sábado, 14 de setembro de 2024

Para enfrentar a assimilação eleitoral em Porto Alegre

Porto Alegre 2024: Maio debaixo d'água, Setembro em cinzas.

A capital do Estado do Rio Grande do Sul contém particularidades que expressam as tendências globais das calamidades capitalistas, portanto decidimos fazer uma publicação especial sobre as eleições municipais de Porto Alegre. Essa publicação não tem o objetivo de tratar de modo detalhado o processo eleitoral em si, mas situá-lo no contexto da luta de classes mundial.

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Esse texto foi escrito enquanto respirávamos as nuvens de fumaça dos incêndios provocados pelo agronegócio. No momento não abordaremos esse fato, mas não poderíamos deixar de mencioná-lo nessa publicação, visto que expressa as tendências destrutivas que abordaremos aqui. Reconhecemos que nossa contribuição ainda não é suficientemente abrangente para a questão particular que nos propomos discutir. No entanto, as orientações gerais aqui expostas podem ser o ponto de partida para se aprofundar em discussões mais particulares acerca da luta de classes na região metropolitana do território ocupado pelo Estado do Rio Grande do Sul (e também noutras regiões).

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Observação: entre colchetes marcamos as notas que se encontram ao final do texto.

Considerações iniciais:


Nossa caracterização da situação histórica mundial do capitalismo é de uma crise de decomposição que  tem deteriorado as condições de vida em todo o planeta. Neste sentido, a tendência histórica geral que vivemos é de contínua destruição ambiental [1], de aumento da riqueza monetária de um punhado de capitalistas construída sob a miséria generalizada da maioria da população mundial [2], de massacres oriundos de disputas imperialistas [3], em suma, todas as consequências nefastas que são produtos da exploração e dominação de classe. Portanto, não resta alternativa senão reerguer o programa da revolução social em todo o mundo.

Com base nisso, enfatizamos mais uma vez que a posição fundamental que determina nossas orientações é a defesa da revolução social, a luta pela abolição da sociedade de classes capitalista através de um movimento revolucionário dirigido pelo proletariado [4]. Não significa que defendemos que apenas a classe proletária deve determinar sozinha o curso da revolução, mas que sua realização depende do movimento proletário coordenar o conjunto dos explorados e oprimidos em uma luta unificada contra o conjunto dos exploradores e opressores. As transformações sociais radicais necessárias para um processo de emancipação coletiva derivam das condições históricas mundiais que fazem do proletariado a classe revolucionária em luta contra as forças reacionárias dirigidas pelos capitalistas.

Nossa intervenção teórico-prática na luta de classes é orientada conforme a realização desse objetivo revolucionário. A análise da situação está articulada com a estratégia que consideramos apropriada para atingir esse fim [5]. Portanto, o cenário eleitoral é apenas a superfície imediata a partir da qual intervimos para promover o programa revolucionário. Uma vez que existe uma difusão ideológica do eleitoralismo nas massas, devemos combatê-la em seus fundamentos.

As eleições na democracia representativa ocorrem para renovar os quadros administrativos conforme as exigências da gestão dos negócios da classe dominante em cada conjuntura. Os pretensos “partidos de esquerda” que disputam as eleições não alteram essa situação de modo algum. E aqueles que buscam participar do processo eleitoral para supostamente fazer “campanha revolucionária” prometendo “parlamentarismo revolucionário” não passam de oportunistas [6]. A única contribuição de grupos auto-proclamados como “oposição de esquerda” ao participar do processo eleitoral é reforçar a legitimidade da democracia representativa da burguesia.

Todas as mudanças governamentais que podem ocorrer a partir de processos eleitorais seguem os padrões das exigências da acumulação de capital. Essas disputas no nível da institucionalidade burguesa são o resultado culminante da realidade profunda da luta de classes.

Da luta de classes, o campo histórico real sobre o qual se desenvolvem as contradições fundamentais do capitalismo, surgem as tendências eleitorais que expressam as disputas entre diferentes frações da classe dominante. Na medida em que a maioria da população é composta pelo proletariado, portanto as campanhas e disputas por legitimidade diante dos explorados é crucial para as vitórias eleitorais e para a própria assimilação ideológica.

No nível dos interesses econômicos, as diversas frações da burguesia concorrem pela produção e repartição da mais-valia, na forma de lucros, juros, rendas e impostos. Nessa concorrência, existem situações em que os capitalistas industriais podem se opor aos proprietários fundiários, os industriais aos comerciantes, parte da burguesia à propriedade estatal de ramos da produção, etc. Ramos dentro de uma mesma indústria também podem entrar em conflito, por exemplo: os lobbies da indústria automotiva do setor de caminhões e os do transporte ferroviário e fluvial. A relação entre essas frações capitalistas são mediadas pelo governo, como no caso dos recursos de crédito seletivos para determinados setores da economia, a coalizão entre capital financeiro e agronegócio, etc.

São essas relações de força que precisamos compreender para desmascarar as campanhas farsantes com a qual os partidos burgueses buscam realizar uma “assimilação eleitoral” do proletariado, isto é, uma sujeição da classe aos projetos políticos de seus exploradores.

Devemos acabar com a dissimulação de todos os grupos eleitorais com relação à realidade prática dos governos municipais e, no nosso caso particular, a capital gaúcha (Porto Alegre). Todo o cretinismo eleitoral consiste em promessas e ameaças vazias que falsificam as tendências históricas reais que determinam a situação das cidades no capitalismo contemporâneo. Na seção 1, apresentamos um panorama do espetáculo eleitoral da burguesia. Na seção 2, apresentamos as tendências gerais que condicionam a situação particular das eleições municipais em cidades que sediaram megaeventos (como é o caso de Porto Alegre). Na seção 3, expomos as tendências observadas no pós-eleição de 2022 que apontam para a continuidade da mesma política econômica de Temer e Bolsonaro. Na seção 4, defendemos o abstencionismo como um compromisso com a construção da autonomia proletária e da ação direta contra o capital.

1. A unidade contraditória entre duas tendências capitalistas contra o proletariado:


As eleições municipais nada mais são do que uma disputa entre distintos projetos capitalistas de cidade. A estratégia eleitoral visa dividir e assimilar o proletariado a um dos projetos burgueses de governo  municipal. Nesse sentido, não importa o que dizem defender ou o que escrevem em seus programas, mas sim o que esses partidos realizam na prática e como isso expressa a situação efetiva da luta de classes.

Nas eleições atuais de Porto Alegre, vemos uma disputa entre o partido socialdemocrata liderado pelo PT e a tentativa de reeleição do prefeito Melo (MDB). Na prática, a agenda petista continua sendo a manutenção da conciliação de classes através do aparelhamento de entidades representativas e “movimentos sociais” (com a nostalgia dos “bons tempos” da participação popular de outrora), concedendo algumas migalhas de políticas de inclusão e assistência social que possuem a função de anestesiar processos de revolta proletária. Por outro lado, a direita e ultradireita representadas pelo MDB investem numa cooptação da situação de crise e revolta para promover uma solução reacionária, aprofundando os processos de espoliações em curso na cidade sob sua gestão.

Da parte da pseudo-esquerda, persiste uma retórica moralista de enfrentamento dos “setores reacionários” que a socialdemocracia ajudou a colocar no poder, seja desmobilizando as forças de luta do proletariado, seja pavimentando o caminho institucional ao viabilizar grandes empreendimentos da indústria de megaeventos. Economicamente, o projeto de governo expressa as mesmas tendências da direita, enquanto que politicamente conservam um verniz progressista de liberdades democráticas e mecanismos de participação social que conduzem os movimentos sociais a darem legitimidade popular ao programa econômico. Durante o período eleitoral, as entidades representativas de bairro (associações de moradores, centros culturais de caráter “popular”, etc.), sindicais, de estudo, assim como os “movimentos sociais” são usados como palanque.

Da parte da direita e da ultradireita, trata-se de generalizar o saque imperialista da cidade, seja para grupos empresariais imobiliários, seja para empresas transnacionais que visam se apropriar de recursos estratégicos, sobretudo a água. Diferentemente da pseudo-esquerda, a direita tem assumido um caráter mais autoritário e populista, algo que os sociaisdemocratas chamam de “desdemocratização institucional” (desmantelamento das prerrogativas de controle social, de fiscalização popular, etc.), com recorrente uso de clientelismo (serviços pontuais para setores periféricos da cidade amplamente midiatizados nas redes, ampliação de cargos de confiança para incorporar representantes de comunidades que funcionam como cadeia de transmissão da auto-promoção do governo, etc.).

Não existe “mal menor” nesse cenário, apenas duas tendências de assimilação do proletariado visando promover diferentes frações da burguesia que representam os grupos eleitorais. Nessa disputa interburguesa há uma complementariedade não premeditada: a pseudo-esquerda pode contribuir com o desmantelamento da independência de classe e das iniciativas de luta diminuindo o ritmo dos ataques e a direita pode ampliar a guinada autoritária e agravar o saque imperialista num ritmo acelerado na medida em que a capacidade de reagir das massas foi desarmada pela pseudo-esquerda.

2. Capitalismo em crise e as cidades:


O capitalismo passa por diferentes momentos históricos de desenvolvimento de suas contradições onde orbitam os projetos políticos de regulamentação de suas tendências que são incorporados pelos partidos da ordem burguesa. Ao compreender a base social concreta desses partidos, é possível situá-los no quadro mais amplo das disputas interburguesas a nível mundial.

Atualmente, os alinhamentos e realinhamentos das diferentes frações da classe dominante ocorrem em função da centralidade da guerra comercial entre EUA e China, fruto do esgotamento da partilha inter-imperialista do mundo do pós-Segunda Guerra Mundial. Não é necessário entrar em detalhes sobre esse processo no momento [7], mas destacamos que atualmente os capitalistas são reféns do esgotamento da capacidade do processo de valorização do valor que caracteriza a fase de decomposição do modo de produção [8].

A guinada nas políticas econômicas de austeridade fiscal no Brasil é resultado da crise de 2008. O ponto de inflexão ocorre em 2014, embora este ano seja o resultado das decisões tomadas nos governos anteriores que apenas resultaram num agravamento da crise [9]. Nenhum governo brasileiro, seja a nível municipal, seja a nível estadual ou federal fez outra coisa senão viabilizar as mudanças necessárias às exigências capitalistas diante da crise.

Mesmo com as boas intenções do reformismo, a tendência geral mundial e nacional é uma piora nas condições de vida do proletariado e do conjunto dos explorados. Além disso, as pressões da crise econômica impulsionam processos de espoliação fundiária que culminam nos saques de territórios indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses, de preservação ambiental, dos lugares de valor cultural não-rentável ao capital nas cidades, etc.

Apesar da construção da Usina de Belo Monte (2011) e outros megaempreendimentos preparassem o terreno para os processos de espoliação (assim como mudanças na legislação, como no caso da mudança do código florestal de 2012 que facilitava o desmatamento para favorecer o avanço do agronegócio sobre as matas), podemos dizer que os ataques mais incisivos no meio urbano vieram dos portões da boiada dos megaeventos da Copa do Mundo (2014) e das Olimpíadas (2016) que culminaram nos ajustes governamentais urbanos necessários para que o setor do capital imobiliário avançasse e determinasse a política municipal em toda a malha urbana do país.

No caso portoalegrense, enquanto cidade sede da Copa, uma pesquisadora de urbanismo percebe em certo momento parte do fenômeno:

é possível constatar que sediar o megaevento foi estratégico para acessar recursos internacionais e difundir a imagem de uma cidade moderna, desenvolvida e eficiente (…). Além disso, a escolha e a gestão dos projetos se articulam sempre com temas relacionado ao crescimento econômico, ao empreendedorismo e à criação de um ambiente favorável aos negócios, todos considerados positivos segundo a lógica do empreendedorismo. Nesse contexto se aprofundam as práticas gerencialistas (…). Por fim, a realização do megaevento em Porto Alegre, estimulou a compressão espaço-tempo no processo de produção do espaço urbano, uma vez que o megaevento teve uma data determinada para acontecer. Esta compressão de cunho neoliberal alterou as formas de organização vigentes até então. Cabe destacar que, principalmente na década de 1990, movimentos sociais e os moradores de Porto Alegre haviam vivenciado processos participativos e inclusivos. A realização do megaevento configura, portanto, não apenas a oportunidade de investimentos estatais e estrangeiros, mas sobretudo, a oportunidade de transformação das relações sociais de produção até outrora vigentes (Misoczky de Oliveira, 2020, pp. 24-25, disponível em: link).

