):

Por fim, todos os Estados buscam a causa nas falhas casuais ou intencionais da administração e, por isso mesmo, em medidas administrativas o remédio para suas mazelas. Por quê? Justamente porque a administração é a atividade organizadora do estado.
O Estado não pode suprimir a contradição entre a finalidade e a boa vontade da administração, por um lado, e seus meios e sua capacidade, por outro, sem suprimir a si próprio, pois ele está baseado nessa contradição. Ele está baseado na contradição entre a vida pública e a vida privada, na contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Em consequência, a administração deve restringir-se a uma atividade formal e negativa, porque o seu poder termina onde começa a vida burguesa e seu labor (…).

8. O partido da intelligentsia burocrática: social-democracia


Vimos, portanto, que a intelligentsia é composta pelos administradores de todas as formas, pelos burocratas de todos os tipos e que estes possuem um partido específico para defender seus interesses, qual seja, a social-democracia. Trata-se de mais um partido próprio do capitalismo, muitas vezes com um “disfarce vermelho” (retórica “socialista”, símbolos “socialistas”), para iludir o proletariado com promessas sobre reformas e “melhoria nas condições de vida” – mudando apenas superficialmente o capitalismo. 

O partido social-democrata emerge como uma coalizão capitalista que consiste na “apologia ao trabalho” (a exaltação da atividade laboral e do desenvolvimento da produtividade do trabalho), algo já amplamente denunciado pelo Grupo Comunista Internacionalista (GCI) em: COMUNISMO No.3 - CONTRA O TRABALHO (Janeiro 2000).

O materialismo vulgar, o obreirismo, a apologia da produtividade do trabalho e do progresso, o elogio da legalidade, dentre outras coisas, formam um conjunto de ideias que, juntas, dão coesão à doutrina do partido social-democrata. Em outras palavras: estas “questões teóricas” estão correlacionadas com as “questões práticas” da social-democracia.

A social-democracia é um partido burguês criado para domesticar os proletários, seus intelectuais orgânicos constroem conceitos para assimilar ideologicamente a classe proletária. Esse partido tem a função de subordinar o proletariado aos projetos de conciliação de classes (que são essencialmente contrarrevolucionários).

O resumo feito pelo GCI é tão preciso que vamos citá-lo extensamente e deixar algumas notas explicativas para encerrar essa seção:

Todo partido da burguesia tem como projeto social o desenvolvimento do capital, isto é, do trabalho. A única especificidade da social-democracia [2] é dirigir-se particularmente à classe que tem interesse objetivo em destruir esta sociedade, declarando que tem o mesmo objetivo, mas, desde a sua origem, essa declaração nada mais é do que uma isca para cumprir melhor sua função de enquadrar os proletários e submetê-los ao trabalho, ao desenvolvimento do capital.
(…)
A social-democracia não representa, em nenhum caso, os interesses do proletariado contra o capitalismo, mas, como ela mesma diz, os interesses do trabalho no capitalismo. O engodo consiste em apresentar como sinônimo do conflito entre burgueses e proletários a dupla capital-trabalho e se definir como partidária do polo trabalho. Que lhe seja concedido este mérito: a social-democracia é o partido do trabalho. Esta confusão é habitual, inclusive em setores que se pretendem continuadores da esquerda comunista. Quem está em luta com o capital não é o trabalho, mas o trabalhador. E não enquanto trabalhador, mas enquanto ser humano. O trabalho não só não se contrapõe ao capital, como é a sua a sua essência [3]. O trabalho é a própria matéria do capital se capitalizando. No antagonismo proletariado/burguesia, o trabalho, o máximo trabalho, está necessariamente do lado do capital contra o ser humano. Este, enquanto trabalhador, não se opõe ao capital, ao contrário, dá-lhe vida, renuncia à sua vida para afirmar a vida do ser que o vampiriza [4]. O trabalhador, não vive como ser humano, renuncia à sua humanidade [5]. Como trabalhador, ele não é a sua própria vida, mas a vida do capital, é capital se reproduzindo. Com efeito, o capital é também trabalho acumulado e, no processo de produção, subsume o trabalho vivo. Mais ainda: se, do ponto de vista do processo de trabalho, o trabalho aparece como o sujeito ativo, ao transformar os meios de trabalho; do ponto de vista do processo de valorização, é o trabalho morto que dirige o trabalho vivo. Por isso, toda apologia explícita do trabalho é apologia implícita do capital e apologia da subsunção do trabalho ao capital. Por isso, na sociedade mercantil generalizada, toda apologia aberta do trabalho é apologia encoberta da exploração de classes!.

