terça-feira, 30 de junho de 2020

Introdução de “Sex At Dawn” (2010) – Christopher Ryan e Cacilda Jethá

Capa da edição em português brasileiro do livro.



Com o objetivo de divulgar um estudo transdisciplinar em sexualidade humana, nosso blog vai publicar aqui a introdução do livro: “Sexo Antes de Tudo: Como nos relacionamos, porque desejamos outros parceiros e o que isso significa para os relacionamentos modernos” (originalmente publicado em 2010). Os autores desse livro são Christopher Ryan e Cacilda Jethá e, no momento, as informações que temos sobre eles são as seguintes:

  • Christopher Ryan (1962 – 58 anos de idade) é um estadunidense, PhD em psicologia pela Universidade de Saybrook. Sua tese de doutorado analisa as raízes pré-históricas da sexualidade humana e foi orientada pelo (também psicólogo) Stanley Krippner.

  • Cacilda Jetha é uma psiquiatra moçambicana que estudou medicina e sexualidade em Portugal. Ela conduziu uma pesquisa (a partir da Organização Mundial da Saúde) sobre o comportamento sexual de moçambicanos da zona rural (o objetivo do estudo era contribuir, através da pesquisa, com a elaboração de métodos para prevenir a propagação da AIDS).

Um resumo da tese apresentada no livro pode ser se encontra nesse trecho da Introdução mesmo: “Iremos mostrar que os seres humanos evoluíram em grupos íntimos, onde quase tudo era partilhado – comida, abrigo, proteção, cuidado infantil e até mesmo prazer sexual. Nós não alegamos que os seres humanos são hippies marxistas natos, e também não defendemos que o amor romântico era desconhecido ou sem importância em comunidades pré-históricas. O que vamos demonstrar é que a cultura contemporânea distorce a relação entre amor e sexo. Com e sem amor, uma sexualidade casual era a norma para os nossos antepassados pré-históricos”.

Extraímos o texto desta edição: RYAN, Christopher; JETHÁ, Cacilda. Sexo Antes de Tudo: Como nos relacionamos, porque desejamos outros parceiros e o que isso significa para os relacionamentos modernos. Tradução de Marco Pontual e Alexandre Pontual. 1ª Edição. Vitória: Pedra Azul, 2019.

E comparamos com a tradução desta outra edição: RYAN, Christopher; JETHÁ, Cacilda. En el principio era el sexo: Los orígenes de la sexualidad moderna. Cómo nos emparejamos y por qué nos separamos (Sex At Dawn). Tradução de Ignacio Villaro Gumpert. 7ª edição. Barcelona: Espasa Libros, 2018. Disponível neste link.

As notas ao final do texto foram indicadas pelos colchetes com os números respectivos.

Uma resposta aos críticos do livro foi feita por Rui Diogo em: DIOGO, Rui. Sex at Dusk, Sex at Dawn, Selfish Genes: How Old-Dated Evolutionary Ideas Are Used to Defend Fallacious Misogynistic Views on Sex EvolutionJournal of Social Sciences and Humanities, Vol. 5, No. 4, 2019, pp. 350-367. Disponível em: link.

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INTRODUÇÃO


Uma Outra Inquisição Bem-intencionada


Esqueça o que você já ouviu sobre seres humanos serem descendentes de primatas. Nós não descendemos de primatas. Nós somos primatas. Metafórica e factualmente, Homo sapiens é uma das cinco espécies sobreviventes dos hominídeos – ou grandes primatas, junto aos chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos (gibões são considerados “macacos inferiores”). Nós compartilhamos um ancestral comum com dois desses primatas – bonobos e chimpanzés – há apenas cinco milhões de anos [1]. Isso é “anteontem”, em termos evolutivos. As ressalvas que distinguem humanos dos demais grandes primatas são encaradas como “completamente artificiais” pela maioria dos primatólogos nos dias de hoje [2].


Se estamos “acima” da natureza, estamos apenas como um surfista cambaleante está “acima” do oceano. Mesmo se nunca escorregarmos (e todos nós escorregamos), nossa natureza interior pode nos puxar para baixo a qualquer momento. Aqueles de nós que cresceram no Ocidente receberam a certeza de que nós, os seres humanos, somos especiais, únicos entre os seres vivos, acima e além do mundo que nos rodeia, isentos da humildade e humilhação que permeia e define a vida animal. O mundo natural está sob e abaixo de nós; é motivo de vergonha, nojo, escândalo, como algo malcheiroso e confuso que deve ser escondido atrás de portas trancadas, cortinas fechadas e balas de hortelã.

Nós ou pensamos isso ou exageramos pro outro lado, imaginando a natureza flutuando angelicalmente acima de tudo, inocente, nobre, equilibrada e sensata.

Assim como bonobos e chimpanzés, somos os descendentes tarados de ancestrais hipersexuais. À primeira vista isto pode parecer um exagero, mas é uma verdade que já deveria ter se tornado sabedoria popular há muito tempo. Noções convencionais de casamento monogâmico até-que-a-morte-nos-separe sofrem a pressão de um peso morto, que é a falsa narrativa que insiste em dizer que somos diferentes. Qual é a essência da sexualidade humana e como é que ela se tornou o que é? Nas páginas seguintes explicaremos como mudanças sísmicas culturais que começaram há aproximadamente dez mil anos tornaram a verdadeira história da sexualidade humana tão subversiva e ameaçadora que, por séculos, ela tem sido silenciada por autoridades religiosas, patologizada por médicos, meticulosamente ignorada por cientistas e encoberta por terapeutas moralizadores.

Conflitos profundos imperam no coração da sexualidade moderna. Nossa ignorância cultivada é devastadora. A campanha para obscurecer a verdadeira natureza da sexualidade da nossa espécie faz metade dos nossos casamentos entrar em colapso sob um turbilhão incontrolável de frustrações sexuais: tédio broxante, traição impulsiva, disfunções, confusão e vergonha. A monogamia em série se estende à frente (e atrás) de muitos de nós como um arquipélago de falhas: ilhas isoladas de felicidade transitória em um frio e escuro mar de decepções. E quantos dos casais que conseguem ficar juntos pelo longo percurso o fizeram resignando-se a sacrificar seu erotismo no altar de três das alegrias insubstituíveis da vida: estabilidade familiar, companheirismo e intimidade emocional (se não sexual)? Seriam aqueles que aspiram inocentemente a estas alegrias, amaldiçoados por natureza a presidir o lento estrangulamento da libido do seu parceiro?

A palavra espanhola esposas significa duas coisas: esposas e algemas. Em inglês, alguns homens, resignadamente, brincam com a noção da “corrente com a bola de ferro”. Há uma boa razão pela qual o casamento é frequentemente retratado e lamentado como o início do fim da vida sexual de um homem —e mulheres não se dão muito melhor nessa. Afinal, que mulher quer compartilhar sua vida com um homem cuja honra demarca os limites de sua liberdade, e que se sente encurralado e diminuído por seu amor por ela? Quem quer passar a vida tendo que se desculpar por ser apenas uma mulher?