Percebe-se a nostalgia da autora dos anos dourados da socialdemocracia e um equívoco conceitual ao final, pois as relações sociais de produção do espaço continuam sendo as mesmas, mudando apenas a práticas governamentais e institucionais que as regulamentam.

Em suma, a doutrina de choque dos megaeventos consiste em mudanças abruptas na administração das cidades para poder viabilizar as obras dos megaempreendimentos, deixando um legado de precedentes jurídicos, técnicos, legislativos, etc., em benefício de uma aplicação de ativos do capital em processos de urbanização por espoliação [10].

Assim, todas as eleições municipais que se seguiram foram perpassadas por uma participação cada vez mais crescente do capital imobiliário enquanto agente político influente. Atualmente, essa situação tem sido denunciada pela campanha socialdemocrata sobre o “Melnickstão” [11], com o esquecimento conveniente de que este é herdeiro direto do legado dos megaeventos de governos petistas!

De todo modo, antes de verificarmos em nível local os efeitos desse processo em Porto Alegre, podemos constatar a inescapável continuidade da política econômica neoliberal no governo federal, visto que as eleições municipais derivam dos embates travados com relação à essa instância.

3. O governo Lulalckmin na prática:


No início do ano, escrevemos algumas considerações acerca do primeiro ano do governo Lulalckmin (elas se encontram em nosso texto sobre a criminalização da revolta). Assim, um balanço das medidas do governo federal em 2023 demonstraram a continuidade da política econômica de Temer e Bolsonaro, com as particularidades das políticas de inclusão e assistência social anestesiantes. Destacamos como indicadores dessa manutenção as seguintes medidas:

  • A não revogação das reformas trabalhista, previdenciária e da política de preços da Petrobras, além de encaminhar novas reformas como a tributária e administrativa.
  • A criação de um novo Teto de Gastos (denominado de “arcabouço fiscal”).
  • A ampliação das privatizações, incluindo as áreas de Educação, Saúde, Presídios, etc. além de cortes milionários em Saúde e Educação.
  • O Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) voltado para expandir a acumulação de capital da grande burguesia nacional e internacional.
  • O apoio do Brasil em mais uma ocupação militar imperialista no Haiti.
  • A submissão perante o massacre israelense contra os palestinos que se expressa no não rompimento das relações comerciais e diplomáticas com Israel.
  • O apoio do governo ao “PL do Veneno” e a uma liberação ainda maior no uso de agrotóxicos.
  • A continuidade dos desmatamentos, da violência no campo e das chacinas nas favelas, com o aprofundamento da política de apoio aos militares e latifundiários.
  • A postura dúbia e oportunista em relação ao Marco Temporal e ao Novo Ensino Médio.

A garantia dessa agenda do governo Lulalckmin ocorre através do aparelhamento socialdemocrata, ou seja: no controle dos sindicatos e demais aparatos de organização de massa que possuem suas direções burocratizadas pelas distintas frações da socialdemocracia (que conjuntamente estão todas submissas na frente que elegeu Lulalckmin). Destaca-se o novo teto de gastos do Arcabouço Fiscal como o carro chefe da continuidade da política econômica de Temer e Bolsonaro (que nada mais é do que a já mencionada ingerência fiscal do capital financeiro para saquear países semicoloniais através da dívida pública).

Em 2023 as direções burocráticas desviaram qualquer descontentamento para as “mesas de negociação” com as promessas de “aberturas de diálogo” que o governo Lulalckimin criou apenas para manobrar politicamente os trabalhadores (uma vez que as “mesas de enrolação” serviram apenas para um constrangimento de iniciativas de luta).

Em termos de política indigenista, nas eleições de 2022, a coalizão Lulalckmin se comprometeu em aprovar o “Revogaço” de uma série de medidas implementadas no governo Bolsonaro que afetavam negativamente os povos indígenas. A promessa de um “Revogaço” foi feita por Lula no Acampamento Terra Livre daquele ano. No entanto, o que se sucedeu em 2023?

Houve uma retomada extremamente tímida nas ações de fiscalização e repressão às invasões em alguns territórios indígenas, mas a demarcação de terras e as ações de proteção e assistência às comunidades permaneceram muito aquém do prometido. Houve uma continuidade das invasões, conflitos e ações violentas contra comunidades e manutenção de altos índices de assassinatos, suicídios e mortalidade infantil entre os povos indígenas. Somente em 2023, foram registrados 276 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio em pelo menos 202 territórios indígenas em 22 estados do Brasil. Além disso, o governo federal avançou no sentido de explorar petróleo no território indígena da foz do Amazonas, deu prioridade máxima orçamentária ao agronegócio, apoiou grandes projetos de infraestrutura através do PAC e de exploração minerária em conflito com povos indígenas, como a ferrovia “Ferrogrão” e as investidas de empresas estrangeiras sobre o território Mura, no Amazonas [12].

Também presenciamos o agravamento da situação brutal do povo Yanomami, mesmo depois da declaração do estado de Emergência Sanitária de Importância Nacional (Espin) na Terra Indígena Yanomami. O desmonte das conquistas dos povos indígenas seguiu a mesma tendência dos anos anteriores [13], o que se refletiu também na insuficiência do Espin do governo. Assim, em 2023 houve um aumento de 6% de mortes de Yanomamis em relação a 2022 segundo dados do Ministério da Saúde [14].

Todos que compuseram a frente eleitoral de Lulalckmin contribuíram direta ou indiretamente para esse cenário, embora a responsabilidade principal seja das direções burocráticas que desviam as lutas dos explorados para projetar eleitoralmente suas figuras públicas com promessas políticas vazias ou mesmo com a ameaça de crescimento do fascismo. No entanto, como já demonstramos diversas vezes, é precisamente o desarmamento do proletariado pela socialdemocracia que nos impossibilita de enfrentar realmente a onda reacionária (que tanto mais cresce quanto mais o oportunismo socialdemocrata impede a independência de classe do proletariado).

Nesse sentido, os candidatos da pseudo-esquerda são empurrados cada vez mais para a direita, formalizando alianças com aqueles que também já foram chamados de “fascistas” (como o próprio Geraldo Alckmin). Na esteira desse processo, a necessidade de governabilidade exige a colaboração das forças políticas que contribuíram na eleição do governo. Assim, o que vimos ao longo de 2024 até o mês de setembro é a política das burocracias das direções sindicais contribuindo nas derrotas das greves dos trabalhadores do serviço público federal.

A estratégia das direções burocráticas consistiu e consiste em isolar de modo corporativista as lutas e impedir ações mais combativas para desgastar a categoria até a aceitação das propostas extremamente rebaixadas do governo. Vimos isso nas greves dos Técnicos-Administrativos da Educação (TAEs), dos docentes, dos servidores ambientais (ICMBio e Ibama), nas iniciativas de luta dos estudantes em certos casos, assim como nas atuais greves do Correios e do INSS. Todas foram e estão sendo derrotadas com os mesmos métodos [15]. E todas essas derrotas continuam ocorrendo em função do teto de gastos.

Os cortes em saúde [16], educação [17], ambiente [18], etc., também ocorreram em função da dívida pública. A meta fiscal do governo foi zerar o déficit das contas públicas para atender aos interesses do capital financeiro, ao mesmo tempo que propunha o maior Plano Safra da história ao agronegócio [19], além de atender prontamente à demanda de reajuste de mais de 20% das forças repressivas da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal e da Polícia Penal.

Na prática, o governo federal se revelou representante dos mesmos interesses que governavam o país na gestão Temer e Bolsonaro. Por isso que, nessas eleições municipais de 2024, em 85 cidades brasileiras houveram alianças entre PT e o PL (partido do ex-presidente Bolsonaro) [20]. Portanto, enquanto a pseudo-esquerda recua e cede no governo, dissimula e manobra politicamente nas greves, manifestações, etc., a direita e ultradireita reacionária crescem e aprovam sua agenda política [21].

4. O abstencionismo revolucionário:


As seções anteriores resumem bem a situação e o que está em jogo no espetáculo eleitoral da burguesia. Em alguns destaques do Instagram do blog (principalmente os que tratam da Carris e da Corsan), demos exemplos da luta de classes em curso que demonstram que as eleições simplesmente servem para desorganizar as mobilizações e a mudança governamental não trás nenhum “mal menor” como argumentam, porque ambos os males caminham na mesma direção (futuramente apresentaremos uma análise mais detalhada desse processo). A diferença é que o grau de intensidade da socialdemocracia não é percebido em sua totalidade devido à colaboração dos “movimentos sociais”, partidos, sindicatos, etc., que buscam responsabilizar os reacionários pela própria nulidade política ao mesmo tempo em que tentam preservar formalmente mecanismos institucionais de participação social que servem para desviar as energias de luta para  que os explorados administrem a própria miséria.

Desde as últimas eleições municipais [22], as burocracias tentam cooptar a revolta proletária para transformá-la em uma política de “desgastar o governo Melo”, promovendo o impeachment com a palavra de ordem do “Fora Melo” que é simplesmente uma campanha oportunista para a projeção eleitoral [23].

Mal passamos pela pandemia e sofremos a maior enchente da história do território ocupado pelo Estado do Rio Grande do Sul. Todos os danos e mortes, assim como a reação burguesa na forma de uma ofensiva para agravar a exploração atestam por si só o quão inúteis acabam sendo os apelos da socialdemocracia “pelo clima”.

Nesse momento estamos respirando fuligem dos incêndios florestais provocados pelo agronegócio, depois desse mesmo setor da classe dominante realizar uma série de ataques aos povos indígenas (Kaingang, Ava Guaranis e os Kaiowás, em três estados brasileiros: Rio Grande do Sul, Paraná e Mato Grosso do Sul).

Ao mesmo tempo, a grande maioria dos movimentos da pseudo-esquerda se dedicam principalmente em suas campanhas eleitoreiras e deixam qualquer “boiada” passar ilesa.

Se comprova na prática que somente a ação direta dos explorados representa um verdadeiro enfrentamento e, portanto, é fortalecendo e construindo as lutas diretamente que podemos traçar uma alternativa.

As tendências que analisamos confirmam que nenhum partido ou governo poderá impedir o agravamento da crise, ainda mais através da institucionalidade burguesa. Não existe nenhuma alternativa para a emancipação humana senão através da revolução social. As eleições se apresentam como um obstáculo político e ideológico para a realização dos objetivos libertários de nossa classe. Portanto, o abstencionismo revolucionário aparece como tarefa de intervenção para os elementos mais conscientes do proletariado.

Se impõe a necessidade de desmascarar a farsa eleitoral, intervir em cada local de moradia, estudo e trabalho para construir uma campanha que seja pela conquista, através da ação direta, de necessidades imediatas em cada fração de nossa classe. O desenvolvimento da autonomia do proletariado através do antagonismo prático na luta de classes é o objetivo do abstencionismo revolucionário.

Cartaz que difundimos na cidade.


Notas:


[1] – Para nossa análise da “destruição ambiental” no capitalismo, veja nosso texto escrito em conjunto com a editora Amanajé: A crise do sociometabolismo capitalista.

[2] – A partir dos dados e pesquisas realizados pelas próprias instituições burguesas podemos ter um indicativo superficial da situação. Segundo o Relatório Mundial da Desigualdade de 2022, os 10% mais ricos detêm 76% da riqueza e 52% da renda, enquanto que metade da população mundial fica com apenas 2% da riqueza e 8,5% da renda (Piketty et al., 2022). Até o Banco Mundial (BM) precisou admitir o aumento da desigualdade em 2023 (World Bank, 2023). Conforme um relatório da Oxfam (2024), 6 a cada 10 países com empréstimos realizados com o Fundo Monetário Internacional (FMI) estão ficando mais pobres. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) também alerta que a taxa de desemprego apresenta sinais de aumento em 2024 e que a desigualdade também se aprofundará. Referências:  PIKETTY, T. et al. World Inequality Report 2022. Paris: World Inequality Lab, 2022. Disponível em: link2023 in Nine Charts: A Growing Inequality. World Bank. Disponível em: link. |  FÉLIX, Thiago. Desigualdade cresce em seis de 10 países com empréstimos do FMI ou Banco Mundial, diz Oxfam. CNN Brasil. Disponível em: link. | Taxa de desemprego mundial deverá aumentar em 2024 e as crescentes desigualdades sociais são motivo de preocupação, segundo relatório da OIT. International Labour Organization. Disponível em: link.

