segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

A crise de decomposição do capitalismo

Patch sobre o caráter cancerígeno do capitalismo


Resumo: Esse texto é uma síntese do desenvolvimento teórico da crítica da economia política acerca da crise estrutural do capital. Consideramos que a Wertkritik tem avanços significativos nesse campo, apesar dos limites programáticos. Não vamos discutir diretamente os pressupostos teóricos dos “críticos críticos” do valor, apenas indicar a distinção de nossa perspectiva ao longo do texto.


Introdução metodológica:


A teoria revolucionária se desenvolve a partir da experiência histórica da luta de classes através da: 1) apropriação e desenvolvimento dos aprendizados das lutas (aspecto programático); e 2) compreensão das transformações sociais entre modos de produção e no próprio modo de produção (aspecto categorial). O fator preponderante é o programa, pois a crítica categorial só aparece como problema a partir da determinação da classe cujas tarefas revolucionárias exigem a transformação estrutural da sociedade.


“A Crítica crítica vislumbra por tudo apenas categorias” (Marx & Engels, 2011, p. 54), como manifestações fetichistas de “trabalho”, “valor”, “mercadoria”, “capital”, etc. Deste modo, é obrigada a dividir o método em duas partes, exotérico e esotérico, onde o segundo se proclama incondicionado pela sociedade e capaz de criar um “movimento emancipatório” como obra da crítica categorial. Porém, “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” (Marx, 2008, p. 47). Essa determinação não impede a compreensão da realidade social, pelo contrário, é justamente a partir do caráter irreconciliável dos conflitos que é possível adquirir a consciência necessária para levá-los até o paroxismo. Não se trata do que esse ou aquele grupo de pessoas pode imaginar que sejam seus objetivos, mas do que são e estão obrigados a fazer de acordo com o seu ser social.


Por isso a apropriação programática do legado da consciência prática, isto é, das lutas dos explorados na história, é o ponto de partida da crítica e deve estar acompanhada de uma caracterização das situações históricas, ou seja, das condições nas quais ocorre a intervenção militante. Com relação à esse segundo aspecto, a teoria da crise cumpre um papel fundamental no programa e a Wertkritik deve ser reconhecida pela sistematização dos seus fundamentos.


Mas para desfazer confusões, consideramos necessário explicar o seguinte: a objetivação de categorias sob as quais se assentam formas de relações sociais (como trabalho, capital, Estado, etc.) derivam e também condicionam a luta de classes historicamente. Não é a “humanidade” que faz história, mas seres humanos concretos que ocupam diferentes posições no processo social de produção. A história não é feita de livre e espontânea vontade, as circunstâncias sob as quais ela é feita não são escolhidas (Marx, 2011, p. 25). As pessoas se defrontam com a reprodução social tal como encontram como um poder estranho que surge das consequências das ações das gerações anteriores.


Mesmo que as condições não sejam escolhidas, não são as categorias da reprodução social que fazem a história e nem tampouco a “História” é um “movimento autonomizado”.  Neste caso, é preciso rejeitar toda forma de teleologia progressista da história que concebe o ser humano como instrumento do “desenvolvimento do espírito” ou do “desenvolvimento das forças produtivas”. O choque entre relações sociais de produção e forças produtivas não deve ser interpretado mecanicamente como um “obstáculo ao desenvolvimento tecnológico” (pensado como “progresso trans-histórico” da humanidade). O “entrave” nada mais é do que uma tendência a tornar obsoleto o modo de apropriação sob a qual se assenta certa forma social de produção baseada no acúmulo. Qualquer interpretação que utilize essa particularidade histórica para reduzir a transição entre modos de produção a um “desenvolvimentismo/progressismo” não passa de uma projeção ideológica dessa mesma particularidade.


“A História não faz nada, ‘não possui nenhuma riqueza imensa’, ‘não luta nenhum tipo de luta’! Quem faz tudo isso, quem possui e luta é, muito antes, o homem, o homem real, que vive; não é, por certo, a ‘História’, que utiliza o homem como meio para alcançar seus fins – como se tratasse de uma pessoa à parte –, pois a História não é senão a atividade do homem que persegue seus objetivos” (Marx & Engels, 2011, p. 111).


Assim, ao perseguir seus objetivos e interesses particulares, grupos determinados de seres humanos esbarram nas próprias contradições da vida social. As transformações estruturais se impõem como necessárias quando as incompatibilidades e compatibilidades de desejos, interesses, sonhos, etc., desses grupos excedem os limites das determinações gerais da sociedade.


Podemos demonstrar isso se considerarmos a transição do feudalismo para o capitalismo, onde temos uma situação em que: 1) a classe dominante senhorial foi obrigada a centralizar poder político na forma absolutista diante das revoltas camponesas e das tensões entre os estados (Anderson, 1995); 2) isso reorganizou os exércitos (criação do sistema dos “soldos”, uma das primeiras formas de salário moderna) e as relações inter-militares num sistema de estados na Europa (Teschke, 2003); 3) que essa alienação do poder senhorial local pelo poder absoluto monárquico torna a exploração extra-econômica direta inviável em certos casos, sendo necessário uma exploração propriamente econômica, o que acabou gerando os melhoramentos ingleses nas propriedades agrárias, desenvolvendo a tríade proprietário-arrendatário-trabalhador no campo (Wood, 2001).