Sim, algo está muito errado. A American Medical Association relata que cerca de 42% das mulheres americanas sofrem de disfunção sexual, enquanto o Viagra quebra recordes de vendas ano após ano. Em todo o mundo, estima-se que a pornografia arrecade algo em torno de 57 a 100 bilhões de dólares anualmente. Nos Estados Unidos, ela gera mais receita do que a CBS, NBC e ABC [maiores redes de TV americanas] combinadas, e mais do que todas as franquias de futebol americano, beisebol e basquete profissional. De acordo com o US News and World Report, “os americanos gastam mais dinheiro em clubes de striptease do que na Broadway, na off-Broadway, nos teatros regionais sem fins lucrativos, na ópera, no balé, nas performances de jazz e nas de música clássica – combinados” [3].

Não há como negar que somos uma espécie com uma quedinha por sexo. O chamado casamento tradicional parece estar sendo atacado por todos os lados – ruindo de dentro pra fora. Até os mais fervorosos defensores da sexualidade normal são esmagados por seu próprio peso, com a exposição corriqueira de políticos de todos os partidos (Clinton, Vitter, Gingrich, Craig, Foley, Spitzer, Sanford) e figuras eclesiásticas (Haggard, Swaggert, Bakker), que alardeiam seu suporte aos valores familiares a caminho de mais um encontro particular com suas amantes, prostitutas ou estagiárias.

Privação não funcionou. Centenas de padres católicos confessaram milhares de crimes sexuais contra crianças, isto só nas últimas décadas. Em 2008, a Igreja Católica pagou 436 milhões de dólares em compensações a vítimas de abuso sexual. Mais de um quinto das vítimas tinha menos de dez anos de idade. Isso nós sabemos. Será que dá pra imaginar o sofrimento que crimes como esses causaram em dezessete séculos, desde que a vida sexual foi perversamente proibida a padres, no primeiro decreto papal de que se tem notícia – o Decreta e o Cum in unum, do papa Sirício (ano 385)? Qual é a dívida moral para com as vítimas esquecidas dessa rejeição insensata da sexualidade humana básica?

Com ameaça de tortura, em 1633, a Inquisição da Igreja Católica Romana forçou Galileu a declarar publicamente o que sabia ser falso: que a Terra estava imóvel no centro do universo. Três séculos e meio depois, em 1992, o papa João Paulo II admitiu que o cientista estava certo desde o início, mas que a Inquisição tinha sido “bem-intencionada”.

Ah, sim, não há uma Inquisição melhor do que uma Inquisição bem-intencionada!

Assim como aquelas visões infantis intransigentes de um universo inteiro girando ao redor de uma Terra superimportante, a narrativa padrão da pré-história oferece uma espécie de conforto primitivo, imediato. Assim como papa após papa dispensava qualquer cosmologia que removia a humanidade do centro exaltado de uma expansão infinita de espaço, e assim como Darwin foi (e, em alguns ambientes, ainda é) ridicularizado por reconhecer que os seres humanos são a criação de leis naturais, muitos cientistas são cegos, por questões emocionais, a qualquer narrativa da evolução da sexualidade humana que não gire em torno da família nuclear monogâmica.

Apesar de nós sermos levados a acreditar que vivemos em uma época de liberação sexual, a sexualidade humana contemporânea sofre com verdades óbvias e dolorosas que não podem ser ditas em voz alta. O conflito entre aquilo que nos dizem que sentimos e aquilo que realmente sentimos é, talvez, a fonte mais abundante de confusão, insatisfação e sofrimento desnecessário dos dias atuais. As respostas que geralmente nos são dadas não respondem a questões centrais da nossa vida erótica, tais como: por que homens e mulheres são tão diferentes em seus desejos, fantasias, respostas e comportamentos sexuais? Por que estamos traindo e nos divorciando em proporções cada vez maiores – isso sem falar nos que já excluíram de vez a possibilidade mesmo de um casamento? Por que o alastramento pandêmico de famílias de pais solteiros? Por que a paixão evapora de tantos casamentos tão rapidamente? O que causa a morte do desejo? Se evoluímos juntos aqui na Terra, por que tantos homens e mulheres acham mais fácil acreditar que somos de planetas diferentes?

Orientada em função de remédios e negócios, a sociedade americana tem respondido a essa crise atual desenvolvendo uma complexa indústria matrimonial de terapia de casais, ereções farmacológicas, colunistas de aconselhamento sexual, e mais um fluxo interminável de ofertas online (“Liberte o seu monstro do amor – ela vai te agradecer!”). Isso sem falar dos cultos assustadores de pureza pai-filha {Nota dos tradutores: eventos que acontecem em algumas igrejas americanas em que a filha promete sua virgindade ao pai, que a protege e guarda até dar a mão da filha em casamento}. Todo mês, caminhões e mais caminhões de revistas reluzentes de supermercados oferecem os mesmos velhos truques para acender de volta a chama de nossas vidas sexuais moribundas.

Sim, umas velinhas aqui, uma cinta liga ali, um punhado de pétalas de rosas na cama e as coisas vão ser como na primeira vez. O quê? Ele ainda está olhando para outras mulheres? Ela ainda está com um ar distante de decepção? Ele já finalizou antes mesmo de você começar? 

Bom, então deixe os peritos descobrirem o que está afligindo você, o seu parceiro e o seu relacionamento. Talvez ele precise de um extensor peniano, ou ela precise de uma vaginoplastia. Talvez ele tenha “problemas em se comprometer”, ou um “superego fragmentário”, ou a temível “síndrome de Peter Pan”.

Você está deprimido? Você diz que ama sua esposa com quem está há doze anos, mas não se sente atraído sexualmente por ela da mesma forma que você costumava se sentir? Um de vocês ou os dois estão se sentindo tentados por terceiros? Ora, talvez vocês devessem tentar transar no chão da cozinha! Ou melhor, talvez devessem se obrigar a transar toda noite por um ano! [4] Talvez ele esteja atravessando a crise da meia-idade. Tome estes remédios. Faça um corte novo no cabelo. Alguma coisa deve estar errada com você.

Você alguma vez já se sentiu vítima de uma Inquisição bem-intencionada?

Esse relacionamento de dupla personalidade com a nossa verdadeira natureza sexual não é nenhuma novidade para as empresas de entretenimento, que já refletem há muito tempo a mesma sensibilidade contraditória entre o pronunciamento público e o desejo privado. Em 2000, sob o título “Wall Street se encontra com a Pornografia”, o jornal The New York Times relatou que a General Motors vendeu mais filmes de sexo explícito do que Larry Flynt, dono do império pornográfico Hustler. Mais de oito milhões de assinantes norte-americanos da DirecTV, uma subsidiária da General Motors, estavam gastando cerca de 200 milhões de dólares por ano em filmes pay-per-view de sexo de suas empresas de televisão por satélite. Da mesma forma, Rupert Murdoch, dono da Fox News Network e do jornal conservador número um dos Estados Unidos, The Wall Street Journal, estava arrecadando mais dinheiro com pornografia através de uma empresa de comunicação satélite do que a Playboy com suas revistas, serviços a cabo e de Internet combinados [5]. AAT&T, também uma defensora de valores conservadores, vende pornô hardcore para mais de um milhão de quartos de hotel em todo o país através de sua Hot Network.

A hipocrisia sexual frenética nos Estados Unidos é inexplicável se aceitarmos o modelo tradicional da sexualidade humana, que insiste que a monogamia é natural, que o casamento é uma universalidade humana e que qualquer outra estrutura familiar que não seja a nuclear é uma aberração. Precisamos de um novo conhecimento de nós mesmos, baseado não em proclamações de púlpitos ou comédias românticas hollywoodianas, mas em uma análise sem medo e sem pudor da vasta literatura científica que ilumine as verdadeiras origens da sexualidade humana.

