sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Relato de algumas lutas de dezembro desse ano

Panfleto distribuído alguns dias antes do evento do dia 16 de dezembro.

Neste final de ano gostaríamos de compartilhar alguns relatos sobre eventos nos quais tivemos alguma participação ou avaliação crítica. As proposições dos documentos produzidos por nós estão de acordo com as discussões sobre a necessidade da intervenção prática na luta de classes a partir de uma conduta libertária, tal como viemos defendendo em nosso blog de difusão comunista anarquista.

Essa é uma forma mais direta de passar nossa mensagem de fim de ano: somente a luta organizada a partir da autonomia proletária e em defesa do programa revolucionário que pode trazer mudanças efetivas para nossa vida. Gostaríamos que essa mensagem ficasse evidente, afinal ano que vão tentar nos enquadrar mais uma vez na institucionalidade burguesa das eleições e vão acusar a nós e nossos camaradas de conivência com o fascismo apenas por defendermos o abstencionismo libertário. Nada mais oportunista da parte da social-democracia que chegou a se reunir com a polícia militar para manter a ordem (burguesa) de seus protestos, como denunciamos em: As vicissitudes da luta de classes brasileira na pandemia capitalista.

Não tememos a perseguição social-democrata ou de direita, continuaremos seguindo em frente em defesa da revolução social do comunismo libertário!

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No dia 16 de dezembro participamos de uma atividade de agitação e propaganda sobre o transporte coletivo da cidade de Porto Alegre. Distribuímos o seguinte panfleto de convocação: [acesse o panfleto no link para o arquivo salvo no drive].

Reservamos para outra ocasião o seguinte panfleto sobre a questão do transporte coletivo (com uma perspectiva mais geral): [acesse o panfleto no link para o arquivo salvo no drive].

Realizamos a seguinte avaliação do dia 16: [acesse a avaliação no link para o arquivo salvo no drive].

Analisamos a situação do conflito socioambiental envolvendo um projeto de construção imobiliária na extrema Zona Sul de Porto Alegre e oferecemos algumas contribuições críticas acerca dos métodos de luta para o enfrentamento do empreendimento: [acesse a avaliação no link para o arquivo salvo no drive].

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

O conceito anarquista da revolução (1921) – Luigi Fabbri

Luigi Fabbri (1877-1935) e a folha de rosto da obra da qual publicamos um capítulo.

Nesta publicação vamos compartilhar uma tradução revisada (dessa versão: link) e ampliada do capítulo 10 da obra “Dittatura e Rivoluzione” (publicada originalmente em 1921) de Luigi Fabbri. Trata-se da discussão acerca do que Fabbri considera ser o “concetto anarchico della Rivoluzione” (o conceito anarquista da revolução), com importantes contribuições para a desmistificação da teoria anarquista revolucionária.

Há de se destacar o contexto da obra: foi um ano depois do Biênio Vermelho (1919-1920) e um ano antes da ascensão de Mussolini (1922). As reflexões de Fabbri emergem conectadas com a experiência de luta proletária italiana, mas também em constante diálogo com a situação da “revolução russa”. Diante da ameaça fascista, Fabbri demonstra estar plenamente consciente da necessidade da revolução como único método de combater efetivamente o movimento reacionário.

A discussão de Luigi Fabbri suscita muitas reflexões sobre a práxis revolucionária, por isso consideramos fundamental compartilhar essa tradução em nosso blog, embora fosse melhor se dispuséssemos do texto integral do livro traduzido.

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Uma revolução que, pelo menos na Europa Latina, e mais especialmente na Itália, não levasse em consideração o elemento anarquista e acreditasse ser possível se desenvolver independentemente dele ou contra ele, correria os perigos mais graves: o primeiro de todos seria a guerra civil no seio da revolução, o perigo de provocar uma revolução dentro da própria revolução, antes mesmo de desaparecer qualquer possibilidade de contrarrevolução.

Deve-se considerar que na Itália os anarquistas hoje têm uma força numérica que não é indiferente [1], que têm uma influência e uma força de irradiação reconhecida por todos e que, em um período revolucionário, não poderiam deixar de se multiplicar.

Se trata de uma força revolucionária, e não cartas e cédulas eleitorais, com a qual todo aquele que pensa seriamente a revolução deve levar em consideração, não como um peso morto que seria materialmente explorado em seu devido tempo, mas como uma força consciente, possuindo uma orientação e vontade de agir determinadas e cujo desacordo pode ser prejudicial não só para os partidos dissidentes, mas também e sobretudo para a causa da revolução.

Não se trata, por parte dos anarquistas, de uma questão de teimosia, de uma presunção ou um desejo tolo de ser levado em consideração. Os anarquistas têm pouco espírito partidário; eles não propõem nenhum fim imediato além da extensão de sua propaganda. Eles não são um partido de governo ou um partido de interesses – a menos que por interesse se entenda o pão e a liberdade para todos –, mas apenas um partido de ideias. Esta é a sua fraqueza na medida em que qualquer sucesso material é vedado a eles e os outros, mais astutos ou mais fortes, exploram e usam os resultados parciais de seu trabalho.

Mas esta é também a força dos anarquistas, porque só enfrentando as derrotas, eles – os eternos vencidos – preparam a vitória final, a verdadeira. Não tendo interesses pessoais ou grupais próprios para afirmar e rejeitando qualquer pretensão de domínio sobre a multidão em cujo meio vivem e da qual compartilham suas ansiedades e esperanças, não dão ordens a que devam obedecer mais tarde, não pedem nada, mas dizem: “vossa sorte será como vós fareis; a saúde está em vocês; conquiste-a com vosso aperfeiçoamento espiritual, com vosso sacrifício e com vosso risco. Se quiseres, vencerás. Não queremos ser mais do que uma parte de vocês na luta”.

Se, portanto, os anarquistas muitas vezes apelam por um entendimento entre todos os que trabalham pela revolução, se estão preocupados com uma possível discórdia dentro da revolução, o que os move é apenas um desejo sincero de que a revolução em si não acabe sendo distanciada ou dificultada por uma intransigência que é bastante intolerante, não para com as classes e partidos burgueses – diante dos quais nunca se têm o bastante de intransigência – mas também para com as forças e frações proletárias, sinceramente revolucionárias, anticapitalistas, internacionalistas e inimigas sem mediação das instituições atuais, como são, sem dúvida, os anarquistas.

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A intolerância de muitos socialistas, mesmo de certos revolucionários, face ao anarquismo depende em grande parte da sua absoluta ignorância sobre as ideias, os objetivos e os métodos dos anarquistas.

É espantoso constatar como pessoas das mais inteligentes, duma vasta cultura política e econômica, entre os socialistas, quando se trata da anarquia não sabem dizer mais do que os habituais lugares comuns sem sentido, difundidos pela pior imprensa burguesa: as afirmações mais estrambólicas e difamatórias, as interpretações mais tolas. Toda a ciência socialista sobre o anarquismo parece condensada naquele velho libelo em que Plekhanov, em 1893, desafogava a sua bílis anti-anarquista, sem nenhum respeito pela verdade e sem nenhuma honestidade intelectual [2]; ou naquele conhecido livro de Lombroso sobre os anarquistas, que toma por documentos verdadeiros os relatórios da polícia e dos diretores das prisões, e cataloga, sabe-se lá porquê, entre os anarquistas gente que em nove décimos jamais sonhou sê-lo!

Inúmeras refutações socialistas do anarquismo têm aparecido em jornais, livros e revistas; mas, com algumas louváveis exceções, quase sempre refutam ideias que de nenhuma forma são anarquistas, atribuídas aos anarquistas seja por ignorância ou por artifício polêmico. Especialmente sobre o conceito da revolução foram postas em circulação pretensas teorias anarquistas, tão extravagantes que nos obrigam a duvidar da boa fé de quem as enuncia. Quanta tinta derramada para demonstrar aos “anarquistas iludidos” que a revolução não se faz com pedras, com velhos fuzis ou com qualquer revólver, que as barricadas já não correspondem às necessidades da luta presente! Que os motins isolados e improvisados não bastam! Que os atentados individuais por si só não fazem a revolução! Que a revolta é uma coisa e a revolução é outra!… E por aí fora, com descobertas peregrinas de semelhante cunho. – Ignorando ou fingindo ignorar que os anarquistas têm da revolução o conceito mais exato, e ao mesmo tempo mais prático, segundo o significado etimológico, tradicional e histórico da palavra.

A revolução, na linguagem política e social – e também na linguagem popular – é um movimento geral através do qual um povo ou uma classe, saindo da legalidade e fazendo cair as instituições vigentes, quebrando o pacto leonino imposto pelos dominadores às classes dominadas, com uma série mais ou menos longa de insurreições, revoltas, tumultos, atentados e lutas de toda a sorte, derruba definitivamente o regime político e social a que até então estava sujeito, e instaura uma ordem nova.

A derrubada de um regime costuma ocorrer num tempo relativamente breve: poucos dias na revolução de julho de 1830 que substituiu em França uma dinastia por outra, pouco mais de um ano na revolução italiana de 1848; seis ou sete anos na revolução francesa de 1789, uma dúzia de anos na revolução inglesa da metade do século XVII. A revolução, isto é, a demolição de fato de um regime político e social preexistente, é em substância a conclusão de uma evolução anterior, que se traduz na realidade material quebrando violentamente as formas sociais e o invólucro político não mais apto a contê-la. Ela termina com o regresso a um estado normal, quando a luta é cessada, seja com a vitória a permitir à revolução instaurar um novo regime, seja com a sua derrota parcial ou total a restaurar, em parte ou no todo, o regime antigo, dando lugar à contrarrevolução.

A característica principal, pela qual se pode dizer que a revolução começou, é a saída da legalidade, a rutura do equilíbrio e da disciplina estatal, a ação impune e vitoriosa da praça contra a lei. Antes de um fato específico e resolutivo deste gênero, não há ainda revolução. Pode haver um estado de ânimo revolucionário, uma preparação revolucionária, condições mais ou menos favoráveis à revolução; podem dar-se episódios mais ou menos felizes de revolta, tentativas insurrecionais, greves violentas ou não, manifestações até sangrentas, atentados, etc. Mas enquanto a força permanece na lei velha e no velho poder, não se entrou ainda em revolução.

A luta contra o Estado, defensor armado do regime, é portanto a condição sine qua non da revolução. A qual tende a limitar o mais possível o poder do Estado e a desenvolver o espírito de liberdade; a levar até ao limite máximo o povo, os súbditos da véspera, os explorados e os oprimidos, ao uso de todas as liberdades individuais e coletivas. No exercício da liberdade, não restringido por leis e governos, reside a saúde de toda a revolução, a garantia de que ela não seja limitada ou contida nos seus progressos, a sua melhor salvaguarda contra as tentativas internas e externas de a estrangular.

