Indígenas se unem a manifestantes para bloquear vias e estradas em protesto contra a política econômica do governo em Machachi, na província de Pichincha, no Equador, na segunda-feira, dia 7 de outubro de 2019 — Foto: Rodrigo Buendia/AFP
Tematização de nosso objeto de estudo: A revolta social no Equador em 2019 se caracterizou como uma série de protestos e atos com uso de métodos violentos (de ação direta), que ocorreram entre 3 e 13 de outubro, contra o cancelamento dos subsídios aos combustíveis e contra outros ajustes econômicos (denunciados como austeridade) adotados pelo, então presidente, Lenín Moreno e sua administração.
Resumo: neste texto nós vamos analisar as questões que se referem à formação nacional do Equador e sintetizar os dilemas que consideramos pertinentes para discutir a revolta de 2019. Estamos plenamente conscientes de nossos limites no que diz respeito, tanto à complexidade da questão, quanto dos vários processos que acabamos deixando de lado, uma vez que compreendemos que nossa visão acerca da realidade equatoriana é exógena e, neste sentido, nossas referências se reduzem a notícias e informações dispersas contidas em fontes secundárias. Não obstante, nosso esforço busca dialogar com essa realidade de nossos companheiros latino-americanos para aprendermos, juntos, a superar nossas dificuldades com relação às nossas lutas sociais contra o capitalismo.
1. Formação do Capitalismo no Equador: alguns apontamentos das características gerais do processo de transição
Consideramos necessário, para entender a instabilidade social que presenciamos em 2019 nesse país, recorrermos a uma análise histórica da questão. Utilizaremos como eixo de nossa abordagem a perspectiva da história econômica, pois o capitalismo exige a compreensão dos processos econômicos mais detalhadamente.
Vale destacar que o Equador faz parte da história geral da América Latina que, por sua vez, faz parte da história mundial, portanto não podemos compreender seus processos internos sem conectá-los com as dinâmicas mais gerais de sua região e desta com relação ao mundo inteiro. De qualquer forma, nos deteremos apenas naquilo que for essencial para contextualizar historicamente o capitalismo equatoriano.
1. 2. Características do processo de transição ao capitalismo no contexto latino-americano:
A discussão aqui proposta fundamenta-se na obra de Pérez Brignoli e Cardoso: “História econômica da América Latina” (edição de 1985, da qual se seguem todas as citações em que colocamos apenas a página referida). Buscaremos sintetizar as características gerais da transição capitalista na América Latina e focaremos mais particularmente na formação do Equador nesse processo. Esse procedimento é necessário para se discutir a situação histórica do país ao qual se refere nossa análise.
Primeiramente, devemos destacar que o território onde se formou a nação equatoriana abrange as áreas onde situam-se as populações indígenas andinas que vão ser incorporadas e exploradas pelo processo de colonização. Como as terras altas dispunham de populações nativas concentradas, o empreendimento colonial diferiu-se daquele que ocorreu em países como o Brasil. No caso brasileiro, de populações mais dispersas, devido a recusa ativa da centralização política e, portanto, da formação estatal nas mesmas, se utilizou amplamente de mão de obra escravizada. A natureza das relações de produção coloniais depende desse fator demográfico (bem como das condições ambientais e da existência ou não de metais preciosos). A resistência histórica das populações indígenas no Equador foi tal que, atualmente, seus descendentes étnicos constituem 25% da população total do país!
Neste sentido, é necessário destacar que as economias baseadas em relações de produção escravistas possuíram certa homogeneidade em suas formações sociais posta pelo modelo das plantagens. Já as economias baseadas na exploração da mão de obra indígena tenderam a ser mais heterogêneas.
De todo o modo, a constituição de um mercado de terras estará presente em todos os problemas fundamentais dos processos de transição. As “reformas liberais”, que buscam resolver o problema da formação capitalista nos países latino-americanos, precisam lidar com a “imobilização” de extensões fundiárias de seus territórios. Neste caso, a “desamortização”, como ficou conhecida, “consistirá em trazer esses bens imóveis à circulação econômica” (p. 161).
Este problema geral conta com obstáculos particulares referentes aos contextos específicos de cada país. Neste caso, a formação do mercado de terras terá de lidar com a “Igreja e as ordens monásticas por um lado, as comunidades indígenas e as propriedades municipais (ejidos) por outro” (idem) e também consistirá na venda grandes proporções de “terras públicas”, na medida em que se avança com o processo de transformação da terra em propriedade privada. Isso certamente só foi possível com muita violência (de fato, os indígenas resistiram com muito mais tenacidade do que as Igrejas).
