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Brass Casting (1914), óleo sobre tela, de Hermann Heyenbrock. |
Resumo: Neste texto, buscamos discutir de forma ensaística e improvisada as questões que envolvem a auto-definição do proletariado como classe social e seu movimento comunista.
1. Introdução: condições de vida, afetividade e implicações na expressão intelectual da perspectiva revolucionária
As questões teóricas não são irrelevantes para a discussão entre os revolucionários (pelo contrário: possuem uma importância fundamental). Aqueles que pretendem nos convencer de que os assuntos teóricos não devem nos atrapalhar nas coisas práticas apenas escondem suas próprias teorias e reais interesses (o mesmo vale para aqueles que falam de “questões imediatas” como se estas fossem questões consensuais mínimas). Como disse Piotr Kropotkin: “No fundo, estas palavras: ‘Não discutamos estas questões teóricas’ reduzem-se a isso: ‘Não colocai em discussão nossa teoria, mas ajudai-nos a colocá-la em execução’” (2005, p. 225, grifo original). E nós demonstraremos como isso, de fato, ocorre (muitas vezes sob o disfarce de uma “objetividade dada”).
Longe de ser puro interesse especulativo, a teoria nos ajuda a ter as ideias que estão mais adequadas com as necessidades históricas de nossa classe (o proletariado). Portanto, não podemos negligenciar a formulação teórica sobre os rumos do movimento comunista, pois não existe prática revolucionária sem teoria revolucionária e vice-versa.
Uma vez que temos interesse em compreender os rumos que nossa auto-atividade de classe assume historicamente, precisamos refletir profundamente sobre a natureza das relações sociais constitutivas do capitalismo e, consequentemente, compreender o sentido da nossa condição de classe social nesse modo de produção. Não apenas para determinar que função o proletariado possui na reprodução sistêmica do capitalismo, mas, sobretudo, para analisar nossas capacidades com relação à possibilidade de libertação do jugo da exploração e da opressão que sofremos constantemente nesse modo de existência.
Neste caso, não podemos esconder o sentido ético de nossas premissas e conclusões, como fazem os profetas que dizem apenas “interpretar sinais divinos” que revelam os mandamentos de Deus, ou como fazem aqueles que buscam secularizar essa atitude e dizem apenas revelar as “leis da natureza”. Lembremo-nos aqui da controvérsia entre Belarmino e as ciências no seio da sociedade burguesa: que os cientistas não se coloquem questões ontológicas, pois estas se reduzem às gnosiológicas.
De nossa parte, podemos dizer que nossas reflexões só revelam nossa condição de seres mundanos que buscam lutar pela sua existência como qualquer organismo vivo e, portanto, não é porque somos iluminados por um “intelecto universal” que lutamos pela emancipação humana. Na verdade, ocorre algo oposto aqui: porque desejamos a libertação da humanidade que buscamos um conhecimento que seja universal (no sentido de afirmar a multiplicidade sem torná-la homogênea, ao mesmo tempo em que se afirma o absoluto sem torná-lo relativo).
Não obstante, nossa posição como “classe sem reservas”, como grupo social e histórico engendrado pelo processo de proletarização, nos deixa em condições diferenciais no que diz respeito ao processo de produção heterogênea de formas de consciência social. Da mesma forma que somos despossuídos de meios de produção e, portanto, não temos posses materiais vantajosas a perder, também somos privados dos saberes que envolvem a organização da sociedade burguesa. Portanto, na medida em que nossa atividade intelectual não é um elemento convocado a compor esse modo de existência, a não ser de forma obediente e passiva (aceitando as pré-ideações já estabelecidas), nossa relação com a produção de ideias é também uma relação de não garantia, de insegurança ontológica.
Neste caso, temos uma relação ambígua com as ideias que aprendemos vivendo nesse modo de produção. Na condição de proletários, nós nos apropriamos dessas ideias, mas elas não assumem a forma de dogmas sem os quais nossa existência como classe social ficaria comprometida (pois nosso trabalho não tem a ver com inventar ideias para garantir a estabilidade desse sistema – essa função foi relegada a outro grupo social encarregado de organizar a reprodução da sociedade burguesa). Ou seja: tanto faz que tipo de consciência nós, relegados ao trabalho manual na divisão social do trabalho, tenhamos.
É essa indiferença com relação aos nossos processos subjetivos que muitas vezes tem nos levado ao niilismo. Não obstante, as mesmas condições diferenciais que são a causa de nossa doença (niilismo) podem ser a fonte de nossa cura (subjetividade revolucionária). Uma vez que tenhamos levado ao paroxismo as premissas de nossa existência, veremos que: não temos pré-concepções a salvaguardar, não temos dogmas a defender e nada a esconder (da mesma forma que não temos meios de produção para proteger). Se estamos estranhados com relação às ideias produzidas para manter a reprodução orgânica dessa sociedade, então essas ideias alheias à nossa ideação só poderiam ter conosco uma relação de estranhamento. Portanto, por mais que durante toda nossa vida neste modo de produção nós acabemos por reproduzir seus processos prático-ideativos, algo sempre fica instável, pois nada fica plenamente fixado num modo de vida baseado em laços sociais frouxos (resultantes da desagregação das formas de vida comunitárias).
Neste caso, em nossa atividade intelectual já se encontram dissolvidos o trabalho intelectual de todas as gerações que participaram da composição dos modos de produção anteriores, pois as crenças que nos restaram são expressões da nossa própria miséria existencial, uma vez que mesmo nossas fantasias mais delirantes são apenas uma forma de preencher o vazio de sentido em nossa vida. Portanto, o ápice de nossa consciência social, enquanto expressão ideal das relações sociais atuais, é consciência nonsense ou nonsense de consciência.
Não precisamos afirmar essas ideias para manter nossa posição social, pelo contrário: precisamos manter uma posição social que nos é estranha e, consequentemente, afirmamos ideias estranhadas para a sublimação de nossa miséria existencial (“toda filosofia da miséria é uma miséria de filosofia”). Por isso que religiões cristãs e a constante auto-comiseração nos é tão suscetível e viciante, uma vez que viver de modo gregário é uma exigência de uma forma de produção que leva milhões de humanos a se auto-esfolarem trabalhando para gerar mais-valor ao Capital.
Os paradoxos ao qual nos referimos até aqui podem ser resumidos da seguinte forma:
De fato, queremos dizer que o capitalismo, no seu processo de produção, produz uma formidável carga esquizofrênica sobre a qual ele faz incidir todo o peso da sua repressão, mas que não deixa de se reproduzir como limite do processo. Isto porque o capitalismo nunca para de contrariar, de inibir sua tendência, ao mesmo tempo em que nela se precipita; não para de afastar o seu limite, ao mesmo tempo em que tende a ele. O capitalismo instaura ou restaura todos os tipos de territorialidades residuais e factícias, imaginárias ou simbólicas, sobre as quais ele tenta, bem ou mal, recodificar, reter as pessoas derivadas das quantidades abstratas. Tudo repassa ou regressa, os Estados, as pátrias, as famílias. É isto que faz do capitalismo, na sua ideologia, ‘a pintura mesclada de tudo aquilo em que se acreditou’. O real não é impossível, ele é cada vez mais artificial. (…) Quanto mais a máquina capitalista desterritorializa, descodificando e axiomatizando os fluxos para deles extrair a mais-valia, mais os seus aparelhos anexos, burocráticos e policiais reterritorializam à força, enquanto vão absorvendo uma parte crescente de mais-valia (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 53, grifos nossos).
Neste sentido, como afirmava Bakunin, existe uma razão que explicaria tanto o sentimento religioso dos homens e mulheres da classe proletária de todos os países quanto seus impulsos hedonistas:
Esta razão é a situação miserável à qual ele se encontra fatalmente condenado pela organização econômica da sociedade (…). Reduzido, sob o aspecto intelectual e moral, tanto quanto sob o aspecto material, ao mínimo de uma existência humana, recluso em sua vida como um prisioneiro em sua prisão, sem horizontes, sem saída, até mesmo sem futuro, se acredita nos economistas, o povo deveria ter a alma singularmente estreita e o instinto aviltado dos burgueses para não sentir a necessidade de sair disso; mas, para isso, há somente três meios: dois fantásticos, e o terceiro real. Os dois primeiros são o cabaré e a igreja; o terceiro é a revolução social. Esta última, muito mais que a propaganda antiteológica dos livres-pensadores, será capaz de destruir as crenças religiosas e os hábitos de libertinagem no povo, crenças e hábitos que estão mais intimamente ligados do que se pensa. Substituindo os gozos simultaneamente ilusórios e brutais da orgia corporal e espiritual pelos gozos tão delicados quanto ricos da humanidade desenvolvida em cada um e em todos, a revolução social terá a força de fechar ao mesmo tempo todos os cabarés e todas as igrejas (2002, p. 15, grifos nossos).
Todavia, uma vez que o mar de lágrimas religioso e a frenesi entorpecente tenham se transformado em uma efervescente energia de revolta, nossa crítica como proletários fora da lei é aquela que vai mais longe. O próprio capitalismo, em seu devir paradoxal, tende a fazer com que tudo que outrora foi sólido se desmanchar pelo ar. Esse é seu processo esquizofrênico de produção (e sua produção de esquizofrenia).
Neste sentido, a classe proletária é cada vez mais neurotizada até atingir o limiar entre a psicose e o niilismo ativo, isto é, entre dois processos subjetivos ambivalentes: 1) a conversão da perda de sentido em sentido da perda (adoecimento mental causado pela patologia capitalista – angústia, ansiedade, depressão, etc.); 2) e a negação da própria negação de vida ao qual estamos submetidos (consequentemente: a necessidade de produzir novos sentidos para a existência que nada mais é do que a expressão subjetiva da necessidade de produzir um novo modo de produção).
Quando nos revoltamos contra esse modo de vida destrutivo, ampliamos nossa percepção assim como ampliamos nossas forças coletivas. Nossa atividade intelectual torna-se uma arma espiritual (a crítica revolucionária) a ser usada concomitantemente com nossas armas físicas (o conjunto das práticas subversivas que acionamos na luta de classes por meio da ação direta).