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Alguns dizem-nos: “Compreendemos que, como anarquistas e sendo contrários a toda a ideia de governo, vocês são contra a ditadura que é a sua expressão mais autoritária; mas não se trata de a propor como objetivo, e sim como meio, ainda que seja antipático mas necessário, como é um meio necessário mas antipático a violência, durante o período provisório revolucionário, necessária para vencer as resistências e os contra-ataques burgueses”.

Uma coisa é a violência, outra é a autoridade governativa, seja esta ou não ditatorial. Se é verdade, de fato, que todas as autoridades governativas se baseiam no uso da violência, seria inexato e errôneo dizer que toda a “violência” é um ato de autoridade, e que, sendo necessária a primeira, também necessária se torna a segunda. A violência é um meio, que assume o caráter do fim para que é aplicada, do modo como é usada, das pessoas que dela se servem. Ela é um ato de autoridade quando é aplicada para impor aos outros a vontade de quem comanda; quando é emanação governativa ou patronal, e serve para manter escravos povos e classes; para impedir a liberdade individual dos súbditos, para fazer obedecer pela força. É ao invés libertária, vale dizer, ato de liberdade e libertação, quando é aplicada contra quem comanda e por quem não quer mais obedecer; quando é dirigida a impedir, diminuir ou destruir uma escravidão qualquer, individual ou coletiva, econômica ou política; e é aplicada pelos oprimidos diretamente, indivíduos, povos ou classes, contra o governo e a classe dominante. Tal violência é a revolução em ato; mas deixa de ser libertária, e assim revolucionária, logo que, vencido o velho poder, quer ela própria tornar-se poder, e se cristaliza numa forma qualquer de governo.

É este o momento mais perigoso de toda a revolução: quando a violência libertária e revolucionária vencedora se pode transformar em violência autoritária e contrarrevolucionária, moderadora e limitadora da vitória popular insurrecional. É o momento em que a revolução pode devorar-se a si mesma, se lhe tomarem a dianteira as tendências jocobinas, estatais, que já se manifestam através do socialismo marxista favorável ao estabelecimento dum governo ditatorial. A tarefa específica dos anarquistas, decorrente das suas próprias concepções teóricas e práticas, é justamente reagir contra tais tendências autoritárias e liberticidas; com a propaganda hoje e com a ação amanhã.

Aqueles que fazem uma distinção entre anarquia teórica e anarquia prática, para sustentar que a anarquia prática não deveria ser anarquista mas ditatorial, não compreenderam bem a essência do anarquismo, no qual não é possível separar a teoria da prática, porquanto para os anarquistas a teoria decorre da prática e é por sua vez um guia para a conduta, uma verdadeira e própria pedagogia da ação.

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Muitos creem que a anarquia consista só na afirmação revolucionária e ideal ao mesmo tempo de uma sociedade sem governo, a instaurar no futuro, mas sem ligação com a realidade atual, para que hoje se possa ou se deva agir em contradição com o fim que nos propomos, sem escrúpulos e sem limites. Assim, à espera da anarquia, ontem nos aconselhavam provisoriamente a votar nas eleições, como hoje nos propõem aceitar provisoriamente a ditadura considerada proletária ou revolucionária.

Mas nada disso! Se fôssemos anarquistas só no fim e não nos meios, o nosso partido seria inútil; pois a frase de Bovio, de que anarquista é o pensamento e para a anarquia vai a história, pode ser dita e aprovada (como de fato muitos dizem subscrevê-la) também por aqueles que militam em outros partidos de progresso. O que nos distingue, não só na teoria mas também na prática, dos outros partidos é que nós não somente temos um objetivo anarquista mas também um movimento anarquista, uma metodologia anarquista; porquanto pensamos que as vias a percorrer, tanto durante o período preparatório da propaganda como no período revolucionário, são as vias da liberdade.

A função do anarquismo não é tanto de profetizar um futuro de liberdade, mas de o preparar. Se todo o anarquismo consistisse na visão longínqua de uma sociedade sem Estado, ou na afirmação de direitos individuais, ou numa questão puramente espiritual, abstraída da realidade vivida e dizendo respeito só às consciências particulares, não haveria nenhuma necessidade de um movimento político e social anarquista. Se o anarquismo fosse simplesmente uma ética individual, a cultivar dentro de nós, ao mesmo tempo adaptando-se na vida material a atos e movimentos com ela contraditórios, poderíamos dizer-nos anarquistas e pertencer aos mais diversos partidos; e poderiam ser chamados anarquistas muitos que, embora sendo espiritual e intelectualmente emancipados, no terreno prático são e continuam nossos inimigos.

Mas o anarquismo é outra coisa. Não é um meio de nos fecharmos na torre de marfim, mas sim uma manifestação do povo, proletária e revolucionária, uma participação ativa no movimento de emancipação humana com critérios e finalidades igualitárias e libertárias ao mesmo tempo. A parte mais importante do seu programa não consiste somente no sonho, que todavia queremos que se realize, duma sociedade sem patrões e sem governos, mas sobretudo na concepção libertária da revolução, da revolução contra o Estado e não por meio do Estado, da ideia de que a liberdade é não só o calor vital que aquecerá o novo mundo de amanhã, mas também e sobretudo, hoje mesmo, uma arma de combate contra o velho mundo. Neste sentido a anarquia é uma verdadeira e própria teoria da revolução.

Tanto a propaganda hoje como a revolução amanhã têm e terão, por conseguinte, necessidade do máximo possível de liberdade para se desenvolverem. Isto não quer dizer que não devemos e não podemos prosseguir da mesma forma, mesmo que a liberdade nos seja em parte, pouco ou muito, tirada; mas é do nosso interesse tê-la e querê-la o máximo possível. Do contrário, não seríamos anarquistas. Noutros termos, nós pensamos que quanto mais agirmos libertariamente, tanto mais contribuiremos não só para nos aproximarmos da anarquia, mas também para consolidar a revolução; ao passo que da anarquia nos afastaremos, e enfraqueceremos a revolução, toda a vez que recorrermos a sistemas autoritários. Defender a liberdade para nós e para todos, combater pela liberdade cada vez mais extensa e completa, tal é portanto a nossa função, hoje, amanhã, sempre – na teoria e na prática.

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Liberdade até para os nossos inimigos?, Perguntasse-nos. A pergunta é ingênua ou desonesta. Estamos em luta com os inimigos, e na peleia não se reconhece ao inimigo nenhuma liberdade, nem sequer a de viver. Se fossem inimigos só… teóricos, se os encontrássemos à nossa frente, desarmados, na impossibilidade de atentar contra a nossa liberdade, despojados de todo o privilégio e portanto em paridade de condições, seria coisa admissível. Mas preocuparmo-nos com a liberdade dos nossos inimigos quando nós temos algum pobre jornal e uns poucos semanários e eles possuem centenas de diários de grande tiragem; quando eles estão armados e nós desarmados, enquanto eles estão no poder e nós somos súditos, eles ricos e nós pobres, ora! seria ridículo… Seria o mesmo que reconhecer a um assassino a liberdade de nos matar! Tal liberdade nós lhes negamos e negaremos sempre, também em período revolucionário, enquanto eles conservarem a sua condição de verdugos e nós não tivermos conquistado total e completamente a nossa liberdade, não só em direito mas de fato.

Mas esta liberdade não a poderemos conquistar senão utilizando-a também como meio, onde fazer isso depende de nós; vale dizer, dando desde já uma direção cada vez mais livre e libertária ao nosso movimento, ao movimento proletário e popular; desenvolvendo o espírito de liberdade, de autonomia e de livre iniciativa no meio das massas; educando-as para uma intolerância cada vez maior a todo o poder autoritário e político, encorajando o espírito de independência de juízo e de ação face aos líderes de toda a espécie; habituando o povo ao desprezo de todo o freio e disciplina impostos pelos outros e de cima, que não seja portanto o freio da própria consciência e a disciplina livremente escolhida e aceite, seguida só enquanto se considera boa e útil ao objetivo revolucionário e libertário estabelecido.

É claro que uma massa educada nesta escola, um movimento tendo esta direção (e tal é o movimento anarquista), encontrará na revolução a ocasião e o meio de se desenvolver no seu sentido até limites hoje sequer imagináveis; e será o obstáculo natural, e ao mesmo tempo voluntário, à formação e afirmação de qualquer governo mais ou menos ditatorial. Entre este movimento para uma liberdade cada vez maior e a tendência centralizadora e ditatorial não pode haver senão conflito, mais ou menos forte e violento, com maiores ou menores tréguas, em função das circunstâncias; mas concordância nunca.

E isso não por um capricho exclusivamente doutrinário e abstrato, mas porque os negadores do poder – é este, repetimos, o lado mais importante da teoria anarquista, que pretende ser a mais prática das teorias – pensam que a revolução sem a liberdade nos levaria a uma nova tirania; que o governo, apenas pelo fato de o ser, tende a conter e limitar a revolução; e que é do interesse da revolução e do seu progressivo desenvolvimento combater e pôr obstáculos a toda a centralização de poderes, impedir a formação de qualquer governo, se for possível, ou impedir ao menos que ele se reforce, se torne estável e se consolide. Quer isto dizer que o interesse da revolução é contrário à tendência que toda a ditadura tem em si, por mais proletária ou revolucionária que se diga, de se tornar forte, estável e sólida.

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Mas não! Replicam outros; tratar-se-ia de uma ditadura provisória enquanto dura a obra de deposição da burguesia, para a combater, vencer e expropriar.

Quando se diz “ditadura” subentende-se sempre provisória, mesmo no significado burguês e histórico da palavra. Todas as ditaduras, nos tempos idos, foram provisórias nas intenções dos seus promotores e, nominalmente, também de fato. As intenções em tal caso contam pouco, pois trata-se de formar um organismo complexo, que seguiria a sua natureza e as suas leis e anularia toda a apriorística intenção contrária ou limitadora. O que temos que ver é: primeiro, se as consequências do regime ditatorial são mais danosas do que vantajosas para a revolução; segundo, se os objetivos destruidores e reconstrutivos para que a ditadura se quer, não podem ser alcançados também e melhor sem ela, pelas vias amplas da liberdade.

Nós cremos que sim; e cremos que a revolução é mais forte, mais incoercível, mais difícil de vencer, quando não há um centro onde atacá-la: quando ela está em qualquer lugar, sobre todos os pontos do território, e em qualquer lugar o povo proceda livremente a realizar os dois fins principais da revolução: a destruição da autoridade e a expropriação dos patrões.