O avanço histórico desse processo tendia a desagregar as comunidades indígenas, desarticulando as formas coletivas de atividade produtiva e apropriação.
A mudança na estrutura agrária dos países latino-americanos se desenvolveu no sentido da “formação de um mercado de trabalho adaptado às necessidades da economia de exportação” (p. 162). Nas relações de produção ainda predominava, nesse período de transição, as formas pré-capitalistas de trabalho (como a peonagem, por exemplo). Ainda era necessário, em alguns casos, o uso da coação violenta explícita para as classes dominantes disporem de mão de obra.
Também foi traço comum a imigração europeia nos processos de transição. Mas o estabelecimento de colonos nem sempre “teve importância numérica quanto ao mercado de mão de obra” (idem). Estes foram mais importantes desempenhando o papel de comerciantes, artesãos urbanos, dentre outras ocupações que garantiam certos requisitos da formação de uma vida empresarial nesses países.
Vale destacar que o mercado de terras também foi importante “para a obtenção de financiamento necessário, tanto para as ferrovias e o transporte em geral, como para as próprias atividades de exportação” (idem). Nesse caso, “as terras constituíram uma forma de remuneração do Estado e também uma garantia para as inversões em obras públicas” (idem), uma vez que a infraestrutura e o financiamento da máquina pública são bases fundamentais para a consolidação do capitalismo. “Por sua vez, o empréstimo sobre hipotecas operou como um mecanismo bárico de financiamento agrícola” (idem).
Neste processo geral acima descrito, uma parcela das formações sociais latino-americanas sofrerá com a desagregação das formas comunais de economia agrária e outra parcela contará com a firme resistência das comunidades agrícolas “solidamente articuladas”. O Equador se encontra nesse segundo caso. Agora nos deteremos às suas particularidades.
1. 2. A transição capitalista no Equador:
Das reformas liberais de transição capitalista, a equatoriana constitui, “como processo político, a mais longa de toda a história da América Latina” (p. 184). A principal responsável pela defasagem será a Igreja Católica, devida a sua não contradição com os interesses, tanto da burguesia comercial equatoriana, quanto dos proprietários de terras que não se sentiam ameaçados pelas extensões territoriais eclesiásticas. Isso fazia com que os comerciantes costeiros e os proprietários da serra não sentissem a necessidade de articulação. A situação se transforma com a criação da estrada de ferro, inaugurada em 1908, que ligaria Quito (costa) a Guayaquil (serra). A circulação dos produtos agrícolas vai facilitar sua exportação costeira. Une-se a esse fato as expropriações de terras da Igreja, liberando mão de obra que migrará para Quito (da serra para a costa).
Já a situação da população indígena equatoriana foi tal que as comunidades da serra acabaram perdendo “a maior parte de suas terras no século XVII” (p. 185), devido a expansão das haciendas sobre suas comunidades. De todo o modo, as formas de trabalho dependentes (huasipungos e conciertos) “não eliminou por completo os hábitos, as práticas e as formas culturais da comunidade indígena” (idem).
Os resultados gerais desse processo conduzem o Equador ao sistema das economias de exportação latino-americanas incorporadas na divisão internacional do trabalho que já são amplamente conhecidas para que nos detenhamos nelas. Não obstante, vale destacar que sua economia sempre foi exportadora e não teve muitos avanços na subsunção real ao processo de trabalho, isto é, no desenvolvimento industrial.
2. Precedentes históricos da revolta de 2019:
Em 1968, os diferentes povos indígenas situados no país formam a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), órgão de articulação que esteve presente e ativo nos processos de luta que presenciamos ano passado. Discutiremos melhor esse órgão e seu papel mais adiante.
Antes de continuarmos, é necessário lembrar aqui o seguinte: o Equador também fez parte dos países do Cone Sul que passaram por ditaduras militares. Em 1963, a burguesia, articulada com os militares, armou um golpe de Estado que derrubou Monroy. A Junta Militar durou até 1966 como uma espécie de “vanguarda da burguesia industrial” que tinha o objetivo de “modernizar o sistema capitalista imperante” (ACOSTA, 2005, p. 109).
No entanto, os esforços industrializantes no Equador não chegavam a terem ampla efetividade no que se refere à consolidação de um parque industrial no país. A própria descoberta de reservas de petróleo, no momento de sua valorização no mercado internacional (décadas de 60 e 70), contribuiu para frear o processo, caso típico de “doença holandesa”. Veja-se mais informações em: (ACOSTA, 2005).