9. Idealismo, voluntarismo, subjetivismo: romantismo político


Se a definição mencionada na seção anterior suprime todo o polo ativo do proletariado, reduzindo-o à “engrenagem do sistema” para que se possa impor “projetos sociais” desde o exterior de sua classe (portanto, projetos funcionais à sociedade burguesa e suas instituições – não importa o quão intenso seja o reformismo), a definição idealista afirma o polo oposto e transforma o “proletariado” numa espécie de “providência” da humanidade.

O proletariado como sujeito revolucionário é identificado com as minorias revolucionárias da classe de forma mecânica, como se estas tivessem tido o privilégio de “conceber” o comunismo para destruir o capitalismo. Ou seja: por questão de intencionalidade e “pensamento crítico”, forma-se um grupo de revolucionários no interior da classe, dispostos a propagar o “ideal revolucionário” nas massas.

Tal concepção apela para uma noção voluntarista do sujeito. Diz-se que “o sujeito age” e o “objeto é agido”, portanto as “massas proletárias sob dominação ideológica” ainda são objeto e as “minorias proletárias autodeterminadas” são sujeitas de suas ações. Mas o que é uma existência senão uma síntese de atividade e passividade? Para criticar essa concepção, é necessário fazer um debate sobre o “materialismo prático” a partir das contribuições de Karl Marx para a teoria revolucionária do proletariado.

Na primeira das “Teses Sobre Feuerbach” (1845), Marx afirma que os materialistas de outrora só teriam considerado como “objeto do pensamento” as manifestações sensíveis das coisas, apreendidas pela “contemplação”. Neste sentido, o pensamento exprimia-se passivamente em relação ao objeto. O lado ativo do pensamento, por sua vez, teria sido desenvolvido pelos idealistas, mas estes não apreendiam a realidade como existência concreta, apenas abstratamente (a partir de um formalismo lógico).

Para Marx, a “atividade humana sensível”, enquanto prática, não se exprime exclusivamente na forma subjetiva. Aquilo que Feuerbach (e demais “materialistas vulgares”) não compreendia era a “atividade humana como atividade objetiva” (MARX, 2009, p. 119). A ideia central da primeira tese é a de que os materialistas contemplativos não compreenderiam, portanto, “o significado da atividade ‘revolucionária’, ‘prático-crítica’” (idem).

Na segunda tese, Marx levará até as últimas consequências esse “materialismo prático”. Vamos reproduzí-la para que se possa analisá-la mais detalhadamente:

A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma realidade objetiva [gegenständliche Wahrheit] não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na prática que o homem tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza citerior [Diesseitigkeit] de seu pensamento. A disputa acerca da realidade ou não realidade do pensamento – que é isolado da prática – é uma questão puramente escolástica (MARX, 2009, pp. 119-120, grifos originais).

Neste caso, o que pode confirmar o pensamento dos seres humanos é a potência prática de sua existência social e historicamente determinada [veja-se: Ensaio sobre as possibilidades transformativas e a transformação das possibilidades]. A transformação não é a imposição de uma vontade teleológica na natureza, mas a própria expressão da vida material se auto-produzindo (ou seja: a liberdade humana consiste na participação ativa na autopoiese natural). Em síntese: a existência material não se transforma a partir de um “dever ser” contido na ideia que daria às coisas uma “forma final”, mas a partir da própria práxis social imanente (que é atividade sensível, prático-crítica).

A seguinte passagem dos Manuscritos de 1844 resume o que dissemos acima:

Vê-se como subjetivismo e objetivismo, espiritualismo e materialismo, atividade e sofrimento perdem a sua oposição apenas quando no estado social e, por causa disso, a sua existência enquanto tais oposições; vê-se como a própria resolução das oposições teóricas é possível de um modo prático, só pela energia prática do homem e, por isso, a sua solução de maneira alguma é apenas uma tarefa do conhecimento, mas uma efetiva tarefa vital que a filosofia não pôde resolver, precisamente porque tomou apenas como tarefa teórica (MARX, 2004, p. 111, grifos no original).

Portanto, não se pode reduzir a Revolução Social a uma questão de vontade como se o devir na história surgisse espontaneamente da intencionalidade das pessoas.