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Quando censuramos à concepção ditatorial da revolução o grave erro de impor a vontade duma pequena minoria à grande maioria da população, respondem-nos que as revoluções são feitas pelas minorias.

Também na literatura anarquista se encontra muito frequentemente repetida esta expressão, que diz de fato uma grande verdade histórica. Mas convém compreendê-la no seu verdadeiro significado revolucionário, e não lhe dar, como os bolcheviques, um sentido que antes nunca tivera. Que as revoluções sejam feitas pelas minorias é de fato verdade… até um certo ponto. As minorias, na realidade, iniciam a revolução, tomam a iniciativa da ação, arrombam a primeira porta, abatem os primeiros obstáculos, pois sabem ousar o que as maiorias inertes ou misoneístas receiam, no seu amor à vida tranquila e o seu temor aos riscos.

Mas se, uma vez quebradas as primeiras amarras, as maiorias populares não seguem as minorias audazes, o ato destas ou é seguido por uma reação do velho regime que tira a desforra, ou resolve-se na substituição de uma dominação por outra, de um privilégio por outro. É necessário então que a minoria rebelde tenha mais ou menos um consentimento da maioria, lhe interprete as necessidades e os sentimentos latentes; e, vencido o primeiro obstáculo, realize as aspirações populares, deixe às massas a liberdade de se organizarem a seu modo, tornando-se a minoria num certo sentido a maioria.

Se isto não ocorre, não dizemos que a minoria não tenha o mesmo direito à revolta. Segundo o conceito anarquista da liberdade, todos os oprimidos têm direito de se rebelar à opressão, tanto o indivíduo como a coletividade, as minorias como as maiorias. Mas uma coisa é rebelar-se à opressão, outra é tornar-se opressor por sua vez, como mais vezes dissemos. Também quando as maiorias toleram a opressão ou são dela cúmplices, a minoria que se sinta oprimida tem direito a rebelar-se, a querer para si a sua liberdade. Mas igual e maior direito teriam as maiorias, contra qualquer minoria que pretendesse sob qualquer pretexto sujeitá-las.

De resto, na realidade factual, os opressores são sempre uma minoria, tanto quando oprimem abertamente em nome próprio, como quando exercem a opressão em nome de hipotéticas coletividades ou maiorias. A revolta é, portanto, iniciativa de uma minoria consciente, insurgida em meio a uma maioria oprimida, contra uma outra minoria tirânica; mas tal revolta só se torna revolução, só pode ter eficácia renovadora e libertadora, se com o seu exemplo conseguir sacudir a maioria, arrastá-la, pô-la em movimento, conquistar-lhe o favor e a adesão.

Abandonada ou adversada pelas maiorias populares, a revolta, se derrotada, passaria à história como um movimento heroico e infeliz, fecundo precursor dos tempos, etapa sanguinosa mas necessária de uma vitória indefectível no futuro. Caso contrário, se vencedora, a minoria rebelde tornada senhora do poder a despeito das maiorias, um novo jugo sobre o pescoço dos súbditos, acabaria por matar a mesma revolução por ela suscitada.

Em certo sentido poder-se-ia dizer que, se uma minoria rebelde não consegue com o seu ímpeto arrastar atrás de si a maioria dos oprimidos, ela seria mais útil à revolução se derrotada e sacrificada. Pois se com a vitória se tornasse ela opressora, acabaria por apagar nas massas toda a fé na revolução, fazê-las talvez mesmo odiar uma revolução da qual vissem sair nada além de uma nova tirania – de que sentiriam o peso e o dano, qualquer que fosse o pretexto ou o nome com que viesse lhe cobrir.

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Especialmente depois da revolução russa, vem sendo defendida a ideia do poder ditatorial da revolução, como um meio necessário de luta contra os inimigos internos, contra as tentativas dos ex-dominadores desejosos de recuperar o poder econômico e político. O governo serviria, portanto, para organizar, nos primeiros momentos de maior perigo, o terrorismo antiburguês em defesa da revolução [3].

Nós não negamos de modo nenhum a necessidade do uso do terror, especialmente quando aos inimigos internos vêm em ajuda, com forças armadas, os inimigos externos. O terrorismo revolucionário é uma consequência inevitável quando o território sobre o qual a revolução ainda não se reforçou o suficiente está a ser invadido por exércitos reacionários. Cada insídia da contrarrevolução, a partir de dentro, é demasiado funesta em tais circunstâncias para que não deva ser exterminada com ferro e fogo.

A lenda de Bruto, que manda para o patíbulo os filhos, cúmplices internos dos Tarquínios expulsos de Roma e que ameaçavam a liberdade romana à cabeça dum exército estrangeiro, é o símbolo desta trágica necessidade do terror. Assim em França se sentiu a necessidade, em 1792, de exterminar os nobres, os padres e os reacionários acumulados nas prisões, quando Brunswick se acercava ameaçadoramente a Paris, guiado pelos emigrantes.

O terror torna-se inevitável quando a revolução é encurralada por todos os lados. Sem a ameaça externa, as ameaças contrarrevolucionárias internas não metem medo; basta para as manter inativas o conhecimento da sua impotência material. Deixá-las tranquilas poderia ser até mesmo um erro, e talvez um perigo para o futuro, mas não constitui perigo imediato. Por isso pode-se facilmente ser arrastado face aos próprios inimigos a um sentimento de generosidade e piedade. Mas quando estes inimigos têm para lá das fronteiras forças armadas prontas a intervir em seu socorro, quando eles acham aliados nos inimigos externos, então tornam-se um perigo, que se faz cada vez mais forte quanto mais avança o outro perigo de fora. A sua supressão torna-se então questão de vida ou de morte.

Quanto mais inexorável é a revolução em tais momentos, melhor consegue evitar maiores lutas para o futuro. Uma excessiva tolerância hoje poderia tornar necessário amanhã um rigor duplamente mais grave [4]. Se depois ela tivesse por consequência a derrota da revolução, chacinas muito mais terríveis viriam punir a fraqueza com o terror branco da contrarrevolução!

Não é necessário de resto valorizar demais a retórica, de que faz pompa a imprensa burguesa, para vituperar e caluniar o terrorismo revolucionário.

Há quatro anos que não fazem mais do que falar dos horrores, das chacinas, das infâmias e das desordens revolucionárias de Petrogrado e Moscou. Mas se se tivesse a paciência de ir às bibliotecas resgatar os diários de Roma, Turim, Viena, Coblença, Berlim, Londres e Madrid de 1789 a 1815, aproximadamente, ler-se-iam palavras idênticas de horror sobre as chacinas, as infâmias e as desordens da Grande Revolução. Aqueles que se lembram dos tempos da Comuna de Paris de 1871, recordam igualmente com que linguagem repulsiva se falava das “chacinas” dos petroleiros comunards: não havia palavras que chegassem para os vituperar como os piores assassinos. Não obstante, quantos apologistas da Comuna parisiense não estão hoje entre os vituperadores da Comuna de Moscou!

Os patriotas italianos sinceros devem recordar-se das infâmias que nos jornais moderados e bonapartistas de Paris escreveram – de acordo com os jornais clericais vienenses – contra a República Romana de 1849 e de como então as almas mais pias se escandalizaram e horrorizaram pelas chacinas atribuídas aos carbonários e aos mazzinianos. Também sobre a revolução russa um dia se saberá a verdade verdadeira e talvez muitos dos seus atuais difamadores mudarão de opinião. Aí, provavelmente, os únicos que persistirão na crítica serão… os anarquistas!

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Nenhum direito tem a burguesia de se escandalizar com o terrorismo da revolução russa, ela que nas suas revoluções fez outro tanto, que depois aplicou o terror em sua vantagem contra o povo toda a vez que este tentou seriamente sacudir o seu jugo, com uma ferocidade que nenhuma revolução jamais alcançou.

Como anarquistas, porém, nós fazemos todas as nossas reservas, não contra o uso do terror em geral, mas contra o terrorismo codificado, legalizado, feito instrumento de governo – mesmo que seja um governo que se diga e se creia revolucionário. O terrorismo autoritário, na realidade, pelo fato de ser tal, deixa de ser revolucionário, torna-se uma ameaça perene para a revolução e também uma razão de fraqueza. A violência só encontra sua justificação na luta e na necessidade de libertação de uma opressão violenta; mas a legalização da violência, o governo violento, é ele mesmo uma prepotência, uma nova opressão.

Torna-se, por isso, causa de fraqueza para o terrorismo revolucionário o fato dele ser exercido não livremente pelo povo e contra os seus inimigos somente, não por iniciativa independente dos grupos revolucionários, mas pelo governo; com a consequência natural de que o governo persiga, junto com os verdadeiros inimigos da revolução, também revolucionários sinceros, mais avançados do que ele, mas discordantes. Além disso, o terrorismo, como ato de autoridade governativa, é mais suscetível de recolher aquelas antipatias e aversões populares que sempre se determinam em oposição a todo o governo, de qualquer espécie que seja; apenas porque é um governo. O governo, também quando recorre a medidas radicais, pelas responsabilidades que sobre ele pesam e por todo o conjunto de influências que sofre do exterior e do interior, é levado inevitavelmente a cautelas e a atos ou mais violentos ou mais remissivos a critérios sugeridos mais do que pelo interesse do povo e da revolução, pela necessidade de defender o seu poder e a segurança pessoal, presente ou futura, ou até o simples bom nome, dos seus componentes.

Para nos livrarmos em qualquer lugar da burguesia, para proceder àquelas medidas sumárias que podem ser necessárias numa revolução, não há necessidade de ordens de cima. Aliás, quem está no poder, por um sentido natural de responsabilidade, pode ter hesitações e escrúpulos perigosos, que as massas não têm. A ação direta popular – que poderemos chamar terrorismo libertário – é portanto sempre mais radical, sem contar que, localmente, se pode saber muito melhor quem e onde atacar, do que a partir do poder central distante, o qual seria obrigado a confiar em tribunais cada vez menos justos e ao mesmo tempo mais ferozes do que a justiça sumária popular. – Os quais, mesmo quando levam a cabo atos de verdadeira justiça, não atacam por sentimento, mas por mandato, tornam-se, assim pela sua frieza, antipáticos ao povo e são levados a rodear os seus atos de crueldade, mesmo que necessária, com uma teatralidade inútil e uma hipócrita ostentação duma igualdade legislativa inexistente e impossível.

