domingo, 28 de abril de 2019

A Tragédia Russa: uma revisão e uma perspectiva ou panorama (1922) – Alexander Berkman

Texto extraído da Revista Verve, nº 12, outubro de 2007. Núcleo de Sociabilidade Libertária Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP. São Paulo. p. 81-115. Tradução: Beatriz Carneiro.


PREFÁCIO



Nós vivemos em uma época na qual duas civilizações estão lutando pela existência. A sociedade de hoje atraca-se mortalmente com o Novo Ideal. A Revolução Russa foi apenas o primeiro combate sério das duas forças, cuja luta deve continuar até o triunfo final de um ou de outro. A Revolução Russa falhou – falhou em seu propósito último. Mas esta falha é temporária. No que se refere a revolucionar o pensamento e sentimento das massas da Rússia e do mundo, a minar os conceitos fundamentais da sociedade existente e a acender a tocha da fé e da esperança pelos dias melhores, a Revolução Russa tem sido de incalculável valor educativo e inspirador para a humanidade. Embora a Revolução Russa tenha falhado em atingir sua verdadeira meta, permanecerá para sempre um magnífico evento histórico. E, mesmo assim – tremenda como é – não passa de um incidente na gigantesca guerra entre dois mundos. A guerra continua e continuará. Nesta guerra o capitalismo já está enfrentando seu declínio. Ainda mais com o capitalismo, o governo político centralizado, o Estado, está também em declínio – e esta é a lição mais significativa da Revolução Russa como eu a considero. Este panfleto foi recentemente publicado em holandês. Daí, um crítico da Holanda me escreveu: “Você falhou em mostrar a lição plena da Revolução Russa.” Eu concordo com ele. Serão necessários diversos volumes para fornecer a “lição plena” de um evento tão tremendo como a Revolução Russa. Meu propósito é mais modesto. Será necessário o esforço de muitas mentes para esclarecer ao mundo o significado da Revolução Russa, a potencialidade dos enlaces de ideais e ideias envolvidas nisso. Eu apenas quero contribuir com minha pequena parte. Eu decidira incorporar o resultado de meus dois anos de estudo e observação na Rússia em uma série de panfletos sob o título geral de Série da Revolução Russa. A Série englobará uma revisão crítica das fases mais importantes da revolução conjuntamente com uma análise construtiva de algumas das lições vitais que dela foram extraídas.

Se a Série aqui presente for capaz de tornar as coisas mais claras em relação à Rússia, se ajudar os trabalhadores a enxergar a trilha da libertação um pouco mais reta, então considerarei meu esforço inteiramente recompensado.

Maio de 1922.


I



É extremamente surpreendente como, fora da Rússia, pouco é conhecido acerca da situação e das condições atuais preponderantes no país. Mesmo pessoas inteligentes, especialmente entre os trabalhadores, têm as mais confusas ideias sobre o caráter da Revolução Russa, seu desenvolvimento e seu status político e socioeconômico atual. Compreender a Rússia e o que tem acontecido lá desde 1917 tem sido por demais inadequado, para dizer o mínimo. Embora a grande maioria das pessoas que se coloca contra ou a favor da revolução, fala ainda contra ou a favor dos bolchevistas, em quase lugar algum, porém, há clareza e conhecimento concreto em relação aos assuntos vitais envolvidos. Genericamente falando, os pontos de vista expressados – amigáveis ou não – estão baseados em informação incompleta e não confiável, frequentemente falsa, sobre a Revolução Russa, sua história e a fase atual do regime bolchevista. Mas, em geral, não apenas as opiniões contempladas fundamentaram-se em dados errados ou insuficientes; com frequência são profundamente avivadas – ou melhor, distorcidas –, por sentimentos partidários, preconceitos pessoais e interesses de classe. No conjunto, é a completa ignorância que caracteriza de uma forma ou de outra, a atitude da grande maioria do povo em relação à Rússia e seus eventos.

E, apesar disso, entender a situação russa é um conhecimento dos mais vitais ao progresso e ao bem-estar futuro do mundo. De uma correta avaliação da Revolução Russa, do papel dos bolchevistas e dos outros partidos e movimentos políticos nela, e das causas que acarretaram a situação atual – em suma, de uma concepção acabada de todo problema – dependem quais lições podemos tirar dos grandes eventos históricos de 1917. Essas lições irão, para o bem ou para o mal, afetar as opiniões e as atividades de grandes massas da humanidade. Em outras palavras, o advento de mudanças sociais – e o trabalho e esforço revolucionários que as precedem e as acompanham – serão profunda e essencialmente influenciadas pela compreensão popular do que realmente aconteceu na Rússia. É geralmente admitido que a Revolução Russa é o mais importante evento histórico desde a Grande Revolução Francesa. Eu até estou inclinado a pensar que, da perspectiva de suas consequências potenciais, a revolução de 1917 é o mais significativo fato em toda história conhecida da humanidade. É a única revolução que almejou de fato uma revolução social mundial, é a única que realmente aboliu o sistema capitalista na escala ampla de um país e fundamentalmente alterou todas relações sociais existentes dentro dele. Um evento de tal magnitude histórica e humana não pode ser julgado sob um estreito ponto de vista partidário. Nenhum sentimento subjetivo nem preconceito devem ser conscientemente permitidos para enfeitar as atitudes de alguém. Acima de tudo, cada fase da revolução deve ser cuidadosamente estudada, sem viés ou ideia preconcebida, e todos os fatos considerados desapaixonadamente, para nos permitir formar uma opinião justa e adequada. Eu creio – estou firmemente convicto – que, deixando de lado qualquer outra consideração, apenas a verdade total sobre a Rússia pode ser de extremo auxílio.

Infelizmente, como regra geral, tal não tem sido o caso até agora. É natural que a Revolução Russa desperte, de um lado, os mais amargos antagonismos, e de outro, a mais apaixonada defesa. Mas o partidarismo, em qualquer campo, não é um juiz objetivo. Falando francamente, as mentiras mais atrozes tanto quanto ridículos contos de fadas têm sido espalhados sobre a Rússia e continuam a ser espalhados até hoje. Naturalmente não deve surpreender que os inimigos da Revolução Russa, os inimigos da revolução enquanto tal, os reacionários e seus instrumentos, tenham inundado o mundo com as mais malévolas falsificações dos eventos ocorridos na Rússia. Sobre eles e sua “informação” não preciso gastar nenhuma palavra a mais: aos olhos das pessoas inteligentes e honestas, eles já foram desacreditados há muito tempo. Mas, triste dizer, que são os pretensos amigos da Rússia e da Revolução Russa que têm feito o maior estrago à revolução, ao povo russo e aos melhores interesses das massas trabalhadoras do mundo em virtude do seu exercício de um zelo sem o feitio da verdade. Alguns inconscientemente, devido à ignorância, mas a maioria deles consciente e intencionalmente tem mentido de modo persistente e vivo, desafiando todos os fatos, com a noção errada de que estão “ajudando a Revolução”. Razões referentes à “conveniência política”, à “diplomacia bolchevista”, à alegada “necessidade do momento” e, frequentemente, motivos de considerações menos altruístas os têm movido. A única consideração legítima de homens decentes, de amigos reais da Revolução Russa e da emancipação humana, – assim como a de uma história confiável – a consideração pela verdade, eles têm ignorado completamente. Há honrosas exceções, infelizmente muito poucas: suas vozes têm sempre se perdido na selvageria do equívoco, da falsidade e do exagero. Mas a maioria daqueles que visitaram a Rússia simplesmente mentiram sobre as condições naquele país,  repito isso deliberadamente. Alguns mentiram, pois não tiveram conhecimento de nada melhor, não tiveram o tempo nem a oportunidade de estudar a situação, de aprender os fatos. Fizeram excursões ligeiras, passando dez dias ou poucas semanas em Petrogrado ou Moscou, sem familiaridade com a língua, nem por um momento entrando em contato com a vida real das pessoas, ouvindo e vendo apenas o que lhes era dito ou mostrado pelos prestativos oficiais que os acompanhavam em cada passo. Em muitos casos estes “estudantes” da Revolução eram verdadeiros inocentes no exterior, ingênuos a ponto do ridículo. Estavam tão sem familiaridade com o ambiente, que na maioria dos casos, não tinham nem mesmo a mais débil suspeita que seu afável “intérprete”, tão dedicado em “mostrar e explicar tudo”, era na realidade um membro dos “homens de confiança” especialmente designado para “guiar” visitantes de destaque. Muitos desses visitantes escreveram e falaram copiosamente sobre a Revolução Russa, com pouco conhecimento e muito menos compreensão. Houve outros que tiveram tempo e oportunidade, e alguns deles realmente tentaram estudar a situação seriamente, e não com a mera intenção de obter adequada “fonte” jornalística. Durante os dois anos de minha estadia na Rússia, eu tive oportunidade de entrar em contato pessoal com quase todos visitantes estrangeiros, com as missões sindicais, e com praticamente cada delegado da Europa, Ásia, América e Austrália que se reuniu em Moscou para comparecer ao Congresso da Internacional Comunista e ao Congresso Sindical Revolucionário ocorrido lá ano passado, 1921. A maioria deles pôde ver e entender o que estava acontecendo no país. Mas, de fato, foi uma rara exceção alguém que tivesse visão e coragem suficientes para se dar conta que apenas a verdade integral poderia servir aos melhores interesses da situação. Como regra geral, entretanto, os diversos visitantes da Rússia foram de modo sistemático extremamente descuidados com a verdade no momento em que começaram a “iluminar” o mundo. Suas afirmações resvalaram, frequentemente, a uma idiotice criminosa. Pense em George Lansbury (editor do “Daily Herald” de Londres), por exemplo, afirmando que os ideais de fraternidade, igualdade e amor pregados por Jesus Nazareno estavam sendo realizados na Rússia e isso ao mesmo tempo em que Lênin estava lamentando a “necessidade do comunismo militar imposto a nós pela intervenção e bloqueio dos Aliados”. Considere-se a “igualdade” que dividiu a população da Rússia em 36 categorias, de acordo com a ração e salários recebidos. Outro inglês, um conhecido escritor, enfaticamente declarou que tudo estaria bem na Rússia, não fosse pela interferência externa, enquanto que distritos inteiros do Leste, Sul e na Sibéria, alguns mais extensos que a França, estavam em rebelião armada contra os Bolchevistas e sua política agrária. Outros literatos estavam glorificando o “sistema soviético livre” da Rússia, enquanto 18 mil de seus filhos tombavam mortos em Kronstadt na luta para alcançar sovietes livres. Mas para que ampliar esta prostituição literária? O leitor facilmente se recorda da legião de Ananias[1] que tem arduamente negado a existência  das coisas que Lênin tentou explicar como inevitáveis. Eu sei que muitos delegados e outros acreditaram que a situação real russa, se conhecida no exterior, poderia fortalecer a mão dos reacionários e intervencionistas. Forjar uma crença, entretanto, não exigiu pintar a Rússia como um verdadeiro Eldorado proletário. Mas a época em que poderia ter sido considerado desaconselhável falar plenamente da situação russa, passou há tempos. Este período terminou, foi relegado aos arquivos da história pela introdução da “Nova Política Econômica”. Agora chegou a época de aprender a lição plena da revolução e as causas do seu desastre. Para que possamos evitar os erros cometidos (Lênin disse francamente que são muitos), para que sejamos capazes de adotar seus melhores traços, devemos conhecer toda verdade sobre a Rússia. É por isso que considero as atividades de certos proletários como categoricamente criminosas e traidoras dos verdadeiros interesses dos trabalhadores do mundo. Eu me refiro aos homens e mulheres, alguns deles delegados do Congresso organizado em Moscou em 1921, que ainda continuam a propagar as “amigáveis” mentiras sobre a Rússia, iludem com quadros róseos acerca das condições de trabalho naquele país e buscam induzir, mesmo, os trabalhadores de outras terras a migrarem para a Rússia. Eles estão fortalecendo a espantosa confusão já existente na mente popular, enganando o proletariado com falsos relatos sobre o presente e promessas vãs para o futuro próximo. Estão perpetuando a perigosa ilusão de que a revolução está viva e continuamente ativa na Rússia. É uma tática por demais desprezível. Claro que é fácil para um líder trabalhador norte-americano, atuando para elementos radicais, escrever ardorosos relatos sobre a condição dos trabalhadores russos, enquanto está sendo entretido no Luxe, o mais lucrativo hotel de Moscou, às expensas do Estado. Certamente ele pode insistir que “dinheiro não é necessário”. Afinal ele não recebe livre de encargos tudo que seu coração deseja? Ou por que não deveria o presidente dos sindicatos dos agulheteiros não afirmar que os trabalhadores russos desfrutam de plena liberdade da palavra? Ele é cauteloso em não mencionar que apenas os comunistas e os elementos de confiança foram permitidos dentro do âmbito de conversa enquanto que o distinto visitante estava “investigando” as condições das fábricas. Que a história seja misericordiosa com eles.