O voluntarismo assume a ideologia do “sujeito liberal” e advoga um “individualismo metodológico”, uma vez que tende a analisar a atividade dos revolucionários de modo personalista, considerando que os “líderes” devem agir como “fins em si mesmos” e não como subjetividades historicamente determinadas, tanto nas contradições quanto nos paradoxos da sociedade capitalista. Contradições, porque as pessoas que constroem o movimento revolucionário não são a “encarnação pura” do comunismo e estão sujeitas a reproduzir as relações sociais capitalistas enquanto houver capitalismo. E paradoxos, porque os constrangimentos que sofrem os proletários tornam sua força social determinante, ou seja, o mesmo processo que constrange o proletariado a ser explorado, também o obriga a devir revolucionário.

Na definição voluntarista também existem aspectos de obreirismo, pois busca-se projetar os “ideais de emancipação” na classe como se fosse um “sonho do povo trabalhador”. Esquece-se, nesse caso, que o proletariado não luta porque “acredita no comunismo”, mas sim porque já é a uma força material do próprio movimento real que é o comunismo como processo de superação imanente à sociedade capitalista. Na Miséria da Filosofia (1847) isso fica evidente quando Marx afirma: “De todos os instrumentos de produção, o maior poder produtivo é a classe revolucionária mesma” (MARX, 1985, p. 159, grifos nossos). Em outras palavras: a revolução social é uma forma de produção (produção de sociedade) e também pressupõem uma força produtiva social (uma classe revolucionária que produz novas relações sociais de produção ao se confrontar contra a classe dominante).

Em suma, essa concepção do proletariado como dividido entre os revolucionários e os “reprodutores do sistema” é funcional à ideologia politicista e às organizações formais que se veem a si mesmas como “especificamente” comunistas/anarquistas/socialistas devido ao “programa que possuem” e que bastaria fazer uma “inserção social” nas massas para formá-las como suas “bases”, levando-as (dirigismo) a construir o “contrapoder” que derrubaria a sociedade capitalista.

O principal erro dessa doutrina é conceber a “organização revolucionária” como “paralela” à classe para a qual serviria. Neste caso, surgem concepções como as do “dualismo organizacional”, que consistem em dividir as organizações proletárias entre “econômicas” (ou “sociais”) que seriam unitárias e congregariam toda a classe sem distinções “ideológicas” e organizações “políticas”, que seriam “sectárias” e consistiriam dos “quadros mais avançados do proletariado” (“minorias revolucionárias”) ou simplesmente de um “grupo de pessoas que adotou o programa socialista”, sendo que as segundas teriam que atuar nas primeiras com serviços de “agitação”, “propaganda”, etc. Como consequência fatal, comete-se o erro de considerar instituições capitalistas como o sindicato como sendo instituições de classe (só que “econômicas”).

10. Do dualismo “classe em si” e “classe para si” ao desenvolvimento do antagonismo prático:


Uma maneira idealista, a custo disfarçada, de conceber o proletariado, consiste em considerá-lo ainda de um lado como simples classe do capital, como trabalhador, e por outro lado como revolucionário, como comunista quando “luta”. Isto é uma visão dualista e metafísica que consiste em separar na cabeça uma questão que é inseparável na prática, que consiste em fazer duas coisas na cabeça de uma só que existe na prática. É um desvio bastante corrente do idealismo que, em última instância, tem horror das contradições. A caricatura consiste em dizer que, quando o proletário trabalha, ele é capital, e quando luta contra o trabalho é comunista, ou então a oposição dualista: “classe em si”, “classe para si”. Os idealistas liquidam assim a contradição entre capital e comunismo, entre burguesia e proletariado, para a substituir por trabalhador/humanidade. Esquecem-se, no mesmo passo, que é precisamente enquanto classe desta sociedade que ela é o seu pólo destrutivo, ou dito concretamente, esquecem que é o mesmo processo que a constrange a trabalhar e a suprimir o trabalho, que é apenas enquanto classe forçada a trabalhar que ela é forçada a revoltar-se (RDI, 2004).

Esse é um dualismo que consiste em separar sua atuação política da econômica: “o proletariado, economicamente, é formado por vendedores de força de trabalho que geram mais-valor ao Capital e, politicamente, é uma tendência em se formar como classe antagônica à burguesia, portanto como partido revolucionário”. Como consequência, também reafirma a separação da minoria revolucionária do restante da classe e, consequentemente, transforma abstratamente a coalizão das forças revolucionárias da classe em “partido formal”, em “organização específica”.