Em todas as revoluções, assim que a justiça popular se torna legal, organizada a partir de cima, pouco a pouco se transforma em injustiça. Torna-se talvez mais cruel, mas é também levada a atacar os próprios revolucionários, a poupar muitas vezes os inimigos, a tornar-se instrumento do poder central em sentido cada vez mais repressivo e contrarrevolucionário. Como instrumento de violência destrutiva, portanto, não só pode passar sem o poder na revolução, mas a mesma violência é tanto mais eficaz e radical quanto menos se concentra numa autoridade determinada.

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Àqueles que contra os nossos argumentos opõem o que acontece na Rússia, nós respondemos que lá a experiência está ainda em curso e é cedo demais para nos basearmos nela como prova de verdade. Cita-se muito os decretos emanados do governo soviético, mas para perceber se são bons seria preciso saber se, como e até que ponto foram aplicados, os seus resultados, etc. Para concluir que lá se fez bem, seria preciso que a experiência estivesse concluída, com a vitória ou com a derrota, de modo a saber e perceber se a ditadura terá mais ajudado ou estorvado uma ou outra. Atualmente nós podemos, assim como os favoráveis à ditadura revolucionária, excluir que uma das causas das condições terríveis em que se debate a revolução russa seja justamente a sua direção excessivamente autoritária e ditatorial? Não, certamente.

Nós, com o maior senso de objetividade que nos foi possível, dada a nossa passionalidade de homens de partido, examinamos num capítulo anterior as condições criadas na Rússia pela ditadura em relação aos interesses da liberdade. E por este lado as conclusões que se podem tirar não são, por certo, encorajadoras! Mas o nosso objetivo não é o de nos erigirmos em juízes nem tampouco de fazer da crítica histórica um fim em si mesma, mas sim de examinar as ideias e os fatos, tendo em conta o que poderia ser a revolução nos nossos países. Podemos também admitir que na Rússia as coisas não pudessem ir diferentemente de como vão e não se pudesse fazer diferentemente do que se fez. Mas é certo que nos países ocidentais não se poderia agir do mesmo modo que na Rússia.

As nossas considerações pretendem sobretudo ter um valor aqui, onde nós vivemos, como norma e guia de uma eventual revolução mais ou menos próxima; para que tenhamos o dever de não imitar cegamente o que se diz ou imaginamos se tenha feito na Rússia ou noutro lugar, e sim preparar positivamente o terreno para a nossa revolução, vendo o que convém e o que não convém ao seu triunfo, dadas as nossas condições, os meios de que podemos dispor e os fins que nos propomos com a revolução – aqui, no nosso ambiente, com os nossos sentimentos e as nossas ideias.

Aqueles que citam tão frequentemente Lênin devem a tal propósito recordar o honesto conselho que ele deu aos revolucionários da Hungria, quando lá rebentou a desgraçada revolução tão mal acabada, de terem o cuidado de não macaquear aquilo que se tinha feito na Rússia, porque nela se tinham cometido erros que era preciso evitar; e porque o que podia ser útil, necessário ou inevitável na Rússia, podia ser, ao contrário, evitável e nocivo noutro lugar. O conselho de Lênin é bom para os revolucionários de todos os países – compreendidos os revolucionários de Itália.

Notas:


[1] – A revelação desta força, no Congresso da Unione Anarchica Italiana (UAI), realizado em Bolonha de 1 a 4 de julho de 1911, foi uma surpresa para os próprios anarquistas. Existem agora dezenas de milhares de anarquistas na Itália, reunidos em algumas centenas de grupos. E deve-se notar que nem todos os anarquistas estão associados, nem todo se conhecem.… Além de seis ou sete periódicos semanais ou quinzenais, o anarquismo na Itália tem um jornal diário (Umanità Nova, Milão) que em um ano coletou mais de meio milhão de liras em assinaturas voluntárias, com um movimento financeiro superior a um milhão, e com uma circulação de cerca de 50.000 exemplares. Além disso, ao lado do movimento anarquista, há o movimento operário da Unione Sindacale Italiana (USI) que, embora completamente autônomo de qualquer política partidária, tem diretivas claramente libertárias, com líderes que são, em sua maioria, anarquistas militantes, e tem mais de 300.000 membros organizados.

[2] – O presente volume estava já impresso em mais de metade quando saiu pelas edições do Avanti! (Milão, 1920) um novo livro, “Estado e Revolução”, de Lênin, o qual reconhece a superficialidade de Plekhanov, que tratou o tema evitando completamente o que havia de mais atual e politicamente essencial nas diferenças entre socialismo e anarquia, e acompanhando a parte histórica com considerações filisteias e vulgares pretendendo demonstrar que um anarquista dificilmente se pode distinguir de um bandido (Lênin, “Stato e Rivoluzione” – pág. 118).

[3] – Falamos no “terrorismo” não somente no significado particular de política terrorista de governo, mas no sentido geral do uso da violência até aos extremos limites mais mortíferos, o que pode ser feito tanto por um governo por meio dos seus gendarmes, quanto diretamente pelo povo no curso de um tumulto e durante a revolução.

[4] – Neste sentido Giovanni Bovio dizia que a Revolução “comete piedosamente ações cruéis, e evita a femínea piedade; desculpa uma matança e condena os Soderini”. (G. Bovio, “Dottrina dei partiti in Europa”, Nápoles, 1886 – pág. 137).

domingo, 15 de agosto de 2021

As vicissitudes da luta de classes brasileira na pandemia capitalista

Elementos combativos do proletariado enfrentando a repressão em frente ao acesso da estação Higienópolis-Consolação durante protesto contra governo Bolsonaro na cidade de São Paulo (03.07.2021) | Foto: Suamy Beydoun/AGIF. Extraída de: link.

Esse texto é uma proposta de análise da situação contemporânea da luta de classes em suas especificidades brasileiras. Trata-se de uma contribuição parcial para uma discussão necessária sobre o desenvolvimento prático do movimento revolucionário de nossa classe (o proletariado). O objetivo é apresentar um panorama das tendências e forças em jogo em nosso contexto.

Nossa compreensão sobre esse momento histórico ocorre sob o prisma dos ensinamentos teórico-práticos das experiências de luta proletária. O desenvolvimento da teoria revolucionária é imanente ao movimento de emancipação da classe revolucionária. A construção da autonomia prática de nossa classe também depende da independência intelectual através da qual apreendemos as condições sociais nas quais se situa nossa luta.

Em nossa análise buscamos delimitar algumas generalidades da luta de classes contemporânea (levando em consideração a interconexão das lutas como realidade histórica mundial) para depois compreender a particularidade brasileira nesse processo.

1. Entre a revolta e a “contra-insurgência”:


Na edição internacional de 31 de julho de 2021, o The Economist (jornal reconhecido pela burguesia mundial) publicou uma matéria cujo título sugestivo é: “A pandemia exacerbou o descontentamento político existente” (The pandemic has exacerbated existing political discontent). O interessante desse informe são os dados apresentados sobre a situação antes e depois do Covid-19. Por exemplo, antes da pandemia “grandes movimentos de protesto aumentaram em todo o mundo, crescendo 2,5 vezes entre 2011 e 2019, de acordo com o Institute for Economics and Peace (IEP), um centro de estudos em Sydney”.

O IEP é o que conhecemos pelo nome de think tank: centros de pesquisa que fornecem informações apropriadas para os interesses estratégicos de administração do capitalismo. O fundador e presidente do IEP é Steve Killelea (que também é presidente executivo e fundador da Integrated Research). Esse empresário busca fornecer dados sobre as condições de manutenção da “paz social” para organismos como o Banco Mundial e as Nações Unidas. Portanto, trata-se de uma agência de informações úteis para a classe dominante organizar suas contra-insurgências e “golpes preventivos”.

A matéria do The Economist acrescenta que o: “IEP descobriu que, em 2020, a agitação civil aumentou 10%. Ele contou 5.000 casos de violência relacionados à pandemia em 158 países. Manifestações violentas são mais comuns do que em qualquer momento desde 2008”. O tom de alarme já denuncia por si só que a classe dominante tem consciência de que estamos passando por um período de intensificação dos conflitos provocados pela insustentabilidade do capitalismo. Também não é por acaso que o ponto de inflexão é 2008, uma vez que demarca o início da última crise econômica.

As minorias revolucionárias do proletariado também discutem essa situação histórica da luta de classes. É o caso de um texto dos Proletarios Internacionalistas que traduzimos e publicamos no blog: O contágio da revolta se espalha: lutas em todos os lugares! (28 de junho de 2020). Eles acertadamente denunciam que “a guerra contra o coronavírus é uma guerra contra o proletariado mundial”, uma vez que nossa classe havia emergido em uma série de combates de rua violentos ao redor do mundo entre 2018 e 2019 (Iraque, Equador, Líbano, Chile, França, etc.). Nós também havíamos afirmado, em abril do ano passado, que: “existe uma oposição artificialmente construída entre ‘salvar vidas’ ou ‘salvar a economia’. É uma falsa oposição, pois a diferença no discurso não altera a dinâmica sistêmica do capitalismo: sempre se trata da economia” (Communismo Libertário, 10 de abril de 2020). Do lado dos “apelos à vida” se exigia resignação do proletariado para que tivesse “fé na ciência”, bem como uma falsa esperança de que uma “boa administração” do Estado poderia “salvar suas vidas”, enquanto que os “apelos à economia” buscavam ofuscar a crise econômica que já se desenvolvia antes mesmo da pandemia, atribuindo a crise do próprio sistema às medidas de contenção social, omitindo que o aumento do desemprego, as precarizações laborais e o encarecimento do custo de vida já estavam em curso muito antes da pandemia (para uma análise da relação entre a crise econômica e o Sars-CoV-2 veja-se link). Vale destacar que nenhum governo, por mais progressista que fosse, deixou de sacrificar vidas proletárias para perpetuar a acumulação de capital, uma vez que o proletariado precisa ser constantemente explorado para gerar mais-valor. 

Podemos fazer projeções acerca do horizonte de lutas que estão porvir a partir de um ensinamento de nossa memória histórica: na medida em que as revoltas proletárias atingem certo grau de intensidade, não é apenas a combatividade nas ruas que pode aumentar, como também a repressão em todas as suas formas. As contrarrevoluções são organizadas antes mesmo das lutas revolucionárias eclodirem, embora sejam desde o início respostas reativas.

Nesse sentido, não podemos apenas reconhecer a disposição internacional de luta de nossa classe nas ondas de revoltas, como também a capacidade de repressão da classe dominante, pois a experiência histórica ensina que a ditadura do Capital é tanto mais brutal quanto mais repressão é necessária para conter as instabilidades que ameaçam comprometer a reprodução social do modo de produção. Portanto, precisamos reconhecer que esse momento histórico exige uma postura cada vez mais ofensiva da parte de nossa classe para enfrentar o sistema.