Estamos em guerra com nosso erotismo. Nós batalhamos contra nossos apetites, nossas expectativas e nossas decepções. Religião, política e até mesmo a ciência põem-se em guarda contra a biologia e milhões de anos de desejos evoluídos. Como resolver esse conflito espinhoso?

Nas páginas a seguir nós reavaliaremos alguns dos mais importantes estudos da atualidade. Nós questionaremos os mais profundos pressupostos encontrados nas visões contemporâneas de casamento, estrutura familiar e sexualidade – questões que afetam cada um de nós todos os dias e todas as noites.

Iremos mostrar que os seres humanos evoluíram em grupos íntimos, onde quase tudo era partilhado – comida, abrigo, proteção, cuidado infantil e até mesmo prazer sexual. Nós não alegamos que os seres humanos são hippies marxistas natos, e também não defendemos que o amor romântico era desconhecido ou sem importância em comunidades pré-históricas. O que vamos demonstrar é que a cultura contemporânea distorce a relação entre amor e sexo. Com e sem amor, uma sexualidade casual era a norma para os nossos antepassados pré-históricos.

Enderecemos então a pergunta que você provavelmente já está se fazendo: como é que podemos saber alguma coisa sobre o sexo na pré-história? Nenhum ser humano vivo hoje estava lá para testemunhar, e uma vez que comportamento social não deixa fósseis, não seria tudo isso apenas uma especulação sem sentido?

Não exatamente. Há uma velha história sobre o julgamento de um homem acusado de arrancar com uma mordida o dedo de outro homem em uma briga. Uma testemunha prestou depoimento, e o advogado de defesa perguntou: “Você realmente viu meu cliente morder o dedo?” A testemunha disse: “Bem, não, eu não vi”. “Ahá!” – disse o advogado, com um sorriso de satisfação. “Como, então, você pode alegar que ele mordeu e arrancou o dedo do homem?” “Bem”, respondeu a testemunha, “eu o vi cuspi-lo”.

Além de uma quantidade substancial de provas circunstanciais de sociedades ao redor do mundo e primatas não-humanos muito próximos a nós, daremos uma olhada em algumas das coisas que a evolução pôs pra fora. Examinaremos as diferenças anatômicas ainda evidentes em nossos corpos e o anseio por novidade sexual manifesto em nossa pornografia, publicidade e saídas ao barzinho depois do expediente. Iremos até decodificar as mensagens nas chamadas “vocalizações copulatórias” da mulher do próximo quando ela berra em êxtase na calada da noite.

Os leitores mais familiarizados com a literatura recente sobre a sexualidade humana estão acostumados com o que chamamos de narrativa padrão da evolução sexual humana (que de agora em diante chamaremos apenas de “narrativa padrão”). É mais ou menos assim:

1. Um rapaz conhece uma moça.

2. Rapaz e moça se analisam mutuamente e julgam o valor do acasalamento a partir de critérios relacionados aos diferentes interesses reprodutivos/capacidades:

• Ele procura sinais de jovialidade, fertilidade, saúde, ausência de experiência sexual anterior e probabilidade de futura fidelidade sexual. Em outras palavras, seu julgamento é enviesado a favor de uma parceira jovem e fértil, com muitos anos de concepção pela frente e sem filhos prévios para drenar seus recursos.

• Ela procura sinais de riqueza (ou, pelo menos, perspectivas de riqueza futura), status social, saúde física e probabilidade de que ele vá permanecer por perto para suprir e proteger seus filhos. Seu companheiro deve estar disposto e ser capaz de prover materialmente a ela (especialmente durante a gravidez e amamentação) e a seus filhos (comportamento conhecido como investimento paternal).

3. Rapaz conquista a moça. Supondo que eles atendam aos critérios um do outro, eles “acasalam”, formando um par com um vínculo de longo prazo – a “condição fundamental da espécie humana”, como disse o famoso autor Desmond Morris. Uma vez que o vínculo é formado:

• Ela estará alerta aos indícios de que ele está considerando a hipótese de deixá-la (vigilante aos sinais de infidelidade envolvendo intimidade com outra mulher que ameace seu acesso a seus recursos e proteção) e ao mesmo tempo atenta (principalmente durante a ovulação) para a possibilidade de um caso rápido com um homem geneticamente superior a seu marido.

• Ele estará atento a sinais de infidelidade sexual por parte dela (o que reduziria sua importantíssima certeza de paternidade) –, enquanto aproveita oportunidades sexuais de curta duração com outras mulheres (uma vez que seu esperma é facilmente produzido e abundante).

Pesquisadores alegam ter confirmado esses padrões básicos em estudos conduzidos por décadas em todo o mundo. Seus resultados parecem dar sustento à narrativa padrão da evolução sexual humana, que parece fazer bastante sentido.

Mas eles não dão sustento e ela não faz sentido.

Embora não questionemos que esses padrões ocorram em muitas partes do mundo moderno, não os vemos tanto como elementos da natureza humana quanto como adaptações a condições sociais – muitas das quais foram introduzidas com o advento da agricultura há não mais que dez mil anos. Esses comportamentos e predileções não são traços biologicamente programados da nossa espécie; eles são prova da flexibilidade do cérebro humano e do potencial criativo da coletividade.

Tomando um só exemplo, nós sustentamos que a preferência aparentemente consistente de mulheres por homens com acessoa riquezas não é um resultado inato da programação evolutiva, como o modelo padrão afirma, e sim uma simples adaptação de comportamento a um mundo onde homens controlam uma fatia desproporcional dos recursos totais. Conforme exploraremos em mais detalhes nos capítulos seguintes, antes do surgimento da agricultura, há uma centena de séculos, mulheres tinham tipicamente tanto acesso à comida, proteção e suporte social quanto homens. Veremos que perturbações nas sociedades humanas resultantes da mudança para vida em comunidades agrárias fixas trouxeram alterações radicais nas formas de sobrevivência das mulheres. De repente, as mulheres se viam em um mundo onde era necessário negociar sua capacidade reprodutiva por acesso a recursos e proteção, ambos necessários à sobrevivência. Mas essas condições são bem diferentes daquelas nas quais nossa espécie vinha evoluindo anteriormente.

É importante manter em mente que, quando comparados com a totalidade do tempo de existência da nossa espécie, dez mil anos é apenas um breve momento. Mesmo se nós ignorarmos os aproximadamente dois milhões de anos desde o surgimento de nossa linhagem Homo (durante os quais nossos ancestrais diretos viviam em pequenos grupos sociais coletores), estima-se que humanos anatomicamente modernos tenham existido há até 200.000 anos. Sendo o vestígio mais antigo da agricultura datado de 8.000 a.C., a quantidade de tempo vivida por nossa espécie em sociedades agriculturais fixas corresponde a somente cinco por cento de nossa experiência coletiva, no máximo. Apenas algumas centenas de anos atrás, a maior parte do planeta ainda era ocupada por coletores.

Sendo assim, para rastrear as raízes mais profundas da sexualidade humana, é vital enxergarmos por debaixo da fina camada da história recente da humanidade.