Mas, como afirmou Amadeo Bordiga, “a classe pressupõe o partido”, pois uma classe social não é apenas uma “posição social” no modo de produção (representação estática da sociedade), mas, sobretudo, um movimento social com tendências antagônicas de desenvolvimento. Uma vez favorecidas as tendências que aumentam a capacidade de combate da classe proletária, seu movimento social assume uma direção e objetivos históricos mais consistentes. A expressão orgânica dessa convergência de tendências na forma de perseguir o objetivo comunista é, precisamente, o partido material:

A “relação” entre classe e partido não é uma relação entre duas entidades. Trata-se duma mesma realidade que não admite duas definições distintas e depois uma relação entre elas. É por isso que a questão equivaleria a encontrar a “relação” entre o corpo humano e o seu movimento, ou entre o corpo e a vida, sendo o corpo humano e o seu movimento (ou a sua vida) a mesma coisa. Eis a questão absurda, porque o corpo humano é o seu movimento, sem movimento não há corpo humano, sem corpo humano não há movimento, sem partido a classe operária não existe, sem a constituição do proletariado em classe não há partido comunista! (RDI, 2004).

O partido material depende do grau de “consciência de classe” correlacionado com seus métodos de luta postos em prática historicamente. Sua constituição certamente depende da emergência do conjunto das minorias ativas do proletariado, ou seja, aqueles proletários que já se encontram em alguma situação de combate no interior da luta de classes e que estejam elaborando a via radical do enfrentamento (a luta proletária via ação direta).

Neste caso, não é equivocado dizer que o partido exerce algo como uma “função diretiva”, mas não podemos entender tal função como uma forma de vanguarda que monopoliza as decisões sobre o rumo do movimento (concepção que deriva da intelligentsia), ou a partir de um esquema de comando-obediência (controle despótico da luta por uma aristocracia operária) ou, ainda, como uma espécie agitação via carisma-adesão (dominação carismática) em que as massas agiriam conforme uma direção messiânica.

A “direção” ao qual nos referimos nada mais é do que um revestimento da classe sobre si mesma na figura daqueles que melhor expressam os seus interesses revolucionários. Não se trata, evidentemente, de qualquer um que fale formalmente em nome do proletariado, mas que seja o próprio proletariado falando por si (enquanto classe), na medida em que se reconhece como sujeito revolucionário e, portanto, escolhe seus membros por meio de uma forma de confiança na capacidade de sintetizar os objetivos que levam ao comunismo e propor as estratégias adequadas à sua realização (sendo o programa uma condensação das lutas de outrora mais as exigências das lutas atuais).

O partido material também se expressa a partir dos métodos organizativos difusos que, de modo relativo e parcial, já exprime as formas constituintes da sociedade porvir (o exemplo histórico mais bem-acabado foram os sovietes territoriais).

Podemos utilizar o resumo feito pelo grupo Antagonism (2000/2001):

Quando as massas são impulsionadas à ação, esses pequenos grupos lideram os demais. O partido material é o conjunto dos pequenos grupos que lideram, as minorias radicais. O movimento que define uma classe, também necessita de um partido. Mas esse partido pode existir materialmente mas não formalmente. Ou seja, o movimento político da classe não se agrupa necessariamente em uma organização formal particular chamada partido, com cartões de filiação, missão, diretoria e um boletim interno. O partido pode existir como um movimento mais difuso, talvez de muitos grupos, os quais podem, todos ou nenhum, serem chamados de partidos. Ou ele pode consistir de frações desses grupos, ou de conexões informais entre indivíduos que não são membros de qualquer grupo.

A organização revolucionária não pode surgir paralelamente às lutas imanentes do conjunto da classe, por isso que os partidos formais não são efetivos. “O partido material tem uma relação dialética com o movimento da classe, e não pode continuar existindo como organização de massas fora de um movimento de massas. Os partidos formais degeneram a medida em que o movimento declina, e as minorias radicais precisam se reagrupar, como frações ou organizações separadas” (Antagonism, 2000/2001).