Mas o problema que nos defronta é o seguinte: a dispersão das forças de nossa classe (sem uma orientação revolucionária explícita em coordenação internacional) limita nossa capacidade de fazer frente ao reacionarismo capitalista que somente pode ser confrontado através de uma radicalização do nosso antagonismo prático. Nessas circunstâncias, não são apenas os projetos conservadores que são mobilizados para nos enquadrar, como também as propostas progressistas da social-democracia (como já discutimos amplamente no blog).

De todo o modo, é nítido que existe uma forte tendência de rebelião em nossa classe (e mesmo a classe dominante reconhece isso). Nesse caso, podemos dizer que há uma desconexão entre essa energia de luta e o programa revolucionário. Em alguma medida, essa situação reflete os efeitos do controle ideológico sobre nossa memória histórica que separou grande parte de nossa classe dos acúmulos de suas lutas precedentes (muitos fatores contribuem para isso, desde as visões de mundo ultra-individualistas do liberalismo, até a intelligentsia das ciências sociais acadêmicas que buscou consolidar um discurso de que “as lutas de classe não eram tão centrais como se pensava”). Mas é importante levar em consideração que esse controle é consequência da desarticulação prática de nossa classe e não o inverso (mesmo que tenha servido justamente para a mesma finalidade).

Devemos relembrar que as minorias revolucionárias do proletariado são compostas precisamente pelos elementos mais conectados com o desenvolvimento histórico do movimento comunista de superação do capitalismo. A tarefa atual dessas minorias é encontrar os meios de vincular os objetivos revolucionários invariáveis do comunismo anárquico com as revoltas contemporâneas de nossa classe, buscando estabelecer os fins e os meios da revolução social. Portanto, é necessário transpor o isolamento que separa essas minorias de sua própria coletividade de classe, algo que só conseguimos realizar através da comunidade de luta que emerge necessariamente dos conflitos em ato.

2. Incidentes de revolta no Brasil e a domesticação eleitoral em 2020:


Em novembro de 2020, publicamos um texto sobre “a inserção do contexto brasileiro na revolta internacional do proletariado”, analisando a situação da luta diante do colapso do sistema de energia no Amapá e o levante contra o Carrefour em ocasião do assassinato de Beto em condições análogas ao assassinato de George Floyd (caso que desencadeou a revolta nos EUA).

Denunciávamos o uso da pandemia como justificativa para a criminalização das manifestações. Por exemplo: o governador do Amapá, Waldez Góes (do PDT), emitiu um decreto no dia 17 de novembro para proibir a realização de protestos. Destacamos também que “haviam muitos que se preocuparam mais com a interrupção do processo eleitoral em curso nos municípios do que com a situação de penúria provocada pela crise”, ou seja: a ditadura democrática da burguesia, enquadrando o proletariado na institucionalidade eleitoral. Vale destacar que essa preocupação com as eleições municipais refletia também uma “guinada à esquerda” nos quadros da política burguesa, envolvendo um aumento de forças da coalizão social-democrata brasileira (sobre social-democracia, ver: link).

Em Análise de um protesto contra o Carrefour, conseguimos discernir as tendências gerais dessas incidências de luta do ano passado através de exemplos práticos. Considerando que esse registro tem o mérito de antecipar o cenário atual envolvendo o “Fora Bolsonaro”, vamos reproduzir a seguinte passagem:

o protesto estava dividido, não havia alinhamento e nem unidade. Uma ausência de coesão nas forças de uma manifestação nos deixa debilitados diante de uma eventual repressão e impede uma ação unitária efetiva. Não obstante, seria ingênuo demais imaginar que haveria unidade entre grupos com objetivos e métodos tão distintos.

Há quem chame de “unidade na ação” ou “unidade tática” essa “partilha” que é realizada num determinado ato em função da “pauta em comum”. No entanto, contestamos essa concepção pragmática e oportunista. Jamais haverá unidade com quem não acompanha a radicalização da nossa classe social, que dirá com organizações sociais-democratas que defendem vidraças e clamam para que não haja “confronto”. Não devemos colaborar em nada com quem entregaria nossos companheiros para a polícia na primeira oportunidade que tiver ao taxar nossa revolta de “vandalismo”.

Mas isso não significa que não devemos participar desses processos. Existem companheiros e companheiras que estão presentes nesses atos, além de pessoas de nossa classe que ainda hesitam diante das situações que lhes parecem confusas demais para adotar algum posicionamento mais rígido. Nossa presença em ações de massa é fundamental para minar a influência do oportunismo e da direção social-democrata (Communismo Libertário, 25 de novembro de 2020).

Qualquer semelhança com os fatos atuais do “Fora Bolsonaro” não é mera coincidência. A conduta invariável da social-democracia já se manifestava desde esse momento: a desmobilização da luta pela via eleitoral. Em Sorocaba, o PCdoB ameaçou entregar militantes “antifascistas” para a polícia ao mesmo tempo em que declarava voto no PSL (partido de extrema direita). Em Porto Alegre havia toda uma campanha entorno da eleição da Manuela D’Ávila (PCdoB) para a prefeitura. Não apenas o próprio PCdoB, mas todos os partidos que declararam “voto crítico” contra o “fascismo” já estavam alinhados naquela ocasião. Também foram as eleições o motivo de enquadramento, repressão e desmobilização do proletariado na rebelião do Amapá.

3. A gestão da morte e a exploração sem limites:


A emergência da Covid-19 gerada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2) é compreendida pela epidemiologia como um transbordamento zoonótico, mas as condições de ocorrência desse fenômeno envolvem mais do que simplesmente a transmissão do patógeno de outros animais para os seres humanos. As epidemias provocadas por zoonoses possuem uma história relacionada com a transformação social nas condições de vida. Nesse sentido, um fenômeno epidemiológico só é compreendido de forma abrangente a partir de uma análise do modo de produção na qual se assenta uma determinada formação social sob condições históricas definidas.

Esse posicionamento teórico se expressou em publicações de grupos revolucionários de nossa classe, como o texto do grupo comunista chinês Chaung sobre a produção social da pandemia na China (Contágio social) e a análise do grupo Barbaria sobre as “pandemias do capital”. Estamos de acordo com as análises desses grupos, portanto não vamos entrar em detalhes nesse ponto. Nesse sentido, podemos abordar diretamente a gestão da pandemia no território brasileiro e acrescentar a discussão sobre a mortificação do proletariado segundo a lei geral da acumulação capitalista.

A crítica da economia política demonstra uma composição do capital, baseada na relação entre o capital constante (meios de produção como propriedade privada dos capitalistas) e o capital variável (aplicação da força de trabalho comprada pelos capitalistas no mercado de trabalho). Essa composição se define “pela proporção entre, por um lado, a massa dos meios de produção utilizados e, por outro lado, o montante de trabalho exigido para seu emprego” (MARX, 1996, p. 245). Existe uma correlação entre essas proporções, onde a massa de meios de produção corresponde ao valor e o montante de trabalho exigido à técnica (ao nível de produtividade do trabalho). Como o capitalismo é baseado na valorização do valor, a composição orgânica de capital é sempre orientada segundo as exigências do valor.

Nesse caso, a acumulação (isto é, a reprodução ampliada do capital) é o movimento de aumento do capital constante que, proporcionalmente, exige emprego de força de trabalho (aumentando a quantidade de proletários). No entanto, o aumento da produtividade do trabalho torna possível produzir mais mercadorias em menos tempo com uma quantidade de trabalho vivo (pessoas empregadas) menor com relação ao trabalho morto (meios de produção produzidos). Ou seja: “uma massa sempre crescente de meios de produção, graças ao progresso da produtividade do trabalho social, pode ser colocada em movimento com um dispêndio progressivamente decrescente de força humana” (MARX, 1996, p. 274). Isso gera uma superpopulação relativa, um exército industrial de reserva (massa de proletários desempregados) que corresponde à desvalorização da força de trabalho. Trata-se de “uma lei populacional peculiar ao modo de produção capitalista” (MARX, 1996, p. 262).

Como o texto do grupo Barbaria já deu conta do movimento econômico geral desse processo, podemos nos concentrar na situação específica da população trabalhadora. Desde a crise de 2008, a superpopulação relativa do proletariado se tornou cada vez mais supérflua do que antes em termos de sua empregabilidade, na medida em que o capital produtivo está sendo absorvido pelo capital financeiro através de massivas injeções de liquidez, ou seja, crédito barato a base de emissão de finanças (o que chamam de “capital fictício”). Diante desse quadro, as exigências de valorização são acentuadas e o capitalismo entra num período destrutivo onde é necessário se desfazer deliberadamente de uma parte de sua composição para manter a “proporção adequada”. Uma vez que compreendemos que os capitalistas tratam todo o contingente de força de trabalho como mero capital variável, fica evidente qual parte da composição orgânica deve perecer no processo: é o proletariado que arca com os custos desse modo de produção. Em outras palavras: as vidas proletárias são literalmente sacrificadas para a manutenção da acumulação capitalista.

Da mesma forma que Marx falava sobre “uma lei populacional peculiar”, precisamos compreender que as variações nas taxas de mortalidade correspondem a pressões econômicas particulares do modo de produção. Quanto mais insustentável e esgotado se encontra o capitalismo, mais miséria, mortes e devastação será necessário para lhe reproduzir.

A gestão mortificante da pandemia no capitalismo brasileiro faz parte desse processo geral que apresentamos. O tão denunciado genocídio é realmente uma “política de morte”. No entanto, o que os ideólogos do capitalismo encobrem é que: a pandemia é o efeito multiplicador e não a causa estrutural. O covid-19 acelerou um processo intrínseco ao modo de produção da qual o governo Bolsonaro foi apenas o responsável por administrar e aplicar ao contexto brasileiro (embora seja nítido que essa gestão representa um aumento do sadismo da classe dominante no Brasil).

Estatísticas gerais brasileiras. Print do painel do Google.

As chamadas “atividades essenciais” durante a pandemia também expressam a “necessidade essencial” da manutenção da exploração de classe no capitalismo. E mesmo quando há contradições entre as regulamentações do governo e a regularidade da economia, uma coisa tende a se ajustar a outra. Tomemos como exemplo a mineração.

Como já afirmamos noutras ocasiões, a economia brasileira é orientada segundo o eixo das exportações de commodities (minério de ferro, soja, petróleo, etc.). Essa situação foi legada pelo superciclo de valorização dos bens primários entre 2000-2014. A estabilidade econômica de cada nação capitalista depende de um “crescimento econômico” constante que decorre do imperativo da acumulação de capital enquanto processo de valorização do valor. Agora vejamos as implicações disso.