Forma-se para nós o caminho real: o
caminho revolucionário. Nossos
afetos destrutivos vibram na mesma frequência de nossa revolta, tornando-se
afetos produtivos. Neste caso, canalizamos nossos esforços em construir uma
crítica desapiedada de todos os elementos que compõem esse modo de produção embrutecedor. Pois a
paixão pela destruição é a paixão criativa:
Ninguém pode querer destruir sem ter pelo menos uma imaginação distante, verdadeira ou falsa, da ordem das coisas que deveria, segundo ele, suceder à que existe presentemente: e quanto mais viva é a imaginação nele, mais forte se torna a sua força destrutiva, e mais ela se aproxima da verdade, isto é, mais está conforme ao desenvolvimento necessário do mundo social actual, mais os efeitos da sua acção destrutiva se tornam salutares e úteis. Pois a acção destrutiva é sempre determinada, não só na sua essência e no grau da sua intensidade, mas também nos seus modos, nas suas vias e nos meios que ela emprega, pelo ideal positivo que constitui a sua inspiração primeira, a sua alma (BAKUNIN, 1975, p. 207, grifos nossos).
É neste sentido que compreendemos o que Karl Marx expressa, nos Manuscritos de 1844, acerca da situação singular do proletariado alemão (mas, de certa forma, também resume a situação de toda a classe proletária):
uma classe da sociedade burguesa que não é uma classe da sociedade burguesa; de um estado que é a dissolução de todos os estados; uma esfera que possui um caráter universal por seus sofrimentos universais e que não reclama nenhum direito especial para si, porque não se comete contra ela nenhuma violência especial, senão a violência pura e simples; que já não pode apelar a um título histórico, mas simplesmente ao título humano; que não se encontra em nenhuma espécie de contraposição particular com as conseqüências, senão numa contraposição universal com as premissas do Estado alemão [de qualquer Estado]; de uma esfera, finalmente, que não pode emancipar-se sem se emancipar de todas as demais esferas da sociedade e, simultaneamente, de emancipar todas elas; que é, numa palavra, a perda total do homem e que, por conseguinte, só pode atingir seu objetivo mediante a recuperação total do homem. Esta dissolução da sociedade como uma classe especial é o proletariado.
(…)
Ao proclamar a dissolução da ordem universal anterior, o proletariado nada mais faz do que proclamar o segredo de sua própria existência, já que ele é a dissolução de fato desta ordem universal. Ao reclamar a negação da propriedade privada, o proletariado não faz outra coisa senão erigir a princípio de sociedade aquilo que a sociedade erigiu em princípio seu, o que já se personifica nele, sem intervenção de sua parte, como resultado negativo da sociedade (Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, grifos nossos).
2. A atividade intelectual da crítica proletária se expressa como produção teórica científica:
Compreendemos que somos imanentes a um processo de transformação social que torna-se cada vez mais necessário na medida em que nossa classe avança na luta de classes. Portanto, quando estudamos as condições de nossa existência e as possibilidades da nossa luta pela emancipação humana, nós buscamos compreender o conjunto das determinações gerais do processo histórico. Trata-se, sobretudo, de um estudo das tendências presentes na própria realidade:
Quanto ao método seguido pelo pensador anarquista, ele difere em grande parte do seguido pelos utópicos. O pensador anarquista não recorre a concepções metafísicas (como os “direitos naturais”, os “deveres do Estado” e assim por diante) para estabelecer quais são, em sua opinião, as melhores condições para realizar a maior felicidade da humanidade. (…) Ele estuda a sociedade e tenta descobrir suas tendências, passadas e presentes, suas necessidades crescentes, intelectuais e econômicas; e, em seu ideal, ele apenas aponta em que direção a evolução segue. (…) O ideal do anarquista é, portanto, um mero resumo do que ele considera ser a próxima fase da evolução. Não é mais uma questão de fé; é um assunto para discussão científica (KROPOTKIN, 1887, pp. 238-239).
Esses estudos, em vez de nos conduzir a uma conformação passiva (como se fossem “questões de fato” sem interferência das “questões de interesse”), pelo contrário, se tornam conhecimentos que servem aos interesses práticos dos revolucionários. Portanto, o conhecimento científico, quando utilizado de forma crítica por pensadores revolucionários, está subordinado ao nosso sentido ético, uma vez que queremos agir a favor daquelas tendências que oferecem “as melhores condições para realizar a maior felicidade da humanidade” (idem). Em síntese: não negamos nossa própria existência e influência na ordem das coisas, isto é, consideramos nós mesmos como força histórica em correlação com outras forças. Os estudos servem, portanto, para definir a forma mais adequada de realizarmos nossos objetivos, já que não somos “meros joguetes da evolução histórica”:
A História não faz nada, “não possui nenhuma riqueza imensa”, “não luta nenhum tipo de luta”! Quem faz tudo isso, quem possui e luta é, muito antes, o homem, o homem real, que vive; não é, por certo, a “História”, que utiliza o homem como meio para alcançar seus fins – como se se tratasse de uma pessoa à parte –, pois a História não é senão a atividade do homem que persegue seus objetivos (MARX, 2011, p. 111, grifos originais).
Agora que já introduzimos nossa situação onto-epistemológica de classe, podemos prosseguir no tema que nos propomos discutir.
3. O que é classe proletária?
Saber como conceituar adequadamente nossa classe (o proletariado) é uma questão essencial para pensar o processo revolucionário imanente. Vale destacar que o uso do conceito de causa imanente aqui se refere à questão de pensar a própria Revolução Social como resultado imanente da luta de classes no capitalismo. Esse texto mesmo exprime certas sínteses teóricas que emergem com o desenvolvimento do antagonismo prático-crítico de nossa classe.
Com efeito, existem várias tentativas ideológicas de definir o proletariado, ou seja, de conceituá-lo a partir de ideias funcionais ao modo de produção capitalista (ou seja: ideias que reproduzem as próprias relações de produção capitalistas como formas de consciência). Nosso objetivo não é somente negar tais definições, mas demonstrar, na medida do possível, a própria condição de gênese das mesmas (tal é o sentido da própria crítica). Portanto, também vamos caracterizar algumas dessas visões no que se segue.
Começaremos pela nossa auto-definição histórica e social como tais, na medida em que gerações de lutas de classes nos herdaram um acúmulo sobre o sentido de nossa existência e nosso programa libertário.
4. Como nos tornamos proletários?
As relações sociais atuais foram forjadas na transformação social que a burguesia foi obrigada a realizar para se tornar a classe dominante. A burguesia funda seu poder de classe na propriedade privada dos meios de produção, ou seja, no processo de apropriação exclusiva dos pressupostos objetivos da atividade produtiva. Portanto, a história da propriedade privada da burguesia (conhecida como “acumulação originária”) é a história do roubo dos bens comuns da vida coletiva dos seres humanos.
Nesse processo, os expropriados passam inicialmente por uma “subsunção formal ao processo de trabalho” (dinâmica social de produção capitalista sob condições técnicas pré-capitalistas) e depois por uma “subsunção real ao processo de trabalho” (dinâmica social de produção capitalista sob condições técnicas propriamente capitalistas). A transição para o modo de produção capitalista ocorreu, em primeiro lugar, numa mudança das relações de apropriação seguida de uma mudança nas relações de produção, processo histórico que vai desencadear novas relações socioténicas. Portanto, é errado afirmar que “foi o grau de desenvolvimento das forças produtivas que determinou o engendramento do capitalismo”, algo que vamos explicar a seguir.
Antes de continuarmos, é necessário destacar aqui que existe um gênero de explicações da origem do capitalismo que pode ser definido, como faz Ellen Meiksins Wood, como o paradigma do “modelo mercantil”. Esse paradigma é resultado da própria ideação dos capitalistas sobre si mesmos e o mundo que produziram (uma ideologia). O ideólogo que sistematicamente elaborou tal concepção foi Henri Pirenne. Segundo Wood, esse historiador pressupõe que o capitalismo está, em estado latente, em todas as sociedades ditas “pré-capitalistas” e que, para amadurecer e emergir, bastava ocorrer uma liberação de aspectos externos, de “contingências” sociais e culturais que o “entravavam”. Esse modelo afirma que o capitalismo seria o estágio mais elevado do progresso, surgindo necessariamente devido a fatores não-funcionais das formas de produção precedentes e, particularmente, após a desagregação do feudalismo pelas forças mercantis. Destaca-se com frequência o comercio e as cidades, colocando os burgueses como agentes do progresso. Mas o essencial aqui é o seguinte: essa ideologia se baseia na ideia de que o capitalismo surge em consequência das “leis do mercado” ou do “progresso” (supostamente existentes) que, invariavelmente, levam aos mesmos resultados necessários após terem se desfeito de questões contingenciais.
Já vimos que não podemos acreditar em profetas que dizem revelar as “leis da existência” como se revelassem uma verdade divina. O capitalismo não surge das “pressões seletivas” do mercado. O próprio mercado pré-capitalista se organizava de modo diferente do mercado capitalista, algo que tornou necessário uma grande transformação, segundo Karl Polanyi, para converter “sociedades com mercado” (em era apenas um complemento na sociedade, uma vez que os bens de subsistência geralmente eram produzidos pelos produtores diretos) em “sociedades de mercado” (onde temos os imperativos da compulsão, da competitividade e os bens de subsistência se tornam mercadoria junto com a força de trabalho). Não obstante, Polanyi acredita que o fator dessa transformação teria resultado de um avanço tecnológico inexorável na Europa, o que reproduz o discurso ideológico do progresso.
O que essas visões não explicam é como a
mercantilização mesma emerge historicamente. Já falamos sobre isso em nosso texto:
Das comunidades originárias ao processo de extraenisação em termos capitalistas. Neste texto afirmamos que: “somente quando é possível alienar um bem comum, isto é, apenas quando se privatiza um bem expropriado-o de sua própria comunidade é que podemos falar em troca mercantil” (Communismo Libertário). Portanto, na medida em que uma classe de pessoas consegue exclusividade sobre uma parte do bem comum, temos uma situação em que “parte do produto do trabalho [será] intencionalmente feita para a troca” (MARX, 1996, p. 213). Neste caso, “consolida-se (…)
a separação entre a utilidade das coisas para as necessidades imediatas e sua utilidade para a troca” (idem, grifos nossos).