Portanto, não é a síntese fetichista religiosa-agrária que está “fazendo a história”, mas sim o antagonismo de classe e as consequências impremeditadas das estratégias empregadas para a realização de objetivos particulares dessas classes. Inclusive, o que o poder senhorial conjurou para se proteger dos camponeses acaba por se transformar no próprio algoz desse poder ao abrir caminho para o desenvolvimento da burguesia que culmina nas “revoluções” políticas da mesma. O mesmo ato que coroou reis fez suas cabeças rolarem.


Neste caso, são as mudanças históricas nas relações de classe que vão criando uma “independência pessoal numa estrutura sistêmica de dependência coisal” (Postone, 2014, p. 149), pois foram grupos humanos concretos que agiram de tal forma que transformou a dominação senhorial baseada na dependência pessoal na dominação burguesa baseada em “uma subjugação das pessoas que se efetiva por meio do direito às coisas” (Sahlins, 1983, p. 109, tradução própria). 


Em suma, todo modo de produção é histórico, no duplo sentido de que: 1) sua existência e reprodução social possui determinações categoriais próprias; 2) sua gênese e transformação estão associadas com as lutas concretas dos seres humanos.


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Com base nessas considerações iniciais, reconhecemos a centralidade da luta de classes como força motriz histórica das sociedades de classe. Porém, a análise que se segue busca aprofundar a crítica categorial, uma vez que a tarefa de desenvolvimento teórico da intervenção exige uma crítica da ideologia do “capitalismo eterno”, isto é, da noção segunda a qual a reprodução social deste modo de produção poderia continuar indefinidamente, como se não houvessem limites históricos dentro do seu próprio desenvolvimento. Nosso método apreende a processualidade histórica, portanto a coesão funcional ou coerência lógico-categorial da sociedade é apenas uma síntese parcial da reprodução social.


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1. Contradição em processo e limite interno absoluto:


No capitalismo, a forma social de riqueza que lhe é específica é o valor, uma medida de quantidades abstratas de tempo de trabalho. O capitalismo é um modo de produção baseado na valorização do valor, sua existência depende do acúmulo de tempo de trabalho objetivado. Portanto, o capital precisa sempre acrescentar mais valor ao valor criado. O movimento do capital é “o impulso ilimitado e desmedido de transpor seus próprios limites” (Marx, 2011, p. 264), pois a cada valorização o momento superado agora aparece como pressuposto, como novo limite a ser superado. Porém, apenas aparentemente esse movimento seria “ilimitado”. Na verdade, seu limite é a própria necessidade inexorável de se superar, uma vez que a cada novo ponto de partida aumenta o obstáculo que o capital se coloca para transpor.


A crise estrutural do capitalismo é o desenvolvimento imanente da “contradição em processo” que define o capital, isto é, a tendência para reduzir o tempo de trabalho socialmente necessário da produção ao mínimo e, ao mesmo tempo, conservar a medida da riqueza na forma do tempo de trabalho (Marx, 2011, pp. 588-589). Portanto, existe um limite interno absoluto do capital que é o próprio capital, isto é, quando seu movimento é bloqueado por si mesmo, tornando o valor obsoleto para si mesmo.


Daqui se deduz a decomposição histórica do modo de produção, a partir de sua própria reprodução. Isso não significa, entretanto, que se trata de uma predestinação ou de uma teleologia histórica. Essa é uma dedução lógico-categorial que acompanha o desenvolvimento do modo de produção a partir da base econômica da dominação capitalista (que é a acumulação de capital sob a ditadura do valor).


Apesar de haver crise estrutural (que demonstraremos a seguir), não significa que o capital vá colapsar automaticamente. Na verdade, ele vai deslocar seu limite pela capitalização (financeira e monetária) até onde conseguir simular acumulação com capital fictício. Mas essa transformação que muitos chamam de “financeirização” não é uma solução para a crise, mas sim uma administração da crise e conservação do poder de classe capitalista às custas da exploração, extermínio e destruição do planeta.


2. A crise estrutural:


A crise estrutural da “contradição em processo” ocorre pelo próprio movimento dos capitais que concorrem pela maximização da mais-valia. Através de inovações tecnológicas, os capitais inovadores adquirem vantagens temporárias de produtividade com base no aumento da eficiência no processo produtivo. Porém, a concorrência nivela as massas de lucro assim que se disseminam as inovações para a produção global, se tornando o novo padrão de produtividade médio. A questão que se coloca é a seguinte: em um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas, esses aumentos conduzem necessariamente à regressão absoluta da massa de mais-valia produzida socialmente.