Não obstante, o outro regime militar (1973 à 1978) utilizou os recursos do petróleo e empréstimos estrangeiros para custear mais um programa de industrialização, realizar a reforma agrária, e conceder subsídios para consumidores urbanos, seguindo a via da “modernização autoritária” como descreve a literatura consagrada ao tema (mas qual modernização não seria autoritária?). A redemocratização ocorre em 1978, coincidindo com o fim do ciclo petrolífero.
No período que se segue, o país já vai se encaminhando para sua inserção na, assim chamada, “globalização”. Sabemos que o Consenso de Washington (1989) construiu toda uma agenda de políticas de liberalização da economia (abertura dos mercados), privatizações, cortes, desregulamentações nas relações de trabalho, etc. Trata-se daquilo que ficou conhecido como “neoliberalismo”, mas que é, na realidade, uma recomposição da taxa de lucro da acumulação de capital pós-crise do petróleo.
O Equador vai aos poucos cumprindo as exigências dos organismos internacionais (principalmente por pressão do FMI, ao qual os governos já haviam recorrido várias vezes – com as contrapartidas que este exige). Até substituiu sua moeda (o “sucre” nativo) pelo dólar estadunidense! Tais medidas levaram às convulsões sociais posteriores.
Na realidade, nenhum dos processos acima mencionados ocorreu sem muita luta e contradições. Como havíamos dito, a presença indígena sempre se fez sentir nas conjunturas. A população indígena esteve atuante no processo de derrubada de presidentes do Equador como Abdalá Bucaram (1997), Jamil Mahuad (2000) e Lúcio Gutiérrez (que asilou-se na embaixada do Brasil quando forçado pelo Congresso a renunciar, em 2005).
3. De Rafael Correa a Lenin Moreno:
Depois de tanta instabilidade social, em 2007 é eleito Rafael Correa com um projeto de conciliação de classes, buscando unir certa pauta desenvolvimentista com questões mais sociais. Entre 2007 a 2016, Correa aumentou o gasto social para melhorar o acesso da população indígena à saúde e educação públicas. Correa conseguiu conduzir essa política com relativa prosperidade por causa da valorização do petróleo e demais produtos primários, no período que vai de 2004 até 2014 (conhecido como “super ciclo das commodities”).
Dado dependia da tributação dos, então valorizados, produtos primários, a agenda desenvolvimentista foi aos poucos ficando de lado. Basta analisar os dados de complexidade econômica do país (contribuição no PIB) que veremos uma constante dependência do petróleo e da agroexportação (demais produtos, com exceção dos serviços, não passam de 3% de contribuição):
- Em 2007, 40,85% da economia dependia do petróleo e 15,6% de agricultura; em 2008, 47,63% dependia de petróleo e 13,28% de agricultura; em 2009, 39,93% de petróleo e 17,32% de agricultura; em 2010, 46,39% de petróleo e 14,38% de agricultura; em 2011, 45,35% de petróleo e 13,96% de agricultura; em 2012, 45,42% petróleo e 12,47% agricultura; em 2013, 46,27% petróleo e 13,14% agricultura; em 2014, 45,74% petróleo e 12,99% agricultura; em 2015, 31,01% petróleo e 16,85% agricultura; em 2016, 26,25% petróleo e 18,08% agricultura & em 2017, 30,40% petróleo e 16,15% agricultura (dados de: atlas.cid.harvard.edu).
Vemos, portanto, que de 2014 em diante ocorre uma queda da participação do petróleo que corresponde ao fim da valorização de seu preço no mercado internacional. A queda do preço do petróleo é resultado da crise de 2008 que reduz paulatinamente a demanda por commodities dos países importadores. Podemos concluir, nesse sentido, que o governo frentepopulista equatoriano sofreu da mesma “doença brasileira”! Mas vejamos alguns de seus méritos conciliadores de classe:
- Em 2009 o Equador consegue renegociar a dívida pública num processo que chamaram de “revolução cidadã” (sic). Entre 2007 até 2015 (anos de Rafael Correa no governo), o PIB subiu 15%, o desemprego caiu de 10% para 4% e, em 2012, conseguiram reduzir para 30% a população considerada “abaixo da linha da pobreza”. No fim do mandato de Correa, em 2016, 22,5% da população estava abaixo desse limite. Hoje, com Moreno, o índice chega a 37% dos equatorianos, em geral. Mas entre os indígenas, o índice é bem superior: 73%. Neste sentido, os governos de Correa são como um petismo mais eficiente.