Até o surgimento da agricultura, seres humanos haviam evoluído em sociedades organizadas em função da grande insistência no compartilhamento de praticamente tudo. Mas todo esse compartilhamento não faz de ninguém um nobre selvagem. Essas sociedades pré-agriculturais eram tão nobres quanto você é quando paga seus impostos ou o prêmio do seu seguro. Compartilhamento universal compulsório, culturalmente imposto, era simplesmente a forma mais eficaz para a nossa espécie altamente social de minimizar o risco. Compartilhamento e interesse próprio, conforme veremos, não são mutuamente excludentes. De fato, o que muitos antropólogos chamam de igualitarismo feroz era o modelo padrão de organização social por todo o mundo, por milênios, antes do advento da agricultura.

Mas sociedades humanas mudaram radicalmente a partir do momento em que começaram a cultivar alimentos e criar animais domesticados. Elas passaram a organizar-se em torno de estruturas políticas hierárquicas, propriedade privada, povoamentos densamente habitados, mudanças radicais no status da mulher e outras configurações sociais, que juntas representam um desastre enigmático para a nossa espécie: a população humana cresceu rapidamente ao passo que a qualidade de vida desabou. A mudança para a agricultura, escreveu o autor Jared Diamond, é uma “catástrofe da qual nunca nos recuperamos” [6].

Diversas evidências sugerem que nossos ancestrais pré-agriculturais (pré-históricos) viviam em grupos onde a maioria dos indivíduos maduros mantinha vários relacionamentos sexuais concomitantes em qualquer momento de suas vidas. Ainda que frequentemente casuais, esses relacionamentos não eram aleatórios ou insignificantes. Muito pelo contrário: eles reforçavam laços sociais cruciais na manutenção dessas comunidades altamente interdependentes [7].

Nós encontramos evidências esmagadoras da nossa mui casual e amigável sexualidade humana pré-histórica refletidas em nossos próprios corpos, nos costumes das sociedades relativamente isoladas remanescentes e em alguns cantos surpreendentes da cultura ocidental contemporânea. Mostraremos como tudo – nosso comportamento entre quatro paredes, preferências pornográficas, fantasias, sonhos e reações sexuais – apoia essa forma reelaborada de entender nossas origens sexuais. Perguntas para as quais você encontrará respostas nas próximas páginas, incluem:

• Por que a fidelidade sexual a longo prazo é tão difícil para tantos casais?

• Por que a paixão sexual frequentemente se esmaece, mesmo quando o amor aumenta?

• Por que mulheres são potencialmente multi-orgásmicas, ao passo que homens muitas vezes atingem o orgasmo frustrantemente rápido e perdem imediatamente o interesse?

• O ciúme sexual é uma parte inevitável e incontrolável da natureza humana?

• Por que os testículos humanos são tão maiores que os dos gorilas, mas menores que os dos chimpanzés?

• A frustração sexual pode nos fazer adoecer? Como foi que a falta de orgasmos causou uma das doenças mais comuns da história, e como é que ela foi tratada?

Alguns Milhões de Anos em Algumas Páginas


Em suma, esta é a história que contaremos nas próximas páginas: há alguns milhões de anos, nosso velho ancestral (Homo erectus) mudou de um sistema de acasalamento no estilo dos gorilas, onde um macho-alfa lutava para vencer e manter um harém de fêmeas, para um onde a maioria dos machos tinha acesso sexual às fêmeas. Poucos, se é que algum, experts questionam as provas fósseis dessa mudança [8]. 

Mas nós seguimos caminhos diferentes daqueles que apoiam a narrativa padrão quando olhamos para o que essa mudança significa. A narrativa padrão sustenta que foi aí que começou a união a longo prazo de nossa espécie: afinal, se cada homem tivesse apenas uma parceira por vez, a maior parte dos homens conseguiria ter uma garota pra chamar de sua.

Na verdade, onde há um debate sobre a natureza da sexualidade humana inata, as duas únicas opções aceitáveis parecem ser as de que ou os seres humanos evoluíram para serem monogâmicos (H-M), ou evoluíram para serem poligínicos (H-MMM…), com a conclusão normalmente sendo a de que mulheres, via de regra, preferem a primeira configuração, e homens, a segunda.

Mas e múltiplos acasalamentos, onde a maior parte dos indivíduos, masculinos e femininos, tem mais de um parceiro sexual concomitante? Por que – além da repulsa moral – a promiscuidade pré-histórica não é nem mesmo considerada, quando quase todas as fontes relevantes apontam nessa direção?

Afinal, sabemos que as sociedades coletoras nas quais os seres humanos evoluíram, eram grupos de pequena escala altamente igualitários e que compartilhavam quase tudo. Existe uma notável coerência em como os grupos coletores de retorno-imediato vivem, onde quer que estejam. Os !Kung San do Botsuana têm muita coisa em comum com os povos aborígenes que vivem no interior da Austrália e com as tribos nos bolsões remotos da floresta amazônica. Antropólogos têm demonstrado inúmeras vezes que sociedades caçadoras-coletoras de retorno-imediato são quase universais em seu feroz igualitarismo. Partilhar não é só encorajado; é obrigatório. Acumular para si ou esconder comida, por exemplo, é considerado um comportamento profundamente vergonhoso, quase imperdoável nessas sociedades [9].

Coletores dividem e distribuem carne equitativamente, amamentam os bebês uns dos outros, têm pouca ou quase nenhuma privacidade entre si e dependem uns dos outros para sobreviver. Assim como o nosso mundo social gira em torno das noções de propriedade privada e responsabilidade individual, o deles gira na direção contrária, no sentido do bem-estar do grupo, da identidade grupal e da profunda inter-relação e dependência mútua.

Embora isso possa soar como um inocente idealismo Nova Era, ou um choro pela Era de Aquário perdida, ou até uma glorificação do comunismo pré- histórico, nenhum desses aspectos das sociedades pré-agriculturais é contestado por acadêmicos sérios. Um consenso esmagador diz que organizações sociais igualitárias são de fato o sistema das sociedades coletoras em todos os contextos. Na verdade, nenhum outro sistema poderia funcionar para as sociedades coletoras. A partilha obrigatória, de participação compulsória, é simplesmente a melhor maneira de distribuir os riscos em benefício de todos. Pragmático? Sim. Nobre? Nem tanto.

Nossos corpos ecoam a mesma história. O ser humano masculino tem testículos bem maiores do que um primata monogâmico precisaria, pendurados vulneravelmente fora do corpo, onde a temperatura mais baixa ajuda a preservar células espermáticas em stand-by para múltiplas ejaculações. Ele também ostenta o mais longo e mais grosso pênis entre os primatas do planeta, e também uma constrangedora tendência a alcançar o orgasmo rápido demais. Seios femininos que pendem (absolutamente necessários para amamentar crianças), gritos de prazer impossíveis de ignorar (vocalização copulatória feminina, para os que gostam de termos técnicos) e capacidade de ter orgasmo atrás de orgasmo sustentam essa perspectiva da promiscuidade pré-histórica. Cada uma dessas questões é um grande atravanco para a narrativa padrão.

Depois que as pessoas começaram a cultivar o mesmo solo estação após estação, a propriedade privada rapidamente substituiu a propriedade comunitária como modus operandi na maioria das sociedades. Para coletores nômades, propriedade pessoal – qualquer coisa que precise ser carregada – é reduzida ao mínimo, por motivos óbvios. Pouco se pensa sobre de quem é a terra, ou os peixes no rio, ou as nuvens no céu. Os homens (e, frequentemente, as mulheres) enfrentam os perigos juntos. Um investimento parental individual masculino (elemento essencial da narrativa padrão) tende a ser difuso em sociedades como essas nas quais evoluímos, e não focado em uma só mulher em particular e suas crianças, como o modelo convencional insiste em defender. Mas quando as pessoas começaram a viver em comunidades agrícolas estáveis, a realidade social mudou profunda e irrevogavelmente. De repente se tornou crucialmente importante saber onde o seu terreno terminava e onde começava o do vizinho.