Em março do ano passado, a Vale (empresa responsável por eventos como o rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho) se mantinha pleno funcionamento no país, apesar de haver um decreto federal (Decreto nº 10.282) que não incluía a mineração como “atividade essencial”. Diante de casos de trabalhadores da mineração contaminados, o governo interviu… a favor da exploração (como já era de se esperar). Em 28 de março, o governo federal tornou a mineração uma atividade essencial através da Portaria n° 135: “É considerada essencial a disponibilização dos insumos minerais necessários à cadeia produtiva das atividades essenciais”, assinava o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque. Um artigo de opinião do jornal O Globo (23.04.20) vinha com o título sugestivo: “Mineração é essencial por essência”.

Tautologias à parte, eis o que se entende por “essencial” no capitalismo: a continuação ininterrupta da exploração, destruindo vidas humanas e não-humanas no processo (bem como as próprias condições de vida, considerando os impactos ambientais devastadores da mineração).

Nessas condições, um não enfrentamento ativo de nossa classe apenas é conivente com esse processo. O modo de produção não cessou de aglomerar proletários nos seus locais de trabalho e, mesmo assim, ainda havia hesitação em sair as ruas para lutar contra a perpetuação dessas condições absurdas. Mas quando ocorrem manifestações contra essa tirania, os ideólogos cínicos costumam enquadrar o proletariado como responsável pelo aumento no número de casos e de mortes!  O discurso sobre “ficar em casa” nada mais era do que um eufemismo para: “morra sem perturbar a ordem social”.

No entanto, o ano de 2021 precede o ano eleitoral e os candidatos a gerir o Estado sentem a necessidade de canalizar todo e qualquer descontentamento a seu favor, portanto a social-democracia sentiu a necessidade de uma mudança de tática e discurso nesse período, na medida em que o governo Bolsonaro estava cada vez mais mergulhado em escândalos e visto como o responsável do genocídio capitalista. É o que veremos a seguir, conjuntamente com uma análise da situação das forças bolsonaristas.

4. A cooptação da revolta pelo “Fora Bolsonaro”:


Depois de muitos meses de passividade, os partidos e demais organizações formais do campo social-democrata se lançam desesperadamente para tentar canalizar a revolta proletária que ameaçava estourar no país. Nesse sentido, em vez de conter o movimento de insurgência generalizada que estamos presenciando a nível internacional, a social-democracia brasileira antecipa essa revolta e tenta cooptá-la para seu próprio programa eleitoral sob a palavra de ordem do “Fora Bolsonaro” (na qual também se manifesta uma bandeira igualmente institucional: o impeachment).

A explicação da mudança de postura é simples: considerando que a classe proletária está cada vez mais na penúria, acumulando desilusões e se rebelando em vários países, as classes de transição que se organizam junto à burguesia progressista no campo da social-democracia lançam mão de um estratagema que consiste em cooptar o descontentamento a seu favor.

Mas não podemos cair no equívoco de compreender o movimento atual como uma mera “massa de manobra” dos partidos eleitorais, nem tampouco devemos ver nisso o “despertar” da luta “contra o genocídio”. Em um caso se ignora que o campo social-democrata está cooptando a energia de uma revolta que não necessariamente se reduz aos objetivos e influência ideológica deles. Por outro lado, não podemos nos iludir com relação à dinâmica desse processo, deixando de lado a necessidade de ruptura com a social-democracia (o controle ideológico não se desfaz sem uma intervenção ativa de nossa parte).

O enquadramento da revolta contra as mortes, o aumento do custo de vida, o desemprego e precarização generalizada sob o slogan do “Fora Bolsonaro” corresponde, mais uma vez, à domesticação do proletariado através da via institucional burguesa (seja na remota e improvável possibilidade de impeachment, seja através do desgaste do governo enquanto se promove um candidato da social-democracia como “salvador da pátria”). Essa orientação que a social-democracia busca estabelecer vem acompanhada da ideia absurda de que os milhões de mortos na pandemia são mera consequência dá “má gestão” do Estado. Com essa ideologia eles obscurecem a própria natureza do sistema capitalista que está por trás do genocídio e contribuem para inocentar a classe dominante.

Enquanto os sociais-democratas buscam usurpar as forças do proletariado para lutar por questões institucionais, eles são obrigados a reprimir todo e qualquer foco de radicalidade que surja nesse processo. Além disso, precisam minimizar ao máximo as outras pautas que coincidem na atual “conjuntura” (por exemplo: fazer pouco caso do levante indígena e sua luta secular pela terra expressa nos protestos contra o “marco temporal” – a luta contra o PL 490). Se é necessário centralizar o movimento nas pautas institucionais, então a social-democracia precisa de uma aproximação e colaboração muito mais ampla com os órgãos do Estado, consequentemente: vão fazer acordos com a polícia militar, fortalecendo e legitimando mais ainda a repressão. Enquanto se reúnem com a polícia para organizar suas manifestações, vão acusar elementos combativos de nossa classe de “infiltrados”, inventando historietas de como “o quebra-quebra dá motivos para a repressão” (traduzindo: “vamos reforçar a repressão e colocar a culpa em vocês seus vândalos”).

Por outro lado, o bolsonarismo (a extrema direita brasileira, representando os interesses do agronegócio e do capital financeiro) é obrigado a recorrer cada vez mais aos quartéis para se manter no poder, uma vez que formam um partido militar com alguma influência em certos setores do exército brasileiro. Isso aumenta as possibilidades de golpe e acirra as disputas com o partido dos tribunais (o judiciário). No entanto, os responsáveis pelo ordenamento jurídico do Estado Democrático de Direito da burguesia não podem senão recorrer à letra morta da constituição, enquanto que o campo prático real das relações de força ocorre de forma extra-constitucional (através da mobilização de energias, sejam militares ou populares, para a realização dos interesses de classe em disputa).

A partir dessa situação, alguns grupos proletários passam a formar “blocos autônomos” (São Paulo, Vitória, Rio de Janeiro) para intervir nesse processo. No entanto, muitos ainda hesitam em denunciar o “Fora Bolsonaro” como slogan totalmente contrário aos nossos interesses de classe. É necessário que esses agrupamentos estejam engajados nos objetivos e métodos próprios de nossa classe, sem capitular para a “unidade” frentepopulista da social-democracia. Enquanto isso, as centrais sindicais continuam controlando burocraticamente a classe trabalhadora para não aderir ao movimento na forma de greve geral.

Na grande maioria das cidades brasileiras, os protestos do “Fora Bolsonaro” tiveram êxito em direcionar a revolta para a realização de procissões inofensivas pelas ruas sem perturbar a “paz social”. Mas mesmo em regiões onde a social-democracia possui o controle da situação, eles deixam fatos absurdos acontecerem. Foi o caso da manifestação de 29 de maio no Recife, onde duas pessoas perderam a visão após terem sido atingidas por balas de borracha do Batalhão de Choque. Não obstante, o governo aciona os “Agentes de Conciliação do Governo de Pernambuco” para o ato de 19 de junho, promovendo uma reconciliação para acalmar os ânimos (só faltou darem abraços e entregar flores aos policiais). Vale destacar que o atual governo do Estado de Pernambuco é composto por uma coligação do PSB com o PCdoB que são aliados dos organizadores das manifestações (PT/PSOL, UNE, CUT, MST, etc.).

Entretanto, a situação é mais complicada nos lugares onde elementos mais combativos de nossa classe buscam romper com as vias institucionais do movimento. Isso suscitou a reação repressora da social-democracia. Vejamos alguns casos que ilustram nossas proposições.

Em Vitória (ES), militantes independentes organizaram um bloco autônomo para atuar na mobilização. Na manifestação do dia 19 de junho eles convocaram nossa classe para romper com a orientação institucional que o movimento estava tomando e agir com mais combatividade. Durante o protesto, suas ações foram as seguintes: 1) expulsar militantes da extrema-direita que buscavam se infiltrar no ato; 2) ocupar totalmente a avenida do percurso (uma vez que os guardas municipais tentavam reservar uma faixa para os carros passarem); e 3) foram capazes de atingir certas propriedades no processo. Nesse sentido, estão agindo para não deixar a revolta se conformar aos limites da institucionalidade burguesa, impulsionando o movimento a sair do enquadramento jurídico de não incomodar a “ordem pública”. No entanto, as organizações que fazem parte da direção do “Fora Bolsonaro” começaram a hostilizar com eles, com casos de ameaça de entrega para a polícia.

Em São Paulo (SP) também se organizou um bloco autônomo e, também no dia 19 de junho, o MTST cumpriu seu conhecido papel de terceirização da repressão, agredindo manifestantes e entregando-os para a polícia (veja: link 1, link 2). Eles também ostracizaram o movimento indígena, impedindo que o bloco dos povos originários ocupasse a frente do ato com sua bandeira de luta contra o PL490 (veja: link).

No intervalo entre os protestos do movimento, o bolsonarismo entra em outro escândalo, dessa vez relacionado com as investigações da CPI da Covid-19. Trata-se da suspeita de irregularidades envolvendo a compra da Covaxin indiana e a relação com a intermediária Precisa Medicamentos. Surge um “superpedido de impeachment” com assinaturas de partidos de esquerda e direita. Os protestos do dia 3 de julho vão ser perpassados pelas implicações dessa participação de partidos de direita na oposição ao governo.

O bloco de Vitória continuou mobilizando mais esforços para o protesto do dia 3. No entanto, as organizações responsáveis pela direção do “Fora Bolsonaro” começaram a hostilizar e boicotar as ações, além de tentarem descobrir quem eram os membros do bloco. Uma das formas de boicote foi a diminuição do percurso da manifestação para um trajeto mínimo, buscando evitar mais rupturas com a ordem pública. Além disso, muitos membros da organização do “Fora Bolsonaro” ficaram vigiando pessoas caracterizadas como “black blocs” durante esse percurso. Essa intimidação não impediu a continuidade das ações de denúncia contra os organizadores do “Fora Bolsonaro”, embora tenha fortalecido a repressão de modo a impedir novas rupturas institucionais.