Se a fonte da mais-valia é o trabalho produtivo e a produtividade busca aumentar a proporção do mais-trabalho diminuindo o trabalho necessário, então existe um limite na mais-valia relativa. Conforme Marx: “o trabalho excedente não aumenta na mesma proporção numérica que a força produtiva. Se a proporção inicial é 1/2 e a força produtiva duplica, o tempo de trabalho necessário (para o trabalhador) se reduz a 1/4 e o valor excedente só aumenta 1/4” (Marx, 2011, pp. 266-267). Neste caso, quanto menor o trabalho necessário antes do aumento da produtividade, menor o aumento conseguido na parcela do mais-trabalho.


Podemos ilustrar isso com um caso extremo:


“Se, por exemplo, o trabalho necessário já representar somente 2/100 da jornada de trabalho (e o mais-trabalho representar, portanto, 98/100), então uma duplicação da força produtiva do trabalho – nos setores que produzem bens de subsistência – implicará que a proporção do trabalho necessário diminua para 1/100 da jornada de trabalho, enquanto a proporção do mais trabalho aumentará para 99/100 de jornada de trabalho; ou seja, o mais-trabalho aumentará somente 1% apesar de a força produtiva do trabalho ter aumentado 100%!” (Machado, 2019, p. 173).


Logicamente, portanto, cada vez mais incrementos colossais de forças produtivas são necessários para aumentos homeopáticos de mais-trabalho explorado.


Segundo a tese da Wertkritik, a racionalização da produção pela microeletrônica atinge o limite interno absoluto da produção da massa de mais-valia social. Nessas condições, o aumento da produtividade não é capaz de aumentar a parcela do mais-trabalho. E quando a taxa de exploração atinge um patamar quasi-estacionário devido a essa racionalização da produção, a massa de mais-valia produzida somente poderia crescer se o número de trabalhadores produtivos ocupados aumentar em termos absolutos. Porém, é precisamente o contrário que acontece devido ao processo de automação: a expulsão do trabalho vivo do processo imediato da produção é maior do que a capacidade do capitalismo em reabsorver esse excedente de trabalhadores produtivamente. Consequentemente, além do desemprego estrutural que resulta da diminuição progressiva dos postos de trabalho pela racionalização microeletrônica, esse excesso de força de trabalho passa a engrossar o trabalho improdutivo empregado pelos capitais improdutivos (que não produzem mais-valia, mas a consomem).


Essa situação ocorre precisamente nas condições de uma economia mundialmente integrada, de modo que a mais-valia de capitais com menor composição orgânica (seja intersetorial, seja intrassetorial) é transferida para os com maior composição orgânica (isto é, para os que menos contribuem com o aumento da massa de mais-valia social).


Portanto, em todos os níveis o capital encontra entraves para se autovalorizar. Em outras palavras: a autovalorização do capital se torna um obstáculo para si mesma. A expulsão massiva e absoluta de força de trabalho do capital produtivo é o mesmo que uma superprodução absoluta do capital, isto é, “o capital acrescido C + ∆C não produziria lucro maior (…) do que o capital C antes de receber o acréscimo ∆C” (Marx, 1986, p. 190). Ou seja: o capital variável diminuto deixa de se tornar rentável na composição orgânica.


Como consequência dessa superacumulação de capital, surgem os mecanismos de ficcionalização da riqueza e a transferência dos custos da crise para o proletariado através de diversos mecanismos: conflito distributivo da inflação, cortes nos custos da reprodução social que afetam a previdência, a saúde e qualificação da força de trabalho pelo ensino formal, etc. Além disso, a espoliação fundiária de territórios também se torna uma necessidade cada vez mais imperativa. Por fim, o entrave na acumulação condiciona a colisão dos capitais que disputam pela partilha do mundo, cujo ponto culminante é a guerra imperialista.


3. A crise estrutural através das categorias do modo de produção:


A crise estrutural do capitalismo se expressa também como uma crise categorial de sua reprodução social. Essa crise se caracteriza por um conjunto de fatores relacionados entre si (Botelho, 2018):


  1. Crise do trabalho: conforme vimos na seção anterior, a racionalização da produção com a microeletrônica produz um desemprego estrutural, uma vez que elimina mais empregos do que é possível recompor no capital produtivo. Isso também gera uma transferência irreversível de assalariados dos setores produtores de valor (trabalho produtivo) para setores economicamente improdutivos, como o comércio e as finanças (terciarização). Se nos momentos das expansões extensivas e intensivas do capital a acumulação era possível devido à composição orgânica ainda manter crescente a massa de lucro às custas da diminuição da taxa, com a diminuição absoluta do capital variável diminui a massa de mais-valia socialmente produzida, diminuindo a massa de lucro real progressivamente. Instaura-se uma situação onde o excesso de meios de produção (capacidade ociosa) leva a um excesso de força de trabalho (desemprego) que é acompanhado de um excesso de mercadorias (superprodução) e um rebaixamento do poder de compra (subconsumo).