O efeito dessa separação é a alienação, ou seja, a conversão da atividade produtiva que realiza necessidades para trabalho que produz segundo as necessidades de algo alheio (estranho) na forma de valor (o surgimento da troca mercantil, o trabalho e o valor coincidem). O processo de alienação, da extraenisação (Entfremdung) do trabalho, surge quando: “o objeto (Gegenstand) que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor” (MARX, 2004, p. 80). Assim se afirma a lei do valor (ver: 9. A Lei do Valor e a extraenisação, do nosso texto mencionado acima). O desenvolvimento do valor é um processo de desumanização, pois “a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta à desvalorização do mundo [humano] (Menschewelt)” (idem). Esse processo se estende e se intensifica, ampliando a condição na qual é preciso alienar reciprocamente os bens de sua comunidade com relação aos bens de outras, tornando essa dinâmica uma parte da própria reprodução social das pessoas em suas comunidades (que se tornam interdependentes pela divisão social do trabalho que envolvem tais trocas).
Em suma: todos os processos envolvendo transações mercantis (pré-capitalistas ou não) resultam numa desumanização, caracterizada pelo estranhamento do outro que se torna alheio à sua existência propriamente social, ou seja, a dissolução do ser coletivo da vida comunitária na ditadura do valor. Marx nos oferece a seguinte descrição do que está envolvido na troca de mercadorias:
Em ambos os lados, portanto, a troca é necessariamente mediada pelo objeto que cada lado produz e possui. A relação ideal com os respectivos objetos da nossa produção é, evidentemente, a necessidade mútua. Mas a relação real, verdadeira, que realmente ocorre e produz efeitos, é apenas a posse mutuamente exclusiva de nossos respectivos produtos. O que dá à tua necessidade de meu artigo valor, importância e efetividade para mim é apenas o teu objeto como o equivalente do meu objeto. Nosso produto recíproco, portanto, é o meio, o mediador, o instrumento, o poder reconhecido de nossas necessidades mútuas. Tua demanda e o equivalente de tua posse, portanto, são para mim termos que são iguais em importância e validade, e tua demanda só adquire um significado, devido a ter um efeito, quando ela tem um significado e efeito em relação a mim. Como um mero ser humano, sem este instrumento, tua demanda é uma aspiração frustrada de tua parte e uma ideia que não existe para mim. Como um ser humano, portanto, você não tem nenhuma relação com meu objeto, porque eu mesmo não tenho nenhuma relação humana com ele. Mas o meio é o verdadeiro poder sobre o objeto e, portanto, nós consideramos mutuamente nossos produtos como o poder de cada um sobre o outro e sobre nós mesmos. Ou seja, o nosso próprio produto se levantou contra nós; ele parecia ser nossa propriedade, mas de fato nós somos propriedade dele. Nós mesmos somos excluídos da verdadeira propriedade porque nossa propriedade exclui os outros homens (Comentários sobre “Os Elementos de Economia Política de James Mill”, 1844).
No caso da emergência do capitalismo (que é o modo mais desenvolvido do mundo das mercadorias), temos uma intensificação e um salto de qualidade nesse processo de desumanização na extraenisação. O modo de produção capitalista é historicamente específico na forma como conduz essa alienação, uma vez que, diferentemente dos modos precedentes, faz com que a lei do valor se expresse na forma de acumulação de valor, isto é, de valor que se valoriza (Capital). O capitalismo passa a existir e persevera na sua existência como modo de produção mundialmente integrado. Essa forma social de produção se reproduz através de sua própria expansão, pois funciona segundo os imperativos do progressivo aumento da produtividade do trabalho (algo que deriva da necessidade da reprodução ampliada do Capital). Essa transformação surge especificamente como resultado da luta de classes na Inglaterra.
Na medida em que a classe dominante inglesa teve sua auto-reprodução atrelada com a produtividade da terra dos seus arrendatários, seus interesses se identificaram com a necessidade de impor a relação mercantil de forma cada vez mais intensa (surgimento de uma competitividade de mercado). Essa imposição veio acompanhada do roubo de terras dos camponeses, conhecido como os enclosures (cercamentos). Nesta conjuntura história surge o que ficou conhecido como capitalismo agrário (ideia defendida por historiadores como Brenner e Wood). Com efeito, essa situação surge precisamente quando o comércio global já estava estabelecido com a expansão colonial dos europeus pelo mundo. Ainda que essa premissa (mercado mundial) seja importante para o nascimento do Capital, ela por si só não explica, pois não demonstra a diferença específica dessa dinâmica: “uma explicação que não dá a differentia specifica não é uma explicação” (MARX, 2010, p. 34). Neste caso, a fundamental transformação desse período histórico é essa espoliação dos produtores diretos mediante imperativos de mercado. Como afirma Wood (2001, p. 101):
Somente uma transformação das relações sociais de propriedade que obrigou as pessoas a produzirem competitivamente (e não apenas a comprarem barato e venderem caro), uma transformação que fez com que o acesso aos meios de auto-reprodução passassem a depender do mercado, é capaz de explicar a drástica revolução das forças produtivas que foi singularmente característica do capitalismo.
A burguesia participa ativamente nesse roubo, como descreve Marx no capítulo que trata da acumulação originária de capital:
Na base do sistema capitalista reside, portanto, a separação radical entre produtor e seus meios de produção […] a base de toda essa evolução é a expropriação dos agricultores [cultivateurs]. Ela só se realizou de modo radical na Inglaterra […] Mas todos os outros países da Europa Ocidental percorrem o mesmo processo [mouvement] (MARX, 2013, p. 114).
Neste sentido, o capitalismo surge historicamente por meio de uma imposição violenta e não por um suposto “desenvolvimento” de uma forma social que apenas esperava as “condições favoráveis” para emergir como proclama o “modelo mercantil” (concepção que, além de teleológica, também precisa se sustentar em essencialismos da “natureza humana”, como o mito de que “as pessoas são naturalmente egoístas”). O modelo mercantil não busca acompanhar o desenvolvimento imanente da história, portanto cai numa “teoria histórico-filosófica geral cuja suprema virtude consiste em ser suprahistórica” (Carta ao Diretor da Revista Russa Otiechéstvennie Zapiski, 1877).
Os capitalistas passam a impor aos privados dos meios de produção a obrigação de trabalhar, pois para ter acesso a meios de subsistência (transformados em mercadorias) é necessário uma fonte de renda e para obter renda é necessário vender algo. Essa situação se impõe, uma vez que mercado tenha dominado a reprodução material de toda a sociedade. Nesse processo, uma classe social “sem bens para vender” surge da expropriação dos meios de produção, portanto não resta nada a vender para essas pessoas do que sua própria capacidade de trabalhar no “mercado de trabalho”.
Uma vez que acumulação originária de capital foi um processo brutal e sanguinário, devemos considerar que o próprio fundamento do capitalismo não poderia ter ocorrido senão com a destruição de certos modos de existência pré-capitalistas. Em outras palavras: para efetuar a imposição do capitalismo, foi necessário a negação do seu contrário, ou seja, do não-capitalismo. Em outras palavras: a negação do não-capitalismo surge primeiro que a negação do capitalismo.
Qualquer modo de produção que tivesse alguma incongruência com o capitalismo foi confrontado violentamente pela reprodução ampliada das relações capitalistas. Nesse processo, o comunismo originário foi o modo de existência mais oposto à expansão do capitalismo. Também já é amplamente reconhecido que as sociedades onde não existiam hierarquias sociais sempre foram as que mais causavam abjeção às classes dominantes de todos os países (por isso sempre foram os maiores alvos dos processos coloniais da acumulação originária). Em suma: se a reprodução social desta ou daquela coletividade era baseada nas necessidades e não na mercantilização e acumulação de valor, esse agrupamento era logo identificado como um inimigo natural do mundo das mercadorias, uma vez que a mera existência de uma forma de vida baseada nas necessidades atesta contra o imperativo compulsório da lei do valor.
Neste caso, não faz sentido dissociar a proletarização da expropriação dos meios de subsistência das pessoas no processo de formação da classe proletária. Portanto, tornar-se proletário, historicamente falando, significa ter sido expropriado, ter seu modo de vida desagregado, ser socializado no mercado de trabalho (enquanto se é “dessocializado” da comunidade), ser submetido à escravidão do trabalho assalariado (além da escravidão doméstica que recai sobre as mulheres na forma de “trabalho reprodutivo”). Em suma: nos tornamos proletários quando somos transformados em capacidade puramente subjetiva para trabalhar.
Como resumiu o grupo Réseau de Discussion International (que vamos abreviar para RDI): “proletariado é o herdeiro de todas as classes exploradas do passado porque as suas condições de sobrevivência levam ao seu paroxismo a inumanidade das condições de vida de todas as classes exploradas do passado, e porque concentra em si todas as causas profundas das lutas anteriores” (2004).
5. O que é nossa classe?
Vimos que o capitalismo surge a partir do encontro entre duas séries: uma classe de expropriados que apenas ficaram com suas próprias capacidades e uma classe de expropriadores que ficaram com os pressupostos objetivos (os meios de produção) que possibilitam a realização dessas capacidades. A propriedade privada capitalista é de um gênero diferente das demais, na medida em que a burguesia, enquanto capitalista, controlaria a objetividade “pura” da produção e subordinaria a “pura subjetividade” do trabalho vivo, condição do proletariado.
Mas se nos limitarmos a ficar apenas nas condições de reprodução funcional da sociedade capitalista, não conseguiremos compreender o movimento interno de sua própria dissolução. Ora, se afirmamos que nossa classe é revolucionária, isso deriva das próprias condições de existência do proletariado e, portanto, o movimento real de superação do capitalismo não existe como uma determinação vinda de fora do modo de produção. Trata-se da luta entre comunismo e capitalismo. Mas essa luta não pode se dissociar dos sujeitos em luta, isto é, das classes sociais portadoras desse antagonismo (RDI, 2004):
O valor (enquanto sujeito, dinâmica) divide permanentemente a sociedade em dois campos: aqueles que são cooptados pela propriedade (gestão, controlo da sua produção, luta pela sua defesa) e aqueles desapossados de tudo, que, na sua vida, se opõem à propriedade (a venda da força de trabalho é esta oposição conciliada e enquadrada, da mesma maneira que o são as outras formas de arranjar meios de vida: direito ao desemprego, o roubo, …).