Em São Paulo também tivemos outros eventos importantes para a análise. No protesto desse dia não houve uma repressão explícita da social-democracia como antes, pois, em vez disso, buscaram criminalizar suas ações. O que se sucedeu? Dessa vez um grupo maior de pessoas participou de ataques à propriedade. Tanto as organizações de esquerda quanto a mídia burguesa se unificaram para afirmar que foram atos “no final da manifestação”, feitos por um grupo que supostamente estaria isolado do protesto como um todo. Assim, eles começaram a reproduzir o discurso sobre “infiltrados nas manifestações”. No entanto, as ações ocorreram durante o percurso regular da manifestação, empreendidas por um conjunto de pessoas que, embora fossem uma minoria, eram parte efetiva do processo. Após isso, ocorreu um enfrentamento com as forças policiais. Os manifestantes responderam aos spray de pimenta e bombas de efeito moral com pedras, pedaços de pau, gradis, rojões e mesmo suas bicicletas. A combatividade desse grupo fez a Polícia Militar recuar para o metrô na estação Higienópolis-Mackenzie. Os seguranças desse metrô, conhecidos por colaborar com a repressão e violentar comerciantes informais, buscaram apoiar os policiais e também foram enfrentados. Aqui fica evidente que a “correlação de forças” estava favorável aos manifestantes (ou seja: não há espaço para usar a “correlação de forças” como desculpa para anular a própria força). Não obstante, as forças repressivas conseguiram deter 4 pessoas, das quais uma delas ficou presa durante alguns dias. Inicialmente, apenas o “bloco autônomo” e o “bloco combativo” prestaram solidariedade ao manifestante preso, enquanto os demais foram coniventes com a repressão (as notas e declarações que vieram posteriormente foram apenas para manter a “boa aparência” de que supostamente lutam contra a criminalização).

Ainda na manifestação do dia 3 em São Paulo, militantes do Partido da Causa Operária (PCO) agrediram e expulsaram manifestantes do PSDB que buscavam se integrar ao ato. Essa ação é ambígua, uma vez que esse partido é conhecido por defender o petismo que está em explícita colaboração com o PSDB. Não obstante, com exceção de poucos grupos mais radicais (que compõem os blocos autônomo e combativo), todas as demais organizações da manifestação repudiaram essa ação dos militantes do PCO como uma forma de “ruptura” com a “unidade” do “Fora Bolsonaro” (ou seja: com a frente ampla do “superpedido de impeachment”). Ora, a “unidade democrática” é uma imposição que não admite rompimento, portanto as “divergências” precisam se transformar em meras aparências simbólicas e não ações efetivas (embora seja incoerente da parte do PCO pelo motivo que já citamos).

No dia seguinte à manifestação do dia 3, Reinaldo de Azevedo (articulista da direita) propõe uma mobilização pela “3ª Via”. Ele afirma que “a esmagadora maioria dos que se mobilizam sabe muito bem que as chances do impeachment são muito reduzidas” e, em seguida, diz que é preciso ir às ruas porque o que está em jogo é o lançamento de candidatos que disputam desde já a peleia eleitoral de 2022 e que a direita não poderia deixar a esquerda capitalizar todo o “antibolsonarismo” para si. A sinceridade da direita revela o que a esquerda capitalista não ousava dizer.

O PSTU também se manifesta sobre os rumos do movimento. A posição do partido é expressa num texto que fala algo sobre a “unidade de ação, que todo trotquista deveria conhecer”. Essa unidade se dá “em torno a um objetivo comum: derrubar esse governo, necessidade mais básica e urgente para a classe trabalhadora hoje e pré-condição para que paremos o genocídio em marcha e as ameaças autoritárias”. A partir dessa premissa, consideram “bem-vindos”: “todos os setores que defendem as liberdades democráticas e o fim deste genocídio”. Portanto, o PCO teria feito um serviço ao bolsonarismo ao hostilizar com membros do PSDB e demais setores da direita que são considerados “bem-vindos” nas manifestações entorno do objetivo comum da unidade de ação. Embora afirmem também que o PSTU continuará “mantendo toda a independência política”. Como é possível manter independência política ao colaborar com o PSDB? Isso é simples: a “independência” para o PSTU é poder participar e colaborar com a “frente ampla” sem ser julgado por isso. Mais adiante destaca que, infiltrados ou não, as ações visando danificar certos estabelecimentos como meio de expressar a indignação diante da situação tem apenas um resultado: elas vão “contra a massificação dos protestos, e ajudam a legitimar a repressão”. Chega-se a citar Trotsky para caracterizar a tática black bloc de “terrorismo individual”. Ora, a sintonia com o discurso reacionário é evidente: essa posição “anti-terrorista” fortalece o enquadramento das manifestações de raiva do proletariado na Lei Antiterrorismo. Ao final chegam na genial conclusão de criar organizações de autodefesa para compor a “frente ampla”: “a autodefesa diante de sabotagens e provocações de agentes infiltrados, quanto em relação à repressão do próprio Estado”. Em outras palavras: a formação de “comissões de segurança” responsáveis para proteger os membros da “frente ampla” (por exemplo: militantes do PSDB) e denunciar o “terrorismo individual” para as autoridades (entregar para a repressão).

Percebemos que a social-democracia começa a criar uma teoria da conspiração de que os “atos de vandalismo” teriam sido realizados por “infiltrados”, da polícia ou mesmo bolsonaristas. Trata-se de uma conhecida tática para justificar a repressão de black blocs inventando que são “financiados por alguém” ou que são “P2” (policial infiltrado), dentre outras coisas, mas que só tem um resultado: isolar os elementos combativos e entregá-los para a polícia (é notável a incoerência deles quando reclamam de policiais infiltrados recorrendo à própria polícia). Isso também explica o motivo pelo qual não prestaram solidariedade imediata com o militante preso sob falsas acusações (justamente porque querem a repressão efetiva).

No entanto, vamos considerar que a polícia está usando realmente a tática “P2”, como podemos avaliar essa ação? Desse modo: trata-se de uma forma de promover a hostilidade contra os elementos mais combativos, facilitando o isolamento deles para melhor reprimi-los (isso explica também porque danificaram material fotográfico de jornalistas que estavam presentes na ocasião de enfrentamento em que a polícia recuou para o metrô).

Gradualmente, a social-democracia busca esvaziar qualquer possibilidade de radicalidade nas ruas, fazendo todos se posicionar contra a ação autônoma do proletariado. Os “infiltrados” de hoje serão taxados amanhã (isto é, em 2022) de “isentões” que são coniventes com o “fascismo” e provavelmente serão mais perseguidos ainda pela esquerda capitalista. Tanto é assim que, em 21 de julho, eles organizam uma reunião com a PM de SP para definir os parâmetros da manifestação marcada para o dia 24 do mesmo mês.

A reunião com a PM de SP é um feito histórico da social-democracia brasileira contemporânea e merece destaque especial:

  • Quais organizações participaram da reunião? UNE, PCB, UMES-SP, CSP Conlutas, PCO, Bengalas Voadoras e PSDB. Onde? No 11º Batalhão da Polícia Militar de São Paulo (região metropolitana). Quais acordos foram firmados? 1) Que o ato iniciará às 15h, começará seu percurso às 16h e será imediatamente encerrado às 19h. Basicamente, as organizações assinaram um documento que garante que a manifestação vai iniciar, caminhar e terminar de acordo com os horários definidos por eles em conjunto com a PM. 2) Aqueles que participaram desse acordo não podem definir trajetos simultâneos e divergentes ao acordado, sob penalização de pagar uma multa de duzentos mil reais por pessoa jurídica, mil reais por pessoa física e cinco mil se forem flagrados desobedecendo a “ordem pública”. 3) É prescritivo que a manifestação deverá respeitar a livre circulação de pedestres, o tráfico de veículos, bens do patrimônio público e bens de uso comum. 4) Foi citada nessa reunião que podem haver concentrações descentralizadas para a mobilização, como por exemplo a concentração do Bloco Autônomo de São Paulo na Praça do Ciclista às 14:30. 5) O primeiro local da concentração será o MASP, o trajeto passará pela Praça do Ciclista e seguirá pela consolação, tendo como local de dispersão a Praça Rossevelt. 6) A CPTran irá definir o posicionamento dos carros de som na via. 7) O som dos caminhões deverá ser desligado às 19h. 8) Foi definido um ordenamento prévio dos caminhões e organizações (na ordem que segue): CUT; APEOESP; PCO; PDT; CAMINHÃO PRINCIPAL; UNE; CSP Conlutas; RESISTÊNCIA; ESQUERDA REFLEXIVA; BLOCO DEMOCRÁTICO; PCB; MTST (sem carro de som). 9) As mobilizacões terão um representante na sala de crise do Governo do Estado de São Paulo. 10) A Guarda Municipal fará a fiscalização de ambulantes. 11) Caso haja algum problema dentro do que foi acordado nessa reunião, o Ministério Público será notificado para tomar providências com relação aos envolvidos. 12) Todas as organizações presentes concordaram e finalizaram a reunião assinando a ata (veja-se: link).

O que o bolsonarismo não ousou fazer ainda já foi feito pela própria social-democracia: colocar a polícia no controle da organização das manifestações. Não obstante, o discurso social-democrata continua sendo o mesmo: são os “infiltrados” que “induzem” a repressão e “obliteram” o “movimento de massas” com seus atos de “terrorismo individual”. No entanto, foram justamente eles que infiltraram a PM no ato, inclusive permitiram a participação de policiais na organização dos pontos que destacamos acima do documento.

Nas manifestações do dia 24 de julho, as mesmas procissões foram realizadas na maioria das cidades, enquanto tivemos outros episódios de repressão da social-democracia. No Rio de Janeiro, membros do PCB fizeram uma corrente humana para expulsar e agredir um grupo de transexuais e sem-teto da ocupação da Casa Nem. Eles usaram como justificativa um acordo estabelecido na organização da manifestação (análogo ao de São Paulo), onde um trecho da rua havia sido determinado como “deles” (seria uma forma de “propriedade privada” dos “meios de manifestação”?).

Em São Paulo, a estátua do bandeirante Borba Gato, símbolo de extermínio indígena e escravização afrodescendente, foi incendiada (ação reivindicada pelo coletivo “Revolução Periférica”). Esse evento foi organizado para enfatizar a luta atual contra o PL 490 (que estava sendo ofuscada de propósito pelo “Fora Bolsonaro”).  Alguns ativistas acusados ​​de participar do grupo foram presos poucos dias depois, entre eles Paulo Galo, membro da organização dos Entregadores Antifascistas e sua esposa Géssica Barbosa. Barbosa foi solta no dia 30 de julho, mas Galo continuou preso sob acusação de ter atingido um símbolo da classe dominante brasileira.