  2. Crise do valor: a queda no volume geral de valor é o que conduz à queda da taxa e da massa de lucro, tornando-os insuficientes para dar destino rentável ao capital acumulado, forçando o capital a buscar formas substitutivas e fictícias de riqueza para simular sua reprodução. Aqui ocorre a capitalização monetária-financeira com a multiplicação do capital fictício (antecipação de mais-valia futura, real ou especulativa, na forma de títulos, derivativos, ações, etc.). No lugar da reprodução ampliada de capital, ocorre uma reprodução simulada pela ficcionalização da riqueza: deslocamento da “valorização do valor” para a geração de juros.

  3. Crise do dinheiro: o fim do sistema de Bretton Woods (fim da conversibilidade do dólar em ouro) representa a substituição da mercadoria-dinheiro (equivalente geral) para o dinheiro-mercadoria (nesse caso, o dinheiro fiduciário de curso forçado, como “moeda de crédito”), uma consequência da improdutividade generalizada de valor que também torna sem substância a multiplicação monetária. Uma vez que o capital busca resolver o problema da acumulação com capitalização, esse processo resultou na emissão monetária excedentária: o aumento da quantidade de dinheiro em circulação cresceu muito mais rapidamente do que o volume do output material, movendo-se na direção contrária à queda acentuada dos valores reais das mercadorias. Como consequência, surge o fenômeno da inflação permanente, caracterizada pelo desfasamento do nível de preços face à grandeza decrescente do valor produzido socialmente. A inflação permanente também serve como uma arma ao serviço da classe capitalista, que procura travar a queda da taxa e da massa de lucro através da compressão dos salários reais (conflito distributivo). Os salários nominais geralmente aumentam mais lentamente do que os preços de outras mercadorias, então se os preços crescem mais rapidamente do que os salários, a distribuição do produto social é alterada para assegurar a lucratividade do capital: aquilo que não pode ser extraído dos trabalhadores na produção é-lhes retirado no processo de circulação. Além disso, a desvalorização da moeda, promovida pelo Estado, é uma ação que torna o capital autóctone mais competitivo no plano internacional e favorece as exportações. Contudo, essa mesma desvalorização cambial aumenta os preços das importações e, consequentemente, provoca um aumento dos preços no mercado doméstico, rebaixando ainda mais o consumo (Machado, 2020).

  4. Crise do capital global: a interdependência econômica mundial do capitalismo contemporâneo gera simultaneamente a dispersão geográfica e integração econômica das cadeias produtivas. Assim, a expansão geográfica absoluta (incorporação de novos mercados) e relativa (reestruturação interna) atinge o limite de não haver mais condições de expansão (que muitas vezes resulta em “destruições criativas”, por exemplo: destruição de edificações urbanas apenas para construir outras no lugar). Cada mercadoria passa a ser o resultado geral da produção globalizada que contém em si todos os momentos da crise estrutural mundial. Além das cadeias globais de produção integradas, surgem circuitos deficitários: a dívida, a desindustrialização e o desemprego são exportados para os países-alvo dos excedentes de exportação. Porém, isso só ocorre porque os mercados consumidores não são mais integrados às próprias potências produtoras, ou seja, o consumo endividado de uns financia a produção sem substância de outros (o próprio crescimento econômico sendo ele mesmo um endividamento sem acrescentar valor suficiente à produção global). No centro dessa dinâmica está o circuito deficitário do pacífico (principalmente as relações China-EUA): de um lado, a economia chinesa tem uma dependência estrutural do mercado consumidor dos Estados Unidos (a produção chinesa depende fundamentalmente do mercado externo, cujo maior consumidor é os EUA), de outro lado, a economia norte-americana tem uma dependência estrutural do financiamento chinês (todo esse consumo se sustenta na base de compra de títulos da dívida pública dos Estados Unidos, a maior do mundo, sustentada pela garantia de estabilidade militar do sistema). Em outras palavras: os maiores consumidores do mundo pedem emprestado o dinheiro com o qual pagam aos maiores fornecedores pela enxurrada de mercadorias (Botelho, 2024). Além desse desacoplamento estrutural entre mercado consumidor e potência produtora, em que a própria economia chinesa apenas expande materialmente sua produção “por meio da reciclagem do capital monetário multiplicado” nos EUA (Botelho, 2024, p. 37), a força de trabalho asiática não solucionou o problema do desemprego estrutural, pois apenas absorveu as vagas deixadas pelos outros países devido aos custos reduzidos de sua mão-de-obra. A própria economia chinesa só cresceu devido à inversão de papéis entre o capital fictício e o capital produtivo: através dos veículos de financiamento dos governos locais (LGFVs), usou a bolha imobiliária da expansão urbana para desenvolver-se industrialmente, porém as dívidas emitidas por LGFVs são lastreadas na venda futura de terras urbanas, o que implica em mais construções para serem valorizadas. Essa situação gerou a crise das incorporadoras, como o colapso da Evergrande em 2023 (Botelho, 2025). Como resume Botelho (2025, p. 2): “o contrário de um passado em que a produção de infraestrutura urbana, financiada por dívida, aquecia o mercado e se tornava parte de um surto de crescimento econômico amplo, a inovação financeira das últimas décadas do século XX multiplicou recursos financeiros numa escala que não podem ser realizados. Os mercados secundários, com uma diversidade de instrumentos de financiamento, bombeiam gigantescos recursos de crédito para o setor imobiliário, mas esse volume é elevado demais para se realizar na forma de capital ‘real’, isto é, passar pelos circuitos produtivos da exploração econômica (produção de mais-valia)”.