[3] – Aqui nos referimos ao conjuntos dos conflitos militares envolvendo a disputa pela partilha do mundo inter-imperialista. Destacam-se no cenário atual: 1) o avanço da OTAN sobre o Leste Europeu como marcha do imperialismo sobre os territórios da antiga URSS até culminar na atual guerra da Ucrânia, na medida em que a Rússia interviu militarmente para afirmar seu poder de potência regional contra esse avanço; 2) o genocídio palestino realizado pelo Estado sionista de Israel que evolui para uma escalada bélica no Oriente Médio para consolidar um enclave imperialista estadunidense-israelense na região; 3) o aumento das tensões na guerra comercial entre EUA e China e a nucleação desse conflito nas tensões envolvendo Taiwan. A Rússia é uma potência militar e aliada fundamental da China. Todos os conflitos citados estão articulados. Para compreender melhor essa situação, consulte nosso manifesto escrito em conjunto com a editora Amanajé sobre as tendências que apontam para uma possível guerra mundial: Nenhuma guerra, senão a guerra de classes!.

[4] – Uma exposição mais elaborada desse posicionamento foi realizada pelo Réseau de Discussion International no texto: Definir o proletariado.

[5] – A estratégia nas ciências do conflito é determinada em função do objetivo final contido no programa que se busca realizar. No entanto, estamos tratando de uma guerra que constitui a própria realidade social imanente (o antagonismo de classes no capitalismo). Ao longo dos nossos textos buscamos aplicar esse método.

[6] – Nossa posição é fundamentalmente abstencionista. Consideramos equivocada a tática do “parlamentarismo revolucionário”. Sequer existem as condições em que essa tática poderia ser empregada, por isso o que vemos é puro oportunismo para a autoconstrução das organizações. Alguns argumentam que se trata de uma tática excepcional, apenas realizada na medida em que um partido proletário esteja em processo de maturação na classe e que só participa das atividades eleitorais e parlamentares paralelamente, pois o centro de gravidade da luta deve estar situado fora do parlamento (nas greves, insurreições e outras formas da luta de classes) e que as intervenções no parlamento devem corresponder a esta luta (promover suas pautas, atrapalhar sua criminalização, etc.). No entanto, toda a via parlamentar e eleitoral possui um tipo particular de comprometimento com a institucionalidade burguesa que torna inviável qualquer ação revolucionária nesses meios. A ingerência administrativa do Estado Burguês para a atividade parlamentar e eleitoral não é senão um obstáculo para a propaganda revolucionária. A participação nas eleições é um desperdício de energia militante que é desviada da agitação revolucionária para se adaptar ao nível superficial e rebaixado do eleitoralismo. A participação nas eleições promove uma certa legitimidade ao processo eleitoral (ou deslegitimidade do partido aos olhos dos elementos mais conscientes do proletariado), mesmo que supostamente seja utilizado para pura propaganda.

[7] – Seria necessário dois tipos de estudo aqui: uma análise da instrumentalização da energia revolucionária do proletariado por direções sociaisdemocratas que realizaram o desenvolvimento tardio do capital nacional por meio da deformação do valor através do planejamento na esfera da circulação (alterando a lei do valor para aumentar a composição orgânica de capital nacionalmente) e uma análise da totalidade capitalista que, incluindo as contrarrevoluções sociaisdemocratas como momentos de um mesmo processo, desse conta da crise de desvalorização do valor, na medida em que a generalização da produção de mais-valia relativa conduz necessariamente a uma incapacidade intrínseca do capital em aumentar a massa de mais-valia total (passando a declinar em termos absolutos). Certamente, isso não diminui nem obscurece o papel do imperialismo no processo, mas demonstra a razão do esgotamento das partilhas do mundo, o impulso que conduz às guerras comerciais que culminam em disputas bélicas. Essa situação nos leva necessariamente ao aumento nos processos de espoliação fundiária (no campo e na cidade). No pós-crise de 1970, o imperialismo estadunidense, através dos organismos monetários internacionais (FMI e BM), financiou a aplicação do capital sobreacumulado nas infraestruturas de países semicoloniais, endividando-os e tornando-os reféns da austeridade fiscal enquanto que, internamente, crescia sua bolha imobiliária, fruto dessa mesma tendência. A crise de 2008 é resultado dessa combinação de fatores. Na esteira desse processo, os países semicoloniais, na contração do imperialismo ocidental, recorre aos bancos chineses, exportam para a China e realizam parcerias comerciais que repetem, embora de modo diferente, o ciclo anterior, mas é interessante notar que o efeito no território chinês é análogo: cresceu proporcionalmente a bolha imobiliária chinesa. De qualquer forma, a reação do imperialismo estadunidense foi bloquear o desenvolvimento do BRICS que, no Brasil, se expressou na ingerência da Lava Jato e do golpe de 2016, onde a Odebrecht pagou o pato da FIESP (no caso: a empreiteira que cresceu junto com a dívida do país no período militar estava repetindo essa aventura com um negócio da China, até que a guerra comercial entravou o processo).

[8] – A crise da produção microeletrônica dos anos 70 deu início a uma série de instabilidades financeiras, econômicas e monetárias, tornando obsoleta a partilha inter-imperialista do mundo do pós-Segunda Guerra Mundial. A estabilidade econômica relativa do capitalismo foi pontual devido ao período de reconstrução das forças produtivas destruídas pela guerra (durando 30 anos de Bretton Woods, de Bem-Estar Social, etc.). Na medida em que a crise se aprofundava, a financeirização foi a única solução viável para que o sistema não colapsasse. Porem, a onda de financiamentos a base de capital fictício se tornou, de uma solução temporária, em um agravamento do problema, gerando um endividamento público e corporativo cada vez maior. Nesse processo, como de costume, ocorre a socialização dos prejuízos para os proletários e privatização dos benefícios para a burguesia. A manutenção da hegemonia global estadunidense e a estabilidade do sistema monetário internacional foram realizadas mediante a ingerência de organismos financeiros internacionais (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional). As políticas de austeridade fiscal que ficaram conhecidas como neoliberais nada mais são do que uma necessidade do sistema na fase de financeirização econômica. Não foi simplesmente uma escolha ou uma ingerência administrativa, mas a solução que viabilizou a reprodução social das relações de produção capitalistas que se tornaram incapazes de realizar um aumento real da massa de mais-valia total. Esse problema tem sido abordado e aprofundado em nossos textos sobre privatizações, embora somente atualmente as análises tenham maturado. De todo modo, esses textos conservam parcialmente seu valor explicativo: Crítica da privatização da CEEE-D e sua venda para o Grupo Equatorial & Considerações sobre a luta contra a privatização da Corsan e do DMAE.

[9] – Para uma análise desse processo, acesse o texto do grupo Robin Goodfellow, em português: A situação política no Brasil (de 2016). Esse texto demonstra com precisão a inutilidade do voluntarismo governamental diante das movimentações econômicas mundiais.

[10] – Importante para compreender esse processo é a obra de Henri Lefebvre. Ele foi pioneiro em considerar que a produção capitalista do espaço poderia ser uma importante fonte de aplicação do capital em momentos de crise, formando uma espécie de segundo circuito. Conforme Lefebvre (2002, p. 146-147):

O importante é sublinhar o papel do urbanismo e especialmente o do “imobiliário” (especulação, construção) na sociedade neocapitalista. O “imobiliário”, como se diz, desempenha o papel de um segundo setor, de um circuito paralelo ao da produção industrial voltada para o mercado dos “bens” não duráveis ou menos duráveis que os “imóveis”. Esse segundo setor absorve os choques. Em caso de depressão, para ele afluem os capitais. Eles começam com lucros fabulosos, mas logo se enterram. Nesse setor, os efeitos “multiplicadores” são débeis: poucas atividades são induzidas. O capital imobiliza-se no imobiliário. A economia geral (dita nacional) logo sofre com isso. Contudo, o papel e a função desse setor não deixam de crescer. Na medida em que o circuito principal, o da produção industrial corrente dos bens “mobiliários”, arrefece seu impulso, os capitais serão investidos no segundo setor, o imobiliário. Pode até acontecer que a especulação fundiária se transforme na fonte principal, o lugar quase exclusivo de “formação de capital”, isto é, de realização da mais-valia. Enquanto a parte da mais-valia global formada e realizada na indústria decresce, aumenta a parte da mais-valia formada e realizada na especulação e pela construção imobiliária. O segundo circuito suplanta o principal. De contingente, torna-se essencial. Mas essa é uma situação perniciosa, como dizem os economistas. Esse papel do imobiliário nos diferentes países (sobretudo na Espanha, na Grécia etc.) ainda é mal conhecido e mal situado nos mecanismos gerais da economia capitalista.
Referência: LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.

[11] – O apelido se deve ao favorecimento da prefeitura aos grupos empresariais do setor imobiliário, dentre eles a Melnick, por isso o apelido de “Melnickstão”. Em 2021, um pesquisador esboçava um panorama do crescimento do que ele chama de “coalizão urbano-imobiliário-financeira”: MELO, Erick Omena De. Financeirização, governança urbana e poder empresarial nas cidades brasileiras. Cadernos Metrópole, v. 23, n. 50, p. 41–66, 2021. Disponível em: link. O caso portoalegrense se mostrou exemplar e mesmo paradigmático para compreender esse processo, daí a importância dessa particularidade municipal, ainda mais pelo fato de ser uma transição do polo mais desenvolvido da socialdemocracia (centro do Fórum Social Mundial, Orçamento Participativo, etc.) para a mais tacanha urbanização neoliberal.

[12] – Veja mais informações em: CIMI. Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2023. Brasília: Conselho Indigenista Missionário, 2024.


[14]Mortes de indígenas Yanomami em 2023 crescem 6% em relação a 2022, mostram dados do Ministério da Saúde. G1. Disponível em: link.

[15] – Ainda não redigimos um balanço sobre essas lutas, então não vamos entrar em mais detalhes no momento. A greve dos técnicos-administrativos contra uma defasagem salarial de mais de 54%, o processo de sucateamento das instituições de ensino federal através dos cortes orçamentários (provenientes dos 10 anos de agravamento da política de austeridade fiscal), em suma, tudo isso está relacionado com as diretrizes fiscais impostas pelo capital financeiro em relação ao déficit público.

[16] – Ministério da Saúde tem congelados R$ 4,4 bilhões do orçamento. Agência Brasil. Disponível em: link.

[17] – Universidades sofrem corte de R$ 1,3 bilhão após um mês do fim da Greve da Educação. Nova Democracia. Disponível em: link.

[18] – Em julho deste ano o governo fez corte de 24% no combate de incêndios para cumprir o Arcabouço Fiscal. Esquerda Diário. Disponível em: link.

[19] – Governo Lula corta R$25 bi em gastos sociais enquanto anuncia mais de R$400 bi para agronegócio reacionário. Esquerda Diário. Disponível em: link.

[20] – PT e PL se unem para disputar eleições em 85 cidades do País; veja quais. Estadão. Disponível em: link.

[21] – O terrorismo climático capitalista no Rio Grande do Sul e o ecocídio incendiário coordenado pelo agronegócio não serão pormenorizados nesse texto, mas também expressam as mesmas tendências analisadas. Para a situação das enchentes, escrevemos dois comunicados e uma análise cronológica disponíveis em: Comunicado sobre a devastação que assola as terras do Rio Grande do SulSegundo comunicado sobre a situação do Rio Grande do SulInformes da luta de classes no território ocupado pelo Estado do RS.