Lembre-se do décimo mandamento: “Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seus servos ou servas, nem seu boi ou jumento, nem coisa alguma que lhe pertença”. Claramente, quem mais saiu perdendo na revolução agricultural (sem contar os escravos) foi a mulher, que de posição central em sociedades coletoras se tornou mais um objeto para o homem conquistar e defender, junto com sua casa, seus escravos e seu rebanho.

“A origem da agricultura”, diz o arqueólogo Steven Mithen, “é o evento que define a história humana – foi o ponto crucial que resultou em os seres humanos modernos terem um tipo bem diferente de estilo de vida e de cognição dos demais animais e tipos anteriores de seres humanos” [10]. O ponto pivô mais importante na história da nossa espécie, a transição para a agricultura, redirecionou a trajetória da vida humana mais essencialmente do que o controle do fogo, a Carta Magna, a imprensa, a máquina a vapor, a fissão nuclear ou qualquer outro evento do passado e, quiçá, do futuro. Com a agricultura, praticamente tudo mudou: a natureza do status e do poder, estruturas sociais e familiares, a forma como os seres humanos interagiam com o mundo natural, os deuses que adoravam, a probabilidade e a natureza da guerra entre os grupos, a qualidade de vida, a longevidade e, certamente, as regras relativas à sexualidade.

Sua pesquisa dos indícios arqueológicos relevantes levou o arqueologista Timothy Taylor, autor do livro A Pré-História do Sexo, a afirmar: “Ao passo que o sexo dos caçadores-coletores havia sido modelado por uma ideia de partilha e complementaridade, o sexo agricultural, a princípio, era voyeurístico, repressor, homofóbico e focado na reprodução”. “Com medo do indomesticado”, ele conclui, “fazendeiros decidiram destruí-lo” [11].

O solo agora poderia ser apropriado, possuído e passado de geração em geração. Alimento que antes era caçado e coletado agora precisava ser plantado, cuidado, colhido, guardado, defendido, comprado e vendido. Cercas, muros e sistemas de irrigação tiveram de ser construídos e reforçados; exércitos para defender isso tudo precisaram ser erguidos, alimentados e controlados. Por causa da propriedade privada, pela primeira vez na história da nossa espécie, a paternidade tornou-se uma preocupação crucial.

Mas a narrativa padrão insiste que a certeza da paternidade sempre foi de extrema importância para a nossa espécie, que os nossos próprios genes ditam que organizemos nossas vidas sexuais em torno dela. Por que, então, o registro antropológico é tão rico em exemplos de sociedades onde a paternidade biológica é de pouca ou nenhuma importância? E onde a paternidade não é importante, homens tendem a ser relativamente despreocupados quanto à fidelidade sexual das mulheres.

Mas, antes de entrar nesses exemplos da vida real, vamos fazer uma rápida viagem ao lucata.

O antropólogo James Woodburn (1981/1998) classificou as sociedades coletoras em possuidoras de sistemas de retorno imediato (simples) ou de sistemas de retorno adiado (complexas). No primeiro caso, o alimento é consumido dentro de dias da aquisição, sem processamento ou armazenamento elaborado. Salvo quando explicitamente dissermos o contrário, nos referiremos aqui a estas sociedades.

[A introdução termina aqui, em seguida haveria o primeiro capítulo do livro…]

Notas:


[1] – Talvez não mais de quatro milhões e meio. Veja um estudo recente sobre testes genéticos em Siepel (2009). [Referência ao final do livro: Siepel, A., «Phylogenomics of primates and their ancestral populations», en Genome Research, n° 19, 2009, págs. 1929-1941].

[2] – De Waal (1998), pág. 5. [Referência ao final do livro: De Waal, F., y Lanting, F., Bonobo: The Forgotten Ape, Berkeley, University of California Press, 1998].

[3] – Algumas dessas cifras são coletadas por McNeil et al. (2006) e Yoder et al. (2005). O valor de US$ 100 bilhões vem de <http://www.latimes.com/news/nationworld/nation/la-fg-vienna-porn25-2009mar25,0,7189584.story>. [Referências ao final do livro: McNeil, L., Osborne, J., y Pavía, P., The Other Hollywood: The Uncensored Oral History o f the Porn Film Industry, Nueva York, It Books, 2006 (trad. cast.: El otro Hollywood: una historia oral y sin censurar de la industria del cine pomo, Madrid, Es Pop, 2008); Yoder, V. C., Virden, T. B., III, y Amin, K., «Pornography and loneliness: An association?», en SexualAddiction & Compulsivity, n° 12, 2005, pág. 1].

[4] – Veja-se: «Yes, dear. Tonight again» [Sí, cariño, esta noche también], Ralph Gardner, Jr., The New York Times (9 de junio de 2008), <http://www.nytimes.com/2008/06/09/arts/09iht-08nights. 13568273.html?_r=l>.

[5] – Para dizer tudo: Murdoch também é dono da HarperCollins, que publicou a edição original deste livro.

[6] – Diamond (1987). [Referência ao final do livro: Diamond, J., «The worst mistake in the history of the human race», en Discover, mayo de 1987].

[7] – Esses relacionamentos seriam uma das muitas técnicas para reafirmar a identidade do grupo, como a participação em rituais de apego emocional ao grupo que ainda hoje são comuns nas religiões xamanísticas típicas dos povos caçadores-coletores. É interessante observar que esses rituais de afirmação de identidade coletiva geralmente são acompanhados de música (que – como o orgasmo – libera ocitocina, o hormônio mais associado à formação de vínculos afetivos). Sobre música e identidade coletiva, veja Levitin (2009). [Referência ao final do livro: Levitin, D. J., The World in Six Songs: How the Musical Brain Created Human Nature, Nueva York, Plume, 2009].

[8] – A datação precisa dessa mudança foi recentemente questionada. Veja-se: White y Lovejoy (2009). [Referência ao final do livro: White, T. D., «Ardipithecus ramidus and the paleobiology of early hominids», en Science, n° 326, 2009, págs. 64, 75-86].

[9] – Veja mais sobre as economias baseadas na comunidade de caçadores-coletores em: Sahlins (1972), Hawkes (1993), Gowdy (1998), Boehm (1999), ou o artigo de Michael Finkel sobre os Hadza em National Geographic, que pode ser consultado aqui: <http://ngm.nationalgeographic.com/2009/12/hadza/fmkel-text>. [Referências ao final do livro: Sahlins, M., StoneAge Economics, Nueva York, Aldine de Gruyter, 1972 (trad. cast.: Economía de la Edad de Piedra, Madrid, Akal, 1983); Hawkes, K., «Why hunter-gatherers work», en Current Anthropology, n° 34, 1993, págs. 341-361; Gowdy, J. (comp.), Limited Wants, Unlimited Means: A Reader on Huntergatherer Economics and the Environment, Washington, D.C., Island Press, 1998; Boehm, C. H., Hierarchy in the Forest: The Evolution o f Egalitarian Behavior, Cambridge (Massachusetts), Harvard University Press, 1999].