  5. Crise fiscal dos Estados: o fenômeno do endividamento estatal, na própria moeda ou no sistema monetário internacional, está fundamentalmente relacionado com as demais crises. Nessas condições se manifesta a incapacidade econômica estrutural do Estado de financiar suas próprias atividades devido a uma combinação de demandas sociais crescentes (políticas de administração da estabilidade social burguesa decorrentes da crise do trabalho) e uma base de arrecadação cada vez mais frágil (devido à crise do valor e à globalização do capital). A concorrência global de custos leva à guerra fiscal dos investidores, onde o capital é atraído por locais que garantem redução de impostos e financiamento subsidiado. Assim, a crise do trabalho aumenta os gastos sociais enquanto a crise do valor e a globalização destroem a base de arrecadação. O resultado é a crise fiscal estrutural, onde o Estado busca salvação na crise do dinheiro, trocando arrecadação real por endividamento e riqueza fictícia para simular sua capacidade de atuação: a emissão monetária se torna uma adrenalina injetada na economia em estado terminal, gerando a inflação que rebaixa ainda mais o poder de compra. Nessas condições, também rebentam as contrarreformas de austeridade fiscal, transferindo mais uma vez os custos da crise na força de trabalho (liquidação da seguridade social, dos sistemas de ensino públicos e demais políticas assistenciais), além de favorecer a rapinagem com as privatizações e aumentar o orçamento com repressão (fortalecimento do fundamento policialesco do Estado).



4. Multipolarização:


A estratégia estadunidense de integração regional e nearshoring (transferência empresarial de parte das operações de produção para países geograficamente próximos) representa um passo na saída da posição onerosa de sustentar como país hegemônico o sistema monetário-financeiro internacional. O aumento do protecionismo e das pressões imperialistas na América Latina (um revival da Doutrina Monroe) não representam senão uma resposta desesperada perante o impacto das tendências dissolutivas comentadas acima.


A passagem da globalização neoliberal para a “desglobalização” multipolar é impulsionada pela comercial entre China e EUA, o centro do qual também se encontra a corrida armamentista pelos espólios cada vez mais escassos de valor. Assim, o financiamento bélico agrava ainda mais a crise fiscal estrutural, descarregada principalmente nos países subordinados ao imperialismo.


Portanto, a reabilitação dos movimentos reacionários se torna historicamente necessária às necessidades do capitalismo em crise, com novas formas de ingerência imperialista (como a criação da categoria de “narcoterrorista” como justificativa para intervenções diretas) e novas formas de fascismo (mais associados a uma integração em gangues que buscam favorecer frações unilaterais da burguesia do disciplinar uma unidade corporativista da classe dominante na nação).


Muito embora os organismos financeiros internacionais possuam dados limitados e muita subnotificação das dimensões reais da crise, se usarmos os próprios dados do FMI (Gaspar et al., 2025), veremos que atualmente o déficit público de todos os países representa 94% do PIB mundial. Soma-se a isto o endividamento privado (empresas e famílias) que representa 143% do PIB mundial. Assim, o Estado é pressionado a arcar ainda mais com essas dívidas privadas por meio de salvamentos, subsídios, isenções fiscais, etc.


Nas relações entre as nações, esses endividamentos geralmente são externalizados na forma de contrarreformas de austeridade fiscal e programa de privatizações para que os países semi-coloniais canalizem suas verbas para o capital financeiro, enquanto que as potências imperialistas flexibilizam a própria dívida com emissões monetárias, juros baixos, etc. Algo semelhante já ocorreu no circuito deficitário da Zona Euro, quando “Berlim aproveitou para transferir os custos da crise para o Sul da Europa, sob a forma dos infames ditames de austeridade de Schäuble” (Konicz, 2024).


Assim, a unidade do capital financeiro com as frações espoliadoras do capital nos países imperialistas exige uma cooperação das frações exportadoras nos países semi-coloniais, cujos governos locais podem ser impostos por golpes e até mesmo intervenção direta nas circunstâncias atuais. Apesar disso, se for possível realizar a submissão imperialista por governos de conciliação, estes ainda seriam os mais eficazes por conter a instabilidade interna do regime (a exemplo do Brasil de Lulalckmin).


5. O papel da espoliação fundiária:


Um processo tem se destacado na esteira da financeirização econômica e está fundamentalmente relacionado com o fenômeno da especulação e das bolhas imobiliárias. Trata-se da espoliação e especulação das propriedades fundiárias.