[22] – Em novembro de 2020, em pleno período eleitoral, o assassinato de Beto por seguranças do Carrefour na Zona Norte de Porto Alegre foi o estopim para dois protestos combativos na cidade. Embora com muitos limites, essas ações contribuíram para explicitar os métodos dissimulados da socialdemocracia. Na primeira manifestação, a comunidade do bairro onde ocorreu o assassinato destruiu parte do mercado em revolta, ato de vingança coletiva pelo histórico de discriminações e violências perpetrados no estabelecimento. A socialdemocracia e sua frente ampla eleitoral entorno da então candidata Manuela D'Ávila (PCdoB) não conseguiu impedir, embora tivesse tentado, a ação direta das massas nesse primeiro protesto. A correlação de forças foi desfavorável até mesmo para a brigada militar que fracassou em proteger o mercado. Porém, no segundo ato, realizado em um outro Carrefour de bairro diferente, a situação foi distinta, pois o nível de engajamento das massas foi menor e o efetivo policial maior. Dessa vez a socialdemocracia conseguiu o que queria, dividindo o protesto, permitindo o isolamento dos elementos combativos para facilitar a repressão policial, enquanto que a frente ampla eleitoral saiu ilesa em sua conivência. Na prática, a defesa da projeção eleitoral da frente ampla da Manuela D'Ávila implicava em compromissos com a ordem burguesa, portanto se impôs a tarefa histórica da socialdemocracia de impedir que a revolta se generalizasse e fosse o gatilho de um movimento semelhante ao que aconteceu no mesmo período nos EUA, relacionado com o assassinato de George Floyd. O resultado de nossa intervenção prática nesse contexto está sintetizado na análise da situação presente na seção 3 do texto A revolta da classe proletária: a incidência da luta internacional no território brasileiro e na análise de nossa intervenção no texto: Análise de um protesto contra o Carrefour.

[23] – Não é necessário mais se deter nessas questões que só fazem sentido para uma parcela da pequena burguesia e da “classe média” em decadência, uma vez que eles tentarão em vão defender seus privilégios ameaçados pela crise, personificando suas angústias numa “má gestão” do balcão de negócios da burguesia. Uma outra parcela apenas fará coro com os reacionários, personificando na “corrupção de valores tradicionais” o agravamento das tensões familiares provocadas pelos desastres do capital, responsabilizando as “agendas progressistas” pela angústia gerada pela queda no padrão de vida. Todos os sonhos mesquinhos e fantasias românticas com as quais se entorpecem as gerações de jovens atualmente também contribui para estreitar os horizontes políticos e arrebanhá-los para o eleitoralismo. Outro fator importante foi o isolamento pandêmico e seus efeitos deletérios na ação coletiva, multiplicados pela política do “fica em casa” das direções burocráticas.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Definir o proletariado (2004) – Réseau de Discussion International

A fundição de ferro em blocos (1890), óleo sobre tela, de Hermann Heyenbrock.

Observação: recuperamos esse texto da Biblioteca Comunista Velha Toupeira (aqui é possível acessar o que sobrou do site: link), uma vez que o site da mesma sofreu um ataque virtual sionista no momento em que começaram os massacres de palestinos por Israel. Nosso objetivo é difundir esse material, na medida em que se trata de uma contribuição fundamental para a caracterização da classe proletária com base nos acúmulos programáticos do movimento comunista internacional.

Introdução


Para os socialistas utópicos, o comunismo surgiu do pensamento.

Marx entende que o comunismo surgiu do próprio seio do capitalismo e que é representado por uma força social: o proletariado. A teoria comunista é apenas uma emanação do proletariado sendo Marx somente o receptáculo que exprimiu teoricamente e de maneira extremamente sintética o movimento e o objectivo da nossa classe. Marx não é, como o pretende a socialdemocracia ou o estalinismo, o mestre genial do pensamento marxista, que, tendo bebido da filosofia francesa e alemã, teria conseguido engendrar o “marxismo”, que bastaria depois insuflar a um proletariado cujo movimento próprio apenas se restringiria à esfera económica, sindical. Marx via-se a si mesmo apenas como um porta-voz do proletariado.

Sendo o proletariado a fonte da teoria comunista, portador do comunismo e agente da revolução comunista, é da mais alta importância definir corretamente o que ele é. Tanto mais que à sua definição estão certamente ligadas questões de importância primordial: lutas ditas “reivindicativas” e lutas revolucionárias, definição do que são os comunistas, relação entre classe e partido, estratégia e tácticas, extrapolação sobre a transição para o comunismo e a ditadura do proletariado…

A. Concepções falsas de proletariado


Durante a “paz social”, o peso da ideologia dominante impõe concepções falsas do que é o proletariado. Estas concepções falsas tomam como ponto de partida a constatação da pretensa não-luta, constatação idealista incapaz de ver por detrás da forma pela qual se exprime a realidade a própria realidade. Elas levam tanto ao ativismo como à passividade.

1. Materialismo vulgar da definição economicista do proletariado e identificação de proletariado com classe operária


Alguns baseiam a sua concepção de proletariado apenas sobre a propriedade dos meios de produção. Há os burgueses, os operários, os pequeno-burgueses, os camponeses, os desempregados, os estudantes… A sociedade é seccionada segundo categorias sociológicas cuja multiplicidade varia em função dos critérios usados. O proletariado é então reduzido, seja ao proletariado industrial, ou mesmo ao proletariado produtivo, seja a um conjunto de categorias sócio-profissionais. Em todo o caso, é definido pela sua relação com as coisas (mercadorias, produtos, máquinas, fábricas, produção, produtividade). Esta concepção de proletariado afirma-se como materialista. Mas o proletariado é tomado apenas na sua dimensão de força produtiva de coisas e portanto como capital variável.

Os operários são proletários, mas nem todos os proletários são operários, longe disso. A definição economicista de proletariado que o identifica à classe operária, aos trabalhadores, serve o capitalismo. A realidade e o conceito de classe proletária são negados pela realidade e conceito de classe operária, e a confusão entre os dois exprime e serve a contrarrevolução capitalista, quer dizer, ela opõe-se ao facto de os proletários operários se poderem servir da sua posição privilegiada na produção para destruir o capitalismo encerrando-os na função que eles assumem no seio do processo de produção capitalista. Com efeito, o termo operário dá relevo à função, ao estatuto produtivo do proletário. Ora, o operário é uma figura positiva dentro do capital e a própria classe operária aparece como uma figura antagónica, mas positiva. A classe operária tornou-se uma potência reconhecida no interior do sistema.

O marxismo, ao invés e contra Marx, contribuiu a manter a confusão entre uma classe proletária com capacidade revolucionária, mesmo não fazendo a revolução, e uma classe operária suposta capaz de adquirir força e direitos, até eliminar por fim o capitalismo através de reformas ou mesmo pela insurreição.

A crítica a ser feita ao economicismo socialdemocrata e estalinista não deve ser que ele se afunda no sociologismo, nem que dá uma definição exclusivamente baseada nas condições materiais de vida. O que deve ser criticado não é o seu ponto de partida materialista mas o facto de que se trata de um materialismo mecanicista que se concretiza na identificação entre condições materiais de produção de coisas e produção, entre condições materiais de vida e “economia”, na sua liquidação da totalidade e a separação que faz entre “produção” e revolução. A definição economicista de proletariado só toma em conta o mecanismo de funcionamento do capitalismo. Seria mesmo absurdo criticar esta definição de proletariado como sendo exclusivamente materialista pois nem sequer é materialista consequente, já que nega que a própria revolução é uma produção material.

2. Definição voluntarista


A definição voluntarista não cai no materialismo vulgar de identificar os trabalhadores com o proletariado. Cai exclusivamente no idealismo de considerar o proletariado como sendo os que compreendem “o que faz falta”. A revolução deixa de ser determinada pelo movimento de oposição do proletariado para o ser pela associação/adição voluntária dos indivíduos mais conscientes e/ou mais ativos.

A constatação de um proletariado esmagado pela contrarrevolução e de uma situação onde restaria somente aos comunistas de boa vontade e de elevada consciência o darem-se as mãos induz ao iluminismo e ao ativismo. Em vez de se explicar que a negação negativa da classe, o triunfo da concorrência, será por sua vez negada, que, malgrado toda a ideologia podre, o proletariado é constrangido a lutar, obrigado a associar-se, deixa-se todo o proletariado na merda e interpela-se os que têm a consciência. Em vez de partir-se das determinações materiais que definem o proletariado, que o levam a associar-se, a formar-se como classe, a constituir-se em Partido, considera-se o “Partido” como o resultado formal da associação e da centralização dos que compreendem “o que faz falta”.

Creem ter apreendido a dinâmica. Com razão, partem da polarização inevitável e apreenderam que em última instância há apenas dois partidos: o da revolução e o da reação. Mas renunciam logo a seguir à dinâmica real, porque fazem abstração das contradições existentes na sociedade presente que a determinam. “O proletariado é revolucionário ou não é nada” é uma frase que tem todo o sentido na dinâmica social, mas somente aí. Torna-se uma caricatura quando se pretende que apenas “os revolucionários” são o proletariado e que o resto são burgueses.

A luta, a oposição, não é uma esfera à parte da vida mas sim a sua totalidade. Esta oposição inultrapassável não se encontra na “política” mas na existência mesma de classe excluída, de classe que produz a sua própria opressão e a sua própria emancipação, que, precisamente quando produz coisas, produz as condições sociais (logo materiais) da sua própria exploração e da supressão dessa exploração, de classe que produz o capital e a revolução social.

Em vez de se ver o desenvolvimento embrionário da classe e da sua organização enquanto força social no associativismo operário prático, em vez de se colocar em evidência que o proletariado é constrangido a associar-se como negação prática da concorrência, em vez de se mostrar no movimento prático a tendência em direção à organização em força social da classe, o movimento é desprezado em proveito de uma ideia voluntarista, formalista e idealista da organização.

3. Adição dos erros anteriores


Há também a pseudo-superação destas caricaturas que descrevemos. Mete-se um pouco de sociologia e um pouco de perspectiva. Crê-se ir mais longe e repete-se o esquema socialdemocrata: o proletariado é constituído pelos operários e pelos revolucionários. Na prática, ocorre uma adição perfeitamente dualista para formar o conceito de classe: os “revolucionários” consideram-se a si mesmos como proletários e o resto do proletariado é, como para a socialdemocracia, os operários sociológicos (adicionando-se ou não, consoante os grupos, os desempregados, os camponeses…). É uma combinação de idealismo e de materialismo vulgar.

B. Definição materialista dialética de proletariado


1. O proletariado como relação social


Em vez de ignorar ou não tomar em devida conta as condições materiais na definição de proletariado, a nossa definição afirma que o proletariado não é senão o movimento real e social bem prático e material. Em vez de desconsiderar o papel da produção nesta definição, trata-se de lhe dar um sentido mais global que os materialistas vulgares.

Se nós insistimos de tal forma neste facto de que o proletariado é constrangido a lutar pela revolução, não é porque seja um facto “económico”, mas porque vemos a luta, a oposição, a negação (não somente potencial, mas sempre em desenvolvimento) lá onde o sociólogo vê apenas “indivíduos que compõem uma classe”.

Assim, lá onde os estalinistas só veem o ponto de partida, a sociedade tal como está, os operários enquanto operários, nós vemos um movimento e esse ponto de partida como um produto social sempre inacabado onde se concentra a contradição de toda a sociedade entre o seu passado e o seu futuro.

Em vez de desconsiderarmos a produção de coisas na definição de proletariado, de renunciarmos a considerar o proletariado como força produtiva, nós situamos este momento real numa totalidade que é a produção e reprodução da sociedade inteira com as respectivas contradições mortais, onde se inclui a sua superação. Assim, em vez de definirmos o proletariado pela relação que este mantém com as coisas (mercadorias, produtos, máquinas, fábricas), nós definimo-lo como produto dum antagonismo prático entre os “homens” que contém no seu desenvolvimento a supressão do próprio antagonismo.

Na produção, não vemos somente produção de coisas mas sim, e sobretudo, produção de relações sociais. Em lugar de vermos, duma maneira estática, o proletariado como uma simples força produtiva de coisas e por conseguinte de capital, nós vemo-lo, por este mesmo ato, como força produtiva da revolução. Em vez de o considerarmos só como um aglomerado de homens forçados a fornecer o trabalho vivo ao trabalho morto, de o considerarmos unicamente como totalidade de homens vendendo a sua força de trabalho, como capital variável produzindo mais-valia, nós definimo-lo como relação social em movimento, contradição mortal do capitalismo cuja resolução apenas se encontra na sua auto-supressão.