No seu último mandato, o vice de Correa era o atual presidente Lenin Moreno. Correa apoiou a candidatura do vice, que foi eleito como um candidato de “esquerda”. Entre 2017 e 2018, Moreno começa a reação: persegue Rafael Correa e prende o Julien Assange. Durante esse período, Correa se “auto-exilou” em Bruxelas e tem se colocado como opositor central à Lenin Moreno (se projetando na esteira dos acontecimentos, como o PT faz no Brasil).
Em 2019, Moreno fez acordo com o FMI, cujas exigências (bem conhecidas) eram: medidas de austeridade (ajuste fiscal), desmantelamento das políticas pró-indígenas, privatizações e, em especial, fim dos subsídios do governo ao petróleo. A última medida eleva o preço do petróleo em mais de 123%! Num país onde o transporte na base de combustível fóssil é responsável por fazer circular as mercadorias, temos uma situação análoga ao que acontece no Brasil toda a vez que sobe o preço do combustível: aumento do custo de vida!
Em suma, o atual governo basicamente ignorou todo o programa na qual foi eleito e adotou aquilo que chamam de “agenda neoliberal” (que nada mais é do que a nova orientação da burguesia internacional em recompor a taxa de lucro, sem conciliação de classes, em decorrência das necessidades que a crise de 2008 impuseram no capital internacional). Este caso pode ser tomado como um exemplo do que seria se Haddad tivesse sido eleito no Brasil, pois não importa o programa do partido e sim a demanda do Capital imposta aos estados nacionais para assegurar sua acumulação de valor ininterrupta.
4. Descrição do movimento:
A rebelião retoma a radicalidade dos processos de luta pré-Correa (que, de fato, já haviam derrubado alguns presidentes, como vimos). A presença dos indígenas era fundamental, pois sentiam-se traídos, já que nos governos de Correa eles foram beneficiados.
Os protestos começaram no dia 3 de outubro quando taxistas, caminhoneiros e motoristas de ônibus saíram as ruas para protestar contra a intenção do governo de abolir os subsídios aos combustíveis. Em seguida, os grupos indígenas também aderiram aos protestos, junto com estudantes universitários e sindicatos.
Moreno declarou “estado de sítio” no dia 4 de outubro em meio a protestos em todo o país contra o aumento do preço dos combustíveis. Os protestos haviam prejudicado a rede rodoviária do país, com todas as principais estradas e pontes bloqueadas na capital Quito.
Em sete dias de protestos na Revolta do Equador já haviam tombado 5 manifestantes mortos e o saldo de feridos era de 554! Isso só evidencia que, democrático ou não, os governos da burguesia sempre são intransigentes com relação aos seus interesses capitalistas.
Moreno se recusava a discutir uma potencial reversão da abolição dos subsídios, pois ele dizia que “não negociaria com criminosos”, pois, de fato, tudo que vai contra os interesses da classe dominante é chamado de “crime” pelos apologistas de seu domínio, como comentamos certa vez em: “Uma perspectiva classista no anarquismo e o conceito das ‘comunidades de interesses’ de Bakunin para a análise conjuntural”.
Depois da brutalidade da repressão e as baixarias de Moreno, a revolta se acentuou e ganhou contornos insurrecionais. A pauta avançou no sentido da deposição do presidente.
Em meio a confrontos com a Polícia Nacional do Equador, os manifestantes conseguiram ocupar o Palácio de Carondelet (assembleia nacional) na capital Quito. O governo teve que deslocar sua sede para Guayaquil (da Costa para a Serra).
No dia 9 de outubro, foi deflagrada a “Greve Geral Indígena”, organizada pela CONAIE, radicalizando mais ainda o movimento.
O governo avançava na radicalização da repressão na mesma proporção que avançava a radicalização dos protestos: de lado do governo haviam medidas como o toque de recolher e militarização e do lado dos manifestantes, principalmente indígenas, havia a prisão de militares (50 militares que estavam mantidos em cativeiro por grupos indígenas que faziam parte dos protestos).
Não obstante, no dia 13 de outubro, os protestos terminaram depois que o presidente do país concordou em revogar as medidas de austeridade e em restaurar os subsídios aos combustíveis. Tal concessão foi o resultado de mais de quatro horas de negociação com o presidente da CONAIE (Jaime Vargas), com a mediação da ONU e da Igreja Católica.