A terra, seja no campo, seja na cidade, se torna um importante ativo financeiro, uma vez que a renda da terra é um adiantamento que especula com a produtividade da propriedade, pois o que se vende através dessa renda é um direito a rendimentos futuros. Neste caso, o mercado de terras é um ramo das transações do capital a juros (Botelho, 2016). Porém, esse mecanismo, longe de resolver os entraves da crise, apenas aprofunda o descompasso entre, por um lado, a ficcionalização de riqueza (aumento vertiginoso da capitalização monetária) e, por outro, a incapacidade de acumulação real de valor (diminuição em termos absolutos da massa de mais-valia socialmente produzida no modo de produção como um todo).


Em nosso texto: Para enfrentar a assimilação eleitoral em Porto Alegre (setembro de 2024), descrevemos em parte esse processo nas condições particulares da capital gaúcha. É possível encontrar no texto várias ressonâncias com todo o conjunto da discussão mais categorial que desenvolvemos aqui.


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Vê-se, portanto, que há uma transformação histórica do capitalismo e não simplesmente a reprodução estrutural inalterada de suas bases categoriais. Mas a transformação histórica é ela mesma imanente ao desenvolvimento categorial, à contradição em processo que anima seu ser.


A situação histórica do modo de produção é sua decomposição, mas o choque entre as forças produtivas e as relações de produção não resulta diretamente na transição para outro modo de produção. Somente quando o problema é posto e apenas quando se busca resolvê-lo de modo revolucionário que é possível falar em superação da decomposição. Isso significa que apenas quando a riqueza abstrata (baseada na ditadura do valor da classe capitalista) passa a ser substituída por outra forma de riqueza social que se pode falar em transição. Porém, a condição de possibilidade dessa transformação é a ditadura revolucionária do proletariado.


6. Para um resumo dos arcos históricos do modo de produção e a necessidade da teoria da crise em cada momento do desenvolvimento do programa revolucionário:


A espoliação de terras e a imposição da subsunção formal ao processo de trabalho forma um regime de acumulação baseado na mais-valia absoluta e no colonialismo. Nesse regime de acumulação expansivo, a luta pela libertação da dominação colonial e a luta pela redução da jornada de trabalho formam uma unidade da luta de classes que obriga a classe dominante a reestruturar seu poder de classe na exploração de mais-valia relativa com a subsunção real ao processo de trabalho e a renovação do poder colonial no imperialismo de exportação de capitais transnacionais para exploração das taxas de lucro diferenciais de países subdesenvolvidos (regime de acumulação intensivo).


No entanto, a orientação para a mais-valia relativa esbarra num limite interno absoluto com a revolução microeletrônica, gerando a atual crise de desvalorização e dessubstancialização do valor. A decomposição da base da valorização não acaba com a ditadura do valor, mas muda sua orientação para um sentido ficcionalizante com a financeirização e suas formas novas de espoliação via transformação em capital fictício da estrutura fundiária combinada com desemprego estrutural, subemprego, endividamento, superpopulação supérflua.


Marx tinha desenvolvido a caracterização da superpopulação absoluta e a relativa dos respectivos regimes de acumulação anteriores, torna-se necessário uma teoria da superpopulação supérflua. É bom lembrar que: “Por ‘proletariado’ deve-se entender do ponto de vista econômico, apenas o assalariado que produz valor e valoriza ‘capital’ e é posto na rua assim que se torna supérfluo para as necessidades de valorização do ‘Monsieur Capital’” (Marx, 2017, p. 690, nota 70). Portanto, a superpopulação supérflua é parte da composição de classe do proletariado, é a força de trabalho excedente (que é “posta na rua assim que se torna supérflua”). Inclusive, em nossa perspectiva não se deve assumir necessariamente que o proletariado se reduza a “apenas” o trabalhador produtivo, pois essa é uma noção de composição de classe limitada pelo obreirismo (porém, não vamos desenvolver essa discussão neste texto).


Provavelmente a primeira forma da crise do primeiro regime de acumulação poderia estar mais próximo da análise da Rosa Luxemburgo sobre o entrave da reprodução ampliada de capital e necessidade de expansão do mercado em zonas não-capitalistas para realização da mais-valia. Assim, surge a unidade da luta anti-colonial com a luta contra a subsunção formal ao processo de trabalho. Também surge as deformações ideológicas e o isolamento das lutas: a social-democracia critica a teoria da crise, afirma a superação do capital de suas crises, se apoia na “aristocracia operária” e, portanto, na dissolução da unidade da luta contra a colonização.


A segunda forma da crise mais próxima da versão onde ocorre a queda tendencial da taxa de lucro até afetar a massa de lucro (Henryk Grossmann), cuja recomposição implica na exploração competitiva das taxas diferenciais de lucro noutros países. Aqui se impõe a unidade da luta anti-imperialista com a luta contra a subsunção real ao processo de trabalho. Porém, também a social-democracia tentou escamotear a teoria da crise e apostar mais uma vez na integração nacional, no sindicalismo corporativista, etc.