“O proletariado, como toda a classe social, não se define pela sua situação económica. Define-se pelo papel que desempenha na dinâmica social, na luta de classes. A noção de classe não deve portanto sugerir-nos uma imagem estática, mas uma imagem dinâmica. Quando descobrimos uma tendência social, um movimento dirigido a um dado fim, então podemos reconhecer a existência de uma classe no verdadeiro sentido do termo” (PCI).

Analisar o proletariado do ponto de vista da produção de mais-valia permite compreender o mecanismo de funcionamento do capitalismo, permite compreender o capital como valor valorizando-se e logo a sua dinâmica. Mas o comunismo não se contenta em analisar o funcionamento do capitalismo, ele analisa o mecanismo do seu derrube, o movimento de subversão do qual o proletariado é o sujeito histórico. O comunismo é fundamentalmente a necrologia do capital. “Não ver senão o mecanismo do capital é eternizá-lo” (Jean Barrot).

2. Carácter contraditório do proletariado


O proletariado não existe como um conjunto de operários que depois têm uma prática. Pelo contrário, o proletariado existe somente enquanto prática de oposição de luta. Mas isto não pode ser interpretado como identificação da prática à acção revolucionária ou à acção consciente. Definindo o proletariado pela sua prática material, pelo seu movimento, não pretendemos acrescentar uma característica voluntária ou política à definição de proletariado e menos ainda substituir por uma definição política a definição economicista, mas pelo contrário, afirmar a sua determinação materialista: o proletariado é objetivamente um movimento prático global e contraditório, no qual se inclui tanto a reprodução desta sociedade como a sua destruição.

“O proletariado é revolucionário ou não é nada”. Justamente! Se arrebatarmos a determinação revolucionária na determinação da vida do proletariado e se o concebermos como simples produtor de coisas, liquida-se toda a dinâmica que anima o proletariado desde o seu nascimento. Mas ele não é revolucionário por ideal ou por vontade, mas precisamente porque se auto-produz como revolucionário ao mesmo tempo que produz capital, ou reciprocamente, porque o capital produz o seu coveiro.

3. Classe em si e classe para si


Uma maneira idealista, a custo disfarçada, de conceber o proletariado, consiste em considerá-lo ainda de um lado como simples classe do capital, como trabalhador, e por outro lado como revolucionário, como comunista quando “luta”. Isto é uma visão dualista e metafísica que consiste em separar na cabeça uma questão que é inseparável na prática, que consiste em fazer duas coisas na cabeça de uma só que existe na prática. É um desvio bastante corrente do idealismo que, em última instância, tem horror das contradições. A caricatura consiste em dizer que, quando o proletário trabalha, ele é capital, e quando luta contra o trabalho é comunista, ou então a oposição dualista: “classe em si”, “classe para si”. Os idealistas liquidam assim a contradição entre capital e comunismo, entre burguesia e proletariado, para a substituir por trabalhador/humanidade. Esquecem-se, no mesmo passo, que é precisamente enquanto classe desta sociedade que ela é o seu polo destrutivo, ou dito concretamente, esquecem que é o mesmo processo que a constrange a trabalhar e a suprimir o trabalho, que é apenas enquanto classe forçada a trabalhar que ela é forçada a revoltar-se.

4. Metafísica e dialética


O metafísico também sabe que existe a vida e a morte, a produção do capital e a destruição do capital. Mas vê na morte algo exterior à vida e na destruição algo de uma natureza totalmente diferente do desenvolvimento do capital, quer dizer, que nos conceitos que elabora, nunca vê a contradição, nem o seu devir, nem a sua ultrapassagem.

Pelo contrário, a dialéctica vê a morte mesmo na vida, no desenvolvimento do capital vê o desenvolvimento das suas contradições mortais, a destruição inevitável.

A ruptura não consiste portanto em ver a existência de conceitos opostos vida-morte, capital-comunismo. Mesmo o metafísico mais imbecil concebeu esta oposição. Porém vê sempre o conceito antitético surgir do exterior da tese, de circunstâncias exteriores à tese. A dialéctica põe precisamente em evidência que a tese contém a antítese, que ela é contradição em desenvolvimento, ou dito de outra maneira, que toda a afirmação dum fenómeno contém em si mesmo os elementos da sua negação.

Contrariamente à oposição “classe em si/classe para si”, o proletariado nunca é uma ou outra destas imagens puras, ideais, mas precisamente o processo contraditório e vivo que exclui praticamente toda a existência destes polos ideais. Historicamente, quando o proletariado não pode ser senão a sua atomização completa e acabada, carne para canhão das guerras capitalistas (realidade histórica que se aproxima mais do conceito idealista de classe em si ou para o capital), ele não existe mais, é a sua negação negativa.

Quando o proletariado é classe dominante totalizadora, abolição prática de todas as classes (realidade histórica que se aproxima mais do conceito idealista de classe para si), ele também não existe mais, é a sua negação positiva. O proletariado não é um dos seus polos históricos, mesmo se os contém na prática, mas sim o processo real desta contradição histórica.

Se, conceptualmente, falamos de classe explorada e de classe revolucionária, isso é apenas válido como momento duma explicação desde que não percamos de vista que a classe não é uma coisa nem outra, nem a adição das duas; o proletariado é antes de tudo um movimento, o movimento de destruição do velho mundo. Movimento que é determinado pela realidade de ser explorado e de dever destruir essa exploração, movimento real produto da contradição entre valor e necessidades humanas. O proletariado “puramente” explorado é um mito da burguesia, o proletariado “puramente” revolucionário é um sonho idealista que vai de encontro aos nossos interesses e que só será real com o desaparecimento, a dissolução da classe na humanidade, ou seja, com o comunismo.

5. Dinâmica contraditória global e definição das classes no antagonismo


As classes são uma prática e uma dinâmica. Mas uma dinâmica e uma prática globais. Não se trata de adicionar a produção de coisas (ou a propriedade ou não dos meios de produção) às ideias ou à política. É a prática global da vida, da luta, ou melhor da luta pela vida ou da vida de luta. A reprodução da vida (luta) é contradição, é dinâmica, é oposição global. Esta dinâmica determina as relações de oposição, as classes. Quando se fala de relações de reprodução e de propriedade, não se trata dum conceito estático (produção de coisas), mas sim de contradições na reprodução global da totalidade da vida, cujo desenvolvimento inerente implica a contrarrevolução e a revolução.

Os dualistas subtis tentam distinguir entre “operários” (económicos) e proletariado (revolucionário). Isto é estática comparada e não dinâmica, porém tentam responder à contradição interesses revolucionários/ideologia contrarrevolucionária.

Mas a dialéctica é todo um outro modo de pensar. A globalidade da vida humana é, nesta sociedade, contradição, tensão, movimento. O valor (enquanto sujeito, dinâmica) divide permanentemente a sociedade em dois campos: aqueles que são cooptados pela propriedade (gestão, controlo da sua produção, luta pela sua defesa) e aqueles desapossados de tudo, que, na sua vida, se opõem à propriedade ( a venda da força de trabalho é esta oposição conciliada e enquadrada, da mesma maneira que o são as outras formas de arranjar meios de vida: direito ao desemprego, o roubo, …).

As classes não existem à partida “em si” (por elas mesmas, definidas pela produção ou pela economia) e em seguida “lutando” (fazendo política). Existem somente enquanto forças orgânicas opostas e antagónicas. Definem-se portanto na prática do seu movimento de oposição e de luta inerente às relações de “produção” e aos interesses antagónicos que elas implicam. “Produção”, não no sentido imediato referindo-se exclusivamente à produção de coisas, mas no seu sentido global, enquanto reprodução da espécie, reprodução da exploração, reprodução dos dois campos irreconciliáveis…

Assim pois, proletariado e burguesia definindo-se pelo seu antagonismo mútuo: a burguesia como personificação das relações de produção capitalista, como partido da conservação, como força reacionária; o proletariado, como negação de toda a sociedade presente, como partido da destruição, portador do comunismo.

Toda a vida do proletário é apenas oposição e luta. As definições economicista e politicista devem ser postas uma ao lado da outra e deve-se lhes opor uma definição global baseada na totalidade da vida prática. Mais, não somos nós que definimos o proletariado, mas a vida total é que define o proletariado a nós mesmos.

C. Proletariado e comunismo


1. Determinação materialista dialéctica da existência dos comunistas


A acção voluntária dos operários como comunistas não é um fruto súbito duma tomada de consciência metafísica mas sim o resultado dum conjunto de determinações tanto históricas (classe explorada e revolucionária; concentração de todas as contradições das classes exploradas) como políticas (produto e fator – partido – as lições da história) e evidentemente económicas: é porque a classe operária se encontra cada vez mais na merda, que se a constrange a trabalhar cada vez mais por menores salários…, que o trabalho lhe parece cada vez mais embrutecedor, que ela se organiza como um poder. Demais a mais, o lugar que ocupam os proletários produtores de mais-valia tem importância: atribui-lhes um papel determinante na revolução.

2. Identidade essencial entre o ponto de vista do proletariado e o ponto de vista dos comunistas


Não é que seja necessário acrescentar a política à economia.  Não se trata de “politizar” o que quer que seja. A vida dos não-proprietários, dos proletários, não pode ser outra coisa que luta, luta pela vida, oposição viva à propriedade. A crítica verdadeira que deve ser feita aos que defendem a introdução das ideias socialistas nos operários (Kautskismo) parte daí. Nós mesmos somos apenas o produto destacado (mas histórico e não imediato) dessa oposição viva e organizamo-nos para a dirigir no sentido da sua negação efetiva e total.

É a própria realidade, as contradições da sociedade burguesa, o facto de que o proletariado é historicamente constrangido a fazer a revolução que fornece estas perspectivas que os comunistas tomam a seu cargo da maneira mais elevada possível e isso de acordo com os períodos históricos.

O ponto de vista real da nossa classe é o mesmo que o nosso malgrado as fraquezas e a falta de rupturas mais ou menos importantes. O ponto de vista da nossa classe (não o conjunto dos trabalhadores trabalhando em fábricas) é a diminuição da exploração que exprime o comunismo que é o desaparecimento da exploração. É fazer uma dicotomia imbecil dizer que as lutas operárias não são revolucionárias, que são reformistas e isso até à chegada do Partido-Zorro.

3. Surgimento do proletariado determinado pelo arco histórico


O proletariado é o herdeiro de todas as classes exploradas do passado porque as suas condições de sobrevivência levam ao seu paroxismo a inumanidade das condições de vida de todas as classes exploradas do passado, e porque concentra em si todas as causas profundas das lutas anteriores, No entanto, o proletariado distingue-se dessas classes oprimidas do passado porque estas últimas não tinham um projeto social próprio e porque as suas lutas na impossibilidade material de ultrapassar o quadro de simples reações, tendiam a-historicamente e utopicamente a reconstituir a velha comunidade perdida. Com o proletariado, a luta secular contra a exploração, contra a desumanização do homem, contra a subordinação da vida humana à ditadura do valor, é assumida pela primeira vez na história pelo sujeito revolucionário, quer dizer, um sujeito com um projeto social próprio, válido para o conjunto da humanidade e em ruptura total com a civilização do progresso: a destruição do Capital e para lá das classes, da exploração, da propriedade privada, de todos os estados… e a instauração do comunismo.

É o arco histórico total que determina o surgimento do proletariado como classe historicamente constrangida a impor o comunismo.

4. O proletariado, contradição permanente entre classe explorada e classe revolucionária, logo tendendo a organizar-se em partido


O proletariado é a classe revolucionária porque é já dissolução das classes no seio da sociedade de classes, porque classe de “sem reservas”, de desapossados, de homens libertados e arrancados aos velhos laços comunitários e aos velhos laços de alienação. O seu desapossamento alimenta o capital (de acordo com um processo de exploração diferente do que vigorava nas sociedades anteriores) e não pode abolir-se de um modo revolucionário senão através de uma reapropriação da potência social, do seu produto comum que o enfrenta opondo-se lhe como capital. Se o capital é condição do comunismo, é primeiramente porque produz massivamente desapossados susceptíveis de se constituir em classe revolucionária, dissolvente das condições existentes.

Essa luta é portanto não apenas uma reação da classe explorada, mas também e sobretudo a acção de uma classe revolucionária historicamente constrangida a assumir o seu programa e a constituir-se em força organizada, em partido comunista mundial (inversão da práxis no sentido mais global deste conceito).