II



Para que o leitor possa formar uma justa estimativa acerca do que direi a seguir, penso ser necessário esboçar, resumidamente, minha atitude mental no momento de minha chegada na Rússia. Foi há dois anos atrás. Um governo democrático, “o mais livre na terra”, deportou-me junto com outros 248 políticos, do país onde vivi por mais de trinta anos. Eu havia protestado enfaticamente contra o erro moral perpetrado por uma alegada democracia em utilizar métodos que condenou veementemente no caso da autocracia czarista. Eu condenei a deportação de políticos como um ultraje aos mais fundamentais direitos do homem, e eu lutei contra isso como uma questão de princípio. Mas meu coração estava radiante. Já na explosão da revolução de fevereiro eu almejara ir à Rússia. Mas o caso Mooney[2] me deteve: eu não estava inclinado a abandonar a luta. Então, eu mesmo fui feito prisioneiro pelos Estados Unidos e penalizado por minha oposição à carnificina mundial. Durante dois anos, a hospitalidade forçada da penitenciária federal de Atlanta, Geórgia, impediu minha partida. Seguiu-se a deportação. Meu coração estava radiante, eu disse isso? Fracas palavras para expressar a alegria apaixonada que me inundou quando da certeza da visita à Rússia! Eu iria para o país que varreu o czarismo para fora do mapa, eu estava preste a contemplar a terra da revolução social! Poderia haver maior alegria a alguém que, desde a tenra infância, fora um rebelde contra a tirania, cujos sonhos incertos da juventude haviam previsto fraternidade e felicidade humanas, cuja vida inteira estava devotada à revolução social? A viagem foi um alento. Embora nós fossemos prisioneiros, tratados com severidade militar e o “Buford” uma velha banheira furada ameaçando repetidamente nossas vidas durante o mês da Odisseia, entretanto, o pensamento de que estávamos a caminho da terra da promissão revolucionária mantinha todo grupo dos deportados com bom humor e uma agitação em virtude da expectativa do grande dia que estava para chegar em breve. Longa, longa foi a viagem, vergonhosas as condições às quais fomos forçados a enfrentar: amontoados abaixo do convés, vivendo em constante umidade e ar viciado, alimentados pelas mais fracas rações. Nossa paciência estava quase exaurida, não obstante nossa coragem persistente e, por fim, alcançamos nosso destino. Era 19 de Janeiro de 1920, quando tocamos o solo da Rússia Soviética. Um sentimento de solenidade, de veneração, quase me aniquilou. Assim devem ter sentido meus piedosos antepassados entrando pela primeira vez no Santo dos Santos do Templo de Jerusalém[3]. Um forte impulso me fez ajoelhar e beijar o chão – o chão consagrado pelo sangue vivo de gerações de sofredores e mártires, consagrado outra vez pelos revolucionários triunfantes do meu tempo. Nunca antes, nem mesmo quando fui solto do horrível pesadelo de 14 anos de prisão, estive eu tão profundamente emocionado, ansiando por abraçar a humanidade, por depositar meu coração a seus pés, por dar minha vida mil vezes, se fosse possível, a serviço da Revolução Social. Foi o dia mais sublime da minha vida. Fomos recebidos de braços abertos. O hino revolucionário tocado pela Banda Militar vermelha nos recepcionou entusiasticamente enquanto cruzávamos a fronteira russa. Os “vivas” dos defensores da Revolução com seus gorros vermelhos ecoaram através das florestas, atravessando as distâncias como ameaças trovejantes. Com a cabeça inclinada em reverência eu permaneci na presença dos símbolos visíveis da Revolução Triunfante. Com cabeça e coração reverentes. Meu espírito estava orgulhoso, sossegado, porém, com a consciência da genuína Revolução Social. Quanta profundidade, quanta grandeza residiam nisto, que possibilidades incalculáveis estendiam-se em seu panorama! Eu ouvi a tranquila voz de minha alma: “Que tua vida pregressa possa ter contribuído, ainda que pouco, para a realização do grande ideal humano, para isso, para seu bem-sucedido começo”. Conscientizei-me da grande felicidade oferecida a mim: fazer, trabalhar, ajudar com cada fibra do meu ser a completa expressão revolucionária deste povo maravilhoso. Eles lutaram e ganharam. Eles proclamaram a Revolução Social. Isso significou que a opressão foi encerrada, que a submissão e escravidão, as maldições gêmeas dos homens, foram abolidas. A esperança de gerações, de épocas, finalmente foi realizada, a justiça foi estabelecida sobre a terra, ao menos sobre a parte em que está a Rússia. Mas os anos de Guerra e revolução exauriram o país. Há sofrimentos e fome, e muita necessidade de corações firmes e mãos ansiosas por fazer e ajudar. Meu coração canta por alegria. Ah! Eu me doarei inteiro, completamente, ao serviço do povo; eu me rejuvenescerei e voltarei a ser jovem novamente a cada esforço maior, na mais dura tarefa, para o auxílio da prosperidade comum. Minha própria vida eu consagrarei à realização da maior esperança do mundo, a Revolução Social. Logo no primeiro posto do Exército russo, uma assembleia foi preparada para nos recepcionar. O amplo salão, lotado de soldados e marinheiros, as mulheres uniformizadas no palanque dos oradores, os discursos, toda atmosfera palpitando com a Revolução em ação – isso tudo deixou uma profunda impressão em mim. Estimulado a dizer algo, eu agradeci aos camaradas russos pela calorosa recepção de boas vindas aos deportados americanos, congratulei-os por sua luta heroica e expressei a minha grande alegria em estar junto a eles. E então todo meu pensamento e sentimentos fundiram-se em uma só sentença: “Queridos camaradas,” – eu disse – “viemos aqui não para ensinar, mas para aprender, aprender e ajudar”. Desse modo eu entrei na Rússia. Desse modo sentiam meus colegas deportados. Eu permaneci dois anos. O que aprendi, aprendi gradualmente, a cada dia, em várias partes do país. Eu tive oportunidades excepcionais de observação e estudo. Eu fiquei perto dos líderes do Partido Comunista, associei-me com os mais ativos homens e mulheres, participei de seus trabalhos, e viajei amplamente através do país nas mais favoráveis condições para contato pessoal com a vida dos trabalhadores e camponeses. A princípio não pude acreditar que o que eu via era real. Não podia acreditar nos meus olhos, nos meus ouvidos, no meu julgamento. Tal qual aqueles espelhos deformantes que fazem você parecer horrivelmente monstruoso, assim a Rússia parecia refletir a Revolução com uma assustadora perversão. Era uma caricatura pavorosa da vida nova, da esperança do mundo. Eu não entrarei agora em descrições detalhadas das minhas primeiras impressões, das minhas investigações e do longo processo que desembocou na minha convicção final. Eu lutei sem descanso, amargamente, contra mim mesmo. Durante dois anos eu lutei. O mais difícil é convencer alguém de algo que ele não quer ser convencido. E eu admito, eu não quis ser convencido que a revolução na Rússia se tornara uma miragem, uma perigosa decepção. Por muito tempo eu lutei duramente contra esta convicção. No entanto, as provas estavam se acumulando e cada dia trazia mais destrutivos testemunhos. Contra minha vontade, contra minhas esperanças, contra o fogo sagrado da admiração e entusiasmo pela Rússia que queimava dentro de mim, eu fui convencido que a Revolução Russa fora levada à morte. De que modo e por quem?


III



Tem sido dito por alguns escritores que a ascensão bolchevista ao poder decorreu de um coup de main[4], e a desconfiança fora expressa referindo-se à natureza social da transformação de Outubro. Nada poderia estar mais longe da verdade. Enquanto realidade histórica, o grande evento conhecido como Revolução de Outubro foi no sentido mais profundo, uma revolução social. Caracterizou-se por todos princípios de uma tal fundamental mudança. Foi efetuada, não por algum partido político, mas pelo próprio povo, de um modo que transformou radicalmente todas relações socioeconômicas e políticas existentes até então. Mas ela não aconteceu em outubro. Esse mês testemunhou apenas a “sanção legal” formal dos eventos revolucionários que a precederam. Por semanas e meses antes disso, a real Revolução estava marchando por toda Rússia: o proletariado urbano estava tomando posse das lojas e fábricas, enquanto os camponeses expropriavam as grandes propriedades e faziam a terra voltar para seu uso próprio. Ao mesmo tempo, delegações de trabalhadores, comissões de camponeses e sovietes brotavam por todo país e aí começou a transferência de poder do governo provisório aos sovietes. Isto teve lugar, primeiro em Petrogrado, a seguir em Moscou e rapidamente se espalhou pela região do Volga, do distrito de Ural e para a Sibéria. A vontade popular encontrou expressão no slogan “Todo poder aos Sovietes”, e continuou varrendo pela largura e extensão do país. O povo levantou-se, a Revolução estava acontecendo. O princípio central da situação foi captado pela proclamação do Congresso dos Sovietes do Norte: “O governo provisório de Kerensky deve ir; os Sovietes são o único poder!” Era 10 de Outubro. Praticamente todo poder efetivo já estava com os Sovietes. Em Julho a revolta de Petrogrado contra Kerensky fora esmagada, mas em agosto a influência dos trabalhadores revolucionários e da guarnição era suficientemente forte para permitir que eles obstruíssem o ataque planejado por Korniloff. O Soviete de Petrogrado ganhava força dia após dia. Em 16 de outubro, organizou seu próprio Comitê Revolucionário Militar, um ato de desafio e de aberta provocação ao governo. O Soviete, por intermédio do seu Comitê Revolucionário Militar, preparou-se para defender Petrogrado contra o governo de coalizão de Kerensky e o possível ataque do General Kaledin e seus cossacos contrarrevolucionários. Em 22 de outubro, toda população proletária de Petrogrado, com o apoio solidário das tropas, manifestou-se por toda cidade contra o governo e a favor de Todo poder aos Sovietes. O Congresso dos Sovietes de todas as Rússias estava para abrir em 25 de outubro. O governo provisório, sabendo do iminente perigo à própria existência, apelou para uma ação drástica. Em 23 de outubro, o soviete de Petrogrado ordenou ao Gabinete de Kerensky a renunciar dentro de 48 horas. Levado ao desespero, Kerensky encarregou-se de suprimir a imprensa da revolução, prender os mais proeminentes revolucionários de Petrogrado, e remover os ativos Comissariados do Soviete. O governo contava com as “fiéis” tropas e a jovem nata dos estudantes das escolas militares. Mas era tarde demais: a tentativa de segurar o governo falhou. Durante a noite de 24 e 25 de outubro (6 e 7 de novembro) o governo de Kerensky foi dissolvido – pacificamente, sem derramamento de sangue – e a supremacia exclusiva dos sovietes foi estabelecida. O Partido Comunista ocupou o poder. Foi o auge político da Revolução Russa.