11. “O proletariado não é fraco porque está dividido, está dividido porque ainda está fraco” [Cuadernos de Negacíon; Nº 2]


A questão da unidade na classe proletária deriva da composição de forças, da coalizão que emerge mediante o antagonismo prático no interior da luta de classes. Os Cuadernos de Negacíon souberam exprimir bem a questão: nossa fraqueza de classe é que explica nossa desunião. Mas, no que consiste nossa força e nossa fraqueza? Conforme expressou o blog Humanaesfera (2015):

Não há ações sem objetivos, finalidades, desejos… isto é, as ações pressupõem e implicam teorias, que os proletários criam e aprimoram (ou degradam e dogmatizam) conforme percebem que sua capacidade de agir é objetivamente aumentada (ou diminuída). A capacidade de agir dos proletários é aumentada quando confiam em si mesmos (internacionalisticamente), não reconhecem “bodes expiatórios”, e impõem suas necessidades (que são comunistas: não trabalhar e que tudo seja livre, “free”), opondo-se radicalmente, por este simples ato, à classe dominante (para a qual, obviamente, isto é “opressivo”, verdadeira ditadura do proletariado). Ataca o poder dissolvendo o que o sustenta: as divisões do proletariado em empresas, pátrias, raça, gênero, etc. mediante uma livre associação universal que garanta o livre acesso a qualquer um aos meios de produção e de vida. E é diminuída quando os proletários desconfiam de si mesmos, clamam ao poder contra “bodes expiatórios” (estrangeiros, “judeus”, imigrantes, “vagabundos”), e reprimem seus desejos em nome da ficção de um “bem maior” (pátria, empresa, religião…), isto é, quando se unem à classe dominante (seja ela burocrática ou particular, de esquerda ou de direita) contra si mesmos. No primeiro caso (aumento da capacidade de agir), a teoria necessariamente se desenvolve e se aprimora, enquanto que no segundo caso (redução da capacidade de agir), a teoria só pode se degradar e se dogmatizar.

Nesse caso, quando nossa capacidade de agir diminui, nós ficamos a mercê das ideias dominantes:

O objetivo da ideologia dominante (que nada mais é do que a ideologia da classe dominante) é manter o proletariado desorganizado, negado como classe, ou melhor ainda, enquadrado e mobilizado a serviço da burguesia. Não por acaso, as ferramentas do poder do capital são sempre as mesmas. A repolarização da sociedade em diferentes alternativas burguesas, do estilo da direita contra a esquerda, anti-fascistas contra fascistas, liberais contra anti-neoliberais, nacionalistas contra imperialistas, ditadores contra democratas, militaristas contra pacifistas, islamistas contra cristãos, republicanos contra monarquistas, não são mais que algumas formas, dentre outras, para reorganizar a dominação burguesa que está em perigo, o antigo método de transformar a raiva social contra a sociedade em raiva dentro da sociedade, da guerra social em guerra inter-burguesa, da raiva proletária em delegações e negociações no Estado, do questionamento de toda a sociedade em questionamento de apenas uma forma particular de dominação, da luta contra o capitalismo em luta contra uma fração burguesa e a favor de outra. Se o segredo da revolução é a autonomia do proletariado, a chave para a contra-revolução é a atomização do proletariado e sua canalização na sociedade a serviço da luta de uma fração dessa contra outra (Cuadernos de Negacíon; Nº 2).

Por outro lado, quando nossa capacidade de agir aumenta, nossa unidade de classe emerge necessariamente, não de forma abstrata (homogênea), mas como unidade real, concreta: síntese da multiplicidade, convergência da heterogeneidade do proletariado ao objetivo comum do comunismo. Pois a comunidade de luta que se forma, antecipa a comunidade integral que exprime o movimento comunista, pois cada singularidade se encontra confirmada na singularidade do outro. O comum é a partilha da diferença com diferente, a anarquia coroada do nosso movimento: o comunismo libertário!

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Notas:


[1] – Este é o “fetichismo das mercadorias”, ou seja, uma situação em que: “as relações entre os produtores (…) assumem a forma de uma relação social entre os produtos de trabalho” (MARX, 1996, p. 198). Portanto, as relações mercantis que se desenvolvem ao máximo no modo de produção capitalista produz “relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas” (MARX, 1996, p. 199).