A classe é uma contradição em ato (em movimento), simultaneamente manifestação heterogénea-capital variável e tendência a organizar-se em partido.

A classe traz em si a negação de todas as determinações do capital, o comunismo como movimento real de destruição da ordem social existente. O partido é a emergência desta classe enquanto organização (não no sentido formal) superior de si mesma para a sua emancipação e para a revolução comunista.

Que o proletariado se constitua em classe, logo em partido e ao mesmo tempo ele seja destruído sem cessar pela concorrência, é precisamente a dinâmica da nossa classe. Todas as tentativas de fixar este processo reintroduzem o dualismo pela janela depois de o terem expulsado pela porta. O proletariado, como conjunto de indivíduos, não se fixa nunca. Está em perpétua constituição (centralização, direção, constituição em partido), e destruição (sempre relativa e portadora de uma nova negação). O proletariado é a contradição viva da propriedade, mas ao mesmo tempo reprodu-la (reproduzindo também todo o seu conteúdo, logo a concorrência, logo a sua destruição negativa).

5. Partido e classe, duas expressões da mesma realidade


O proletariado constitui-se em classe organizando-se em Partido. Sem Partido (e também programa, projeto social, etc.) não se pode falar de proletariado. “A classe pressupõe o partido” (PCI, Partido e classe).

A luta do proletariado para se organizar em Partido é o centro, determinado pelas próprias condições da exploração, de toda a sua atividade.

O Partido não é acessório, é fundamental; sem ele o proletariado não existe como classe, mas sim como massa de indivíduos-objetos inertes da exploração e da barbárie capitalista.

Mas cuidado, devemos combater toda a assimilação entre Partido e esta ou aquela organização formal do passado.

Para Kautsky, Lenine, Luxemburgo, Pannekoek, Bordiga, etc., a classe podia ser definida em si, sem partido, e o partido sem problemas ser definido na base de outras características essenciais, para discutir depois a relação entre eles. No entanto, a classe não pode ser definida sem o Partido e o Partido não faz sentido sem a classe. Sem afirmação do Partido, mesmo numa forma embrionária, não existe proletariado. “O proletariado é revolucionário ou não é nada”.

Se se trata de substituir a cabeça do Estado burguês por outra, se se trata de destruir um governo e substitui-lo por outro, se se trata de gerir a produção capitalista por comités de fábrica ou por sovietes, é perfeitamente lógico considerar de um lado o partido e do outro a classe, de ter uma definição para classe e outra para o partido (socialdemocracia em geral, Kautsky) e ter depois a preocupação de saber se o partido dirige e aterroriza a classe (socialdemocracia de linha robespierriana, estalinismo, trotskismo original, PCI) ou se a classe deve decidir e o partido aconselhar (socialdemocracia, Kautsky depois de 1917, conselhismo, trotskistas atuais, CCI, democratas operários em geral).

A “relação” entre classe e partido não é uma relação entre duas entidades. Trata-se duma mesma realidade que não admite duas definições distintas e depois uma relação entre elas. É por isso que a questão equivaleria a encontrar a “relação” entre o corpo humano e o seu movimento, ou entre o corpo e a vida, sendo o corpo humano e o seu movimento (ou a sua vida) a mesma coisa. Eis a questão absurda, porque o corpo humano é o seu movimento, sem movimento não há corpo humano, sem corpo humano não há movimento, sem partido a classe operária não existe, sem a constituição do proletariado em classe não há partido comunista!

6. O partido, momento do movimento real do comunismo, determinado historicamente


É evidente que se pode – como relação a toda a realidade – considerar somente um dos seus aspectos, por exemplo a classe, o corpo humano, …mas não se pode jamais fazer abstração do outro aspecto: o partido, o movimento.

Assim, pode falar-se da acção da classe para se organizar em partido e da acção das minorias na linha histórica do partido para dirigir a formação da classe. No primeiro caso, toma-se o proletariado como sujeito e o Partido como a sua acção, a sua obra; no segundo caso, toma-se o partido histórico como o sujeito e a constituição da classe como a sua acção, a sua obra.

Mesmo se se aceitar ver uma distinção entre classe e Partido, é indispensável que se lembre sempre que ambos são determinados pela contradição, logo pela sua ultrapassagem. Não é um Partido mítico que é, que contém, ou que dá à classe a resolução da contradição. O partido é apenas a formalização, ou melhor a tomada a cargo e a organização em força desta resolução através da organização dos homens historicamente constrangidos a resolver esta contradição: os proletários.

Mas o partido não é essa coisa ideal que se poderia construir à força de consciência e vontade, não se saberia quando. É o produto da síntese do trabalho preparatório dos comunistas, o qual é indispensável, e do desenvolvimento da combatividade operária.

Na concepção do Partido como produto da consciência e da vontade, a consciência é unicamente concebida como uma compreensão cerebral e não como um momento da prática.

As determinações históricas fazem que aquilo que pode parecer um ato de vontade individual dum comunista não seja senão um momento do movimento real do comunismo.

A história não é a história das vontades assumidas e não assumidas, mas a história determinada historicamente pela luta de classes que se cristaliza na atividade dos indivíduos.

Mazagan, 7 Dezembro 2004, Réseau de Discussion International.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Informes da luta de classes no território ocupado pelo Estado do RS

Faixa levada para a manifestação do dia 05/06.

Nos dois últimos comunicados, buscamos sintetizar em linhas gerais alguns aspectos das condições da luta de classes no Rio Grande do Sul no contexto da maior enchente registrada nesse território. Certamente não esgotamos as discussões com os textos anteriores. Muito ainda pode ser analisado e criticado a partir do desenrolar dos acontecimentos. A situação atual continua carregando consigo as contradições, os avanços e os recuos nas lutas de nossa classe. Nesse caso, decidimos contribuir uma vez mais com o registro e análise dos eventos através de uma abordagem mais cronológica do processo. Nosso foco aqui serão algumas iniciativas espontâneas de enfrentamento que surgiram e uma tentativa de articulação.

***

Observações iniciais: além do protesto exemplar dos moradores do Princesa Isabel (que mencionamos no segundo comunicado), outras iniciativas de luta espontânea surgiram. O caráter difuso das lutas é semelhante aos protestos de janeiro, quando outro evento climático extremo deixou vários bairros da  capital e região metropolitana sem luz. Naquela ocasião, a Brigada Militar havia registrado 126 manifestações até dia 22/01 (veja mais em: link). Os potenciais e os limites das lutas de janeiro são semelhantes com os atuais.

Dia 19/05 (domingo)


Durante a manhã, o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) do bairro Guajuviras (em Canoas) foi alvo de críticas da população que aguardava por atendimento para a realização do  “cadastro único” (CadÚnico) para receber os auxílios do governo. Por volta das 10h30, centenas de pessoas esperavam na fila quando foram informadas de que as 150 fichas distribuídas haviam terminado. A situação gerou revolta e os moradores iniciaram um protesto sob chuva e frio. Diante do evento, a Prefeitura de Canoas (sob gestão do prefeito Jairo do PSD) optou por mudar a estratégia de atendimento e retirou a limitação de fichas.

Na situação de instabilidade, as pressões de massa costumam representar ameaças à ordem pública e os governos costumam tanto ceder mais quanto agravar a repressão conforme as correlações de força e repercussão dos acontecimentos.

No caso do Carandiru, como vimos, a resposta do Estado diante da mobilização foi uma repressão ainda maior (ver: “Repressão e enfrentamento exemplar” no link).

De todo modo, ambos os atos foram demonstrações espontâneas de luta que foram exemplares para impulsionar (ainda que de forma não coordenada) as que se seguiram ao longo das semanas.

Dia 20/05 (segunda-feira)


Durante a manhã, ocorre um protesto intitulado “S.O.S 4º Distrito”, na esquina das avenidas São Pedro e Benjamin Constant, em Porto Alegre. Trata-se de uma manifestação com composição de classe heterogênea, reunindo empresários, trabalhadores e demais moradores da região. Conforme o noticiário local, o ato foi organizado por integrantes da Associação de Empresários do 4º Distrito Atingidos pela Enchente. A entidade reúne cerca de 1,7 mil empreendedores afetados. As reinvindicações dos manifestantes foram as seguintes: mais segurança na região, limpeza das ruas afetadas pela enchente, religação da energia elétrica e acesso a créditos do Governo Federal.

Apesar da composição policlassista, as reivindicações de luz e limpeza também refletem as necessidades do proletariado que impulsionam as iniciativas de ação direta coletiva noutras regiões. Não obstante, também sinalizam a convocação para a “unidade do povo” indistintamente, o que mascara medidas como a demanda dos lojistas em descarregar seus prejuízos nas costas dos “colaboradores” (trabalhadores) conforme relatamos no primeiro comunicado.

Além do protesto do 4º Distrito, moradores do Centro Histórico de Porto Alegre realizaram uma manifestação no cruzamento das ruas Doutor Flores e General Vitorino nesse mesmo dia. O ato reivindicava agilidade na ligação da energia elétrica em ruas não atingidas pela enchente na região. Também de composição de classe heterogênea e com a presença de dirigentes sindicais.

Nesse protesto no Centro, o presidente da Força Sindical, Claudio Janta e o presidente do Sindicato dos Empregados no Comércio, Nilton Neco, relataram ao noticiário local que era necessário agilizar as recuperações de áreas onde era possível minimizar os prejuízos e possibilitar que “a economia continuasse girando”. A preocupação refletiu a necessidade cada vez mais urgente de retomada da circulação do capital, embora se utilizassem da reivindicação mais elementar da luz também (como geralmente ocorre quando buscam dar suporte popular para os anseios particulares da classe dominante).

Durante a tarde para noite, também ocorreu um protesto no bairro Sarandi, zona norte de Porto Alegre, no cruzamento da Av. Sertório com a Assis Brasil (coração do trânsito metropolitano). Os bairros da zona Norte são os que possuem piores condições de saneamento e abastecimento de água da capital, além de que a população é predominantemente proletária. Não houve cobertura do noticiário local desse protesto, o que também sinaliza que a mídia burguesa não encontrou nessa manifestação o caráter policlassista das demais e que também não chegou a níveis mais combativos como no caso do Carandiru.

Os manifestantes exigem regularização da eletricidade e abastecimento de água. No grupo de WhatsApp se rejeitam propostas eleitorais como o “Fora Melo” (palavra de ordem de desgaste político do atual prefeito da cidade usada pelos seus opositores eleitorais). Dentre as palavras de ordem do protesto, destaca-se a seguinte: “não foi tragédia, foi negligência, trabalhador tá perdendo a paciência”, o que reflete o conhecimento de que há responsabilidade no impacto sofrido pela comunidade.

Para um aprofundamento na questão do bairro Sarandi, recomendamos a notícia do Sul 21: Alagado há um mês, Sarandi revive trauma: ‘Foram três prefeitos que nem olharam para o bairro’, disponível no link. Nossa intervenção também possibilitou um maior aprofundamento na luta dos moradores que relataremos mais adiante.

Dia 21/05 (terça-feira)


Não registramos nenhuma manifestação de rua nesse dia. De todo modo, o descontentamento generalizado diante da calamidade só aumenta e se difunde.

Alguns desdobramentos das discussões anteriores:


Depois de vir a público, a possibilidade de instalação de uma “cidade provisória” em Porto Alegre gera repercussão negativa. A construção do acampamento ocorre no Porto Seco, onde realizam-se os desfiles de escolas de samba na capital. Localizado no bairro Rubem Berta, Zona Norte e periférica, o Porto Seco tem instalados 15 barracões de escolas de samba além da pista de desfiles. O complexo é patrimônio cultural estadual.

O governo alegou que um dos motivos da urgência em realocar desabrigados é a necessidade das escolas, onde muitos ainda estão acolhidos, voltarem a funcionar (mais uma pressão pelo retorno da normalidade capitalista). Vale relembrar o que afirmou o prefeito de Porto Alegre em janeiro: “Se tem 100 mil apartamentos vazios, é o capitalismo, não vou intervir”. Quando entrevistado no Jornal Nacional (no dia 11/05), o prefeito afirmou que as pessoas “não deveriam estar morando ali onde estavam” (então provavelmente não vai medir esforços para intervir a favor do mercado imobiliário contra os moradores).