IV



Vários fatores contribuíram para o sucesso da revolução. Para começar, ela não encontrou nenhuma oposição ativa: a burguesia russa era desorganizada e fraca e sem disposição militante. Mas as principais razões consistem no envolvente entusiasmo com o qual os slogans revolucionários atiçaram todo povo. “Fora com a guerra!”, “Paz Já!”, “A terra para o camponês, a fábrica para o operário!”, “Todo poder aos Sovietes!”  esses eram expressão do grito da alma apaixonada e das necessidades mais profundas das grandes massas. Nenhum poder poderia conter seu maravilhoso efeito. Outro fator muito potente foi a união de vários elementos revolucionários em oposição ao governo de Kerensky. Bolchevistas, anarquistas, o Partido Socialista Revolucionário de esquerda, os numerosos políticos livres da prisão e do exílio siberiano e milhares de emigrantes revolucionários retornando, todos trabalharam durante os meses de fevereiro a outubro em direção a uma meta comum. Mas se “foi fácil começar” a revolução, como Lênin havia dito em um dos seus discursos, fomentá-la, levá-la ao termo de sua lógica conclusão foi outro e mais difícil assunto. Duas condições eram essenciais para tal consumação: união contínua de todas as forças revolucionárias e a aplicação da iniciativa voluntária do país e das melhores energias para o importante trabalho da nova construção social. Sempre deve ser lembrado, e bem lembrado, que a revolução não implica apenas destruição. Implica destruição mais construção, com grande ênfase no mais. Infelizmente, os métodos e princípios bolchevistas logo foram levados a se mostrarem um obstáculo, um atraso em relação às atividades criativas das massas. Os bolchevistas são marxistas. Embora nos dias de outubro eles tivessem aceitado e proclamado lemas anarquistas (ação direta pelo povo, expropriação, sovietes livres e assim por diante), não fora sua filosofia social que ditou esta atitude. Eles sentiram que a pulsação popular – as ondas elevadas da Revolução os levaram muito além de suas teorias. Mas eles permaneceram marxistas. De coração eles não tinham nenhuma fé no povo e em suas iniciativas criadoras. Como os socialdemocratas eles desconfiavam do campesinato, contando um pouco mais com o apoio da pequena minoria revolucionária entre os elementos da indústria. Eles defenderam a Assembleia Constituinte, e apenas quando se convenceram que não teriam maioria lá e, portanto, não seriam capazes de ter o poder de Estado em suas mãos, subitamente decidiram pela dissolução da Assembleia, embora este passo fosse uma refutação e negação de princípios marxistas fundamentais. (Incidentalmente, foi um anarquista, Anatoly Zheleznyakov, no comando da guarda do palácio, que se encarregou da iniciativa no assunto). Enquanto marxistas, os bolchevistas insistiram na nacionalização do país: propriedade, distribuição e controle passariam pelas mãos do Estado. Eram, em princípio, opostos à socialização, e apenas a pressão dos socialistas revolucionários de esquerda (a facção Spiridonova Kamkov), cuja influência entre os camponeses era tradicional, forçaram os Bolchevistas a “engolir o programa agrário do conjunto dos socialistas revolucionários”, como Lênin posteriormente colocou. Desde os primeiros dias de seu acesso ao poder político, as tendências marxistas começaram a se manifestar, em detrimento da Revolução. A desconfiança socialdemocrata em relação aos camponeses influenciou seus métodos e medidas. Nas Conferências de todas as Rússias os camponeses não receberam representação igual aos dos trabalhadores industriais. Não apenas os especuladores e exploradores das cidades, mas também toda população agrária foi estigmatizada pelos bolchevistas como “pequenos patrões” e “burgueses”, “incapazes de manter o passo com o proletariado no caminho para o socialismo”. O governo bolchevista colocou de lado os representantes camponeses nos Sovietes e na Conferência Nacional, buscaram obstruir seus esforços independentes e sistematicamente estreitaram o escopo e as atividades do Comissariado da Terra, até então de longe, o fator mais vital na reconstrução da Rússia. (O Comissariado era então presidido por um socialista revolucionário de esquerda). Inevitavelmente esta atitude levou a muita insatisfação por parte das grandes massas camponesas. O mujique russo é simples e ingênuo, mas com o instinto do homem primitivo, ele rapidamente percebe um erro e nenhuma requintada dialética pode movê-lo de sua convicção uma vez esta estabelecida. A pedra inaugural do credo marxista, a ditadura do proletariado, serviu como uma afronta e injúria ao campesinato. Eles demandaram uma partilha igual na organização e administração dos assuntos do país. Não tinham sido eles já suficientemente escravizados, oprimidos e ignorados? O camponês ressentia-se da ditadura do proletariado como discriminação contra ele. “Se a ditadura deve existir”, argumentava, “por que não a de todos que trabalham, do trabalhador urbano e do camponês, juntos?” Então veio a paz de Brest-Litovsk. Devido ao longo alcance de seus resultados, esta se mostrou ser o golpe mortal na Revolução. Dois meses antes, em dezembro de 1917, Trotsky recusara, com o gesto elegante de nobre indignação, a paz oferecida pela Alemanha em condições muito mais favoráveis à Rússia. “Nós não levamos adiante nenhuma guerra, nós não assinamos a paz”  tinha ele dito, e a Rússia revolucionária o aplaudiu. “Nenhum compromisso com o imperialismo alemão, nenhuma concessão”, ecoava por toda extensão do país, e o povo permaneceu pronto para defender a revolução até a morte. Mas agora, Lênin exigiu a ratificação de uma paz que significou a traição mais mesquinha em relação à maior parte da Rússia, da Finlândia, Letônia, Lituânia, Ucrânia, Rússia Branca, Bessarábia – todas elas ficaram para ser entregues à opressão e exploração do invasor alemão e de sua própria burguesia. Foi algo monstruoso – o sacrifício imediato dos princípios da revolução e também de seus interesses. Lênin insistiu na ratificação, alegando que a Rússia precisava de uma “pausa para respirar” que a Rússia estava exausta e que a paz poderia trazer o “oásis revolucionário” para reunir forças para novos esforços. Radek denunciou a aceitação das condições de Brest-Litovsk como traição da Revolução de Outubro. Trotsky discordou de Lênin. As forças revolucionárias racharam. Os socialistas revolucionários de esquerda, a maioria dos anarquistas, e muitos dos elementos revolucionários não partidários estavam amargamente contrários a fazer a paz com o imperialismo, especialmente nos termos ditados pela Alemanha. Declararam que tal paz seria fatal para a Revolução; que o princípio “paz sem anexações” não deveria ser sacrificado; que as condições alemãs envolviam a mais baixa traição aos operários e camponeses das províncias demandadas pelos prussianos; que a paz sujeitaria o conjunto da Rússia ao imperialismo alemão, que os invasores tomariam posse do pão ucraniano e do carvão de Don e levariam a Rússia à ruína econômica. Mas a influência de Lênin era potente. Ela prevaleceu. O tratado de Brest-Litovsk foi ratificado pelo 4º Congresso Soviético. Foi Trotsky o primeiro que afirmou, ao recusar os termos da paz alemã oferecidos em dezembro de 1917, que os operários e camponeses, inspirados e armados pela revolução, pela luta de guerrilhas, poderiam derrotar qualquer exército invasor. Os socialistas revolucionários de esquerda, agora chamados por levantes camponeses para se opor aos alemães, confiantes de que nenhum exército poderia conquistar o ardor revolucionário de um povo lutando pelos frutos de sua grandiosa revolução. Operários e camponeses reagiram ligeiro para ajudar Ucrânia e Rússia Branca, então valentemente, lutando contra o invasor alemão. Trotsky ordenou o Exército Russo a perseguir e eliminar estas unidades Seguiu-se o assassinato de Mirbach[5]. Foi o protesto e o enfrentamento do Partido Socialista Revolucionário de Esquerda contra o imperialismo prussiano dentro da Rússia. O governo bolchevista iniciou medidas repressivas e agora se sentia, e de fato estava devendo obrigações à Alemanha. Dzerzhinsky, chefe da Comissão Extraordinária de todas as Rússias[6], solicitou a entrega do terrorista. Foi uma situação única nos anais revolucionários: um partido revolucionário no poder exigindo de outro partido revolucionário, com o qual até então estiveram cooperando, a prisão e a punição de um revolucionário por executar o representante de um governo imperialista! A paz de Brest-Litovsk colocou os bolchevistas na posição anômala de gendarme do Kaiser. O Partido Socialista Revolucionário respondeu à demanda de Dzerzhinsky prendendo-o. Este ato e os conflitos armados que se seguiram (embora insignificantes em si) foram politicamente explorados a fundo pelos bolchevistas. Eles declararam que isso fora uma tentativa do Partido Socialista Revolucionário de tomar as rédeas do governo. Declararam aquele partido como fora da lei e o extermínio começou. Estes métodos e táticas bolchevistas não foram acidentais. Logo se tornou evidente que esmagar qualquer forma de expressão em desacordo com o governo é a política estabelecida pelo Estado Comunista. Depois da ratificação da paz de Brest-Litovsk, o Partido Socialista Revolucionário de Esquerda retirou seus representantes do Soviete dos Comissários do Povo. Assim, os bolchevistas permaneceram no controle exclusivo do governo. Sob um pretexto ou outro, se seguiu a mais arbitrária e cruel supressão de todos outros partidos e movimentos políticos. Os menchevistas e os socialistas revolucionários de direita já tinham sido liquidados há um tempo atrás, junto com a burguesia russa. Agora era a vez dos elementos revolucionários – o Partido Socialista Revolucionário de Esquerda, os anarquistas, os revolucionários não partidários. Mas a “liquidação” destes envolveu muito mais do que a supressão de pequenos grupos políticos. Esses elementos revolucionários têm fortes seguidores, os socialistas revolucionários de esquerda entre os camponeses, os anarquistas, principalmente, entre o proletariado urbano. As novas táticas bolchevistas incluem sistemática erradicação de cada sinal de insatisfação, sufocando toda crítica e esmagando esforço ou opinião independente. Com esta fase, os bolchevistas começam a ditadura do proletariado, como isso é popularmente caracterizado na Rússia. A atitude do governo em relação ao campesinato é agora de hostilidade aberta. Mais crescente ainda é o uso da violência. Sindicatos são dissolvidos, frequentemente pela força, quando a lealdade ao Partido Comunista é colocada sob suspeita. As cooperativas são atacadas. Esta organização especial, o vínculo fraterno entre cidade e campo, cujas funções econômicas são tão vitais para os interesses da Rússia e da Revolução, é obstruída em seu trabalho importante de produção, troca e distribuição dos bens essenciais da vida, é desorganizada, e por fim, completamente abolida. Prisões, buscas noturnas, zassada (bloqueio de casa), execuções, estavam na ordem do dia. A Comissão Extraordinária (Tcheka), originalmente organizada para combater contrarrevolucionários e a especulação, tem se tornado o terror de cada operário e camponês. Seus agentes secretos estão em toda parte, sempre desenterrando “tramas”, o que significa razstrel (disparos) contra milhares sem audiência, julgamento ou apelação. Da pretensa defesa da Revolução, a Tcheka se tornou a organização mais odiada, cuja injustiça e crueldade espalham terror sobre todo país. Toda poderosa, sem que ninguém se responsabilizasse por ela, a Tcheka é uma lei em si mesma, possui seu próprio exército, assume poderes de polícia, administrativos, judiciais e executivos e pratica suas próprias leis, as quais superam a do Estado oficial. As prisões e campos de concentração estão lotados com supostos contrarrevolucionários e especuladores, 95% deles são operários famintos, rudes camponeses e mesmo crianças de 10 a 14 anos (Veja “Relatórios das investigações sobre prisões”), Petrogrado: “Krasnaya Gazetta” e “Pravda”; Moscou: “Pravda”, maio, junho, julho, 1920). Na mente popular comunismo tornou-se “tchekismo”, este último o epítome de tudo que é vil e brutal. A semente do sentimento contrarrevolucionário semeou-se por toda parte. As outras políticas do “governo revolucionário” mantêm o passo junto com estes desdobramentos. A centralização mecânica, correndo sem limites, está paralisando as atividades industriais e econômicas do país. Franze-se a testa em relação às iniciativas, os esforços livres são sistematicamente desencorajados. As grandes massas estão privadas da oportunidade de forjar as políticas da revolução, ou tomar parte da administração dos assuntos do país. O governo está monopolizando cada caminho da vida: a revolução se encontra divorciada do povo. A máquina burocrática é criada de modo pavoroso em seu parasitismo, ineficiência e corrupção. Apenas em Moscou esta nova classe de sovburs (burocratas soviéticos) excede, em 1920, o total dos funcionários por toda Rússia no tempo do Czar, em 1914 (Ver “Relatório Oficial de Investigação”, pelo Comitê do Soviete de Moscou, 1921). As políticas econômicas bolchevistas, efetivamente auxiliadas por esta burocracia, desorganizaram completamente a já capenga vida industrial do país. Lênin, Zinoviev e outros líderes comunistas vociferam diatribes contra a nova burguesia soviética, e distribuem sempre novos decretos que fortalecem e aumentam seus números e influência. O sistema de yedinolitchiye – a administração por uma pessoa – é introduzido. O próprio Lênin é o seu criador e o principal defensor. De agora em diante, os comitês das lojas e das fábricas estão para ser abolidos, alijados de todo poder. Cada moinho, mina e fábrica, as ferrovias e todas outras indústrias estão para ser gerenciadas por uma única cabeça, por um “especialista”, e a velha burguesia czarista está  convidada a entrar. Os antigos banqueiros, os operadores da bolsa, os proprietários de moinhos e os patrões das fábricas tornam-se os administradores, com pleno controle das indústrias, com poder absoluto sobre os trabalhadores. Eles são revestidos com autoridade a contratar, empregar e demitir as “mãos”, a dar ou privá-las do payok (ração de alimento), e mesmo a puni-las e encaminhá-las à Tcheka. Os trabalhadores, que lutaram e sangraram pela revolução e estiveram dispostos a sofrer, congelar e passar fome em sua defesa, se ressentem dessa obscura imposição. Consideram isso como a pior traição. Recusam a ser dominados pelos mesmos proprietários e capatazes que eles expulsaram, nos dias da revolução, para fora das fábricas e que tinham sido tão autoritários e brutais para com eles. Não têm nenhum interesse em tal reconstrução. O “novo sistema”, proclamado por Lênin como a salvação das indústrias, resulta na completa paralisia da vida econômica da Rússia, empurra em massa os operários para fora das fábricas, e os enche de amargura e ódio a tudo “socialístico”. Os princípios e táticas da mecanização marxista da Revolução estão assinando sua ruína. O fanático delírio de que um pequeno grupo conspirativo, como este o foi, poderia empreender uma transformação social fundamental resultou no Frankenstein dos bolchevistas. Levou-os às incríveis profundezas da infâmia e barbarismo. Os métodos de tal teoria, seus meios inevitáveis, são duplos: decretos e terror. Nenhum desses meios os bolchevistas regatearam. Como Bukharin, o principal ideólogo comunista militante, ensinou, o terrorismo é o método pelo qual a natureza humana capitalista será transformada em adequada cidadania bolchevista. Liberdade é um “preconceito burguês” (na expressão favorita de Lênin), liberdade de fala e de imprensa é desnecessária, perigosa. O governo central é o depositário de todo conhecimento e sabedoria. Fará tudo. O único dever do cidadão é a obediência. A vontade do Estado é suprema. Despojada de frases refinadas, destinadas ao consumo ocidental, esta foi, e ainda é, a atitude prática do governo bolchevista. Este governo, o real e único governo da Rússia, consiste em cinco pessoas, membros do círculo interno do Comitê Central do Partido Comunista da Rússia. Esses “cinco grandes” são onipotentes. Este grupo, conspiratório em sua verdadeira essência, tem controlado os destinos da Rússia e da Revolução desde a paz de Brest-Litovsk. O que aconteceu na Rússia, desde então, tem sido em estrito acordo com a interpretação bolchevista do marxismo. Aquele marxismo, refletido através da megalomania de onisciência e onipotência do círculo interno comunista, ocasionou a presente ruína da Rússia. Em consonância com essa teoria, os fundamentos da Revolução de Outubro têm sido deliberadamente destruídos. O objetivo final sendo um poderoso Estado centralizado com o Partido Comunista no controle absoluto fez com que a iniciativa popular e as forças criativas revolucionárias das massas precisassem ser eliminadas. O sistema eleitoral foi abolido, primeiro no exército e na marinha, depois nas indústrias. Os sovietes dos camponeses e operários foram castrados e transformados em obedientes comitês comunistas, com a temível espada da Tcheka sempre pendurada sobre eles. A direção dos sindicatos achacada, suas atividades específicas suprimidas, assim estes se tornaram meros transmissores das ordens do Estado. Serviço militar obrigatório, acoplado com pena de morte para os objetores de consciência; trabalho forçado, com um vasto corpo de funcionários para a apreensão e punição de “desertores”; conscrição agrária e industrial do campesinato; comunismo militar nas cidades e o sistema de requisição no campo, caracterizado por Radek como simplesmente pilhagem de grãos (Correspondência da Imprensa Internacional, edição inglesa, vol. 1, nº 17); a supressão dos protestos dos trabalhadores pelos militares, o esmagamento com mão de ferro da insatisfação dos camponeses, chegando até ao açoitamento destes e ao arrasamento de suas aldeias com artilharia (nos distritos de Ural, Volga e Kuban, na Sibéria e na Ucrânia) – isso caracteriza a atitude do Estado comunista em relação ao povo, isso engloba “as políticas construtivas socioeconômicas” dos bolchevistas. Apesar de tudo, os operários e camponeses russos, prezando a Revolução pela qual sofreram tanto, mantiveram-se lutando bravamente em numerosas frentes militares. Estavam defendendo a revolução, assim pensavam. Passaram fome e frio e morreram aos milhares, na profunda esperança de que as coisas terríveis que os comunistas faziam cessariam em breve. Os horrores bolchevistas foram, de algum modo – o russo simples pensava – o resultado inevitável de poderosos inimigos “do estrangeiro” atacando seu amado país. Mas quando as guerras, por fim, acabassem – o povo ingenuamente assim reproduziu a imprensa oficial – os bolchevistas seguramente voltariam à trilha revolucionária na qual entraram em outubro de 1917, a trilha que as guerras os forçaram a abandonar temporariamente. As massas assim esperavam e aguentaram. E então, enfim, as guerras terminaram. A Rússia esboçou um quase audível suspiro de alívio, alívio vibrando com profunda esperança. Foi o momento crucial: o grande teste começara. A alma de uma nação estava em agitação. Ser ou não ser? E então, a plena realização chegou. O povo permaneceu horrorizado. As repressões continuaram, crescendo de modo ainda pior. As usurpadoras razvyorstka[7], expedições punitivas contra os camponeses, não cessaram sua atividade assassina. A Tcheka estava desencavando mais “conspirações”, execuções estavam ocorrendo como antes. O terrorismo estava desenfreado. A nova burguesia bolchevista agia com arrogância em relação aos operários e camponeses, a corrupção oficial grassava solta, imensos estoques de alimentos apodreciam em virtude da ineficiência bolchevista e do monopólio centralizado do Estado  o povo estava  faminto. Os operários de Petrogrado, sempre proeminentes no esforço revolucionário, foram os primeiros a dar voz a seu descontentamento e protesto. Os marinheiros de Kronstadt, com base na investigação das demandas do proletariado de Petrogrado, declararam-se solidários aos  trabalhadores. Por sua vez, anunciaram seu apoio a sovietes livres, sovietes livres da coerção comunista, sovietes que realmente representassem as massas revolucionárias e dessem voz a suas necessidades. Nas províncias centrais da Rússia, na Ucrânia, no Cáucaso, na Sibéria, em toda parte o povo fez conhecer sua vontade, expressou suas reclamações, informou os governos acerca de suas reivindicações. O Estado bolchevista respondeu com seu argumento usual: os marinheiros de Kronstadt foram dizimados, os “bandidos” da Ucrânia massacrados, os “rebeldes” do Leste abatidos com metralhadoras. Isso feito, Lênin anunciou no X Congresso do Partido Comunista da Rússia (março 1921) que suas políticas anteriores estavam todas erradas. A requisição de alimento, razvyorstka, foi pura roubalheira. A violência militar contra o camponês um “sério equívoco”. Os trabalhadores precisam receber alguma consideração. A burocracia soviética é corrupta e criminosa, um enorme parasita. “Os métodos que vínhamos usando falharam. O povo, especialmente a população rural, não está ainda à altura dos princípios comunistas. A propriedade privada deve ser reintroduzida, o livre comércio estabelecido. Daí, o melhor comunista ser aquele que pode impulsionar a melhor barganha”. Expressão de Lênin.