Durante o percurso do protesto de São Paulo, na rua da Consolação, a Polícia Militar bloqueou a passagem e lançou bombas de gás contra os manifestantes. Em contrapartida, vidraças de uma agência bancária e um ponto de ônibus foram quebrados. A Secretaria da Segurança Pública encaminhou a seguinte nota que demonstra os resultados da reunião do dia 21:

A Polícia Militar do Estado de São Paulo montou um esquema especial de policiamento para as manifestações deste sábado (24), na Avenida Paulista. O efetivo foi reforçado com cerca de 800 policiais militares a fim de proteger as pessoas, preservar patrimônios e garantir a fluidez no trânsito, o direito de ir e vir, bem como o direito o de livre manifestação, que transcorreu de forma pacífica.

A concentração dos participantes teve início por volta das 15h e o policiamento, com equipes dos Comandos de Policiamento da Capital (CPC), de Trânsito (CPTran) e do Corpo de Bombeiros (CCB), além do 7º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep), 2º e 3º Batalhões de Polícia de Choque (BPChq) e do Regimento de Polícia Montada (RPMon), já estava a postos para proteger a todos. Toda a ação foi monitorada pelo sistema Olho de Águia da Polícia Militar, por meio de câmeras fixas, móveis e bodycams. O comando da corporação acompanhou toda ação do Centro de Operações da Polícia Militar (Copom).

Tudo ocorreu de forma segura, correta e pacífica, conforme planejado e acordado com os organizadores durante a reunião prévia realizada na última quarta-feira (21). Exceção feita a um grupo de vândalos que próximo ao final do ato, durante o deslocamento do grupo pela rua da Consolação, quebrou vidros de uma agência bancária, um ponto de ônibus e tentou depredar outro estabelecimento comercial, além de arremessar objetos contra os agentes, que intervieram e restabeleceram a ordem. Doze pessoas portando objetos, como soco inglês, fogos de artifício, drones, pedras e bastões, foram encaminhas ao 78º DP, onde as ocorrências foram registradas. Todas foram liberadas após serem ouvidas.

Em outras palavras: as práticas da Polícia Militar foram justificadas usando como legitimação o acordo com as organizações do “Fora Bolsonaro” que participaram da reunião do dia 21. Mas qual seria o discurso da social-democracia? Provavelmente o seguinte: “os atos de depredação de patrimônio público e privado estão induzindo a polícia a reprimir manifestantes”. Interessante a lógica inversa da social-democracia: se reunir com as forças repressivas não é colaborar com a repressão, agir com mais combatividade que é!

5. A ameaça reacionária do bolsonarismo


Desde o início das manifestações o bolsonarismo vem acusando todos de “esquerdismo” (mesmo as organizações de direita da “frente ampla”). A atitude bolsonarista, independentemente se ocorrem ou não ações de danificação ao patrimônio privado, sempre foi criminalizadora, portanto é somente a resignação e a recusa de enfrentamento efetivo que abrem terreno para seu reacionarismo. Nesse sentido, as formas mais combativas de ação são justamente os meios para fazer o bolsonarismo recuar e ficar acuado diante da revolta proletária. Mas a social-democracia, como já afirmamos, possui uma lógica inversa da ordem das coisas.

Não podemos subestimar a capacidade da classe dominante de manipular suas instituições a seu favor, mesmo contra suas próprias regras (golpe). Isso apenas demonstra que o campo prático sob o qual as ações políticas se desenvolvem está além das relações jurídicas (e as ações políticas, conforme sempre destacamos, envolvem os interesses econômicos). Na medida em que um movimento reacionário avança, as instituições acabam sendo rebocadas e o sistema judiciário (mesmo que tenha formado um partido com interesses em comum) só pode taxar isso ou aquilo de “inconstitucional”, mas não pode aplicar efetivamente uma coerção para impedir a inconstitucionalidade. Ora, o uso da força no exercício da coerção está justamente sob controle das forças repressivas e do exército, justamente lá onde o bolsonarismo tenta consolidar sua influência. Além disso, vale destacar que não é necessário ter uma maioria para dar um golpe, porque é precisamente a ausência dela que obriga uma imposição (e a social-democracia tem difundido justamente a concepção invertida disso). O decisivo são as forças e o uso furtivo delas (sob condições nas quais as respostas de enfrentamento estejam despreparadas – e a burguesia tem um partido serve para o despreparo: a social-democracia).

Controvérsias envolvendo o “voto impresso” são apenas desculpas para aumentar o atrito entre as facções burguesas, para que a coalizão golpista da classe dominante avance em sua pretensão. Segundo o general Walter Braga Netto: não haveria eleições em 2022, se não houvesse voto impresso e auditável. Bolsonaro repetiu publicamente a ameaça de Braga Netto no mesmo dia: “Ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições”. O dia da votação do voto impresso foi marcado por um desfile de tanques na Esplanada, realizado por setores do exército alinhados ao bolsonarismo. Mesmo depois que a comissão aprovou um parecer pelo arquivamento da proposta, Bolsonaro considerava que os 229 favoráveis na votação (foram 218 contrários e uma abstenção, mas eram necessários 308 votos para PEC ser aprovada) atestavam a favor do seu discurso de que as urnas não eram seguras para a realização das eleições de 2022. Isso demonstra a manutenção da estratégia em curso, além de que essas pautas funcionam para mobilizar uma imagem de desalinhamento com o “centrão”.

Como afirmamos na primeira seção: a classe dominante a nível internacional está preocupada com as rebeliões proletárias, portanto é muito provável que não haja retaliações (assim como não houve no Peru e na Bolívia, por exemplo). Os golpes, como ensina nossa memória histórica, exigem um certo preparo do campo reacionário (que ainda não temos uma análise definitiva) e uma desmobilização prévia do proletariado através da social-democracia (que demonstramos na seção anterior a essa).

Afiramos que o bolsonarismo é a expressão dos interesses da seguinte facção da classe dominante: o agronegócio e o capital financeiro. Agora vejamos como eles têm se posicionado com dois fatos recentes.

Um analista do banco Santander compartilhou com clientes um relatório de análise política (produzido pela CAC Consultoria Política) mencionando a possibilidade de golpe contra Lula para evitar a volta do PT ao governo. A conclusão do relatório é a seguinte:

Em suma, ninguém apoiará um golpe em favor de Bolsonaro, mas é possível especular sobre um golpe para evitar o retorno de Lula. Ele era inelegível até outro dia, por exemplo. Pode voltar a sê-lo (link).

Apesar de negligenciar Bolsonaro, admite possibilidade de golpe preventivo contra Lula, portanto dá aval ao grupo que for capaz de impor esse projeto (nesse caso, se houver ausência de um substituto, resta ao bolsonarismo essa tarefa). Agora vejamos o agronegócio.

O cantor bolsonarista, Sérgio Reis, participou de reuniões com empresários do agronegócio para organizar uma grande manifestação em Brasília, marcada para o dia 7 de setembro. A hashtag do movimento (#Dia07VaiSerGigante) estave entre os trending topics do Twitter. A ideia é parar 72h o tráfico no país (entre 4 e 6 de setembro) até o movimento se consolidar no dia 7.

A mobilização vai contar também com a articulação dos caminhoneiros. Entretanto, alguns caminhoneiros contestam tal processo: “Nós não estamos nesse movimento, pois não existe pauta para a categoria. O que estão fazendo é politicagem e nada mais fora disso”, disse Plínio Dias, presidente do Conselho Nacional do Transporte Rodoviário de Cargas. Compartilhando da mesma opinião de Dias, Joelmes Correia, do movimento GBN Pró-caminhoneiro autônomo independente, acrescenta: “No momento, quem tende a parar são mais as pessoas ligadas ao agronegócio” (declarações extraídas da notícia da Folha de São Paulo).

Diante dessas condições, nosso compromisso de classe é aplicar nossas forças na organização autônoma de uma revolta proletária que realize a ruptura com a social-democracia que busca nos desarmar e, ao mesmo tempo, enfrente o reacionarismo de forma efetiva. Precisamos nos colocar na “frente dos bois” que ousam mugir suas demandas em tons golpistas enquanto somos massacrados pelo jugo do capitalismo e suas pandemias. Dado que a iniciativa é fundamental, é necessário construir esse processo antes de setembro. E temos muitas pautas imediatas para dar o ponta pé inicial, mas gostaríamos de destacar uma recente que é extremamente prejudicial para nossa classe: a aprovação de uma nova reforma trabalhista. O texto aprovado na Câmera é absurdo, mas vamos às linhas gerais:

  • criação de uma modalidade de trabalho sem direito a férias, 13º salário e FGTS;
  • criação de outra modalidade de trabalho, sem carteira assinada (Requip) e sem direitos trabalhistas e previdenciários; trabalhador recebe uma bolsa e vale-transporte;
  • criação de programa de incentivo ao primeiro emprego (Priore) para jovens e de estímulo à contratação de maiores de 55 anos desempregados há mais de 12 meses; empregado recebe um bônus no salário, mas seu FGTS é menor;
  • redução do pagamento de horas extras para algumas categorias profissionais, como bancários, jornalistas e operadores de telemarketing;
  • aumento do limite da jornada de trabalho de mineiros;
  • restrição do acesso à Justiça gratuita em geral, não apenas na esfera trabalhista;
  • proibição de juízes de anular pontos de acordos extrajudiciais firmados entre empresas e empregados;
  • torna ainda mais difícil a fiscalização trabalhista, inclusive para casos de trabalho análogo ao escravo (veja mais em: link);

A situação que se apresenta é extrema e exige uma resposta urgente de nossa classe, onde precisamos de uma radicalização que deveria estar ocorrendo desde muito antes (não fosse a deliberada política de cooptação burguesa realizada pela social-democracia). Mesmo assim, muitos ainda querem nos iludir com discursos  sobre “não haver correlação de forças” e que “primeiro temos que fazer o trabalho de base”, etc. Mas a realidade prática das revoltas atuais de nossa classe demonstram que bastava um aumento no preço dos combustíveis no Equador ou um imposto no WhatsApp no Líbano para que uma rebelião tomasse conta desses países. A vida proletária está sendo levada ao esgotamento e isso já nos faz acordar todo dia com a necessidade imperativa de destruir esse modo de produção que só produz morte, exploração e sofrimento. Nesse sentido, é imperativo que lutemos pela construção do modo de produção comunista sob as ruínas do capitalismo.

Observação final: considerando o tamanho relativamente extenso dessa publicação, não reservaremos para outra ocasião proposições mais práticas acerca de nossa atuação nesse processo. Nesse sentido, apesar de haver alguns indicativos e discussões teóricas, consideramos essa publicação mais explicativa do que propositiva.

Referências:


MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Vol 1. Tomo II. São Paulo: Nova Cultural, 1996.