A terceira versão, a partir da “contradição em processo” do Capital é, na verdade, o próprio fundamento das outras, embora só pudesse ser reconhecida com o desenvolvimento da própria auto-contradição. As teorias da crise anteriores não chegaram a um limite interno absoluto do capital na própria valorização, o que também ocasionou limites do ponto de vista programático.


Apesar de toda a social-democracia em coro com os liberais atacarem a teoria da crise, a decomposição do capitalismo atualmente é uma realidade que se impõe. Suas consequências já são sentidas na combinação desigual de especulação com capital fictício de rendimentos futuros financiados com os déficits dos países em austeridade fiscal. Nessas novas condições de reprodução do capitalismo, as estruturas de poder de cada regime de acumulação são condicionadas pelo “momento predominante” da crise estrutural, isto é, a verdade das duas primeiras formas de manifestação é a terceira.


Se a exploração mais-valia absoluta como uma necessidade e as invasões territoriais de espoliação podem “retornar” como imperativos, é em função da desvalorização do valor. Some-se a esse processo o agravamento da destruição ambiental, uma vez que cada vez mais incrementos colossais de recursos serão necessários para satisfazer as necessidades do capital em crise.


Em todo caso, a expulsão massiva do trabalho vivo do processo imediato da produção não leva à dissolução do proletariado no sentido formal, pelo contrário, é mais uma demonstração de que o proletariado é a dissolução das classes na sociedade de classes, pois sua própria personificação de valor (a substância, o trabalho abstrato) se torna supérflua, tornando também supérflua a “identidade trabalhadora”. Essa “perda do sentido” sistêmico leva o proletariado a devir historicamente desterritorializado da “nostalgia do pertencer”, esse “completo desnudamento” que só pode ser superado retomando a totalidade de suas condições de existência.


Geralmente quando o pensamento anti-dialético decreta o “desaparecimento” do proletariado, é porque estamos prestes a sentir o que na prática é seu verdadeiro “desaparecer histórico”: a ação revolucionária da classe proletária é seu suprassumir, suprassumindo o capital.



Referências:


ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1995.


BOTELHO, Maurilio Lima. Desenvolvimento econômico chinês e o “circuito deficitário do Pacífico”: Apontamentos sobre a globalização. In: PEREIRA, Luiz Andrei Gonçalves; OLIVEIRA, Leandro Dias de (org.). Geografia, desenvolvimento e luta política. Montes Claros, MG: Editora Unimontes, 2024.


BOTELHO, Maurílio Lima. Entre as crises e o colapso: cinco notas sobre a falência estrutural do capitalismo. Revista Maracanan, [S. l.], n. 18, p. 157–180, 2018.


BOTELHO, Maurilio Lima. Renda da terra e capitalização em David Harvey. Notas sobre o caráter especulativo da propriedade imobiliária. Espaço e Economia, n. 8, 2016.


BOTELHO, Maurilio Lima. Urbanização e desenvolvimento na China: dívida, capital fictício e crise global. Tempo, v. 31, n. 2, p. e310208, 2025.


CARDOSO MACHADO, Nuno Miguel. O Estranho Caso dos Preços que Querem Desvincular-se do Valor: Contributo para Uma Teoria Marxista da Inflação. Revista Economia Ensaios, v. 35, n. 1, 2020.


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sábado, 14 de setembro de 2024

Para enfrentar a assimilação eleitoral em Porto Alegre

Porto Alegre 2024: Maio debaixo d'água, Setembro em cinzas.

A capital do Estado do Rio Grande do Sul contém particularidades que expressam as tendências globais das calamidades capitalistas, portanto decidimos fazer uma publicação especial sobre as eleições municipais de Porto Alegre. Essa publicação não tem o objetivo de tratar de modo detalhado o processo eleitoral em si, mas situá-lo no contexto da luta de classes mundial.

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Esse texto foi escrito enquanto respirávamos as nuvens de fumaça dos incêndios provocados pelo agronegócio. No momento não abordaremos esse fato, mas não poderíamos deixar de mencioná-lo nessa publicação, visto que expressa as tendências destrutivas que abordaremos aqui. Reconhecemos que nossa contribuição ainda não é suficientemente abrangente para a questão particular que nos propomos discutir. No entanto, as orientações gerais aqui expostas podem ser o ponto de partida para se aprofundar em discussões mais particulares acerca da luta de classes na região metropolitana do território ocupado pelo Estado do Rio Grande do Sul (e também noutras regiões).

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Observação: entre colchetes marcamos as notas que se encontram ao final do texto.

Considerações iniciais:


Nossa caracterização da situação histórica mundial do capitalismo é de uma crise de decomposição que  tem deteriorado as condições de vida em todo o planeta. Neste sentido, a tendência histórica geral que vivemos é de contínua destruição ambiental [1], de aumento da riqueza monetária de um punhado de capitalistas construída sob a miséria generalizada da maioria da população mundial [2], de massacres oriundos de disputas imperialistas [3], em suma, todas as consequências nefastas que são produtos da exploração e dominação de classe. Portanto, não resta alternativa senão reerguer o programa da revolução social em todo o mundo.