V



De volta ao capitalismo! A situação atual da Rússia é por demais anômala. Economicamente é uma combinação de Estado e capitalismo privado. Politicamente permanece a “ditadura do proletariado” ou, mais corretamente, a ditadura do círculo interno do Partido Comunista. O campesinato forçou os bolchevistas a fazerem concessões. Requisições forçadas foram abolidas. Em seu lugar foi colocada a taxa em espécie, uma certa percentagem do produto agrícola indo para o governo. A livre troca foi legalizada e o agricultor passou a trocar ou vender seu excedente para o governo, para as cooperativas restabelecidas ou no mercado aberto. A nova política econômica escancarou as portas da exploração. Sancionou o direito de enriquecimento e de acumulação de riquezas. O lavrador passou a lucrar com suas bem-sucedidas colheitas, arrendar mais terra e explorar o trabalho daqueles camponeses que têm pouca terra e nenhum cavalo para o trabalho. A escassez de gado e ceifas ruins em algumas partes do país criaram uma nova classe de “mão de obra agrícola” que se oferece ao camponês próspero. As pessoas pobres migram das regiões em que estão sofrendo de fome e engrossam as fileiras dos miseráveis. A aldeia capitalista está se fazendo. O trabalhador urbano na Rússia hoje, sob a nova política econômica, está exatamente na mesma posição como em qualquer outro país capitalista. A distribuição gratuita de comida está abolida, exceto em algumas indústrias operadas pelo governo. Ao trabalhador são pagos salários, e estes devem cobrir suas necessidades, como em qualquer outro país. A maioria das indústrias, onde estejam ativas, tem sido deixada ou arrendada para particulares. O pequeno capitalista agora tem a mão livre. Ele tem um largo campo para suas atividades. O excedente do lavrador, o produto das indústrias, do comércio camponês e todos os empreendimentos da propriedade privada estão sujeitos aos processos ordinários de negócios, podem ser comprados e vendidos. A competição dentro do comércio varejista leva à incorporação e à acumulação de fortunas nas mãos de indivíduos. O desenvolvimento do capitalismo urbano não pode coexistir por muito tempo com a ditadura do proletariado. A aliança artificial entre este e o capitalismo estrangeiro provará em futuro próximo outro fator vital no destino da Rússia. O governo bolchevista ainda se esforça em sustentar a perigosa ilusão de que a “revolução está progredindo”, que a Rússia é “governada pelos sovietes proletários”, que o Partido Comunista e seu Estado são idênticos ao povo. Ainda estão falando em nome do “proletariado”. Estão buscando dopar o povo com uma nova quimera. Depois de algum tempo – os bolchevistas agora simulam – quando a Rússia tiver se tornado industrialmente ressuscitada, através das realizações de nosso veloz capitalismo crescente, a “ditadura do proletariado” terá também se fortalecido, e retornaremos à nacionalização. Então, o Estado abreviará e suplantará sistematicamente as indústrias privadas e assim quebrará o poder da burguesia desenvolvida neste ínterim. “Depois de um período de desnacionalização parcial, uma nacionalização mais forte começa”, diz Preobrazhensky, Comissário das Finanças, em seu recente artigo “As perspectivas da Nova Política Econômica”. Então, “o socialismo será vitorioso na linha de frente inteira”. Radek é menos diplomático. “Certamente nós não pretendemos”  ele nos assegura na sua análise política da situação russa, intitulada “É a Revolução Russa uma Revolução Burguesa?” (Correspondência da Imprensa Internacional, 16 dez.1921) – “que ao final de um ano nós tenhamos confiscado os bens novamente acumulados. Nossa política econômica é baseada em um período mais longo de tempo… Estamos conscientemente nos preparando para cooperar com a burguesia; isso é, sem dúvida, perigoso para a existência do governo soviético, porque este último perde o monopólio da produção industrial em contraste com o campesinato. Isso não significa a vitória decisiva do capitalismo? Não devíamos então falar de nossa revolução como tendo perdido seu caráter revolucionário?” A estas questões tão oportunas e significativas, Radek responde animadamente com um categórico Não! É verdade, obviamente, como Marx ensinou, que as relações econômicas determinam as políticas, e que as concessões econômicas à burguesia devem acarretar também concessões políticas. Ele lembra que quando a poderosa classe latifundiária da Rússia começou a fazer concessões econômicas à burguesia, tais concessões foram logo seguidas pelas políticas e finalmente pela capitulação dos latifundiários. Mas ele insiste que os bolchevistas manterão seu poder mesmo sob as condições da restauração do capitalismo. “A burguesia é uma classe moribunda, historicamente deteriorada… Por este motivo a classe trabalhadora da Rússia pode se recusar a fazer concessões políticas à burguesia; desde que isso se justifique na expectativa de que seu poder crescerá em uma escala nacional e internacional mais do que o poder da burguesia russa”. Nesse meio tempo, embora fora autoritariamente admitido que seu “poder deverá crescer em escala nacional e internacional”, o trabalhador russo está em apuros. A nova política econômica transformou o proletário “ditador” em um escravo assalariado comum, como seus irmãos em países não abençoados pela ditadura socialista. A redução do monopólio nacional do governo resultou no lançamento de centenas de milhares de homens e mulheres para fora do trabalho. Muitas instituições soviéticas foram fechadas, as restantes dispensaram 50 a 70 por cento de seus empregados. O enorme afluxo para as cidades de camponeses e aldeões arruinados pela razvyorstka, e daqueles foragidos de distritos de fome, produziram um problema de desemprego de alcance ameaçador. O reavivamento da vida industrial pelo capital privado é um processo muito lento, devido à ausência geral de confiança no Estado bolchevista e em suas promessas. No entanto, quando as indústrias voltarem a funcionar, mais ou menos sistematicamente, a Rússia enfrentará uma situação trabalhista muito difícil e complexa. Os sindicatos e grêmios de trabalhadores não existem na Rússia, assim como as atividades legítimas relativas a tais organizações. Os bolchevistas os aboliram tempos atrás. Com o desenvolvimento da produção e do capitalismo, governamental tanto quanto privado, a Rússia verá o surgimento de um novo proletariado cujos interesses naturalmente deverão entrar em conflito com aqueles da classe empregadora. Uma luta amarga é iminente. Uma luta de dupla natureza: contra o capitalista privado e contra o Estado enquanto empregador de trabalho. É mesmo provável que a situação deva ainda desenvolver outra fase: o antagonismo dos trabalhadores empregados nas indústrias pertencentes ao Estado em relação aos trabalhadores melhor pagos pelas empresas privadas. Qual será a atitude do governo bolchevista? O assunto da nova política econômica é encorajar, em cada via possível, o desenvolvimento do empreendimento privado e acelerar o crescimento do industrialismo. Lojas, minas, fábricas e moinhos têm sido já arrendados aos capitalistas. As demandas trabalhistas têm a tendência de cortar lucros, interferem como os “obedientes processos” do negócio. E quanto às greves, elas limitam a produção, paralisam a indústria. Não deveriam os interesses do Capital e do Trabalho ser declarados solidários na Rússia bolchevista? A exploração econômica e agrária da Rússia, sob a nova política econômica, deve inevitavelmente levar ao crescimento de um poderoso movimento trabalhista. As organizações dos operários unificarão e solidificarão o proletariado urbano com o agricultor pobre, na demanda comum por melhores condições de vida. A partir do temperamento atual do trabalhador russo, agora enriquecido por quatro anos de experiência do regime bolchevista, pode-se afirmar com alto grau de probabilidade que o futuro movimento trabalhista da Rússia se desenvolverá por linhas sindicalistas. O sentimento é forte entre os trabalhadores russos. Os princípios e métodos do sindicalismo revolucionário não lhes são estranhos. O trabalho efetivo dos comitês de fábrica e lojas, os primeiros que iniciaram a expropriação industrial da burguesia em 1917, é uma lembrança inspiradora ainda fresca nas mentes do proletariado. Mesmo no próprio Partido Comunista, entre seus elementos operários, a ideia sindicalista é popular. A famosa Oposição Trabalhista, liderada por Shliapnikov e Sra. Kollontay dentro do Partido, é essencialmente sindicalista. Qual atitude o governo bolchevista tomará em relação ao movimento trabalhista em vias de aparecer na Rússia, seja este total ou apenas parcialmente sindicalista? Até agora o Estado tem sido inimigo mortal do sindicalismo trabalhista dentro da Rússia, embora encorajem-no em outros países. No X Congresso do Partido Comunista Russo, em março de 1921, Lênin declarou guerra sem trégua contra o mais tênue sintoma de tendências sindicalistas, e mesmo discussões de teorias sindicalistas foram proibidas aos Comunistas, sob pena de exclusão do Partido (Ver Relatório Oficial, X Congresso). Alguns da Oposição Trabalhista foram presos. Não se pode afirmar superficialmente que a ditadura comunista possa resolver satisfatoriamente os problemas difíceis a surgirem de um efetivo movimento trabalhista baixo à autocracia bolchevista. Daí, os trabalhadores da Rússia deverão lutar não apenas contra os grandes e pequenos capitalistas. Eles irão de fato se enfrentar com o próprio Estado capitalista. Para se entender corretamente o espírito e o caráter desta presente fase bolchevista, é necessário se dar conta de que a assim chamada “nova política econômica” não é nem nova nem econômica, se consideradas literalmente. É o velho marxismo político, a única fonte originária da sabedoria bolchevista. Enquanto sociais-democratas, os bolchevistas permaneceram fiéis à sua bíblia. Apenas em um país onde o capitalismo é mais altamente desenvolvido pode contar com uma revolução social, que é o ápice da fé marxista. Os bolchevistas estão a ponto de aplicar isso na Rússia. Verdade foi que nos dias da revolução de outubro eles repetidamente desviaram do caminho reto e estreito de Marx. Não porque duvidaram do profeta. De jeito nenhum. Até certo ponto Lênin e seu grupo, políticos oportunistas, foram forçados pela irresistível aspiração popular a conduzir um verdadeiro percurso revolucionário. Mas todo o tempo eles se penduravam nas saias de Marx e buscavam a cada oportunidade direcionar a revolução para canais marxistas. Como Radek ingenuamente nos lembra: “já em abril de 1918, em um discurso do camarada Lênin, o governo soviético intentou definir novas tarefas e apontar o caminho o qual hoje designamos como a nova política econômica” (Correspondência da Imprensa Internacional, vol 1, nº 17). Significativa confissão! Na verdade, as atuais políticas bolchevistas são a continuação do bom marxismo ortodoxo de 1918. Líderes bolchevistas agora admitem que a revolução, nos desenvolvimentos pós-outubro, foi apenas política e não social. A centralização mecânica do Estado comunista – isso deve ser enfatizado – provou-se fatal à vida econômica e social do país. A violenta ditadura partidária destruiu a unidade dos trabalhadores e dos camponeses, e criou uma pervertida atitude burocrática em relação à reconstrução revolucionária. A completa negação da livre expressão e crítica, não apenas às massas, mas mesmo para o nível e escala do próprio Partido Comunista, resultou em sua ruína através de seus próprios erros. E agora? O marxismo bolchevista, em sua monstruosidade criminosa, continua na pobre Rússia a prolongar sua sangrenta Comédia de Erros. A construção do comunismo não é possível conjugado a um capitalismo doentio, desenvolvido artificialmente. O capitalismo não pode nunca ser destruído – como Lênin & Cia presumem acreditar – pelos processos regulares do Estado bolchevista crescido economicamente forte. As “novas” políticas são portanto uma ilusão e uma cilada. Estas acabaram criando a necessidade de outra revolução. É imprescindível que a torturada humanidade trilhe sempre o mesmo círculo vicioso? Ou, finalmente, os trabalhadores aprenderão a grande lição da Revolução Russa? A de que qualquer governo, qualquer que seja o nome e as doces promessas, em virtude de sua natureza intrínseca, é destrutivo dos genuínos propósitos da revolução social. É missão do governo governar, sujeitar, fortalecer-se e se perpetuar. É urgente que os trabalhadores aprendam que apenas os seus próprios esforços criativos, livres da interferência da Política e do Estado, podem fazer de sua constante luta pela emancipação um sucesso duradouro.