Já vimos que, para ser possível, o capitalismo precisa tornar impossível para uma massa de pessoas a condição de se reproduzirem materialmente sem que elas recorram ao mercado. Neste caso, o capitalismo produz sua possibilidade na impossibilidade do não-capitalismo, algo que precisa constantemente manter assim (como o não-possível que lhe torna possível). Neste caso, a classe dominante (lado positivo da propriedade privada) consegue efetuar a reprodução do capitalismo através do constrangimento reiterado de outros modos de vida. Já a classe proletária (lado negativo da propriedade privada) vive uma sobrevida, constrangida por forças repressivas e ideológicas, pois é a exploração de sua força de trabalho (na forma de capital variável que gera mais-valor) que faz o capital se reproduzir. Em síntese: negação da autodeterminação da classe dominada é a afirmação da autodeterminação da classe dominante.
Como afirmou Marx (2011, p. 47): “Proletariado e riqueza são antíteses. E nessa condição formam um todo. Ambos são formas do mundo da propriedade privada”. Logo:
A propriedade privada na condição de propriedade privada, enquanto riqueza, é obrigada a manter sua própria existência e com ela a existência de sua antítese, o proletariado. Esse é o lado positivo da antítese, a propriedade privada que se satisfaz a si mesma. O proletariado na condição de proletariado, de outra parte, é obrigado a suprassumir a si mesmo e com isso à sua antítese condicionante, aquela que o transforma em proletariado: a propriedade privada. Esse é o lado negativo da antítese, sua inquietude em si, a propriedade privada que dissolve e se dissolve (MARX, 2011, p. 48, grifos originais).
É neste sentido que nosso constrangimento enquanto classe proletária nos obriga, não somente a produzir mais-valor, mas também a nos revoltar contra o capitalismo. Nossa classe contém o não-ser do capitalismo em si, na forma de negatividade negada pelo capital. Quando o proletariado entra em luta contra a burguesia (classe portadora das relações sociais capitalistas), ele anuncia a recomposição do ser que o capitalismo precisa manter constrangido (o não-capitalismo). Portanto, nossa classe é obrigada, pela sua própria condição no capitalismo, a lutar contra o constrangimento que o capitalismo faz do não-capitalismo.
O interesse de classe de uma classe que surge a partir do roubo é necessariamente um interesse por seu próprio fim, pois se tudo nos foi expropriado, o ato de nossa reapropriação é, efetivamente, a reapropriação de tudo. O proletariado, como perca total das condições objetivas da atividade humana personificada em classe social, só pode tomar de volta o que lhe foi roubado através de uma retomada total dessas condições. Tal retomada é um ato de supressão do ser-capitalista, justamente porque é afirmação de um não-ser capitalista que só pode ser comunista, porque o comunismo é essa recuperação total de todos os pressupostos objetivos da atividade humana de modo integral e universal.
Não se trata do que este ou aquele proletário, ou até mesmo do que o proletariado inteiro pode imaginar de quando em vez como sua meta. Trata-se do que o proletariado é e do que ele será obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu ser. Sua meta e sua ação histórica se acham clara e irrevogavelmente predeterminadas por sua própria situação de vida e por toda a organização da sociedade burguesa atual (MARX, 2011, p. 49, grifos originais).
É nisto que consiste afirmar que nossa classe proletária é, coletivamente, o sujeito revolucionário e que nossa revolução social é também o movimento da dissolução das sociedades de classe: “A condição de libertação da classe laboriosa é a abolição de toda a classe, assim como a condição de libertação do terceiro estado, da ordem burguesa, foi a abolição de todos os estados e de todas as ordens” (MARX, 1985, p. 160).
Em resumo: o proletariado é, simultaneamente, classe obrigada a trabalhar para valorizar o capital (trabalhador), ou seja, personificação da fonte produtora do Capital (que é o trabalho), mas também é uma classe antagônica da burguesia (que é a personificação do Capital), na medida em que luta para não trabalhar, ou seja, enquanto busca realizar suas necessidades e capacidades sem reproduzir a sociedade capitalista.
A definição do proletariado não envolve “duas situações históricas distintas” (um momento mais revolucionário, um momento mais assimilado), pois é sua própria constituição de classe que contém, como premissa, dois desenvolvimentos históricos possíveis que são mutuamente excludentes, pois são incompossíveis entre si na ordem da convergência das séries, ou seja, um mundo onde proletariado deixa de ser explorado (seu interesse de classe) é um mundo incompossível com a existência do Capital (e suas instituições: Estado, dinheiro, patriarcado, racismo, etc.). Neste sentido, as revoluções, as greves insurreccionais, enfim, a luta de classes em seus processos históricos possuem resultados heterogêneos justamente porque as premissas que envolvem a existência da classe proletária permitiram isso. Em outras palavras: são imanentes à constituição do proletariado.
Se o proletariado luta pela riqueza, não é para tomá-la como está “dada” pelo capitalismo, mas para fundá-la numa nova relação com o tempo, ou seja, a riqueza como tempo disponível cada vez maior (em vez da versão produtivista do capitalismo, baseada no tempo de trabalho socialmente necessário). Essa nova relação não é possível sem abolir todas as formas de dominação que reproduzem a sociedade capitalista: o patriarcado do salário (baseado na separação entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo), o racismo (estratificação do proletariado em raças, para dominá-lo através da imposição de uma hierarquia artificial na sua classe), divisão social do trabalho em trabalho intelectual que organiza a produção exclusivamente e trabalho manual que executa a produção sem participar de sua organização, separação abstrata entre seres humanos e natureza (uma vez que a propriedade privada gera a projeção de uma pretensa “dominação” que os “donos do mundo” teriam direito), dentre outras que não listaremos aqui para não sermos exaustivos.
Agora é necessário desenvolver melhor essa auto-definição contrapondo-a às abstrações ideológicas que fazem contra nossa classe.
6. Materialismo vulgar, economicismo e obreirismo
Quando os cientistas sociais (que geralmente são intelectuais burgueses) são afetados pelas variáveis que envolvem a reprodução do modo de produção capitalista, eles são levados a definir a classe proletária a partir de uma lógica formal que reifica nossa classe num funcionalismo abstrato. Neste caso, temos uma das concepções ideológicas do proletariado conhecida como “economicista”.
A definição economicista do proletariado consiste em afirmar como “seus critérios” as condições de reprodução regular das relações sociais de produção do capitalismo. Neste caso, toma o proletariado como simples “engrenagem” do modo de produção e considera que: “o proletariado é uma classe social que se define de acordo com sua ‘posição’ no modo de produção, sendo tal ‘posição’ dada de acordo com o ‘poder econômico’ sobre as forças produtivas da sociedade”.
Essa concepção é efeito do juízo de generalidade sobre o que é estável, considerando o instável como mero acidente. Essa forma de compreensão da realidade mediante padrões assinaláveis tende a projetar teleologicamente a regularidade das condições como se fossem as condições da regularidade. Trata-se de uma tautologia disfarçada de objetividade.
O problema dessa definição é que ela não introduz a luta de classes como fator positivo e constitutivo que está por trás dessa “posição social” que cada classe possui. Ao se analisar a “estrutura econômica” abstratamente, as relações sociais tornam-se relações entre coisas e os seres humanos são reificados em suas relações com estas coisas [veja-se a nota 1].
Novamente, é o grupo RDI que adverte: “A definição economicista de proletariado só toma em conta o mecanismo de funcionamento do capitalismo”. Neste caso, se ignora a imanência do próprio anticapitalismo no capitalismo (e nenhuma objeção empírica poderia atestar contra esse fato).
O RDI critica o que chama de “materialismo vulgar” que identifica o proletariado com a classe operária (que podemos chamar de “ideologia operaísta” ou “obreirismo”). Uma das principais debilidades do pseudo-materialismo (ou “materialismo vulgar”) é sua impossibilidade em compreender o processo revolucionário como “acontecimento material”, como atividade sensível e prático-crítica.
No que diz respeito aos postulados do “obreirismo”, o grupo Antagonism considera que essa ideologia baseia-se na afirmação de que os “trabalhadores produtivos” (ou, numa concepção mais estreita ainda, apenas os operários) são “a fonte” da atividade revolucionária (ou ainda: o grupo social que deve exercer sua hegemonia sobre os demais), portanto somente a estes é dado o “privilégio” de determinar os rumos do processo revolucionário.
Os obreiristas dizem que os operários produtivos assumem uma posição crucial porque eles podem, parando de trabalhar, destruir o capitalismo. Efetivamente, a centralidade dos operários produtivos é um exagero: a produção é apenas uma parte do ciclo de acumulação. Os operários envolvidos na comunicação, distribuição e circulação também possuem elementos de força. Uma greve de bancários pode ter um efeito maior, para o capital, do que uma greve de operários numa fábrica de automóveis. Uma onda de lutas urbanas pode ter um efeito maior que ambas (Antagonism, 1995).
É necessário destacar que a questão da luta como relação social também aparece em segundo plano nas concepções obreiristas, uma vez que o ponto de partida destes é reafirmar a “posição privilegiada” do grupo da qual se explora parcela significativa do mais-valor. Não obstante, essa concepção reproduz os critérios de funcionalidade do Capital, ignorando que a reprodução social deste modo de produção também passa, dentre outras coisas, pelo trabalho reprodutivo que é convertido em trabalho doméstico na esfera familiar convertida em família burguesa. Ou seja, também ignora a dominação patriarcal sobre as mulheres (para citar apenas um exemplo do que fica de lado quando se toma como “dado” o “trabalhador produtivo”, isto é, quando se abstrai todas as relações sociais que são necessárias para que os trabalhadores produtivos exerçam seu papel funcional na sociedade capitalista).
O obreirismo também ignora as lutas concretas do proletariado (aquelas que existiram historicamente). Apesar de alguns equívocos em termos de compreensão do processo histórico global que o texto do Antagonism possui, suas premissas continuam válidas.
O obreirismo vê a revolução como uma escalada das lutas cotidianas dos operários, no capitalismo. (…) O obreirismo falsifica a história para manter a ideologia. Em qualquer caso, o papel assumido pelos não-operários é subestimado ou negado. A teoria revolucionária, ao invés, analisa os eventos reais para compreender as debilidades do capitalismo (Antagonism, 1995).