O líder da Confederação de Nacionalidades Indígenas (CONAIE), anunciou de modo imediato a suspensão dos protestos que deixaram sete mortos, 1.340 feridos e 1.152 detidos, de acordo com o balanço da Defensoria do Povo.
5. Balanço final e conclusões:
Ganhar uma batalha conjuntural pode significar uma derrota histórica quando o inimigo cede para nos deixar desarticulados. Não podemos dizer que não foi uma vitória dos indígenas no Equador a revogação da abolição dos subsídios aos combustíveis, mas se a pauta tinha evoluído para a deposição do presidente, então tivemos um evidente recuo na radicalidade do movimento (que se contentou em reestabelecer os subsídios). Esse recuo é sintomático e representa uma capitulação diante do governo.
De fato, logo após a negociata, o governo não tardou em prender os elementos considerados “mais subversivos” depois que a poeira abaixou, além de fortificar a caça às bruxas empreendida contra a oposição.
Esse é um dos limites evidentes da “Política de Demandas”, tal como caracteriza o grupo Crimethinc:
Fazer exigências [na forma de demandas] coloca algumas pessoas como representantes do movimento, criando uma hierarquia interna e dando a elas incentivo para controlar os outros membros.
Na prática, unificar um movimento em torno a demandas específicas geralmente significa designar porta-vozes para negociar por ele. Mesmo se estes forem escolhidos “democraticamente”, sob a base de seu comprometimento e experiência, eles não podem fazer outra coisa a não ser desenvolver interesses diferentes dos outros membros como consequência de representarem este papel.
Com o objetivo de manter a credibilidade do seu papel de negociadores, estes porta-vozes devem ser capazes de pacificar ou isolar qualquer pessoa que não esteja disposta a apoiar os acordos que eles fizerem. Isto dá a aspirantes a líderes um incentivo para reinar em um movimento, na esperança de conquistar uma cadeira à mesa de negociação. As mesmas almas corajosas cujas ações inflexíveis granjearam ao movimento sua posição altiva subitamente encontram ativistas de carreira que surgiram mais tarde lhes dizendo o que fazer – tentando impedir que eles sequer façam parte do movimento.
Este foi precisamente o papel desempenhado pela CONAIE e suas lideranças frente ao governo de Moreno. A atmosfera de luta no Equador foi desagregada com a aceitação passiva desse acordo com o governo. Isso abriu caminho para uma reorganização das forças da repressão.
A única opção historicamente viável para consolidar uma vitória era, pelo contrário, radicalizar mais ainda a pauta e avançar para além da deposição do presidente, para uma luta contra o Estado capitalista, por uma nova organização da vida social. Em vez disso, o movimento chegou ao nível da negociação com o inimigo!
O movimento precisava ter identificado o inimigo de classe para além de seu exército estatal. Era necessário uma estratégia revolucionária para impor, paralelamente à luta, os órgãos de contra-poder e auto-organização proletária para substituir o Estado. Infelizmente, essas proposições não estavam no horizonte dessas lutas.
Para que tal programa ganhe consistência, é necessário a intervenção militante dos revolucionários comunistas/anarquistas/socialistas. O proletariado em devir revolucionário tem o dever histórico de construir esse programa revolucionário para vencer o capitalismo, bem como efetivar um projeto societário baseado em novas relações sociais: o comunismo.
Mas por que as revoltas continuam cedendo diante dos governos? Acreditamos que um dos motivos seja o “isolamento nacional”. Na Colômbia, uma insurgência estudantil tomava as ruas pela educação pública, no Haiti uma Revolta Social busca derrubar o governo imposto pelo imperialismo brasileiro via “diplomacia da ONU”, no Chile uma insurreição social toma as ruas. A conexão destas lutas, ou seja, a superação das fronteiras que nos impede de associarmos uns com os outros em nível internacional pode impor uma situação fora do controle aos estados nacionais.
A internacionalização das lutas poderia fortalecer essas revoltas e destruir as soberanias nacionais (que servem aos interesses da classe dominante). A revolução mundial depende dos esforços conjuntos da classe proletária internacional e somente a solidariedade mundial fará com que as revoltas se generalizem e não sufoquem-se no isolamento.
Referências:
ACOSTA, Alberto. Breve história econômica do Equador. Quito: Fundação Alberto Gusmão, 2005. (Coleção América do Sul).
CARDOSO, Ciro e PEREZ BRIGNOLI, Hector. História econômica da América Latina. Rio de Janeiro: Graal, 1985.