Notas:



[1] – Ananias, personagem bíblico, aqui com o sentido de um mentiroso habitual.

[2] – Thomas Mooney (1888-1942) foi líder operário norte-americano, acusado injustamente de colocar bombas em uma parada de preparação para entrada dos EUA na I Guerra, em 1916. Alexander Berkman empenhou-se em campanhas para sua libertação, e conseguiu ao menos que a pena de morte fosse suspensa. Posteriormente, devido à sua atuação em movimentos contra a guerra, Berkman foi preso, passou dois anos em um presídio em Atlanta e foi deportado para a Rússia, em 1919.

[3] – “Santo dos santos” é o nome do local mais sagrado dentro do antigo templo de Jerusalém.

[4] – Coup de main, ataque militar realizado por um único golpe com base em surpresa e velocidade.

[5] – Conde Mirbach. Embaixador alemão em Moscou; participou das negociações de paz em Brest-Litovsk. Foi assassinado, em julho de 1918, por um membro do Partido Socialista Revolucionário que discordava dos termos deste tratado de paz com a Alemanha.

[6] – Tcheka. Nome abreviado da Comissão Extraordinária panrussa para a repressão da contrarrevolução e da sabotagem, polícia secreta criada em 1917 para combater os inimigos do governo revolucionário.

[7] – Razvyorstka, programa do governo que obrigava o agricultor a entregar o excedente de sua produção a um preço fixo.

sexta-feira, 26 de abril de 2019

A Lei e a Autoridade (1886), por: Piotr Kropotkin

Tradução dos artigos de Piotr Kropotkin da revista “Le Révolté”, publicados em 13 de Maio, 27 de Maio, 5 de Agosto e 19 de Agosto de 1882. Estes artigos foram reunidos e publicados juntos sob o título de “Law and Authority” (Lei e Autoridade) em um panfleto de 23 páginas em 1886 na cidade de Londres pela editora “Freedom Press”. Essa tradução e suas notas foram feitas por: Júlio Carrapato. A versão utilizada para essa publicação se encontra disponível em: https://we.riseup.net/assets/84287/Kropotkin-A-Lei-e-a-Autoridade.pdf.




I


«Quando a ignorância se instala no seio das sociedades e a desordem nos espíritos, as leis tornam-se numerosas. Os homens tudo esperam da legislação e, constituindo cada lei nova um novo erro de contas, são levados a pedir-lhe incessantemente o que só pode vir deles próprios, da sua educação, do estado dos seus costumes». Não é com certeza um revolucionário quem diz isto, nem sequer um reformador. É um jurisconsulto, Dalloz[1], autor da compilação das leis francesas conhecida pelo nome de “Repertório de Legislação”. No entanto, estas linhas, ainda que escritas por um homem que era ele mesmo um fabricante e admirador de leis, representam perfeitamente o estado anormal das nossas sociedades.

Dentro das fronteiras dos Estados atuais, uma lei nova é considerada como um remédio para todos os males. Em vez de reformarem elas próprias o que é mau ou está mal, as pessoas começam por pedir uma lei que o modifique. Se a estrada entre duas aldeias estiver impraticável, logo o camponês dirá que seria necessária uma lei sobre os caminhos vicinais. Se o guarda-florestal insultar alguém, aproveitando-se do servilismo dos que lhe testemunham respeito – «seria necessária uma lei, diz o ofendido, que prescrevesse aos guardas rurais que fossem mais educados». E se o comércio e a agricultura não funcionarem capazmente? «É de uma lei protetora que temos falta» – assim raciocinam o lavrador, o criador de gado, o especulador em cereais; até o revendedor de velhos trapos e farrapos pede uma lei que o proteja e ai e ao seu pequeno comércio. E se o patrão baixar os salários ou aumentar o dia de trabalho? «É preciso uma lei que ponha ordem nisso tudo!» – clamam os deputados ainda verdes, em vez de dizerem aos operários que há outra maneira, bem mais eficaz, «de pôr ordem nisso tudo»: retomar ao patrão aquilo de que ele despojou gerações de operários. Numa palavra, por todo o lado há uma lei: uma lei sobre as estradas, uma lei sobre as modas, uma lei sobre os cães raivosos, uma lei sobre a virtude, uma lei para opor um dique a todos os vícios, a todos os males, que não são mais que o resultado da indolência e da cobardia humanas!

Todos estamos de tal maneira pervertidos por uma educação que desde tenra idade procura matar em nós o espírito de revolta e em nós desenvolve o de submissão à autoridade; estamos de tal maneira pervertidos por esta existência sob a férula da Lei que tudo regulamente: o nosso nascimento, a nossa educação, o nosso desenvolvimento, o nosso amor, as nossas amizades, que, se isto continuar, acabaremos por perder qualquer espírito de iniciativa, qualquer hábito de raciocinarmos pelas nossas próprias cabeças. As nossas sociedades parecem já não compreender mais que se possa viver de outra maneira, salvo sob o regime da lei, elaborada por um Governo representativo e aplicada por um punhado de governantes; e no próprio momento em que logram emancipar-se desse jugo, o primeiro cuidado que têm é retomá-lo imediatamente. “o ano I da Liberdade” nunca durou mais que um dia, porque, depois de o ter proclamado, logo no dia seguinte o oprimido se colocava de novo sob o jugo da Lei, da Autoridade.

Efetivamente, já lá vão milhares de anos que os que nos governam mais não fazem do que repetir em todos os tons: «respeito à lei, obediência à autoridade!». O pai e a mãe criam os filhos nesse sentimento. A escola torna o mais firme; prova a sua necessidade, inculcando nas crianças pedacinhos de falsa ciência, habilmente condizentes, da obediência à lei faz um culto; matrimonia o deus e a lei dos senhores numa única e mesma divindade. O herói da história que ela fabricou, é o que obedece à lei, o que a protege contra os revoltados.

Mais tarde, assim que a criança entra na vida pública, a sociedade e a literatura, batendo, a cada dia que passa, a cada instante, como gota de água mole que escava a pedra dura, continuam a inculcar-nos o mesmo preconceito. Os livros de história, de ciência política, de economia social regurgitam esse respeito à lei; chegou-se ao ponto de fazer as ciências físicas darem o seu contributo e, introduzindo nessas ciências de observação uma linguagem falsa, tomada de empréstimo à teologia e ao autoritarismo, conseguiu-se habilmente baralhar-nos a inteligência, sempre em nome da manutenção do respeito pela lei. A imprensa executa a mesma tarefa fastidiosa e sórdida; não há artigo nos jornais que não propague a obediência à lei, enquanto nesse próprio momento se constata na terceira página da publicação todos os dias a imbecilidade da lei e se mostra como ela é arrastada na lama e na imundície por aqueles que são encarregados da sua observância. O servilismo diante da lei passou a ser uma virtude e eu chego mesmo a duvidar que haja um único revolucionário que não tenha começado na tenra idade por ser defensor da lei contra o que geralmente se chama “os abusos”, consequências inevitáveis da própria lei.

A arte faz coro com a pretensa ciência. O herói do escultor, do pintor e do músico cobre a Lei com o escuto protetor e, com os olhos inflamados e as narinas abertas, está pronto para dar bordoada com o gládio em quem quer que ousasse nela tocar. São-lhe erigidos templos, são-lhe nomeados grandes sacerdotes, aos quais os próprios revolucionários hesitam em tocar, e se a Revolução vier varrer uma antiga instituição, será ainda por intermédio de uma Lei que ela tentará consagrar a sua obra.

Esse chorrilho de regras de conduta, que nos foram legadas pela escravatura, pela servidão, pelo feudalismo e pela realeza, a que se chama Lei, substituiu esses monstros de pedra diante dos quais eram imoladas vítimas humanas e que o homem subjugado nem sequer se atrevia a aflorar com os olhos, com medo de ser fulminado por algum raio caído do céu.

***


Foi sobretudo desde o advento da burguesia – desde a grande Revolução Francesa – que se conseguiu estabelecer esse culto. Sob o antigo regime falava-se pouco de leis, a não ser pela pluma de Montesquieu, Rousseau, Voltaire, para opô-las ao capricho real; era-se obrigado a obedecer à real gana do monarca e dos seus lacaios, sob pena de se ser atirado para a masmorra ou enforcado. Mas, durante e depois da Revolução, os advogados chegados ao poder fizeram o melhor que puderam para fortalecer esse princípio legalista sobre o qual deveriam estabelecer o seu reino. A burguesia aceitou-o logo de entrada, como âncora e boia de salvação, para opor um dique à torrente popular. A padralhada apressou-se a santificá-la, para salvar a sua barca que naufragava nas vagas da torrente. O povo, por fim, aceitou-o como um progresso em relação à arbitrariedade e à violência do passado.

É preciso uma pessoa transportar-se imaginariamente até ao século XVIII, para compreender a situação. É preciso ter vertido lágrimas de sangue ao ouvir a narrativa das atrocidades cometidas nessa época pelos nobres todo-poderosos contra os homens e as mulheres do povo, para compreender que influência mágica estas palavras tentadoras: «Igualdade diante da Lei, obediência à Lei, sem distinção de nascimento ou de fortuna» deviam exercer, há um século, sobre o espírito do campônio. Ele, que fora tratado até então mais cruelmente que um animal, ele, que nunca tivera nenhum direito e nunca obtivera justiça contra os atos mais revoltantes do nobre, a menos que se vingasse, matando-o, e fosse logo a seguir enforcado – ele via-se reconhecido por esta máxima, pelo menos em teoria, pelo menos quanto aos direitos pessoais, como um igual do seu senhor. Fosse qual fosse esta lei, prometia pôr sob a sua alçada em pé de igualdade tanto o senhor como o campônio, proclamava a igualdade, diante do juiz, do pobre e do rico. Esta promessa era uma mentira, sabêmo-lo hoje; mas para a época era um progresso, uma homenagem prestada à verdade. Por tal motivo, quando os salvadores da burguesia ameaçada, os Robespierre e os Danton, baseando-se nos escritos dos filósofos da burguesia, os Rousseau e os Voltaire, proclamaram «o respeito pela lei igual a todos» – o povo, cujo ímpeto revolucionário já se esgotava frente a um inimigo cada vês mais solidamente organizado, aceitou o compromisso. Vergou a cerviz ao jugo da Lei, para se salvar da arbitrariedade do senhor.

Desde então, a burguesia não parou de explorar esta máxima que, associada a outro princípio, o do Governo representativo, resume a filosofia do século da burguesia, o século XIX. Ela pregou-a nas escolas, criou a sua ciência e as suas artes com este objectivo, infiltrou-a em tudo o que é sítio, como a devota inglesa que vos desliza sob a porta de casa os seus tratados religiosos. A burguesia trabalhou tão bem que hoje vemos produzir-se este facto execrável: no próprio dia do despertar do espírito crítico e fundibulário, os homens, querendo ser livres, começam a pedir aos seus amos que tenham a boa vontade de protegê-los, modificando as leis criadas por esses mesmos amos.

***


Mas os tempos e os espíritos entretanto mudaram de há um século a esta parte. Por todo o lado há revoltados que não querem mais obedecer à lei, sem saber de onde ela vem, qual a sua utilidade, de onde vem a obrigação de lhe obedecer e o respeito que a rodeia. A revolução que se aproxima é uma Revolução e não um simples motim, pelo facto de os revoltados dos nossos dias submeterem à sua crítica todas as bases da sociedade, venerada até ao presente, e, antes de tudo o mais, esse ídolo, esse feitiço – a Lei.