Em uma reunião com o prefeito realizada no dia 18/05, carnavalescos sugeriram a ocupação de prédios desocupados em Porto Alegre. A presidente da União das Entidades Carnavalescas de Todos os Grupos e Abrangentes de Porto Alegre (UECGAPA), Kelly Ramos, listou alguns, como o edifício vazio do INSS, com vinte andares, no centro. Outros locais sugeridos foram: o antigo Hospital Parque Belém Velho e o Amparo Santa Cruz, locais que têm quartos e banheiros. Todos esses são edifícios públicos mantidos intocados e fechados pelo governo municipal durante anos.

Dia 22/05 (quarta-feira)


Moradores dos bairros Humaitá e Farrapos, Zona Norte de Porto Alegre, bloquearam a rodovia BR 290 (próximo à Arena do Grêmio) em protesto contra a demora para a drenagem dos bairros da região, que continuam inundados (assim como no Sarandi). Mais de 100 moradores utilizaram seus veículos para impedir a passagem de carros durante horas e exigiram a presença do prefeito junto com o “ministro extraordinário” Paulo Pimenta (do PT) como condição para liberar a rodovia. O governo municipal acatou as demandas dos moradores e ambos foram de encontro aos manifestantes onde foram cobrados para que duas bombas d’água fossem movidas para o bairro. Além disso, a prefeitura de Porto Alegre anunciou que realizaria a abertura da comporta do portão 11 nas próximas horas para permitir o escoamento da água que se acumula na região dos bairros.

Esse também foi um protesto de massas mais proletarizadas e o impacto da manifestação foi exemplar, pois impôs duas derrotas ao governo: a abertura da comporta como medida imediata e a reivindicação de drenagem das águas exigindo a instalação das bombas flutuantes da Sabesp que foram enviadas ao RS. Essa vitória parcial do movimento fortalece a confiança na ação direta para a realização das reivindicações, mas também indica certos limites caso se deixe assimilar nas negociações com os gestores do Estado.

Nesse dia também ocorreu a segunda reunião de uma frente/rede que havia proposto como atuação uma linha independente de interesses eleitorais. Ingressamos nessa frente/rede com o objetivo de impulsionar as lutas que surgiriam no processo de agravamento das contradições da crise.

A frente/rede havia sido formada depois de uma reunião realizada no dia 15/05. Era para ser uma reunião aberta de um espaço de viés especifista (sobre o especifismo, ver: link) com a proposta de apresentação do lugar e convite para a construção do mesmo. Devido ao lotamento do espaço, a reunião encaminhou uma proposta de constituição de uma frente/rede de auto-organização das ações de solidariedade, de enfrentamento aos ataques que viriam dos responsáveis pela calamidade e um compromisso em impulsionar as ações e manifestações em curso.

Na reunião do dia 22/05, houve um esvaziamento comparativamente com o primeiro encontro. Mesmo assim, algumas atividades foram encaminhadas visando mobilizar a partir de reivindicações básicas (em especial a moradia). Discutiu-se a necessidade de um ato unificado, cujo indicativo ficou para o dia 05/06 (no “dia do ambiente”). Enfatizou-se mais uma vez a necessidade de independência das palavras de ordem eleitoreiras (como o “Fora Melo”).

Essa diminuição do quórum, devido também a uma não convocação efetiva para a participação da reunião, estava incoerente com a proposta de construir um ato. Essa proposta só poderia ser efetiva caso se revertesse a tendência para o desengajamento. Em nossa intervenção, enfatizamos mais uma vez a necessidade de pressionar as entidades sindicais, organizações de bairro e estudantis para que se convocassem assembleias de base para organizar um movimento unificado, para que se discutisse em cada localidade a construção da manifestação a partir das reivindicações comuns e particulares dos atingidos num geral. Também se discutiu a necessidade de fortalecer os protestos de bairro para construir uma agenda de lutas unificada.

Dia 23/05 (quinta-feira)


Volta de chuvas intensas, superando 100mm em Porto Alegre, trazendo mais inundações e alagamentos de bairros da extrema zona sul da cidade (alguns deles não haviam sido alagados até então). Novos resgastes foram realizados nesse dia, demonstrando mais uma vez que a espontaneidade da iniciativa local é mais eficiente que o governo. As partes afetadas da extrema zona sul são as mais periféricas, como certas regiões do bairro Restinga que foram alagadas (principalmente devido à não manutenção do sistema de esgoto pluvial).

É protocolado pela vereadora Karen Santos (PSOL) um pedido de impeachment do prefeito Melo (MDB). Surge um protesto espontâneo no Centro de Porto Alegre que aumentava, diminuía, depois dispersava (não se massificou). Em Humaitá, após o retorno das chuvas intensas, o prefeito, em entrevista coletiva, anuncia o fechamento das comportas novamente, o que impedirá o escoamento das águas no bairro e na Zona Norte novamente (até seu reabertura posterior).

Dia 24/05 (sexta-feira)


Ocorre um debate na frente/rede onde a tendência especifista propõe inserir o “Fora Melo” como palavra de ordem (curiosamente depois do pedido de impeachment). Criticamos essa proposta e o debate fica em aberto para ser retomado na reunião da próxima semana.

Nesse dia ocorrem mais protestos: um na prefeitura de Canoas e outro na prefeitura de Eldorado do Sul. Nesse segundo, a Brigada reprime e prende uma senhora de idade. Em ambos os casos, a reivindicação é agilidade e liberação das cestas básicas que, conforme manifestantes, estariam contidas pelas prefeituras nos centros de distribuição. Essa retenção também está relacionada com a necessidade dos governos de criar canais oficiais fiscalizados pelo Estado para assimilar a rede auto-organizada de solidariedade.

Em São Leopoldo, na região do Vale do Rio dos Sinos, moradores dos bairros São Miguel e Vicentina realizam manifestação cobrando agilização na drenagem das águas de suas moradias. Bloquearam a BR-116 no sentido Porto Alegre para Novo Hamburgo. A Polícia Rodoviária Federal (PRF) interviu e eles cederam, liberando a via. A manifestação, apesar da ação repressiva, demonstra a continuidade e proliferação do processo de lutas espontâneas e difusas.

Cerca de 40 famílias dos bairros Humaitá e Sarandi ocupam o antigo Hotel Arvoredo localizado na Rua Fernando Machado, no Centro de Porto Alegre. Essa é mais uma ação direta exemplar dos processos de luta difusos em curso, demonstrando na prática a solução para o problema da moradia: nem “cidades provisórias” do governo estadual e municipais, nem “endividamento popular” do programa “Minha Casa, Minha Dívida” do governo federal, a solução é a ocupação. A pauta da expropriação dos imóveis do capital imobiliário e dos prédios vazios do poder público sob alvo de especulação imobiliária deixa de ser algo abstrato e tornam-se um horizonte efetivo de melhoria das condições de vida e sobrevivência da classe.

Algumas perspectivas gerais do movimento:


De modo geral, predominaram nos levantes o conteúdo proletário das reivindicações (baseadas nas necessidades imediatas de cada fração da classe em luta) e legaram mais uma vez um histórico exemplar de ação direta, passando por cima dos desvios oportunistas para o eleitoralismo.

Os grupos de esquerda eleitoreiros se organizam para levantar a bandeira do “Fora Melo” e “Fora Leite” para repetir a estratégia do “Fora Bolsonaro” de desgaste político dos gestores para poder eleger o candidato deles.

O instinto de classe demonstrou nas ações difusas uma recusa do eleitoralismo. Porém, nas condições da consciência espontânea das massas, ainda não foi identificado de forma evidente o inimigo de classe (que costuma colocar seus governantes na frente). A tarefa dos militantes comprometidos com a ruptura do sistema de morte do Capital é impulsionar as lutas para desenvolver o reconhecimento do inimigo de classe junto com seus gestores. É na prática do enfrentamento e da auto-organização que nossa classe aprende coletivamente a identificar o inimigo e se unificar entorno de um programa de reivindicações comuns.

25/05 (sábado)


Em grupos de WhatsApp, moradores da Zona Norte de Porto Alegre, no bairro Sarandi divulgam  uma nova manifestação para dia 27 de maio (com previsão de chuvas), pautando a necessidade de fechamento do dique rompido no bairro.

Enquanto isso, partidos eleitorais (PSOL e PT, junto com MRT), diante da onda de protestos, realizam uma assembleia na Zona Norte da capital (bairro Rubem Berta) para criar o auto-proclamado “Movimento dos Atingidos pela Enchente” com a função de mascarar o caráter eleitoral de sua política, tirando as siglas partidárias e usando o disfarce do movimento. A partir disso, começam a circular convocações centralizadas por entidades como a UNE: “marcha pelo clima” (dia 31/05) com a palavra de ordem de “Fora Melo e Leite” (promovendo blindagem do governo federal de Lula).

26/05 (domingo)


A prefeitura reabre o cadastro de voluntários para atuar nos abrigos destinados aos atingidos pelas enchentes. A reabertura, mesmo após o primeiro cadastro contar com 17 mil inscritos, se deve ao processo de esvaziamento do voluntariado. A desmobilização dos abrigos auto-organizados, a exigência de retorno às aulas (e, portanto, o desmantelamento dos abrigos em ambiente escolar) e a retomada da circulação das mercadorias e pessoas através do “corredor humanitário” pressionam para a volta da normalidade capitalista. Porém, as aulas são mais uma vez suspensas em Porto Alegre devido à previsão de chuvas intensas para o dia 27, com mais um alerta da Defesa Civil.

Fica cada vez mais explícito o quanto a política assistencialista buscou assimilar qualquer iniciativa de revolta e como a debandada expressa a tendência geral de recuperação do sistema. Uma solidariedade sem acúmulos na autonomia de classe geralmente tem a tendência de subsumir os esforços em Igrejas, ONGs e demais organizações da sociedade de classe que acabam fortalecidas direta ou indiretamente. Repetem-se os erros da pandemia, na medida em que alertávamos que: “um não enfrentamento ativo de nossa classe apenas é conivente com esse processo” (Communismo Libertário, 15 de agosto de 2021).

As propostas de cidades provisórias tornam-se, apesar da crítica vazia de partidos eleitorais, entidades sindicais e movimentos sociais, a solução com a qual a nefasta burocracia dessas organizações colaborou implicitamente para construir mediante o vácuo nas reinvindicações e propostas de enfrentamento coletivo da crise com base na independência de classe.

27/05 (segunda-feira)


Um novo corredor dito “humanitário” é liberado, o caminho é de saída de Porto Alegre pela Zona Norte para a freeway (dando acesso para a região metropolitana e litoral norte). Antes disso, também foi construído um corredor “humanitário” de acesso à cidade pela Av. Castelo Branco via rodoviária e de saída pelo largo Vespasiano José Veppo. A alegação de serem alternativas para desafogar o trânsito de saída da Capital mascara a obrigação de retomada da circulação das mercadorias, dentre elas a força de trabalho e exigências de retorno para a normalidade capitalista. Isso também se confirma com a regularização da Base Aérea de Canoas junto a um shopping para a realização de voos comerciais.

A BR-290 e a BR-116 são bloqueadas durante a manhã por mais uma manifestação de moradores da Vila Farrapos, do bairro Humaitá e Anchieta, onde fizeram um ato simbólico de retirar a água das suas casas com baldes para atirar na Freeway (ação que pode indicar a consciência instintiva do que representam os ditos “corredores humanitários”). A Polícia Rodoviária Federal (PRF) interviu para liberar parcialmente as pistas, os moradores acabaram cedendo. De todo modo, mais uma vez a ação direta das massas atingiu o objetivo: o DMAE realiza no mesmo dia a instalação de uma bomba de água para drenar as águas da região atingida.

Conforme previsto, nesse dia as chuvas intensas ocorrem, mas não há suspensão da manifestação no bairro Sarandi, inspirados pelo exemplo dado pelo protesto da manhã. Alguns infiltrados (dentre eles, políticos de direita) tentaram, embora sem sucesso, desmarcar a manifestação no dia (desde então buscam sabotar de diversas maneiras a organização dos moradores).