[10] – Mithen (2007), pág. 705. [Referência ao final do livro: Mithen, S., «Did farming arise from a misapplication of social intelligence?», en Philosophical Transactions of the Royal Society B, n°362, 2007, págs. 705-718].

[11] – Taylor (1996), págs. 142-143. O livro de Taylor é um excelente relatório arqueológico das origens da sexualidade humana. [Referência ao final do livro: Taylor, T., The Prehistory of Sex: Four Million Years o f Human Sexual Culture, Nueva York, Bantam, 1996].

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Democracia e Anarquia (1924) – Errico Malatesta

Este artigo de Errico Malatesta foi publicado originalmente em Pensiero e Volontà, nº 6, 15 de março de 1924. Extraímos essa tradução (com algumas correções nossas) de: MALATESTA, Errico. Anarquia. Tradução de Plínio Augusto Coelho. São Paulo: Imaginário, 2001.

Imagem da publicação original do periódico. Disponível em: Pensiero e Volontà.

Observação: também acrescentamos uma nota explicativa sobre um personagem histórico citado por Malatesta.

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Os governos ditatoriais que grassam hoje na Itália, na Espanha, na Rússia, e que suscitam a inveja e o desejo das frações mais reacionárias e mais temerosas dos diferentes países, estão refazendo uma nova virgindade para a “democracia” que está esgotada. É por isso que vemos velhos politiqueiros malandros, muito experimentados na arte sinistra da política e responsáveis por repressões e massacres dos trabalhadores, apresentarem-se, apesar de tudo, quando eles têm coragem para isso, como homens progressistas, procurando açambarcar o futuro próximo em nome da ideia liberal. E eles poderão atingir seu objetivo, tendo em vista a situação.

Os partidários da ditadura, divertem-se em criticar a democracia e sublinhar todos os seus vícios e as suas mentiras. Isso me faz pensar em Herman Sandomirsky [1], o anarquista bolchevizante com quem tivemos contatos agridoces na época da Conferência de Gênova, e que agora procura conciliar Lênin e Bakunin, apenas isso! A fim de defender o regime russo, usava todo o seu Kropotkin para demonstrar que a democracia não é o melhor dos sistemas sociais possíveis. Como ele é russo, seu modo de raciocinar me trazia à mente um raciocínio semelhante de alguns de seus compatriotas, e penso ter-lhe dito: em resposta à indignação do mundo civilizado perante o czar que fazia despir, açoitar e enforcar as mulheres, eles insistiam na igualdade de direitos, e por conseguinte, das responsabilidades, entre os homens e as mulheres. Esses fornecedores de prisões e de forças só se lembravam dos direitos da mulher quanto estes podiam servir de pretexto a novas infâmias! Assim, também, os partidários da ditadura só se mostram adversários dos governos democráticos quando descobrem que existe uma forma de governo que deixa ainda mais livre o campo dos abusos de poder e à tirania daqueles que conseguem apoderar-se do poder.

Para mim, não há dúvidas de que a pior das democracias é sempre preferível à melhor das ditaduras, pelo menos de um ponto de vista educativo. Certo, a democracia – o pretenso governo do povo – é uma mentira, mas a mentira acorrenta sempre um pouco o mentiroso e limita seu bel-prazer. O “povo soberano” é um soberano de teatro, um escravo com uma coroa e um cetro de papelão; mas pensar que se é livre, mesmo que não seja verdade, é sempre melhor do que saber que se é escravo e aceitar a escravidão como uma coisa justa e inevitável.

A democracia é uma mentira, é uma opressão; é uma oligarquia na realidade, quer dizer, governo de um pequeno número em proveito de uma classe privilegiada. Mas ainda podemos combatê-la em nome da liberdade e da igualdade, mas não aqueles que a substituíram ou querem substituí-la por qualquer coisa pior.

Não somos a favor da democracia, entre outras razões porque, cedo ou tarde, ela conduz à guerra e à ditadura; também não somos pela ditadura, entre outras razões porque a ditadura faz desejar a democracia, provoca seu retorno e, assim, tende a perpetuar esta oscilação da sociedade humana entre franca e brutal tirania e uma pretensa liberdade falsa e mentirosa.

Portanto: guerra à ditadura e guerra à democracia!

Mas substituí-las pelo quê?

***


Os democratas não são todos como aqueles que nós evocamos até agora, isto é, hipócritas mais ou menos conscientes de que, em nome do povo, eles querem dominá-lo, explorá-lo e oprimi-lo.

Há muitos, em particular entre os jovens republicanos, que creem realmente na democracia e que aspiram a ela porque veem nela o meio de garantir a todos a liberdade de se desenvolverem plena e totalmente. São estes jovens que gostaríamos que soubessem que estão enganados e de levá-los a não confundir o que é uma abstração, o “povo”, com as realidades vivas que são os homens, com todas as suas várias necessidades, as várias paixões e as várias e, muitas vezes conflitantes, aspirações.

Nós não refaremos aqui a crítica do sistema parlamentar, nem a crítica de todos os meios que foram imaginados para obter dos deputados a representação verdadeira da vontade dos eleitores – crítica que, após cinquenta anos de propaganda anarquista, é enfim aceita e retomada pelos escritores que ostentam o maior desprezo por nossas ideias (ver, por exemplo, La Scienza Política do senador Gaetano Mosaca).

Nós nos limitaremos a convidar nossos amigos a utilizar uma linguagem mais precisa, convencidos como nós estamos de que se eles forem ao fundo das coisas, verão como todas essas frases são vazias.

“Governo do povo”, não, porque isto suporia o que não acontece jamais, a saber, a unanimidade das vontades de todos os indivíduos que compõem o povo.

Aproximar-se-á, pois, muito mais da verdade falar “governo da maioria do povo”. Isto já significa anunciar uma minoria que deverá revoltar-se ou submeter-se à vontade alheia.

Todavia, jamais acontece que esses que a maioria do povo colocou no poder sejam todos da mesma opinião sobre todos os problemas. É preciso, então, recorrer de novo ao sistema da maioria, e é por isso que nós aproximaríamos ainda mais da verdade ao falar “governo da maioria dos eleitos pela maioria dos eleitores”. O que começa realmente a parecer com um governo da minoria.

Enfim, se se considera o modo como as eleições são feitas, o modo como os partidos políticos e os grupos parlamentares se formam, o modo como as leis são elaboradas, votadas e aplicadas, compreende-se sem dificuldade o que a experiência universal demonstrou, a saber, que mesmo na mais democrática das democracias, é sempre uma pequena minoria que domina e impõe pela força sua vontade e seus interesses.

Assim, desejar realmente o “governo do povo” no sentido que cada um possa fazer valer sua própria vontade, suas próprias ideias, suas próprias necessidades, é fazer com que ninguém, maioria ou minoria, possa dominar os outros; dito de outra forma, é querer necessariamente a abolição do governo, isto é, de toda a organização coercitiva, para substituí-la pela livre organização daqueles que têm interesses e objetivos comuns.

Seria extremamente simples se cada grupo ou cada indivíduo pudesse isolar-se e viver por si próprio, ao seu modo, responsabilizando-se, independentemente dos outros, por suas necessidades materiais e morais.

Mas isso é impossível; e mesmo que fosse possível, não seria desejável, porque isso significa a decadência da humanidade, que cairia na barbárie ou no estado selvagem.