[2] – No “18 de Brumário de Luís Bonaparte”, Marx analisa a formação da social-democracia na França do século XIX e expõem suas características invariáveis:

Para enfrentar a burguesia coligada, formara-se uma coalizão de pequeno-burgueses e trabalhadores, o chamado Partido Social-Democrata. Depois das jornadas de junho de 1848, os pequeno-burgueses não se sentiram recompensados à altura, viram os seus interesses materiais ameaçados e as garantias democráticas, que deveriam assegurar-lhes a validação desses interesses, contestadas pela contrarrevolução. Em consequência disso, eles se aproximaram dos trabalhadores. Em contrapartida, a sua representação parlamentar, a Montanha, que durante a ditadura dos republicanos burgueses havia sido posta de lado, reconquistou, na última metade de vida da Assembleia Constituinte, mediante a luta contra Bonaparte e contra os ministros monarquistas, a popularidade perdida. Ela havia feito uma aliança com os líderes socialistas. Em fevereiro de 1849, foram celebrados banquetes de reconciliação. Um programa comum foi elaborado, comitês eleitorais comuns foram instituídos e candidatos comuns lançados. A ponta revolucionária das exigências sociais do proletariado foi quebrada e foi-lhe dado um viés democrático, as reivindicações democráticas da pequena-burguesia foram despidas da sua forma meramente política e a sua ponta socialista voltada para fora. Assim surgiu a social-democracia (MARX, 2011, pp. 62-63, grifos nossos).

O caráter peculiar da social-democracia se resumia aos seguintes termos: reivindicavam-se instituições republicanas democráticas, não como meio de suprimir dois extremos, o capital e o trabalho assalariado, mas como meio de atenuar a sua contradição e transformá-la em harmonia. Quaisquer que sejam as medidas propostas para alcançar esse propósito, por mais que ele seja ornado com concepções mais ou menos revolucionárias, o teor permanece o mesmo. Esse teor é a modificação da sociedade pela via democrática, desde que seja uma modificação dentro dos limites da pequena-burguesia. Basta não cultivar a ideia estreita de que a pequena-burguesia tenha pretendido, por princípio, impor um interesse egoísta de classe. A social-democracia acredita, antes, que as condições específicas da sua libertação constituem as condições gerais, as únicas nas quais a sociedade moderna pode ser salva e a luta de classes evitada (MARX, 2011, p. 63, grifos nossos).

Por fim, em vez de conseguir um aporte de forças do proletariado, o partido democrata o havia contagiado com a sua própria debilidade, e, como costuma acontecer no caso de grandes feitos democratas, os líderes tiveram a satisfação de culpar o seu “povo” de deserção, e o povo teve a satisfação de culpar os seus líderes de fraude (MARX, 2011, p. 66, grifos nossos).

[Portanto,] por representar a pequena burguesia, ou seja, uma classe de transição, na qual os interesses de duas classes se embotam de uma só vez, o democrata tem a presunção de se encontrar acima de toda e qualquer contradição de classe. Os democratas admitem que o seu confronto é com uma classe privilegiada, mas pensam que eles é que constituem o povo junto com todo o entorno restante da nação, que eles representam o direito do povo, que o seu interesse é o interesse do povo (MARX, 2011, p. 67, grifos e acréscimo nossos).

[3] – “A essência subjetiva da propriedade privada, a propriedade enquanto atividade sendo para si, enquanto sujeito, enquanto pessoa, é o trabalho” (MARX, 2004, p. 99). “Mas o trabalho, a essência subjetiva da propriedade privada enquanto exclusão da propriedade, e o capital, o trabalho objetivo enquanto exclusão do trabalho, são a propriedade privada enquanto sua relação desenvolvida da contradição” (MARX, 2004, p. 103).

[4] – “O capital tem um único impulso vital, o impulso de valorizar-se, de criar mais-valia, de absorver com sua parte constante, os meios de produção, a maior massa possível de mais-trabalho. O capital é trabalho morto, que apenas se reanima, à maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo e que vive tanto mais quanto mais trabalho vivo chupa. O tempo durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho que comprou. Se o trabalhador consome seu tempo disponível para si, então rouba ao capitalista” (MARX, 1996, p. 347).

[5] – “A produção [capitalista] produz o humano não somente como uma mercadoria, a mercadoria humana, o humano na determinação da mercadoria; ela o produz, nesta determinação respectiva, precisamente como um ser desumanizado (entmenchtes Wesen) tanto espiritual quanto corporalmente – imoralidade, deformação, embrutecimento de trabalhadores e capitalistas. Seu produto é a mercadoria consciente-de-si e auto-ativa, … a mercadoria humana” (MARX, 2004, pp. 92-93).


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