Os manifestantes exigem o fechamento do dique da Vila Brasília. Mesmo com fortes chuvas haviam mais ou menos 80 pessoas no ato. Barricadas parciais foram construídas em diferentes pontos do cruzamento entre a Sertório com a Assis Brasil. As forças repressivas mobilizaram umas 10 viaturas, com 4 policiais em cada um dos quatro cantos parcialmente fechados pela manifestação, além dos que ficavam no centro do cruzamento onde se reuniam os moradores para discutir e pautar o que seria dito para a imprensa (a Record fez entrevista, noticiários locais também acabaram notificando a manifestação).

Com o tempo o protesto foi esvaziando até sua finalização coletiva. Não houve repressão, mas ocorreu uma ingerência policial na manifestação que aos poucos buscava liberar o fluxo do trânsito (com êxito devido ao esvaziamento). Esse protesto também surtiu efeitos no dia seguinte.

28/05 (terça-feira)


A prefeitura anuncia o fechamento do dique do Sarandi, as obras iniciando no mesmo dia. Ocorre demolição da ocupação habitacional da Vila Brasília, gerando desentendimentos. Negociações com assistentes sociais, governo e moradores buscam inscrever as pessoas afetadas em programas do governo (bônus moradia de R$ 127 mil ou “Minha Casa, Minha Dívida”).

A “Operação fecha o dique” foi uma derrota imposta à prefeitura pela ação direta das massas, mas na própria contradição entre os limites e avanços, se encontra também já as manobras políticas para conter a revolta e “normalizar” a situação (pacificar o proletariado e não resolver efetivamente a contenção das águas à longo prazo, assim como realocar moradores com indenizações e créditos populares que servirão de entrada para endividamentos).

Além das obras  de fechamento do dique, também serão instaladas nos próximos dias as bombas para retirada da água do bairro: na Vila Elizabeth, Asa Branca, Brasília, União e outros. Deram estimativa de 10 dias para normalizar e os moradores voltarem para o que restou de suas casas.

Conforme se vê, somente depois da ação direta que a prefeitura cedeu também uma realocação das bombas, dando continuidade ao jogo do enfrentamento e assimilação que viemos observando desde então. Enquanto a classe proletária não constituir seu movimento unificado com um programa comum de reivindicações que imponha também o controle da realização destas (através de seus meios de auto-organização), o movimento espontâneo e difuso será continuamente assediado por sabotadores e por oportunistas de todas as estirpes.

Assim, na esteira desses acontecimentos cresce uma falsa polarização entre o empresário de Canoas conhecido no bairro como “Gringo” (que busca se promover mediante a instalação de bombas próprias no Sarandi, cujo poder de drenagem é irrisório e meramente simbólico) e a prefeitura.

Em Canoas, manifestantes arremessaram ovos na câmara de vereadores e tentaram acessar o prédio, mas foram reprimidos pela Guarda Municipal que bloqueou o acesso. A pauta da manifestação era esclarecimentos da prefeitura quanto às áreas ainda alagadas e quais os investimentos que estavam sendo feitos para lidar com as enchentes.

29/05 (quarta-feira)


Novo protesto dos moradores do bairro Humaitá e da Vila Farrapos, em frente à estação rodoviária de Porto Alegre (no início da tarde). Os manifestantes seguem cobrando agilidade nas ações para escoamento das águas dos bairros atingidos que seguem alagados. Além disso, cobram regularização dos auxílios do governo e reivindicam moradia digna como uma de suas pautas.

Durante a noite, moradores do bairro Sarandi realizam mais uma manifestação, dessa vez mais esvaziada (com cerca de 30 pessoas), no mesmo local do dia 27. O esvaziamento se deu mais devido aos já mencionados sabotadores infiltrados, mas também indica uma dificuldade maior para os moradores de convocar e realizar suas manifestações.

Apesar disso, a ação direta continua sendo a via das manifestações das massas proletárias atingidas, demonstrando na prática a disposição de luta que deveria pautar a intervenção de militantes comprometidos com um movimento de ruptura com o sistema.

Nesse dia ocorre a reunião pré-ato da frente/rede, com um esvaziamento ainda maior do espaço. De todo modo, reviu-se a revisão da palavra de ordem e se alinhou um posicionamento de mediação. Definiu-se as palavras de ordem, o panfleto e demais questões organizativas. Veja-se o panfleto aqui: link.

30/05 (sexta-feira)


O metrô volta a operar, funcionando entre Novo Hamburgo estação Mathias Velho (Canoas), com acesso às estações de Porto Alegre ainda bloqueado por tempo indeterminado (a previsão de regularização é para 2025).

Entidades ambientalistas (think tanks empresariais da transição energética em unidade com o governismo da UNE) se unificam para a “marcha pelo clima” convocada para o dia 31/05.

31/05 (sábado)


Realizado o grande complô governista e ambientalista em Porto Alegre. A manifestação contou com a presença de 2.000 manifestantes em sua maioria dirigentes sindicais, candidatos eleitorais, movimentos sociais subordinados ao governismo, agentes da Greenpeace e da ONG Eco pelo Clima.

A nata da burocracia em conluio com as projeções eleitoreiras usando o desastre climático-capitalista como palanque, com críticas vazias aos governos municipais e estadual, mantendo blindado o governo federal (ecoam a todo o momento a palavra de ordem “Fora Melo” e “Fora Leite”, além de coisas como “pelo clima” – fala-se até em decidir nas urnas depois do engavetamento do impeachment de Melo!).

A retomada da normalidade capitalista, em meio às ações do voluntariado do governo e essa manifestação sinalizam a grande unidade capitalista por trás da aparente oposição. De um lado, a crítica do negacionismo climático é a ideologia da fração reformista que busca favorecer o imperialismo de capital verde e dar continuidade ao governismo. De outro lado, as ações e agilização, notificadas ao longo da semana, de retorno à normalidade capitalista dão mostras de trabalho aos empresários que vão reconhecer seus gestores e favores. Tudo armado para desarmar o proletariado que será convocado a deixar as ruas e abandonar a ação direta com uma ênfase cada vez maior.

Se no Sarandi mandaram 10 viaturas contra 80 pessoas, no Cento, na Esquina Democrática, haviam 6 ou 7 para 2.000 pessoas. As forças repressivas provavelmente estarão preparadas para tirar de cena (e na marra se preciso) a ação direta das massas proletárias.

Nos dois primeiros dias de junho houve um refluxo nos protestos, então vamos expor nossa convocatória do ato do dia 05/06 e depois ir direto para os acontecimentos do dia 03/06.

Convocatória do ato do dia 05/06:



O texto em nosso Instagram foi:

A MAIOR ENCHENTE DA NOSSA HISTÓRIA TAMBÉM FOI CRIME AMBIENTAL!

Chega de palanque eleitoral em cima da tragédia! Precisamos punir os responsáveis e exigir uma reconstrução digna para o proletariado gaúcho. Os governos afrouxaram a legislação ambiental para entregar nossas cidades e campos para um punhado de empresários do setor imobiliário e do agronegócio e vimos o resultado nas inundações! Por que então nós que devemos pagar pelo preço da reconstrução? Basta! Só em POA a especulação imobiliária mantém milhares de imóveis desocupados, enquanto que os governos propõem construir campos de lona para refugiados e programas de crédito para prender os trabalhadores em dívidas eternas. Chega disso! Exigimos moradia digna para nosso povo, pela expropriação sem indenização dos imóveis do capital imobiliário! Que os capitalistas e os seus governos arquem com os custos da reconstrução com um fundo sob controle direto dos trabalhadores! Pelo fim do sucateamento do DMAE, colocado sob controle dos trabalhadores e consumidores! Pela retomada da Corsan e da CEEE públicas sob controle dos trabalhadores e consumidores! Que se faça imediatamente a auto-demarcação das retomadas indígenas e defesa dos seus territórios! Garantia dos empregos com salário mínimo vital, contra qualquer demissão, suspensão de contratos, banco de horas e demais flexibilizações do trabalho exigidas pelos empresários!

É responsabilidade de todas as organizações sindicais e entidades representativas classistas convocar assembleias de base para que as categorias se unifiquem em um programa mínimo de reivindicações, nossa única alternativa é o enfrentamento pela independência de classe (sem subordinação a nenhum governo)!

3 de junho (segunda-feira)


Nesse dia os moradores do bairro Sarandi passaram por mais uma série de sabotagens no processo de auto-organização. A ausência de uma coordenação das ações de bairros e a não constituição de comitês que expressassem os interesses dos moradores em conjunto são fatores que contribuem para explicar a situação.

Havia uma reunião da prefeitura com uma comissão de moradores do bairro marcada para esse dia, com local e horário encaminhados por grupos de WhatsApp. O local inicialmente informado no grupo onde os moradores convocavam as manifestações foi alterado repentinamente (para 9 km de distância), causando confusão (sobre isso, ver: link).

Um trecho da reunião foi gravado e encaminhado no grupo pelo empresário do setor elétrico Marco Della Nina (filiado ao partido PATRIOTA), sócio-administador da Thermark. Reproduzimos abaixo:


A discussão registrada no vídeo acima girou entorno da figura do “Gringo” que buscava se projetar publicamente de modo oportunista, enquanto que a prefeitura buscava a todo custo limpar a própria imagem (o trecho selecionado da reunião demonstra isso). As reivindicações do “Gringo” não são nenhuma novidade para a comunidade que está na luta há mais de 10 anos para uma manutenção integral e definitiva do dique do bairro (ver a matéria da Sul 21 que mencionamos antes).

Um trecho importante desse registro se encontra a partir dos 22min e 40segs: o engenheiro do governo afirma que a proposta do “Gringo”, de que o rachão não é suficiente para a contenção, não era viável no momento, visto que o bairro continua alagado, por isso o fechamento emergencial. No entanto, ele também admitiu que ainda é necessário uma reforma definitiva quando diz que “quando a água baixar, tem que recuperar os diques em definitivo”.

Essa mesma pauta do dique foi levantada mais uma vez na manifestação marcada para o final da tarde e início da noite no cruzamento da Sertório com a Assis Brasil (no card de convocatória lê-se a reivindicação “Dique refeito”). No entanto, o Bruno Couto de Oliveira (simpatizante do PL e fiel da Igreja Evangélica Catedral da Salvação de Alvorada) convocava a manifestação para o Stok Center, causando mais confusão nos grupos. O resultado foi um grande esvaziamento e desmobilização, com um pouco mais de 10 pessoas presentes.

Buscamos promover essa pauta no programa de reivindicações que encaminhamos para o ato do dia 05  através de uma faixa. Como não registramos outras ações até o dia 05, vamos direto para esse dia.

05 de junho (quarta-feira)


Durante a manhã, ocorre uma versão da “marcha pelo clima” na Restinga (com os mesmos organizadores), com reivindicações semelhantes às do dia 31/05 (incluindo pautas locais também). No panfleto, lê-se a exigência de melhores “contrapartidas” diante dos empreendimentos imobiliários, ou seja: essa reivindicação demonstra subordinação aos interesses do capital imobiliário ao não questionar os próprios empreendimentos.

Concluímos nossa faixa em defesa da reivindicação dos moradores do Sarandi:

Fechar o dique em definitivo no Sarandi! Sob controle dos moradores!

Consideremos que apenas um controle ativo dos moradores pode garantir a realização das obras integralmente, conforme enfatizado em nossa convocatória e nas reuniões da frente/rede, por isso levamos essa faixa para o ato da frente/rede.

No entanto, a manifestação contou em sua grande maioria pela própria militância da frente/rede, embora tenha contato com outros coletivos e organizações que se somaram no ato. As demais pessoas presentes não eram representativas do grande contingente de afetados.

Em nossa avaliação, tivemos uma falha de método de construção da mobilização que deveria ser o resultado cumulativo das lutas que relatamos ao longo desse informe (daí a importância da coordenação e fortalecimento das manifestações locais). Apesar de defendermos essa posição, nossa intervenção também não foi suficiente para garantir uma presença mais massificada.

Mesmo a repercussão positiva da nossa faixa nos grupos de moradores não é suficiente na medida em que não contribuiu efetivamente com um avanço na auto-organização da comunidade. Porém, a reivindicação continua sendo necessária e os esforços para garantir sua realização devem continuar.

Na medida do possível, buscaremos retomar essas discussões de uma perspectiva mais ampla. De qualquer forma, consideramos importante deixar registrado nessa publicação esse panorama das lutas, uma vez que contém a confirmação de nossas teses sobre a importância da ação direta das massas proletárias como expressão do desenvolvimento do antagonismo de classe.