É preciso que, ao mesmo tempo em que está decidido a defender sua própria autonomia, sua própria liberdade, cada um – indivíduo ou grupo – compreenda os elos de solidariedade que o unem a toda a humanidade, e que seu sentido da simpatia e do amor por seus semelhantes seja bastante desenvolvido para que ele saiba se impor voluntariamente todos os sacrifícios necessários para uma vida social que garanta a todos os maiores benefícios possíveis num dado momento.

Mas é preciso, antes de tudo, tornar impossível que, pela força material, um pequeno número domine a massa – cuja dominação provém, por sinal, desta força material de que se serve o dominador.

Eliminemos a figura do policial, isto é, do homem armado a serviço do déspota e chegar-se-á ao livre acordo de um modo ou de outro, porque sem acordo, livre ou forçado, não é possível viver.

Entretanto, mesmo o livre acordo será sempre vantajoso para aqueles que estiverem mais bem preparados, intelectual e tecnicamente; e é por isso que recomendamos a nossos amigos, e àqueles que querem realmente o bem de todos, estudar os problemas urgentes, que exigirão uma solução prática no mesmo dia em que o povo tiver sacudido o jugo lhe oprime.

Notas:


[1] – Sandomirsky, defendeu a ideia de um “marxismo bakuninizado” em um artigo publicado no “Izvestia” de Moscou em ocasião da morte de Lênin. cf. (METT, 2017, p. 55), In: METT, Ida. La Comuna de Cronstadt: crepúsculo sangriento de los soviets. Edição de Pablo Mizraji, publicada em abril de 2017, no ITHA. Disponível em: <https://ithanarquista.files.wordpress.com/2017/05/ok-ida-mett-la-comuna-de-cronstadt.pdf>.

O Congresso de Amsterdã (1907) – Errico Malatesta

Prefácio escrito por Errico Malatesta ao relatório do Congresso Internacional Anarquista (24 de agosto de 1907 – 31 de agosto de 1907) realizado em Amsterdã. Publicado em: Les Temps Nouveaux, Paris, 05 de maio de 1907. A versão traduzida foi extraída de: MALATESTA, Errico. Escritos Revolucionários. Tradução de Plínio Augusto Coelho. São Paulo: Hedra, 2015.

Observação: incluímos duas notas explicativas que estarão indicadas entre colchetes e expostas ao final do texto.

[Imagem atribuída a um panfleto sobre o Congresso de Amsterdã]


***


A primeira tendência foi representada principalmente pelo camarada Monatte, da C.G.T, com um grupo que ele fez questão de denominar “jovens”, apesar dos protestos dos jovens, bem mais numerosos, de tendência oposta.

Monatte, em seu extraordinário relatório, falou-nos longamente do movimento sindicalista francês, de seus métodos de luta, dos resultados morais e materiais aos quais já chegou, e concluiu afirmando que o sindicalismo basta-se a si mesmo como meio para realizar a revolução social e realizar a anarquia [1].

Contra esta última afirmação intervi energicamente [2]. O sindicalismo, disse, mesmo ganhando consistência com o adjetivo revolucionário, só pode ser um movimento legal, movimento que luta contra o capitalismo no meio econômico e político que o Capitalismo e o Estado lhe impõem. Não tem, portanto, saída, e nada poderá obter de permanente e geral, senão deixando de ser sindicalismo, ligando-se não mais à melhoria das condições dos assalariados e à conquista de algumas liberdades, mas à expropriação da riqueza e à destruição radical da organização estatista.

Reconheço toda a utilidade, até mesmo a necessidade da participação ativa dos anarquistas no movimento operário, e não preciso insistir para que acreditem em mim, pois fui um dos primeiros a lamentar a atitude de isolamento altivo tomada pelos anarquistas depois da dissolução da antiga Internacional, e a incitar novamente os camaradas na via que Monatte, esquecendo a história, denomina nova. Mas isto só é útil sob a condição de permanecermos anarquistas antes de tudo, e não deixemos de considerar todo o resto do ponto de vista da propaganda e da ação anarquistas. Não peço que os sindicatos adotem um programa anarquista e que sejam compostos só por anarquistas: – neste caso, eles seriam inúteis, porque seriam a repetição dos agrupamentos anarquistas, e não mais teriam a qualidade que os torna caros aos anarquistas, ou seja, a de ser um campo de propaganda hoje, e um meio, amanhã; a de conduzir a massa à rua e faze-la assumir o controle da posse das riquezas e da organização da produção para a coletividade. Desejo sindicatos amplamente abertos a todos os trabalhadores que comecem a sentir a necessidade de se unirem com seus camaradas para lutar contra os patrões; todavia, também conheço todos os perigos que representam, para o futuro, agrupamentos feitos com o objetivo de defender, na sociedade atual, interesses particulares, e peço que os anarquistas, que estão nos sindicatos, deem-se por missão salvaguardar o futuro, lutando contra a tendência natural desses agrupamentos de se tornarem corporações fechadas, em antagonismo com outros proletários, ainda mais do que com os patrões.

A causa do mal-entendido talvez possa ser encontrada na crença, segundo minha opinião, errônea, ainda que geralmente aceita, segundo a qual os interesses dos operários são solidários, e que, conseqüentemente, basta que operários ponham-se a defender seus interesses e a perseguir a melhoria de suas condições para que sejam, naturalmente, levados a defender os interesses de todo o proletariado contra o patronato.

A verdade é, segundo meu ponto de vista, bem diferente. Os operários suportam, como todo mundo, a lei de antagonismo geral, que deriva do regime da propriedade individual; eis porque os agrupamentos de interesses, sempre revolucionários, no início, enquanto são fracos e necessitam da solidariedade dos outros tornam-se conservadores e exclusivistas quando adquirem força, e, com a força, a consciência de seus interesses particulares. A história do trade-unionismo inglês e americano está aí para mostrar a maneira como se produziu essa degenerescência do movimento operário, quando ele se limita à defesa dos interesses atuais.

É somente com vistas a uma transformação completa da sociedade que o operário pode se sentir solidário com o operário, o oprimido solidário com o oprimido; e é papel dos anarquistas manter ardente, por muito tempo, o fogo do ideal, procurando orientar, tanto quanto possível, todo o movimento para as conquistas do futuro, para a revolução, inclusive, se preciso for, em detrimento das pequenas vantagens que pode hoje obter qualquer fração da classe operária, e que, freqüentemente, só são obtidas às expensas de outros trabalhadores e do público consumidor.

Mas para poder representar esse papel de elementos propulsores nos sindicatos, é preciso que os anarquistas proíbam-se de ocupar cargos, principalmente cargos remunerados.

Um anarquista funcionário permanente e estipendiado de um sindicato é um homem perdido como anarquista. Não digo que algumas vezes não possa fazer bem; mas é um bem que fariam em seu lugar, e melhor do que ele, homens de idéias menos avançadas, enquanto ele, para conquistar e conservar seu emprego deve sacrificar suas opiniões pessoais e, com freqüência, fazer coisas que outro objetivo não têm senão o de se fazer perdoar pelo pecado original de ser anarquista.

Por sinal, a questão é clara. O sindicato não é anarquista, e o funcionário é nomeado e pago pelo sindicato: se ele trabalha pelo anarquismo, põe-se em oposição com aqueles que pagam e, em pouco tempo, perde seu cargo ou é causa de dissolução do sindicato; se, ao contrário, ele cumpre a missão para a qual foi nomeado, segundo a vontade da maioria, então, adeus anarquismo.