De todo o modo, precisamos fazer o seguinte adendo dos Cuadernos de Negacíon (Nro. 2, 2009, tradução livre): “Entendemos que a ideologia obreirismo já é obsoleta, mas também entendemos que a posição dos trabalhadores permanece fundamental para qualquer tentativa de revolução”. Diz-se “obsoleta”, porque a identificação do proletariado com os operários de fábrica refere-se a um momento em que “proletariado” e “operariado” se confundiam, isto é, uma concepção que era útil no início do desenvolvimento do modo de produção capitalista, mas que teria sido ultrapassada segundo os Cuadernos (idem).
Em síntese: o materialismo vulgar busca reduzir a existência a umas poucas causas mecânicas e as articula de modo funcionalista, o economicismo dá o fundamento causal para a explicação do capitalismo (a “economia” e suas “leis”) e o obreirismo, como consequência lógica, afirma que os operários ocupam a posição privilegiada de sujeito revolucionário (ainda que tal concepção não assuma a revolução mesma como acontecimento material, como dissemos).
Essas concepções ideológicas convergem e formam um “silogismo” que exprime uma determinada teoria sobre a sociedade de classes. Também aqui se trata da atividade intelectual de um segmento social específico desse modo de produção. Mas que grupo e com quais interesses seria capaz de formular essas ideias?
Trata-se do segmento social dos “intelectuais” (ou intelligentsia) que ganha uma consistência significativa na sociedade burguesa. Jan Wacław Machajski caracterizou profundamente esse processo em suas obras, portanto vamos utilizar suas principais conclusões para discutir os sujeitos históricos por trás dessa concepção vulgar que acabamos de resumir. Além das contribuições de Machajski, utilizaremos a caracterização que Marx faz da burocracia (que é onde a intelligentsia vai fazer carreira na sociedade burguesa).
Em geral, eles afirmam que a classe proletária não é capaz de auto-determinar a consciência de si, portanto concluem que essa tarefa é de responsabilidade de uma linhagem de intelectuais que precisam ensinar o socialismo para as massas. Mas tais proposições não passam de subterfúgios que escondem seus reais interesses como grupo social específico. É o que veremos a seguir.
7. Intelligentsia e burocracia: a utopia social-democrata
Já havíamos discutido em
O princípio da autoridade como fundamento da divisão de classe e o surgimento da extraenisação, seção do texto
Das comunidades originárias ao processo de extraenisação em termos capitalistas, a questão da
autoridade e sua relação com a
monopolização de saberes concernentes à reprodução da vida social. Agora vamos desenvolver melhor essa questão no quadro dessa discussão especificamente relacionada ao
trabalho intelectual na sociedade capitalista.
É de importância fundamental abordar a questão da divisão social do trabalho no modo de produção capitalista, uma vez que a organização social da produção envolve uma segmentação da atividade produtiva e reprodutiva em diferentes “permutações de trabalho”. Na Ideologia Alemã (1845), Marx e Engels já afirmavam que:
A divisão do trabalho só se torna realmente divisão a partir do momento em que surge uma divisão entre trabalho material e [trabalho] espiritual ([a] primeira forma dos ideólogos, sacerdotes, coincide). A partir desse momento, a consciência pode realmente imaginar ser outra coisa diferente da consciência da práxis existente, representar algo realmente sem representar algo real – a partir de então, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e lançar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc. “puras” (MARX; ENGELS, 2007, pp. 35-36, grifos nossos).
Portanto, “o trabalho começa a ser distribuído, cada um passa a ter um campo de atividade exclusivo e determinado, que lhe é imposto e ao qual não pode escapar” (MARX; ENGELS, 2007, pp. 37-38). Esse processo já se encontra deveras avançado no capitalismo, onde o proletariado é reduzido a uma capacidade puramente subjetiva para trabalhar, expropriado de todas as condições objetivas para a atividade produtiva (o que inclui seu corpo inorgânico), reduzido ao exercício de tarefas manuais e operacionais das quais não é, portanto, a causa eficiente ativa.
Não obstante, ainda é necessário uma série de atividades subsumidas ao gênero de trabalho intelectual para a manutenção e reprodução da sociedade capitalista. Essas atividades formam um ramo específico de trabalhadores cuja função é essencialmente administrativa.
Segundo Machajski (1981, p. 86): “O crescimento progressivo do capitalismo é impensável sem o crescimento da sociedade culta e da intelligentsia, do exército de trabalhadores intelectuais”. Neste caso: “o desenvolvimento do capitalismo determina o crescimento de uma ‘nova classe média’, que atinge desta forma um nível de vida burguês” (idem).
Para Machajski, a intelligentsia não faz parte do proletariado, uma vez que sua renda provém de parcela do lucro líquido nacional que, por sua vez, é composto do mais-valor total explorado da classe proletária:
Na medida em que o proletariado tomar consciência deste fato, revelar-se-á essa força social que até aqui dissimulava sua natureza e esforçava-se em identificar-se com ele: a intelligentsia. O proletariado tomará consciência do fato de ter-se comportado com demasiada confiança para com essa força que, certamente, ataca com ele ao capital, mas persegue seus próprios fins. Isto ocorre porque a luta do intelectual exprime a exigência de uma partilha “mais justa” do lucro nacional em benefício da sociedade culta; partilha prejudicada por um punhado de plutocratas, de “industriais feudais” (MACHAJSKI, 1981, p. 87).
Esse segmento social composto por trabalhadores intelectuais formam, junto com outras classes de transição, uma coalizão histórica para perseguir seus objetivos específicos. Uma vez associados, eles formarão o partido da social-democracia. Os objetivos desses intelectuais é elevar a produtividade do trabalho, pois o mais-valor relativo aumentaria o nível de renda nacional e “quanto mais o lucro nacional seja elevado, mais aumenta o fundo de consumo da sociedade culta privilegiada” (MACHAJSKI, 1981, p. 90). Logo:
Poder-se-ia compreender que não apenas os capitalistas estejam interessados em ampliar o lucro, mas também toda a sociedade culta; que o operário não é somente explorado com o intuito de permitir a vida ociosa de um punhado de capitalistas, mas também de permitir a existência parasitária de toda a sociedade culta, produtora de “bens imateriais”; que o nível de vida do operário se reduz ao simples meio de sobrevivência para que os “trabalhadores intelectuais” não encontrem nenhum limite para a “realização”, sob a forma de ganhos, de seus “talentos e capacidades especiais”; que o operário não pode se beneficiar dos frutos do crescimento da produtividade de seu trabalho, pois este crescimento não deve favorecer senão o conforto da vida da sociedade culta privilegiada (idem).
Portanto, não é de se admirar que a intelligentsia diga que luta pelo “progresso social”, uma vez que todo o progresso significa desenvolvimento do valor expresso em termos de “forças técnicas”, em “bens manufaturados” que aumentam a “renda per capita” nacional. Mas se esquecem de dizer que tal progresso significa, literalmente, a mais brutal exploração da força de trabalho, a consumação de milhares de vidas proletárias subsumidas ao processo de trabalho.
Geralmente esses agrupamentos de intelectuais afirmam que sua doutrina é científica, que objeções contra eles são objeções contra a autoridade científica. Daí que afirmem que seu “socialismo” seja “socialismo científico” e que seus objetivos são, como os da ciência, “imparciais”. Que o trabalho deles havia sido um trabalho “simplesmente” administrativo, que a função dos seus serviços enquanto burocratas de diferentes natureza (tanto os do Estado, quanto os administradores das empresas) era “apenas” elevar a eficiência da produtividade, isto é, “aumentar rendimentos”. Em suma: organizar “racionalmente” (como dizem) o processo produtivo.
Neste sentido, o “socialismo científico” da casta intelectual do partido social-democrata acaba assumindo invariavelmente a forma de um “socialismo de Estado”, conforme dizia Machajski. Mas não se trata aqui, de forma alguma, de “socialismo”, mas pura e simplesmente aquilo que Mikhail Bakunin já denunciava alhures:
Um corpo científico, ao qual se tivesse confiado o governo da sociedade, acabaria logo por deixar de lado a ciência, ocupando-se de outro assunto; e este assunto, o de todos os poderes estabelecidos, seria sua eternização, tornando a sociedade confiada a seus cuidados cada vez mais estúpida e, por conseqüência, mais necessitada de seu governo e de sua direção.
Mas o que é verdade para as academias científicas, o é igualmente para todas as assembleias constituintes e legislativas, mesmo quando emanadas do sufrágio universal. Este último pode renovar sua composição, é verdade, o que não impede que se forme, em alguns anos, um corpo de políticos, privilegiados de fato, não de direito, que, dedicando-se exclusivamente à direção dos assuntos públicos de um pais, acabem por formar um tipo de aristocracia ou de oligarquia política (2002, p. 31).
Essa forma de organização social preconizada pela intelligentsia, no seu limite mais bem acabado (supondo que a propriedade burguesa tenha sido suprimida em favor de uma propriedade estatal completa), não deixaria de possuir as mesmas relações de produção da sociedade capitalista. Se Bakunin conseguiu expressar muito bem a essência da forma de poder que reinaria numa sociedade do gênero preconizada pela intelligentsia, Marx, nos Manuscritos de 1844, expressou aquela que seria a essência da forma de produção:
A ideia de toda propriedade privada como tal [transformada em propriedade distribuída] está pelo menos voltada contra a propriedade mais rica como inveja e desejo de nivelamento, de tal modo que estes inclusive constituem a essência da concorrência. O comunista rude é só o aperfeiçoamento desta inveja e deste nivelamento a partir do mínimo representado. (…)
A comunidade é apenas uma comunidade de trabalho e da igualdade do salário que o capital comunitário, a comunidade enquanto o capitalista universal, paga. Ambos os lados da relação estão elevados a uma universalidade representada, o trabalho como a determinação na qual cada um está posto, o capital enquanto a universalidade reconhecida e como poder da comunidade (MARX, 2004, p. 104, acréscimos e grifos nossos).
Agora só nos resta definir o ramo de atividade na qual se ocupam os trabalhadores intelectuais, qual seja: a burocracia.