Analisara a sua origem e aí descobrem, ou um deus qualquer – produto dos terrores do selvagem, estúpido, mesquinho e mau, à semelhança dos padres que reivindicam a sua origem sobrenatural –, ou o sangue, a conquista efetuada a ferro e fogo. Estudam o seu carácter e aí encontram, como traço distintivo, a imobilidade, substituindo o desenvolvimento contínuo da humanidade. Perguntam como é que a lei se mantém e veem as atrocidades do bizantinismo e as crueldades da Inquisição; as torturas da Idade Média, as carnes vivas cortadas em tiras pelo chicote do carrasco, as correntes, as grilhetas, a clava, a acha-de-armas ao serviço da lei; os sombrios subterrâneos das prisões, os sofrimentos, os prantos e as maldições. E hoje – sempre o machado, a corda, o fuzil e as masmorras; de um lado, o embrutecimento do preso reduzido ao estado de animal dentro da jaula, o envilecimento do seu ser moral, e do outro, o juiz desprovido de todos os sentimentos que constituem a melhor parte da natureza humana, vivendo como um visionário num mundo de ficções jurídicas, aplicando com volúpia a guilhotina, sangrenta ou seca, sem que, louco, friamente cruel, suspeite sequer do abismo de degradação no qual caiu, em relação aos que condena.

Vemos uma raça de fazedores de leis, legiferando sem saberem sobre que matéria legiferam, votando hoje uma lei sobre saneamento básico das cidades, sem terem a menor noção de higiene, regulamentando amanhã o armamento de tropas, sem mesmo conhecerem uma espingarda, fazendo leis sobre o ensino e a educação, sem nunca terem sabido dar um ensinamento qualquer ou uma educação honesta aos seus filhos, legislando a torto e a direito, mas sem nunca esqueceram a coima que atingirá o maltrapilho de pé descalço, nem a prisão e a condenação às galeras que golpearão homens mil vezes menos imorais do que são esses mesmos legisladores! Vemos por fim o carcereiro que caminha para a perda de todo e qualquer sentimento humano, a polícia adestrado como um cão pistoleiro, o bufo admirando-se a si próprio, já que a delação se transformou em virtude e a corrupção foi edificada como um sistema; todos os vícios, todos os lados maus da natureza humana, se encontram favorecidos, cultivados, pelo triunfo da Lei.

Vemos tudo isso e é por isso que, em vez de repetirmos tolamente a velha fórmula: “Respeito pela lei”, gritamos: “Desprezo pela lei e pelos seus atributos!” Substituímos as palavras cobardes “obediência à lei” pela expressão: “Revolta contra todas as leis!”

Basta que se compare apenas os malefícios consumados em nome de cada lei com o que ela pôde produzir de bom, que se pese o bem e o mal – e logo se verá se temos ou não razão.

II


A lei é um produto relativamente moderno, porque a humanidade viveu séculos e séculos sem ter nenhuma lei escrita, nem sequer simplesmente grava em símbolos, nas pedras, à entrada dos templos. Nessa época, as relações dos homens entre si eram reguladas por simples costumes, por hábitos, usos, que a constante repetição tornava veneráveis e que cada um adquiria desde a infância, como aprendia a procurar comida pela caça, a criação de animais ou a agricultura.

Todas as sociedades humanas passaram por esta fase primitiva e até ao presente ainda uma grande parte da humanidade não tem nenhumas leis escritas. As populações locais têm usos, costumes – “um direito costumeiro”, como dizem os juristas –, têm hábitos de sociabilidade, e isso basta para manter boas relações entre os membros da aldeia, da tribo, da comunidade. Acontece o mesmo conosco, civilizados; basta que se saia das nossas grandes cidades, para se ver que as relações mútuas dos habitantes ainda estão reguladas, não segundo a lei escrita dos legisladores, mas segundo os costumes antigos, geralmente aceites. Os camponeses da Rússia, da Itália, da Espanha, e até mesmo de boa parte da França e da Inglaterra, não têm nenhuma ideia da lei escrita. Esta vem imiscuir-se na sua vida, só para regular as relações deles com o Estado; quanto às relações entre eles, algumas vezes muito complicadas, regulam-nas simplesmente segundo os antigos costumes. Outrora, tal acontecia com toda a humanidade.

***


Quando se analisa os costumes dos povos primitivos, nota-se que há duas correntes bem distintas.

Como o homem não vive solitariamente, elabora em si sentimentos, hábitos úteis à conservação da sociedade e à propagação da espécie. Sem sentimentos de sociabilidade, sem práticas de solidariedade, a vida em comum teria sido absolutamente impossível. Não é a lei que os estabelece: eles são anteriores a todas as leis. Também não é a religião que os prescreve: eles são anteriores a qualquer religião, encontram-se em todos os animais que vivem em sociedades. Desenvolvem-se a si próprios, pela força das coisas, como esses hábitos a que o homem chamou instintos nos animais: provêm de uma evolução útil, necessária mesmo, ao manter a sociedade na luta pela existência que ela própria deve sustentar. Os selvagens acabam por não se comer mais entre si, porque acham que é muito mais vantajoso uma pessoa dedicar-se a um cultivo qualquer, em vez de andar à procura uma vez por ano do prazer de se alimentar da carne de um parente velho. No seio das tribos absolutamente independentes e que não conhecem nem leis nem chefes, de que muitos viajantes nos pintaram os costumes, os membros do mesmo clã deixaram de andar à facada, a propósito de cada discussão, porque o hábito da vida em sociedade acabou por desenvolver neles um certo sentimento de fraternidade e de solidariedade: preferem dirigir-se a terceiros, a fim de esvaziarem os seus diferendos. A hospitalidade dos povos primitivos, o respeito pela vida humana, o sentimento de reciprocidade, a compaixão pelos fracos, a bravura levada até ao sacrifício de si mesmo na defesa do interesse de outrem, que se aprende primeiro a praticar para com as crianças e os amigos e mais tarde em relação aos membros da comunidade – todas estas qualidades se desenvolvem no homem anteriormente às leis, independentemente de qualquer religião, como em todos os animais sociáveis. Estes sentimentos e estas práticas são o resultado inevitável da vida em sociedade. Sem serem inerentes ao homem (tal como dizem os padres e os metafísicos), estas qualidades são a consequência da vida em comum.

Mas, ao lado destes costumes, necessários à vida das sociedades e à conservação da espécie, produzem-se nas associações humanas outros desejos, outras paixões, donde, outros hábitos, outros costumes. O desejo de dominar os outros e de lhes impor a vontade própria, o desejo de se apossar dos produtos do trabalho de uma tribo vizinha; o desejo de subjugar outros homens, a fim de alguém se rodear de gozos e prazeres, sem a pessoa ser obrigada a trabalhar ela mesma, enquanto os escravos produzem o necessário e proporcionam ao seu amo todos os prazeres e todas as volúpias – esses desejos pessoais, grosseiramente egoístas, criam outra corrente de hábitos e costumes. Por um lado, o padre – esse charlatão que explora em proveito próprio a superstição e que, depois de se ter emancipado a si mesmo do medo do diabo, o propaga no meio dos outros; e, por outro lado, o guerreiro, esse arrasa-montes fanfarrão que incita à invasão e à pilhagem dos vizinhos, a fim de voltar a casa carregado do produto do saque e seguido de escravos – ambos, de mãos dadas, conseguem impor às sociedades primitivas costumes vantajosos para eles e que tendem a perpetuar o seu domínio sobre as massas. Aproveitando-se da indolência, do medo, da inércia das multidões e graças à repetição constante dos mesmos atos, conseguem estabelecer, com carácter permanente, costumes que passam a ser o ponto de apoio da sua dominação.

Para isso, exploram primeiro o espírito de rotina que está tão desenvolvido no homem e que atinge um grau tão impressionante nas crianças, nos povos selvagens, assim como nos animais. O homem, sobretudo quando é supersticioso, tem sempre medo de mudar seja o que for ao que existe; geralmente venera o que é antigo. «Os vossos pais fizeram assim; assim viveram nos bons e maus momentos, educaram-vos, não foram infelizes, tratai de fazer o mesmo!» – dizem os anciãos aos jovens, a partir do momento em que estes querem mudar qualquer coisa. O desconhecido assusta-os, preferem agarrar-se ao passado, mesmo que esse passado represente a miséria, a opressão, a escravatura. Pode-se mesmo dizer que, quanto mais infeliz o homem for, mais receio tem de mudar o que quer que seja, com medo de se tornar ainda mais infeliz; é preciso que um raio de esperança e algumas horas de bem-estar penetrem na sua triste choça, para que ele comece a querer mais e melhor, a criticar a antiga maneira de viver, a desejar uma mudança. Enquanto esta esperança não o penetrar, enquanto não se emancipar da tutela dos que se servem das suas superstições e temores, preferirá ficar na mesma situação. Se os jovens quiserem mudar qualquer coisa, os velhos soltarão um grito de alarme contra os inovadores. Aquele selvagem preferiria deixar-se matar a transgredir o costume do seu país, porque desde a infância lhe disseram que a menor infracção aos costumes estabelecidos lhe traria desgraça, causaria a ruína de toda a tribo. E ainda hoje, quantos políticos, economistas e pretensos revolucionários agem sob a mesma impressão, agarrando-se a um passado que se vai embora! Quanto não têm outra preocupação senão procurar precedentes! Quantos fogosos inovadores não passam de simples copistas das revoluções anteriores!

Este espírito de rotina cuja origem vai beber na superstição, na indolência, e na cobardia, constituiu em todos os tempos a fonte da força dos opressores; e nas sociedades humanas primitivas foi habilmente explorado pelos padres e os chefes militares perpetuando os costumes, só para eles vantajosos, que eles conseguiam impor às tribos.

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Enquanto este espírito de conservantismo, habilmente explorado, bastava para garantir o esbulho da liberdade dos indivíduos pelos chefes; enquanto as únicas desigualdades entre os homens eram as desigualdades naturais e estas não se encontravam ainda decuplicadas ou centuplicadas pela concentração do poder e das riquezas – ainda não se fazia sentir nenhuma necessidade da lei e do aparelho formidável dos tribunais e das penas de prisão sempre crescentes para impô-la.

Mas quando a sociedade começou a cindir-se cada vez mais em duas classes hostis – uma que busca estabelecer a sua dominação e a outra que procura subtrair-se a ela –, então a luta começou a travar-se. O vencedor de hoje apressa-se a imobilizar o facto consumado, procura torná-lo indiscutível, torná-lo santo e venerável por tudo o que os vencidos podem respeitar. A Lei faz a sua aparição, sancionada pelo padre e tendo às ordens a clava do guerreiro. Trabalha para parar no tempo os costumes vantajosos para a minoria dominadora e a Autoridade militar encarrega-se de lhe garantir total obediência. O guerreiro encontra ao mesmo tempo nesta nova função um instrumento para tornar mais firme o seu poder; não tem mais ao seu serviço uma simples força brutal: ele é o defensor da Lei.

Mas, se a Lei só apresentasse um amontoado de prescrições unicamente favoráveis aos dominadores, teria grande dificuldade para ser aceite, para se fazer obedecer. Ora bem, o legislador salta o obstáculo e confunde num único e mesmo código as duas correntes de costumes de que acabamos de falar: as máximas que representam os princípios de moral e de solidariedade elaborados pela vida em comum e as ordens que devem para sempre consagrar a desigualdade. Os costumes que são absolutamente necessários à própria existência da sociedade, são habilmente misturados no Código com as práticas impostas pelos dominadores, as quais têm pretensões ao mesmo respeito por parte da multidão. “Não matarás!” – diz o Código, que se apressa logo a acrescentar: “Paga o dízimo ao padre”. “Não roubarás!” – determina o Código e imediatamente a seguir comina: “O que não pagar impostos terá o braço cortado”.

Eis a Lei e este duplo carácter manteve-o ela até hoje. A sua origem é ou está no desejo dos dominadores imobilizarem os costumes que eles mesmos tinham imposto para vantagem própria.

O seu carácter é ou está na amálgama hábil dos costumes úteis para a sociedade – costumes que não têm necessidade de lei para ser respeitados – com os outros costumes que só apresentam vantagens para os dominadores, que são prejudiciais para as massas e que só são mantidos pelo pavor dos suplícios.

Não mais do que o capital individual, nascido da fraude e da violência e desenvolvido sob os auspícios da Autoridade, a Lei tem qualquer título ao respeito dos homens. Nascida da violência e da superstição, estabelecida no interesse do padre, do conquistador e do rico explorador, deverá ser abolida por inteiro, no dia em que o povo quiser quebrar as grilhetas e as correntes que o amarram de pés e mãos.

Convencer-nos-emos disso ainda melhor, analisando no capítulo seguinte o desenvolvimento ulterior da Lei, sob os auspícios da religião, da Autoridade e do regime parlamentar atual.

III


Vimos como é que a Lei nasceu dos costumes e usos estabelecidos e como representava desde o começo uma mescla hábil de costumes sociáveis, necessários à preservação da espécie humana, com outros costumes, impostos pelos que usavam a seu favor as superstições populares e o direito do mais forte. Esse duplo carácter da Lei determina o seu desenvolvimento ulterior em povos cada vez mais policiados. Mas enquanto o núcleo de costumes de sociabilidade inscritos na Lei não sofre senão uma modificação muito fraca e muito lenta ao longo dos séculos – é a outra parte das leis que se desenvolve, completamente em proveito das classes dominantes, totalmente em detrimento das classes oprimidas. É à justa se, de tempos a tempos, as classes dominantes deixam que lhes arranquem uma lei qualquer que representa, ou parece representar, uma certa garantia para os deserdados. Mas então essa lei não faz mais do que ab-rogar uma lei precedente, feita para avantajar as classes dominadoras. «As melhores leis, dizia Buckle, foram as que ab-rogaram leis precedentes». Mas que esforços terríveis não foi necessário despender, que rios de sangue não foi preciso derramar, cada vez que se tratava de ab-rogar uma dessas instituições que servem para pôr o povo a ferros. Para abolir os últimos vestígios da servidão da gleba e dos direitos feudais, para quebrar o poderio da camarilha real, foi preciso que a França passasse por quatro anos de revolução e por vinte de guerras[2]. Para ab-rogar a mais pequena das leis iníquas que nos foram legadas pelo passado, são precisas dezenas de anos de luta e as mais das vezes elas não desaparecem senão nos períodos revolucionários.