Fiz observações análogas em relação a esse meio de união próprio do sindicalismo: a greve geral. Devemos aceitar, dizia, e propagar a idéia da greve geral como um meio muito cômodo de começar a revolução, mas não devemos criar a ilusão de que a greve geral poderá substituir a luta armada contra as forças do Estado.

Foi dito, amiúde, que os operários poderão, pela greve, tornar os burgueses famintos e conduzi-los à composição. Eu não poderia imaginar absurdo maior que este. Os operários estariam mortos de fome muito tempo antes que os burgueses, que dispõem de todos os produtos acumulados, começassem a sofrer seriamente.

O operário, que nada possui, não mais recebendo seu salário, deverá se apoderar dos produtos pela força bruta: encontrará os policiais, os soldados e os próprios burgueses, que desejarão impedi-lo; e a questão deverá se resolver, em pouco tempo, por tiros de fuzil, bombas, etc. A vitória ficará com quem souber ser mais forte. Preparemo-nos, portanto, para essa luta necessária, ao invés de limitarmo-nos a pregar a greve geral como uma espécie de panacéia que deverá resolver todas as dificuldades. Por sinal, mesmo como maneira para começar a revolução, a greve geral só poderá ser empregada de maneira muito relativa. Os serviços de alimentação, inclusive os dos transportes dos gêneros alimentícios, não admitem uma interrupção prolongada: é preciso, portanto, apoderar-se revolucionariamente dos meios para assegurar o aprovisionamento, antes que a greve se tenha desenvolvido, por si mesma, em insurreição. Preparar-se para fazer isso não pode ser o papel do sindicalismo: este poderá apenas fornecer a massa para poder realizá-la.

Sobre essas questões assim expostas por Monatte e por mim, travou-se uma discussão muito interessante, ainda que um pouco sufocada pela falta de tempo e pela necessidade enfadonha de tradução em vários idiomas. Concluiu-se propondo várias resoluções, mas não me parece que as diferenças de tendência tenham sido satisfatoriamente definidas; é preciso mesmo muita perspicácia para descobri-lo, e, com efeito, a maioria dos congressistas não o descobriu em absoluto e votou igualmente as diferentes resoluções.

Isto não impede que duas tendências bem reais se tenham manifestado, ainda que a diferença exista mais no desenvolvimento futuro previsto do que nas intenções atuais das pessoas.

Estou convencido, com efeito, que Monatte e o grupo dos “jovens” são tão sincera e profundamente anarquistas quanto qualquer “experimentado”. Eles lamentariam conosco as faltas que se produziriam entre os funcionários sindicalistas; entretanto, eles as atribuiriam a fraquezas individuais. Eis o erro. Se se tratasse de faltas imputáveis a indivíduos, o mal não seria grande: os fracos desaparecem rapidamente e os traidores são logo reconhecidos e colocados na impossibilidade de prejudicar. Mas o que torna o mal sério, é que ele depende das circunstâncias nas quais os funcionários sindicalistas se encontram. Convido nossos amigos anarquistas sindicalistas a refletir sobre isto, e a estudar as posições respectivas do socialista que se torna deputado, e do anarquista que se torna funcionário de sindicato: talvez a comparação não seja inútil.

Com isso o Congresso estava praticamente terminado: não nos restava mais força nem tempo. Felizmente as questões que ainda deveriam ser discutidas não tinham grande importância.

Havia, é verdade, o antimilitarismo; mas entre anarquistas esta questão não podia dar origem a debate. Limitamo-nos, portanto, a afirmar, numa resolução, nosso ódio pelo militarismo, não somente como instrumento de guerra entre os povos, mas também como meio de repressão, reunindo em uma única condenação o exército, a polícia, a magistratura, e qualquer força armada em mãos do Estado.

Foi proposta uma resolução contra o alcoolismo, mas passou-se à ordem do dia. Ninguém certamente teria hesitado em aclamar uma resolução contra o abuso de bebidas alcoólicas, ainda que, provavelmente, com a convicção de que isso para nada servisse; mas a resolução proposta condenava até mesmo o uso moderado, que se considerava ainda mais perigoso que o abuso. Pareceu-nos muito exagerado; em todo o caso, pensamos que este é um argumento que deveria ser discutido principalmente por médicos… Admitindo que eles conheçam alguma coisa do assunto.

Enfim, havia a questão do Esperanto, cara ao camarada Chapelier. O Congresso, após uma discussão, necessariamente breve e superficial, recomendou aos camaradas estudar a questão de um idioma internacional, mas recusou-se a se pronunciar quanto aos méritos do Esperanto. E eu, que sou um esperantista convicto, devo convir que o Congresso teve razão: não podia deliberar sobre algo que não conhecia.

Deixai que eu conclua com as palavras que estavam nas bocas de todos os congressistas, no momento da separação: o Congresso foi realizado e obteve pleno êxito; mas um Congresso não é absolutamente nada, se não é acompanhado pelo esforço de todos os dias, de todos os camaradas.

Ao trabalho, todos.

Notas:


[1] – A posição exposta defendida por Monatte reflete o conteúdo da “Carta de Amiens”, tirada no 9º Congresso (1906) da Confederação Geral do Trabalho (CGT) francesa. Segundo Pierre Monatte: “tendo atingido a maioridade, a classe operária esta decidida a manter a sua independência e a não confiar a mais ninguém a tarefa de promover a sua emancipação” (MONATTE, 1985, p. 206) e, a partir disso, conlcluía o seguinte: “sindicalismo basta a si próprio” (idem). Veja-se: MONATTE, Pierre. Em defesa do sindicalismo. In: WOODCOCK, George. Os grandes escritos anarquistas. Porto Alegre: L & PM. 1985.

[2] – Em dezembro do mesmo ano, Errico Malatesta vai publicar seu artigo “Anarquismo e Sindicalismo”, onde vai fazer uma síntese das posições que havia exposto no Congresso de Amsterdã. A seguir nós citamos duas passagens que definem a posição de Malatesta: “O sindicalismo, a despeito de todas as declarações dos seus mais ardentes adeptos, contem, pela própria natureza das suas funções, todos os elementos de degeneração que corromperam os movimentos operários no passado. Com efeito, sendo um movimento que visa a defender os interesses presentes dos trabalhadores, há-de necessariamente adaptar-se às condições existentes e tomar em consideração interesses que vêm em primeiro lugar na sociedade tal como ela hoje existe. (…) Os anarquistas devem, pois, abster-se de se identificar com o movimento sindical e de considerar como fim o que não passa de um dos meios de propaganda e ação que eles podem utilizar. Devem permanecer nos sindicatos como elementos propulsores e lutar para os tornar o mais possível instrumentos de combate com mira na Revolução Social. Devem trabalhar para desenvolver nos sindicatos tudo o que pode aumentar a sua influência educativa e a sua combatividade, – a propaganda de ideias, a greve enérgica, o espírito de proselitismo, a falta de confiança nas autoridades e nos políticos, a prática da solidariedade para com os indivíduos e grupos em conflito com os amos. Devem combater tudo o que tende a torná-los egoístas, pacíficos, conservadores – o orgulho profissional e o estreito espírito corporativo, as cotas pesadas e a acumulação de capital empatado, a instituição de lucros e de seguros, a confiança nos bons ofícios do Estado, a boa camaradagem com os amos, a nomeação de funcionários pagos e permanentes”.