Marx desenvolve, nos manuscritos não publicados de sua Crítica da Filosofia de Hegel (1843), uma análise crítica sobre o direito burguês na filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Este documento contém excelentes sínteses sobre a dinâmica historicamente específica da burocracia nos Estados capitalistas e permanece atual.
Ao comentar a obra de Hegel, Marx afirma que “as corporações são o materialismo da burocracia e a burocracia é o espiritualismo das corporações. A corporação é a burocracia da sociedade civil; a burocracia é a corporação do Estado” (MARX, 2010, p. 64, grifos originais, sublinhados nossos). Portanto, um mesmo trabalho intelectual é responsável pela burocracia e pela corporação: “o mesmo espírito que cria, na sociedade, a corporação, cria, no estado, a burocracia” (MARX, 2010, p. 65). As corporações ao qual se refere Marx são qualquer instituições que possuem um corpo administrativo próprio com seus quadros compostos de trabalhadores intelectuais.
Neste caso, a “burocracia deve, portanto, proteger a universalidade imaginária do interesse particular, o espírito corporativo, a fim de proteger a particularidade imaginária do interesse universal, seu próprio espírito” (MARX, 2010, p. 65, grifos originais, sublinhados nossos). Quando considerada isoladamente, “cada corporação tem, como seu interesse particular, esta vontade contra a burocracia, mas ela quer a burocracia contra a outra corporação, contra o outro interesse particular” (idem). Isto significa que: “A corporação é a tentativa da sociedade civil de se tornar Estado; mas a burocracia é o Estado que se fez realmente sociedade civil” (idem).
Nas Glosas Críticas ao artigo de Arnold Ruge, Marx faz um complemento à essas afirmações a respeito da sociedade burguesa: “Do ponto de vista político, estado e organização da sociedade não são duas coisas distintas. O Estado é a organização da sociedade” (MARX, 2010, p. 38, grifos originais). Quando o corpo administrativo do Estado se projeta sobre toda a sociedade, como querem os sociais-democratas, temos uma situação extrema daquilo que Marx já afirmava sobre a burocracia:
Os fins do Estado se transmutam em fins da repartição e os fins da repartição se transformam em fins do Estado. A burocracia é um círculo do qual ninguém pode escapar. sua hierarquia é uma hierarquia do saber. A cúpula confia aos círculos inferiores o conhecimento do particular, os círculos inferiores confim à cúpula o conhecimento do universal e, assim, eles se enganam reciprocamente (MARX, 2010, p. 66, grifos originais).
Nestas condições, segundo Marx: “a burocracia tem a posse da essência do estado, da essência espiritual da sociedade; esta é sua propriedade privada” (idem) e a “autoridade é, portanto, o princípio de seu saber e o culto à autoridade é sua disposição”, ou seja (novamente): “A cúpula confia aos círculos inferiores o conhecimento do particular, os círculos inferiores confiam à cúpula o conhecimento do universal e, assim, eles se enganam reciprocamente” (idem). Qualquer social-democrata que leia essas passagens vai confundir Marx com um anarquista, mas não se trata de confusão, uma vez que, a rigor, o anarquismo chega nas mesmas conclusões.
As seguintes sínteses podem ser extraídas dessa Crítica à filosofia do direito de Hegel: a burocracia é, em relação ao seu interior, uma hierarquização e, em relação ao seu exterior, uma corporação, algo fechado em si. Ora, o que são os países organizados segundo os princípios de estatização da social-democracia, senão capitalistas coletivos em relação aos demais capitalistas, assim como são as empresas privadas em relação a outras empresas privadas?
Segundo Marx, um burocrata sofre, interiormente, de um “materialismo crasso”, isto é: de “obediência passiva, da fé na autoridade, do mecanismo de uma atividade formal, fixa, de princípios, ideias e tradições fixos” (idem). O que é isso senão a fonte do materialismo vulgar mencionado acima? Continuemos: “Quanto ao burocrata tomado individualmente, o fim do Estado se torna seu fim privado, uma corrida por postos mais altos, um carreirismo” (idem). O que é esse modus operandi senão a descrição da dinâmica existente em qualquer país de capitalismo social-democrata?
Após essa demonstração (curiosamente esquecida pelos marxistas), Marx coloca o espírito burocrático como “intencionalidade pura”, como se vê neste parágrafo:
o seu espiritualismo crasso se mostra, por outro lado, no fato de ela querer fazer tudo, isto é, de ela fazer da vontade a causa prima, pois ela é mera existência ativa e recebe o seu conteúdo do exterior e, portanto, só pode demonstrar a própria existência ao formar e limitar este conteúdo. Para o burocrata, o mundo é um mero objeto de manipulação (MARX, 2010, p. 67, grifos originais).
Se os marxistas se queixam que tal obra foi publicada postumamente, então sugerimos novamente as Glosas Críticas (MARX, 2010, p. 39, grifos originais):
Por fim, todos os Estados buscam a causa nas falhas casuais ou intencionais da administração e, por isso mesmo, em medidas administrativas o remédio para suas mazelas. Por quê? Justamente porque a administração é a atividade organizadora do estado.
O Estado não pode suprimir a contradição entre a finalidade e a boa vontade da administração, por um lado, e seus meios e sua capacidade, por outro, sem suprimir a si próprio, pois ele está baseado nessa contradição. Ele está baseado na contradição entre a vida pública e a vida privada, na contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Em consequência, a administração deve restringir-se a uma atividade formal e negativa, porque o seu poder termina onde começa a vida burguesa e seu labor (…).
8. O partido da intelligentsia burocrática: social-democracia
Vimos, portanto, que a intelligentsia é composta pelos administradores de todas as formas, pelos burocratas de todos os tipos e que estes possuem um partido específico para defender seus interesses, qual seja, a social-democracia. Trata-se de mais um partido próprio do capitalismo, muitas vezes com um “disfarce vermelho” (retórica “socialista”, símbolos “socialistas”), para iludir o proletariado com promessas sobre reformas e “melhoria nas condições de vida” – mudando apenas superficialmente o capitalismo.
O partido social-democrata emerge como uma coalizão capitalista que consiste na “
apologia ao trabalho” (a exaltação da atividade laboral e do desenvolvimento da produtividade do trabalho), algo já amplamente denunciado pelo
Grupo Comunista Internacionalista (GCI) em:
COMUNISMO No.3 - CONTRA O TRABALHO (Janeiro 2000).
O materialismo vulgar, o obreirismo, a apologia da produtividade do trabalho e do progresso, o elogio da legalidade, dentre outras coisas, formam um conjunto de ideias que, juntas, dão coesão à doutrina do partido social-democrata. Em outras palavras: estas “questões teóricas” estão correlacionadas com as “questões práticas” da social-democracia.
A social-democracia é um partido burguês criado para domesticar os proletários, seus intelectuais orgânicos constroem conceitos para assimilar ideologicamente a classe proletária. Esse partido tem a função de subordinar o proletariado aos projetos de conciliação de classes (que são essencialmente contrarrevolucionários).
O resumo feito pelo GCI é tão preciso que vamos citá-lo extensamente e deixar algumas notas explicativas para encerrar essa seção:
Todo partido da burguesia tem como projeto social o desenvolvimento do capital, isto é, do trabalho. A única especificidade da social-democracia [2] é dirigir-se particularmente à classe que tem interesse objetivo em destruir esta sociedade, declarando que tem o mesmo objetivo, mas, desde a sua origem, essa declaração nada mais é do que uma isca para cumprir melhor sua função de enquadrar os proletários e submetê-los ao trabalho, ao desenvolvimento do capital.
(…)
A social-democracia não representa, em nenhum caso, os interesses do proletariado contra o capitalismo, mas, como ela mesma diz, os interesses do trabalho no capitalismo. O engodo consiste em apresentar como sinônimo do conflito entre burgueses e proletários a dupla capital-trabalho e se definir como partidária do polo trabalho. Que lhe seja concedido este mérito: a social-democracia é o partido do trabalho. Esta confusão é habitual, inclusive em setores que se pretendem continuadores da esquerda comunista. Quem está em luta com o capital não é o trabalho, mas o trabalhador. E não enquanto trabalhador, mas enquanto ser humano. O trabalho não só não se contrapõe ao capital, como é a sua a sua essência [3]. O trabalho é a própria matéria do capital se capitalizando. No antagonismo proletariado/burguesia, o trabalho, o máximo trabalho, está necessariamente do lado do capital contra o ser humano. Este, enquanto trabalhador, não se opõe ao capital, ao contrário, dá-lhe vida, renuncia à sua vida para afirmar a vida do ser que o vampiriza [4]. O trabalhador, não vive como ser humano, renuncia à sua humanidade [5]. Como trabalhador, ele não é a sua própria vida, mas a vida do capital, é capital se reproduzindo. Com efeito, o capital é também trabalho acumulado e, no processo de produção, subsume o trabalho vivo. Mais ainda: se, do ponto de vista do processo de trabalho, o trabalho aparece como o sujeito ativo, ao transformar os meios de trabalho; do ponto de vista do processo de valorização, é o trabalho morto que dirige o trabalho vivo. Por isso, toda apologia explícita do trabalho é apologia implícita do capital e apologia da subsunção do trabalho ao capital. Por isso, na sociedade mercantil generalizada, toda apologia aberta do trabalho é apologia encoberta da exploração de classes!.
9. Idealismo, voluntarismo, subjetivismo: romantismo político
Se a definição mencionada na seção anterior suprime todo o polo ativo do proletariado, reduzindo-o à “engrenagem do sistema” para que se possa impor “projetos sociais” desde o exterior de sua classe (portanto, projetos funcionais à sociedade burguesa e suas instituições – não importa o quão intenso seja o reformismo), a definição idealista afirma o polo oposto e transforma o “proletariado” numa espécie de “providência” da humanidade.
O proletariado como sujeito revolucionário é identificado com as minorias revolucionárias da classe de forma mecânica, como se estas tivessem tido o privilégio de “conceber” o comunismo para destruir o capitalismo. Ou seja: por questão de intencionalidade e “pensamento crítico”, forma-se um grupo de revolucionários no interior da classe, dispostos a propagar o “ideal revolucionário” nas massas.