***


Os socialistas já fizeram inúmeras vezes a história da gênese do Capital. Contaram como ele nasceu das guerras e do saque, da escravatura, da servidão da gleba, da fraude e da exploração moderna. Mostraram como é que ele se alimentou do sangue do operário e como pouco a pouco conquistou o mundo inteiro. Ainda está por fazer a mesma história, no que respeita à gênese e ao desenvolvimento da Lei. O espírito popular, tomando, como sempre, a dianteira em relação aos homens do gabinete de ministros, já está a fazer a filosofia dessa história e a plantar os marcos essenciais do seu percurso.

Feita para garantir os frutos da pilhagem, do açambarcamento e da exploração, a Lei seguiu as mesmas fases de desenvolvimento do Capital: irmã e irmão gêmeos, eles caminham de mãos dadas, alimentando-se ambos dos sofrimentos e das misérias da humanidade. A sua história foi quase a mesma em todos os países da Europa. Apenas os detalhes diferem; o fundo da questão permanece o mesmo e deitar uma vista de olhos ao desenvolvimento da Lei em França. Ou na Alemanha, é conhecer nos traços essenciais as suas fases de desenvolvimento na maior parte das nações europeias.

Nas origens, a lei consistia no pacto, ou contrato nacional. No Campo de Marte, as legiões e o povo aceitavam o contrato; o Campo de Maio das comunas primitivas da Suíça ainda é uma recordação dessa época, apesar de toda a alteração que sofreu, por causa da intromissão da civilização burguesa e centralizadora. Certamente, esse contrato nem sempre era livremente consentido; o forte e o rico impunham já a própria vontade nessa época. Mas, pelo menos, encontravam um obstáculo às suas tentativas de invasão da massa popular que amiúde também lhes fazia sentir a sua força.

À medida que a Igreja, por um lado, e o senhor feudal, por outro, conseguem sujeitar o povo, o direito de legiferar escapa das mãos da nação para passar para as dos privilegiados. A Igreja expande os seus poderes; apoiada pelas riquezas que se acumulam nos seus cofres, mete cada vez mais o bedelho na vida privada e, a pretexto de salvar almas, apropria-se do fruto do trabalho dos seus servos; cobra imposto a todas as classes, estende a sua jurisdição; multiplica os delitos e as penas e enriquece-se na proporção direta dos delitos cometidos, já que é para os seus cofres-fortes que escorre o produto das multas. As leis não têm mais qualquer relação com os interesses nacionais: «crer-se-ia que emanavam mais de um concílio de fanáticos do que de um corpo de legisladores», observa um historiador do direito francês.

Ao mesmo tempo, à medida que o senhor, pelo seu lado, estende os seus poderes sobre os cultivadores dos campos e os artesãos das cidades, também é ele que passa a ser juiz e legislador. No século X, se monumentos de direito público há, não passam de tratados que regulam as obrigações, as corveias, as faxinas e os tributos dos servos e dos vassalos do senhor. Os legisladores dessa época são um punhado de salteadores que se multiplicam e organizam para a roubalheira que exercem contra um povo que se torna cada vez mais pacífico, à medida que se dedica à agricultura. Exploram em seu benefício o sentimento justiça inerente aos povos; para o efeito, armam-se em justiceiros, fazem da própria aplicação dos princípios de justiça uma fonte de rendimentos e formulam leis que servirão para manter a sua dominação.

Mais tarde, tais leis, reunidas por legistas e classificadas, servirão de fundamento aos códigos modernos. E ainda se ousa falar em respeitar os códigos, herança do padre e do barão!

A primeira revolução, a revolução das comunas medievais, não conseguiu mais que abolir parte dessas leis; porque as cartas das comunas libertas não são na maior parte dos casos senão um compromisso entre a legislação senhorial ou episcopal, e as novas relações sociais, criadas no seio da comuna livre. E, no entanto, que diferença entre essas leis e as leis atuais! A Comuna não se arroga o direito de prender ninguém e de guilhotinar[3] os cidadãos por qualquer razão de Estado: limita-se a expulsar quem conspirar com os inimigos da Comuna e a arrasar a sua casa. Para a maior parte dos pretensos “crimes e delitos”, limita-se a impor multas; chega-se mesmo a ver, nas Comunas do século XII, esse princípio tão justo, mas hoje esquecido, segundo o qual toda a Comuna responde pelas malfeitorias cometidas por cada um dos seus membros[4]. As sociedades de então, considerando o crime como um acidente ou como uma infelicidade – tal ainda é até ao presente o caso da concepção do camponês russo – e não admitindo o princípio da vingança pessoal, pregado pela Bíblia, entendiam que a culpa de cada má ação recaía sobre a sociedade inteira. Foi necessária toda a influência da Igreja bizantina, que importava para o Ocidente a crueldade refinada dos déspotas do Oriente, para introduzir nos costumes dos Gauleses e dos Germanos a pena de morte e os suplícios horríveis que mais tarde foram infligidos aos que se considerava como criminosos; e também foi necessária toda a influência do código civil romano – produto da podridão da Roma Imperial – para introduzir essas noções de propriedade fundiária ilimitada que vieram derrubar os costumes comunalistas dos povos primitivos.

Sabe-se que as Comunas livres não puderam aguentar-se; foram vítimas da realeza. E à medida que o poder do rei adquiria uma força nova, o direito de legislar passava cada vez mais para as mãos de uma pequena súcia de cortesãos. O apelo à nação só passa a ser feito para sancionar os impostos exigidos pelo rei. Parlamentos, convocados com dois séculos de intervalo, segundo a real gana e os caprichos da Corte, “Conselhos extraordinários”, “sessões de notáveis” onde os ministros mal ouvem as “queixas” dos súbditos do rei – eis os novos legisladores. E mais tarde ainda, assim que todos os poderes estão concentrados numa única pessoa que diz: “O Estado sou eu”[5] - é “no segredo dos Conselhos do príncipe”, segundo a fantasia de um ministro ou de um rei imbecil, que se fabricam os éditos aos quais os súbditos são obrigados a obedecer, sob pena de morte. Todas as garantias judiciárias são abolidas; a nação é serva do poder real e de um punhado de cortesãos; as penas mais terríveis: a roda, a fogueira, a esfolação, as torturas de todos os gêneros e feitios – produto da fantasia doente de monges e de loucos raivosos que ficam deliciados com os sofrimentos dos supliciados –, eis os progressos que fazem a sua aparição nesta época.

***


É à grande revolução francesa que cabe a honra de ter começado a demolição desta andaimaria de leis que nos foi legada pela feudalidade e a realeza. Mas, após ter demolido algumas partes do velho edifício, a Revolução pôs o poder de legiferar entre as mãos da burguesia que, por sua vez, começou a erguer nova andaimaria de leis destinadas a manter e a perpetuar a sua dominação sobre as massas. Nos seus parlamentos, legisla a perder de vista e montanhas de papelada acumulam-se a uma rapidez assustadora. Mas, no fundo, o que são todas estas leis?

A maior parte só tem uma finalidade: proteger a propriedade individual, quer dizer, as riquezas adquiridas por meio da exploração do homem pelo homem, abrir novos campos de exploração ao Capital, sancionar as novas formas que a exploração incessantemente reveste, à medida que o Capital açambarca novos ramos da vida humana: ferrovias, telégrafos, luz eléctrica, indústria química, expressão do pensamento humano pela literatura e pela ciência, etc. O resto das leis, no fundo, tem também sempre a mesma finalidade, quer dizer, a manutenção da máquina governamental, que serve para garantir ao capital a exploração e a monopolização das riquezas produzidas. Magistratura, polícia, exército, instrução pública, finanças – tudo serve o mesmo deus: o Capital; tudo isso tem um só fim: o de proteger e facilitar a exploração do trabalhador pelo capitalista. Analisai todas as leis feitas de há oitenta anos até hoje – não encontrareis outra coisa. A proteção das pessoas, que se quer representar como a verdadeira missão da Lei, não ocupa senão um lugar quase imperceptível no meio dessa tralha jurídica; porque, nas sociedades atuais, os ataques contra as pessoas, ditados diretamente pelo ódio e a brutalidade, tendem a desaparecer. Se se mata alguém, hoje, é para pilhar e raramente por vingança pessoal. E se esse gênero de crimes e delitos vai sempre diminuindo, não é certamente graças à legislação que o devemos: é ao desenvolvimento humanitário das nossas sociedades, aos nossos hábitos cada vez mais sociáveis, e não às prescrições das leis. Que se ab-rogue amanhã todas as leis concernentes à proteção das pessoas, que se deixe amanhã de instaurar processos judiciais por crimes contra as pessoas, e o número de atentados ditados pela vingança pessoa ou pela brutalidade não terá acréscimo de um único.

Talvez nos venham objectar que foram feitas desde há cinquenta anos um bom número de leis liberais. Mas analise-se essas leis e ver-se-á que todas essas leis liberais não são mais que a ab-rogação das leis que nos foram legadas pela barbárie dos séculos precedentes. Todas as leis liberais, todo o programa radical, resumem-se nestas palavras: abolição das leis tornadas incômodas para a própria burguesia e regresso às liberdades das comunas do século XII estendidas a todos os cidadãos. A abolição da pena de morte, o júri para todos os “crimes” (o júri, mais liberal do que hoje, existia no século XII), a magistratura eleita, o direito de acusação dos funcionários, a abolição dos exércitos permanentes, a liberdade de reunião, a liberdade de ensino, tudo o que nos dizem ser uma invenção do liberalismo moderno, enfim, não passa de um regresso às liberdades que existiam, antes que a Igreja e o Rei tivessem estendido a mão sobre a humanidade.

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A proteção da exploração – direta, pelas leis, sobre a propriedade, e indireta, pela manutenção do estado –, eis portanto a essência e a matéria dos códigos modernos e a preocupação dos dispendiosos mecanismos de legislação. Chegou o tempo, entretanto, de não perdê-lo com fraseologia e de nos apercebermos do que são na realidade esses estratagemas. A lei que foi apresentada a princípio como uma recolha de costumes úteis para a preservação da sociedade, não passa de um instrumento para a manutenção da exploração e da dominação dos ricos ociosos sobre as massas laboriosas. Hoje, a sua missão civilizadora é nula; só tem uma verdadeira missão: a conservação da exploração.

Aqui está o que nos diz a história do desenvolvimento da Lei. É a esse título que somos chamados a respeitá-la? Com certeza que não. Não mais que o Capital, produto do assalto à mão armada, ela tem direito ao nosso respeito. E o primeiro dever dos revolucionários do século XIX será fazer um auto-de-fé de todas as leis existentes, do mesmo modo que o farão dos títulos de propriedade.

IV


Se estudarmos os milhões de leis que regem a humanidade, aperceber-nos-emos facilmente que podem ser subdivididas em três grandes categorias: proteção da propriedade, proteção do Governo, proteção das pessoas. E, ao analisarmos essas três categorias, chegar-se-á em relação a cada uma delas a esta conclusão lógica e necessária: inutilidade e nocividade da Lei.

No que à proteção da propriedade tange, os socialistas sabem sobejamente o que se passa. As leis sobre a propriedade não são feitas para garantir, nem ao indivíduo, nem à sociedade, o gozo dos produtos do trabalho de cada um. São feitas, pelo contrário, para furtar ao produtor uma parte do que produz e para garantir a alguns a parte dos produtos que furtaram, quer aos produtores, quer à sociedade inteira. Quando a lei estabelece os direitos do senhor Fulano de Tal sobre uma casa, por exemplo, estabelece o seu direito, não sobre uma choupana que ele mesmo tivesse construído, nem sobre uma casa que ele tivesse erguido com a ajuda de alguns amigos – aliás, ninguém lhe teria disputado tal direito, se assim fosse. A lei, pelo contrário, estabelece os seus direitos sobre uma casa que não é o produto do seu trabalho, para começar porque ele a fez construir por outros, a quem não pagou todo o valor de seu trabalho, e a seguir porque essa casa representa um valor social que ele, só, não pôde produzir: a lei portanto estabelece os seus direitos sobre uma porção do que pertence a toda a gente e a ninguém em particular. A mesma casa, construída mesmo no meio da Sibéria, não teria o valor que tem dentro de uma grande cidade e o seu valor atual provém – bem se sabe – do trabalho de cerca de cinquenta gerações que construíram a cidade, que a embelezaram, proveram de água e de gás, de belas avenidas, de universidades, de teatros e de armazéns, de ferrovias e de estradas que irradiam em todas as direções. Donde, ao reconhecer os direitos do senhor Fulano de tal sobre uma casa em Paris, em Londres, em Rouen, a lei apropria-lhe – injustamente – uma certa parte dos produtos do trabalho da humanidade inteira. E é precisamente porque esta apropriação é uma injustiça gritante (todas as outras formas de propriedade têm o mesmo carácter) que foi necessário criar todo um arsenal de leis e todo um exército de soldados, de polícias e de juízes para mantê-lo, contra o bom senso e o sentimento de justiça inerente à humanidade.

Ora bem, a metade das leis vigentes – os códigos civis de todos os países – não tem outra finalidade para além de manter esta apropriação, este monopólio, em proveito de alguns, contra a humanidade inteira. Os três quartos dos processos julgados pelos tribunais não passam de querelas que surgem entre monopolistas: dois ladrões em disputa pelo saque. E boa parte das leis criminais tem também o mesmo fim, já que estas têm como objectivo manter o operário numa posição de subordinação ao patrão, a fim de lhe acautelar a exploração daquele.