Tal concepção apela para uma noção voluntarista do sujeito. Diz-se que “o sujeito age” e o “objeto é agido”, portanto as “massas proletárias sob dominação ideológica” ainda são objeto e as “minorias proletárias autodeterminadas” são sujeitas de suas ações. Mas o que é uma existência senão uma síntese de atividade e passividade? Para criticar essa concepção, é necessário fazer um debate sobre o “materialismo prático” a partir das contribuições de Karl Marx para a teoria revolucionária do proletariado.
Na primeira das “Teses Sobre Feuerbach” (1845), Marx afirma que os materialistas de outrora só teriam considerado como “objeto do pensamento” as manifestações sensíveis das coisas, apreendidas pela “contemplação”. Neste sentido, o pensamento exprimia-se passivamente em relação ao objeto. O lado ativo do pensamento, por sua vez, teria sido desenvolvido pelos idealistas, mas estes não apreendiam a realidade como existência concreta, apenas abstratamente (a partir de um formalismo lógico).
Para Marx, a “atividade humana sensível”, enquanto prática, não se exprime exclusivamente na forma subjetiva. Aquilo que Feuerbach (e demais “materialistas vulgares”) não compreendia era a “atividade humana como atividade objetiva” (MARX, 2009, p. 119). A ideia central da primeira tese é a de que os materialistas contemplativos não compreenderiam, portanto, “o significado da atividade ‘revolucionária’, ‘prático-crítica’” (idem).
Na segunda tese, Marx levará até as últimas consequências esse “materialismo prático”. Vamos reproduzí-la para que se possa analisá-la mais detalhadamente:
A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma realidade objetiva [gegenständliche Wahrheit] não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na prática que o homem tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza citerior [Diesseitigkeit] de seu pensamento. A disputa acerca da realidade ou não realidade do pensamento – que é isolado da prática – é uma questão puramente escolástica (MARX, 2009, pp. 119-120, grifos originais).
Neste caso, o que pode confirmar o pensamento dos seres humanos é a potência prática de sua existência social e historicamente determinada [veja-se:
Ensaio sobre as possibilidades transformativas e a transformação das possibilidades]. A transformação não é a imposição de uma vontade teleológica na natureza, mas a própria expressão da vida material se auto-produzindo (ou seja: a liberdade humana consiste na
participação ativa na
autopoiese natural). Em síntese: a existência material não se transforma a partir de um “dever ser” contido na ideia que daria às coisas uma “forma final”, mas a partir da própria
práxis social imanente (que é
atividade sensível, prático-crítica).
A seguinte passagem dos Manuscritos de 1844 resume o que dissemos acima:
Vê-se como subjetivismo e objetivismo, espiritualismo e materialismo, atividade e sofrimento perdem a sua oposição apenas quando no estado social e, por causa disso, a sua existência enquanto tais oposições; vê-se como a própria resolução das oposições teóricas só é possível de um modo prático, só pela energia prática do homem e, por isso, a sua solução de maneira alguma é apenas uma tarefa do conhecimento, mas uma efetiva tarefa vital que a filosofia não pôde resolver, precisamente porque tomou apenas como tarefa teórica (MARX, 2004, p. 111, grifos no original).
Portanto, não se pode reduzir a Revolução Social a uma questão de vontade como se o devir na história surgisse espontaneamente da intencionalidade das pessoas.
O voluntarismo assume a ideologia do “sujeito liberal” e advoga um “individualismo metodológico”, uma vez que tende a analisar a atividade dos revolucionários de modo personalista, considerando que os “líderes” devem agir como “fins em si mesmos” e não como subjetividades historicamente determinadas, tanto nas contradições quanto nos paradoxos da sociedade capitalista. Contradições, porque as pessoas que constroem o movimento revolucionário não são a “encarnação pura” do comunismo e estão sujeitas a reproduzir as relações sociais capitalistas enquanto houver capitalismo. E paradoxos, porque os constrangimentos que sofrem os proletários tornam sua força social determinante, ou seja, o mesmo processo que constrange o proletariado a ser explorado, também o obriga a devir revolucionário.
Na definição voluntarista também existem aspectos de obreirismo, pois busca-se projetar os “ideais de emancipação” na classe como se fosse um “sonho do povo trabalhador”. Esquece-se, nesse caso, que o proletariado não luta porque “acredita no comunismo”, mas sim porque já é a uma força material do próprio movimento real que é o comunismo como processo de superação imanente à sociedade capitalista. Na Miséria da Filosofia (1847) isso fica evidente quando Marx afirma: “De todos os instrumentos de produção, o maior poder produtivo é a classe revolucionária mesma” (MARX, 1985, p. 159, grifos nossos). Em outras palavras: a revolução social é uma forma de produção (produção de sociedade) e também pressupõem uma força produtiva social (uma classe revolucionária que produz novas relações sociais de produção ao se confrontar contra a classe dominante).
Em suma, essa concepção do proletariado como dividido entre os revolucionários e os “reprodutores do sistema” é funcional à ideologia politicista e às organizações formais que se veem a si mesmas como “especificamente” comunistas/anarquistas/socialistas devido ao “programa que possuem” e que bastaria fazer uma “inserção social” nas massas para formá-las como suas “bases”, levando-as (dirigismo) a construir o “contrapoder” que derrubaria a sociedade capitalista.
O principal erro dessa doutrina é conceber a “organização revolucionária” como “paralela” à classe para a qual serviria. Neste caso, surgem concepções como as do “dualismo organizacional”, que consistem em dividir as organizações proletárias entre “econômicas” (ou “sociais”) que seriam unitárias e congregariam toda a classe sem distinções “ideológicas” e organizações “políticas”, que seriam “sectárias” e consistiriam dos “quadros mais avançados do proletariado” (“minorias revolucionárias”) ou simplesmente de um “grupo de pessoas que adotou o programa socialista”, sendo que as segundas teriam que atuar nas primeiras com serviços de “agitação”, “propaganda”, etc. Como consequência fatal, comete-se o erro de considerar instituições capitalistas como o sindicato como sendo instituições de classe (só que “econômicas”).
10. Do dualismo “classe em si” e “classe para si” ao desenvolvimento do antagonismo prático:
Uma maneira idealista, a custo disfarçada, de conceber o proletariado, consiste em considerá-lo ainda de um lado como simples classe do capital, como trabalhador, e por outro lado como revolucionário, como comunista quando “luta”. Isto é uma visão dualista e metafísica que consiste em separar na cabeça uma questão que é inseparável na prática, que consiste em fazer duas coisas na cabeça de uma só que existe na prática. É um desvio bastante corrente do idealismo que, em última instância, tem horror das contradições. A caricatura consiste em dizer que, quando o proletário trabalha, ele é capital, e quando luta contra o trabalho é comunista, ou então a oposição dualista: “classe em si”, “classe para si”. Os idealistas liquidam assim a contradição entre capital e comunismo, entre burguesia e proletariado, para a substituir por trabalhador/humanidade. Esquecem-se, no mesmo passo, que é precisamente enquanto classe desta sociedade que ela é o seu pólo destrutivo, ou dito concretamente, esquecem que é o mesmo processo que a constrange a trabalhar e a suprimir o trabalho, que é apenas enquanto classe forçada a trabalhar que ela é forçada a revoltar-se (RDI, 2004).
Esse é um dualismo que consiste em separar sua atuação política da econômica: “o proletariado, economicamente, é formado por vendedores de força de trabalho que geram mais-valor ao Capital e, politicamente, é uma tendência em se formar como classe antagônica à burguesia, portanto como partido revolucionário”. Como consequência, também reafirma a separação da minoria revolucionária do restante da classe e, consequentemente, transforma abstratamente a coalizão das forças revolucionárias da classe em “partido formal”, em “organização específica”.
Mas, como afirmou Amadeo Bordiga, “a classe pressupõe o partido”, pois uma classe social não é apenas uma “posição social” no modo de produção (representação estática da sociedade), mas, sobretudo, um movimento social com tendências antagônicas de desenvolvimento. Uma vez favorecidas as tendências que aumentam a capacidade de combate da classe proletária, seu movimento social assume uma direção e objetivos históricos mais consistentes. A expressão orgânica dessa convergência de tendências na forma de perseguir o objetivo comunista é, precisamente, o partido material:
A “relação” entre classe e partido não é uma relação entre duas entidades. Trata-se duma mesma realidade que não admite duas definições distintas e depois uma relação entre elas. É por isso que a questão equivaleria a encontrar a “relação” entre o corpo humano e o seu movimento, ou entre o corpo e a vida, sendo o corpo humano e o seu movimento (ou a sua vida) a mesma coisa. Eis a questão absurda, porque o corpo humano é o seu movimento, sem movimento não há corpo humano, sem corpo humano não há movimento, sem partido a classe operária não existe, sem a constituição do proletariado em classe não há partido comunista! (RDI, 2004).
O partido material depende do grau de “consciência de classe” correlacionado com seus métodos de luta postos em prática historicamente. Sua constituição certamente depende da emergência do conjunto das minorias ativas do proletariado, ou seja, aqueles proletários que já se encontram em alguma situação de combate no interior da luta de classes e que estejam elaborando a via radical do enfrentamento (a luta proletária via ação direta).
Neste caso, não é equivocado dizer que o partido exerce algo como uma “função diretiva”, mas não podemos entender tal função como uma forma de vanguarda que monopoliza as decisões sobre o rumo do movimento (concepção que deriva da intelligentsia), ou a partir de um esquema de comando-obediência (controle despótico da luta por uma aristocracia operária) ou, ainda, como uma espécie agitação via carisma-adesão (dominação carismática) em que as massas agiriam conforme uma direção messiânica.
A “direção” ao qual nos referimos nada mais é do que um revestimento da classe sobre si mesma na figura daqueles que melhor expressam os seus interesses revolucionários. Não se trata, evidentemente, de qualquer um que fale formalmente em nome do proletariado, mas que seja o próprio proletariado falando por si (enquanto classe), na medida em que se reconhece como sujeito revolucionário e, portanto, escolhe seus membros por meio de uma forma de confiança na capacidade de sintetizar os objetivos que levam ao comunismo e propor as estratégias adequadas à sua realização (sendo o programa uma condensação das lutas de outrora mais as exigências das lutas atuais).