Quanto a garantir ao produtor os frutos do seu trabalho, nem sequer há leis que se encarreguem disso. É coisa tão simples e tão natural, tão bem ancorada nos costumes e nos hábitos da humanidade, que a lei nem sequer sonhou com ela. O bandoleirismo declarado, de armas na mão, já não é do nosso século: um trabalhador também não vem nunca disputar a outro trabalhador os produtos do seu trabalho; se qualquer mal-entendido houver entre ambos, esvaziam-no de conteúdo sem recurso à Lei, dirigindo-se a terceiros; e se alguém vier exigir de outro uma certa parte do que produziu, só pode ser o proprietário, que vem fazer o levantamento antecipado da sua parte de leão. Quanto à humanidade em geral, respeita em todo o lado o direito de cada um ao que produziu, sem que para o efeito haja necessidade de leis especiais.

Todas essas leis sobre a propriedade, que enchem os gordos volumes dos códigos e de alegria os soldados, ao não terem outro fito para além do da proteção da apropriação injusta dos produtos do trabalho da humanidade por certos monopolistas, não têm nenhuma razão de ser e os socialistas revolucionários estão bem decididos a fazê-las desaparecer, no dia da Revolução. Podemos, com efeito, com toda a justiça, fazer um auto-de-fé completo de todas as leis relacionadas com os aqui nomeados “direitos de propriedade”, de todos os títulos de propriedade, de todos os arquivos – numa ou em poucas palavras, de tudo o que diz respeito a essa instituição que em breve será considerada como uma nódoa humilhante na história da humanidade, pela mesma razão que a escravatura e a servidão dos séculos passados.

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O que acabamos de dizer sobre as leis respeitantes à propriedade aplica-se completamente a esta outra segunda categoria de leis: as leis que servem para manter o Governo, ou leis constitucionais.

Está-se mais uma vez perante um arsenal completo de leis, decretos, ordenações, advertências, etc., que servem para proteger as diversas formas de Governo representativo – por delegação ou usurpação –, sob o qual se debatem ainda as sociedades humanas. Sabemos muito, mas mesmo muito bem – os anarquistas demonstraram-no bastantes vezes pela crítica incessante das diversas formas de Governo –, que a missão de todos os governos, monárquicos, constitucionais e republicanos, é proteger e manter pela força os privilégios das classes possidentes: aristocracia, padralhada e burguesia. Cerca de um terço bem pesados das leis – as leis “fundamentais”, as leis sobre os impostos, sobre as alfândegas, sobre a organização dos ministérios e das suas chancelarias, sobre o exército, a polícia, a Igreja, etc. – e há bem algumas dezenas de milhares em cada país – não tem outra finalidade senão manter, consertar e desenvolver a máquina governamental, a qual serve, por sua vez, quase inteiramente para proteger os privilégios das classes possidentes. Analise-se todas essas leis, faça-se a sua observação na ação do dia-a-dia, e toda a gente se aperceberá que não há uma única boa e digna de ser conservada, a começar pelas que entregam as comunas, de mãos e pés atados, ao pároco, ao grande burguês do sítio e ao subprefeito, e acabando nessa famosa Constituição (a 19ª ou 20ª desde 1789)[6] que nos dá uma Câmara de cretinos e de especuladores na Bolsa, que preparam a ditadura de um aventureiro qualquer, caso não seja o governo de um cabeça de abóbora coroado.

Em resumo, em relação a estas leis, não pode haver qualquer dúvida. Não só os anarquistas, mas também os burgueses mais ou menos revolucionários, estão de acordo sobre o seguinte: o único uso que se possa eventualmente fazer de todas as leis referentes à organização do Governo – é acender-se uma jubilosa fogueira de festa.

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Resta a terceira categoria de leis, a considerada mais importante, já que é a ela que se agarram mais preconceitos: as leis respeitantes à proteção das pessoas, à punição e à prevenção dos “crimes”. Com efeito, esta categoria é a mais importante, porque, se a Lei goza de uma certa consideração, é porque se crê este gênero de leis absolutamente indispensável à segurança do indivíduo na sociedade. São estas leis as tais que se desenvolveram a partir do núcleo de costumes úteis para as sociedades humanas e que foram exploradas pelos dominadores para sancionar o seu domínio. A autoridade dos chefes de tribo, das famílias ricas das comunas e do rei apoiava-se nas funções de juiz que exerciam; e ainda até ao presente, cada vez que se fala da necessidade do Governo, é a sua função de juiz supremo que se subentende. «Sem Governo, os homens cortariam as goelas uns aos outros», diz o pensador de aldeia. «O objectivo final de qualquer Governo é dar doze honestos jurados a cada acusado», dizia Burke.

Pois bem, apesar dos preconceitos existentes sobre este assunto, já não é sem tempo de os anarquistas dizerem com voz grossa que esta categoria de leis é tão inútil e nociva como as precedentes.

Para começar, quanto aos chamados “crimes”, aos atentados contra as pessoas, é com sabido que dois terços e frequentemente até três quartos de todos esses “crimes” são inspirados pelo desejo de alguém se apossar das riquezas pertencentes a outrem. Esta categoria imensa dos chamados “crimes e delitos” desaparecerá no dia em que a propriedade privada tiver deixado de existir.

«Mas, dir-nos-ão, haverá sempre brutos que atentarão contra a vida dos cidadãos, que desfecharão uma facada a cada querela, que vingarão a menor ofensa com um homicídio, se não houver leis para reduzi-los à impotência e penas para detê-los!». Aí está o refrão que nos cantam, mal pomos em dúvida o direito de punir da sociedade. Sobre isso há, no entanto, uma coisa hoje bem estabelecida: a severidade das punições não diminui o número dos “crimes”. Enforcai, esquartejai, se quiserdes, os assassinos, o número de assassínios não diminuirá um só. Pelo contrário, aboli a pena de morte e não haverá um assassinato a mais. Os estatísticos e os legistas sabem que nunca diminuição da severidade no código penal trouxe um aumento de atentados contra a vida dos cidadãos. Por outro lado, seja a colheita boa, esteja o pão barato, esteja o tempo bom – e o número de assassinatos diminuirá logo. Está provado pela estatística que o número de crimes aumenta e diminui, em proporção do preço dos víveres e do bom ou mau tempo. Não é que todos os assassinatos sejam inspirados pela fome. Nada disso; mas quando a colheita é boa e os víveres estão a um preço acessível, os homens mais alegres, menos miseráveis do que habitualmente, não se deixam arrastar pelas paixões sombrias e não vão enterrar a faca na barriga de um dos seus semelhantes por motivos fúteis.

Além disso, também é com sabido que o medo do castigo nunca deteve um único assassino. Todo aquele que vai matar o vizinho movido pelo desejo de vingança ou pela miséria não raciocina demasiado sobre as consequências do seu ato; e não há assassino que não tenha tido a firme convicção de que vai escapar às diligências legais. De resto, que cada um raciocine por si mesmo sobre o assunto, analise os crimes e as penas correspondentes, os motivos e as consequências deles e, se souber raciocinar sem se deixar influenciar pelas ideias feitas, chegará necessariamente a esta conclusão:

«Sem se falar já de uma sociedade em que o homem receberá uma melhor educação, onde o desenvolvimento de todas as suas faculdades e a possibilidade de usá-las lhe proporcionarão tanto prazer que ele não procurará perdê-las por causa de um assassinato – sem se falar da sociedade futura, até mesmo na sociedade atual, com estes tristes produtos da miséria que hoje vemos nos botequins das grandes cidades –, no dia em que nenhuma punição for infligida aos assassinos, o número de assassínios não registará o aumento de um único caso por tal motivo; pelo contrário, até é muito provável que tal número diminuísse, pela subtração de todos os casos que hoje são devidos aos reincidentes, embrutecidos nas prisões».

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Falam-nos sempre dos benefícios da lei e dos efeitos salutares das penas. Mas já alguma vez se tentou fazer o balanço entre os benefícios atribuídos à Lei e às penas e o efeito degradante dessas penas sobre a humanidade? Faça-se apenas a adição de todas as más paixões despertas nos espectadores pelas punições atrozes que eram infligidas nas nossas ruas. Então quem é que cultivou e desenvolveu os instintos de crueldade no homem (instintos desconhecidos nos animais, já que o homem se tornou no animal mais cruel à face da terra), se não foram o rei, o juiz e o padre, armados de leis, que mandavam arrancar a carne viva aos pedaços, derramar pez a ferver sobre as feridas, desmembrar, triturar os ossos, serrar os homens ao meio, a fim de manterem a sua autoridade? Calcule-se apenas toda a torrente de depravação despejada nas sociedades humanas pela delação, favorecida pelos juízes e paga pelo metal sonante do Governo, com o pretexto de contribuir para a descoberta dos crimes. Vá-se até a prisão e estude-se por lá aquilo em que o homem se transforma, privado de liberdade, fechado a sete chaves com outros depravados que se impregnam de toda a corrupção e de todos os vícios que as paredes das prisões atuais ressumam; e lembre-se ao menos alguém que quanto mais são elas reformadas, mais detestáveis ficam, sendo as penitenciárias modernas e modelares cem vezes mais corruptoras que as torres de menagem da Idade Média. Tome-se, enfim, em consideração quanta corrupção, quanta depravação do espírito são mantidas na humanidade pelas ideias de obediência – essência da lei –, de castigo, de autoridade com o direito de punir, de julgar do lado de fora da consciência de cada um; assim como pelo exercício das funções de carrasco, de carcereiro, de delator – numa palavra, pelo funcionamento de todo este imenso aparelho da Lei e da Autoridade. Considere-se tudo isso e toda a gente estará certamente de acordo conosco, sempre que dissermos que a Lei e a penalidade são abominações que devem deixar de existir.

Aliás, os povos primitivos não policiados e, à partida, menos imbuídos de preconceitos autoritários compreenderam perfeitamente que aquele a quem chama “criminoso”, é muito simplesmente um infeliz; que não é questão de chicoteá-lo, de acorrentá-lo ou de fazê-lo morrer no patíbulo ou na prisão, mas que é preciso aliviá-lo pelos cuidados mais fraternos, por um tratamento igualitário, pela prática da vida entre pessoas honestas. E esperamos que a próxima revolução faça ressoar este brado:

«Queimemos as guilhotinas, deitemos por terra as prisões, escorracemos o juiz, a polícia, o delator – raça imunda, se jamais houve outra igual sobre a terra –,tratemos como um irmão aquele que tiver sido levado pela paixão a fazer mal ao seu semelhante; acima de tudo, retiremos aos grandes criminosos, a esses produtos ignóbeis do parasitismo burguês, a possibilidade de exibição das suas taras sob formas sedutoras – e tenhamos a certeza de que não teremos mais que muitos poucos crimes a assinalar na nossa sociedade. O que mantém vivo o crime (além do parasitismo) são a Lei e a Autoridade: a lei sobre a propriedade, a lei sobre o Governo, a lei sobre penas e delitos e a Autoridade que se encarrega de fazer essas leis e de aplicá-las».

Não mais leis, não mais juízes! A Liberdade, a Igualdade e a prática da Solidariedade são o único dique eficaz que, em caso de necessidade, possamos opor aos instintos antissociáveis de alguns de entre nós.


Notas:


[1] – Désiré Dalloz (1795-1869), jurista francês, autor, com o irmão Armand, de um “Repertório de Legislação, Doutrina e Jurisprudência”. Também compilou uma “Colectânea Periódica de Jurisprudência Geral”.

[2] – O autor refere-se ao período de 1789-1794 e, depois, ao de 1794-1815, ano da queda definitiva de Napoleão, após o regresso da sua permanência forçada na ilha de Elba e dos derradeiros “Cem Dias”.

[3] – É claro que Kropotkine bem sabia, autor como foi de um dos melhores livros de sempre sobre a Revolução Francesa, “A Grande Revolução (1789-1793)”, que a guilhotina só seria proposta como forma de “humanizar” a pena de morte pelo Dr. Joseph Ignace Guillotin, em 10 de Outubro de 1789, a exemplo do que já se fazia em Itália. Era uma forma de execução mais rápida e “limpa” do que a forca, a roda, a golilha do pelourinho ou o esquartejamento. A primeira decapitação legal teve lugar no dia 25 de Abril de 1792.

[4] – Já se sabe que, em tese, a responsabilidade é individual e não colectiva e que, como reza a caricatura, seria aberrante alguém responder pelo crime cometido pelo vizinho; mas, como o homem, incluindo o autor material do crime é, em boa parte, um produto da sociedade, não se pode apenas julgar o produto final, inocentando a engrenagem que o produziu. Além disso, com esta auto-responsabilização de todos, livremente assumida e não imposta, a todos se estendia de maneira não elitista a tão badalada “ética da responsabilidade”…

[5] – Frase atribuída a Luís XIV (1638-1715), “O Grande”, “O Rei Sol”, já depois dele ter domesticado a nobreza e transferido a Corte para Versalhes, porque sempre desconfiara de Paris…

[6] – O autor refere-se à Constituição de 1791 (Monarquia parlamentar), à de 1793 (Governo da Convenção), à de 1795 (Diretório), à de 1799 (Consulado), à de 1802 (Consulado vitalício), à de 1804 (Primeiro Império), à de 1814 (senatorial), à Carta Constitucional de 1814 (restauração monárquica), ao Ato adicional à Constituição do Império de 1815, à Carta Constitucional de 1830, à Constituição de 1848 (2ª República), à de 1852 (2º Império e Monarquia cesarista), à de 1870 (2º Império liberal), à de 1875 (3ª República). Já depois da morte de Kropotkine, a França ainda conheceria a Constituição de 1946 (4ª República) e a de 1958 (5ª República). E entre todas estas datas ainda houve revises e ajustes…