O partido material também se expressa a partir dos métodos organizativos difusos que, de modo relativo e parcial, já exprime as formas constituintes da sociedade porvir (o exemplo histórico mais bem-acabado foram os sovietes territoriais).
Podemos utilizar o resumo feito pelo grupo Antagonism (2000/2001):
Quando as massas são impulsionadas à ação, esses pequenos grupos lideram os demais. O partido material é o conjunto dos pequenos grupos que lideram, as minorias radicais. O movimento que define uma classe, também necessita de um partido. Mas esse partido pode existir materialmente mas não formalmente. Ou seja, o movimento político da classe não se agrupa necessariamente em uma organização formal particular chamada partido, com cartões de filiação, missão, diretoria e um boletim interno. O partido pode existir como um movimento mais difuso, talvez de muitos grupos, os quais podem, todos ou nenhum, serem chamados de partidos. Ou ele pode consistir de frações desses grupos, ou de conexões informais entre indivíduos que não são membros de qualquer grupo.
A organização revolucionária não pode surgir paralelamente às lutas imanentes do conjunto da classe, por isso que os partidos formais não são efetivos. “O partido material tem uma relação dialética com o movimento da classe, e não pode continuar existindo como organização de massas fora de um movimento de massas. Os partidos formais degeneram a medida em que o movimento declina, e as minorias radicais precisam se reagrupar, como frações ou organizações separadas” (Antagonism, 2000/2001).
11. “O proletariado não é fraco porque está dividido, está dividido porque ainda está fraco” [Cuadernos de Negacíon; Nº 2]
A questão da unidade na classe proletária deriva da composição de forças, da coalizão que emerge mediante o antagonismo prático no interior da luta de classes. Os Cuadernos de Negacíon souberam exprimir bem a questão: nossa fraqueza de classe é que explica nossa desunião. Mas, no que consiste nossa força e nossa fraqueza? Conforme expressou o blog Humanaesfera (2015):
Não há ações sem objetivos, finalidades, desejos… isto é, as ações pressupõem e implicam teorias, que os proletários criam e aprimoram (ou degradam e dogmatizam) conforme percebem que sua capacidade de agir é objetivamente aumentada (ou diminuída). A capacidade de agir dos proletários é aumentada quando confiam em si mesmos (internacionalisticamente), não reconhecem “bodes expiatórios”, e impõem suas necessidades (que são comunistas: não trabalhar e que tudo seja livre, “free”), opondo-se radicalmente, por este simples ato, à classe dominante (para a qual, obviamente, isto é “opressivo”, verdadeira ditadura do proletariado). Ataca o poder dissolvendo o que o sustenta: as divisões do proletariado em empresas, pátrias, raça, gênero, etc. mediante uma livre associação universal que garanta o livre acesso a qualquer um aos meios de produção e de vida. E é diminuída quando os proletários desconfiam de si mesmos, clamam ao poder contra “bodes expiatórios” (estrangeiros, “judeus”, imigrantes, “vagabundos”), e reprimem seus desejos em nome da ficção de um “bem maior” (pátria, empresa, religião…), isto é, quando se unem à classe dominante (seja ela burocrática ou particular, de esquerda ou de direita) contra si mesmos. No primeiro caso (aumento da capacidade de agir), a teoria necessariamente se desenvolve e se aprimora, enquanto que no segundo caso (redução da capacidade de agir), a teoria só pode se degradar e se dogmatizar.
Nesse caso, quando nossa capacidade de agir diminui, nós ficamos a mercê das ideias dominantes:
O objetivo da ideologia dominante (que nada mais é do que a ideologia da classe dominante) é manter o proletariado desorganizado, negado como classe, ou melhor ainda, enquadrado e mobilizado a serviço da burguesia. Não por acaso, as ferramentas do poder do capital são sempre as mesmas. A repolarização da sociedade em diferentes alternativas burguesas, do estilo da direita contra a esquerda, anti-fascistas contra fascistas, liberais contra anti-neoliberais, nacionalistas contra imperialistas, ditadores contra democratas, militaristas contra pacifistas, islamistas contra cristãos, republicanos contra monarquistas, não são mais que algumas formas, dentre outras, para reorganizar a dominação burguesa que está em perigo, o antigo método de transformar a raiva social contra a sociedade em raiva dentro da sociedade, da guerra social em guerra inter-burguesa, da raiva proletária em delegações e negociações no Estado, do questionamento de toda a sociedade em questionamento de apenas uma forma particular de dominação, da luta contra o capitalismo em luta contra uma fração burguesa e a favor de outra. Se o segredo da revolução é a autonomia do proletariado, a chave para a contra-revolução é a atomização do proletariado e sua canalização na sociedade a serviço da luta de uma fração dessa contra outra (Cuadernos de Negacíon; Nº 2).
Por outro lado, quando nossa capacidade de agir aumenta, nossa unidade de classe emerge necessariamente, não de forma abstrata (homogênea), mas como unidade real, concreta: síntese da multiplicidade, convergência da heterogeneidade do proletariado ao objetivo comum do comunismo. Pois a comunidade de luta que se forma, antecipa a comunidade integral que exprime o movimento comunista, pois cada singularidade se encontra confirmada na singularidade do outro. O comum é a partilha da diferença com diferente, a anarquia coroada do nosso movimento: o comunismo libertário!
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Notas:
[1] – Este é o “fetichismo das mercadorias”, ou seja, uma situação em que: “as relações entre os produtores (…) assumem a forma de uma relação social entre os produtos de trabalho” (MARX, 1996, p. 198). Portanto, as relações mercantis que se desenvolvem ao máximo no modo de produção capitalista produz “relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas” (MARX, 1996, p. 199).
[2] – No “18 de Brumário de Luís Bonaparte”, Marx analisa a formação da social-democracia na França do século XIX e expõem suas características invariáveis:
Para enfrentar a burguesia coligada, formara-se uma coalizão de pequeno-burgueses e trabalhadores, o chamado Partido Social-Democrata. Depois das jornadas de junho de 1848, os pequeno-burgueses não se sentiram recompensados à altura, viram os seus interesses materiais ameaçados e as garantias democráticas, que deveriam assegurar-lhes a validação desses interesses, contestadas pela contrarrevolução. Em consequência disso, eles se aproximaram dos trabalhadores. Em contrapartida, a sua representação parlamentar, a Montanha, que durante a ditadura dos republicanos burgueses havia sido posta de lado, reconquistou, na última metade de vida da Assembleia Constituinte, mediante a luta contra Bonaparte e contra os ministros monarquistas, a popularidade perdida. Ela havia feito uma aliança com os líderes socialistas. Em fevereiro de 1849, foram celebrados banquetes de reconciliação. Um programa comum foi elaborado, comitês eleitorais comuns foram instituídos e candidatos comuns lançados. A ponta revolucionária das exigências sociais do proletariado foi quebrada e foi-lhe dado um viés democrático, as reivindicações democráticas da pequena-burguesia foram despidas da sua forma meramente política e a sua ponta socialista voltada para fora. Assim surgiu a social-democracia (MARX, 2011, pp. 62-63, grifos nossos).
O caráter peculiar da social-democracia se resumia aos seguintes termos: reivindicavam-se instituições republicanas democráticas, não como meio de suprimir dois extremos, o capital e o trabalho assalariado, mas como meio de atenuar a sua contradição e transformá-la em harmonia. Quaisquer que sejam as medidas propostas para alcançar esse propósito, por mais que ele seja ornado com concepções mais ou menos revolucionárias, o teor permanece o mesmo. Esse teor é a modificação da sociedade pela via democrática, desde que seja uma modificação dentro dos limites da pequena-burguesia. Basta não cultivar a ideia estreita de que a pequena-burguesia tenha pretendido, por princípio, impor um interesse egoísta de classe. A social-democracia acredita, antes, que as condições específicas da sua libertação constituem as condições gerais, as únicas nas quais a sociedade moderna pode ser salva e a luta de classes evitada (MARX, 2011, p. 63, grifos nossos).
Por fim, em vez de conseguir um aporte de forças do proletariado, o partido democrata o havia contagiado com a sua própria debilidade, e, como costuma acontecer no caso de grandes feitos democratas, os líderes tiveram a satisfação de culpar o seu “povo” de deserção, e o povo teve a satisfação de culpar os seus líderes de fraude (MARX, 2011, p. 66, grifos nossos).
[Portanto,] por representar a pequena burguesia, ou seja, uma classe de transição, na qual os interesses de duas classes se embotam de uma só vez, o democrata tem a presunção de se encontrar acima de toda e qualquer contradição de classe. Os democratas admitem que o seu confronto é com uma classe privilegiada, mas pensam que eles é que constituem o povo junto com todo o entorno restante da nação, que eles representam o direito do povo, que o seu interesse é o interesse do povo (MARX, 2011, p. 67, grifos e acréscimo nossos).
[3] – “A essência subjetiva da propriedade privada, a propriedade enquanto atividade sendo para si, enquanto sujeito, enquanto pessoa, é o trabalho” (MARX, 2004, p. 99). “Mas o trabalho, a essência subjetiva da propriedade privada enquanto exclusão da propriedade, e o capital, o trabalho objetivo enquanto exclusão do trabalho, são a propriedade privada enquanto sua relação desenvolvida da contradição” (MARX, 2004, p. 103).
[4] – “O capital tem um único impulso vital, o impulso de valorizar-se, de criar mais-valia, de absorver com sua parte constante, os meios de produção, a maior massa possível de mais-trabalho. O capital é trabalho morto, que apenas se reanima, à maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo e que vive tanto mais quanto mais trabalho vivo chupa. O tempo durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho que comprou. Se o trabalhador consome seu tempo disponível para si, então rouba ao capitalista” (MARX, 1996, p. 347).
[5] – “A produção [capitalista] produz o humano não somente como uma mercadoria, a mercadoria humana, o humano na determinação da mercadoria; ela o produz, nesta determinação respectiva, precisamente como um ser desumanizado (entmenchtes Wesen) tanto espiritual quanto corporalmente – imoralidade, deformação, embrutecimento de trabalhadores e capitalistas. Seu produto é a mercadoria consciente-de-si e auto-ativa, … a mercadoria humana” (MARX, 2004, pp. 92-93).
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