Com base nisso, enfatizamos mais uma vez que a posição fundamental que determina nossas orientações é a defesa da revolução social, a luta pela abolição da sociedade de classes capitalista através de um movimento revolucionário dirigido pelo proletariado [4]. Não significa que defendemos que apenas a classe proletária deve determinar sozinha o curso da revolução, mas que sua realização depende do movimento proletário coordenar o conjunto dos explorados e oprimidos em uma luta unificada contra o conjunto dos exploradores e opressores. As transformações sociais radicais necessárias para um processo de emancipação coletiva derivam das condições históricas mundiais que fazem do proletariado a classe revolucionária em luta contra as forças reacionárias dirigidas pelos capitalistas.

Nossa intervenção teórico-prática na luta de classes é orientada conforme a realização desse objetivo revolucionário. A análise da situação está articulada com a estratégia que consideramos apropriada para atingir esse fim [5]. Portanto, o cenário eleitoral é apenas a superfície imediata a partir da qual intervimos para promover o programa revolucionário. Uma vez que existe uma difusão ideológica do eleitoralismo nas massas, devemos combatê-la em seus fundamentos.

As eleições na democracia representativa ocorrem para renovar os quadros administrativos conforme as exigências da gestão dos negócios da classe dominante em cada conjuntura. Os pretensos “partidos de esquerda” que disputam as eleições não alteram essa situação de modo algum. E aqueles que buscam participar do processo eleitoral para supostamente fazer “campanha revolucionária” prometendo “parlamentarismo revolucionário” não passam de oportunistas [6]. A única contribuição de grupos auto-proclamados como “oposição de esquerda” ao participar do processo eleitoral é reforçar a legitimidade da democracia representativa da burguesia.

Todas as mudanças governamentais que podem ocorrer a partir de processos eleitorais seguem os padrões das exigências da acumulação de capital. Essas disputas no nível da institucionalidade burguesa são o resultado culminante da realidade profunda da luta de classes.

Da luta de classes, o campo histórico real sobre o qual se desenvolvem as contradições fundamentais do capitalismo, surgem as tendências eleitorais que expressam as disputas entre diferentes frações da classe dominante. Na medida em que a maioria da população é composta pelo proletariado, portanto as campanhas e disputas por legitimidade diante dos explorados é crucial para as vitórias eleitorais e para a própria assimilação ideológica.

No nível dos interesses econômicos, as diversas frações da burguesia concorrem pela produção e repartição da mais-valia, na forma de lucros, juros, rendas e impostos. Nessa concorrência, existem situações em que os capitalistas industriais podem se opor aos proprietários fundiários, os industriais aos comerciantes, parte da burguesia à propriedade estatal de ramos da produção, etc. Ramos dentro de uma mesma indústria também podem entrar em conflito, por exemplo: os lobbies da indústria automotiva do setor de caminhões e os do transporte ferroviário e fluvial. A relação entre essas frações capitalistas são mediadas pelo governo, como no caso dos recursos de crédito seletivos para determinados setores da economia, a coalizão entre capital financeiro e agronegócio, etc.

São essas relações de força que precisamos compreender para desmascarar as campanhas farsantes com a qual os partidos burgueses buscam realizar uma “assimilação eleitoral” do proletariado, isto é, uma sujeição da classe aos projetos políticos de seus exploradores.

Devemos acabar com a dissimulação de todos os grupos eleitorais com relação à realidade prática dos governos municipais e, no nosso caso particular, a capital gaúcha (Porto Alegre). Todo o cretinismo eleitoral consiste em promessas e ameaças vazias que falsificam as tendências históricas reais que determinam a situação das cidades no capitalismo contemporâneo. Na seção 1, apresentamos um panorama do espetáculo eleitoral da burguesia. Na seção 2, apresentamos as tendências gerais que condicionam a situação particular das eleições municipais em cidades que sediaram megaeventos (como é o caso de Porto Alegre). Na seção 3, expomos as tendências observadas no pós-eleição de 2022 que apontam para a continuidade da mesma política econômica de Temer e Bolsonaro. Na seção 4, defendemos o abstencionismo como um compromisso com a construção da autonomia proletária e da ação direta contra o capital.

1. A unidade contraditória entre duas tendências capitalistas contra o proletariado:


As eleições municipais nada mais são do que uma disputa entre distintos projetos capitalistas de cidade. A estratégia eleitoral visa dividir e assimilar o proletariado a um dos projetos burgueses de governo  municipal. Nesse sentido, não importa o que dizem defender ou o que escrevem em seus programas, mas sim o que esses partidos realizam na prática e como isso expressa a situação efetiva da luta de classes.

Nas eleições atuais de Porto Alegre, vemos uma disputa entre o partido socialdemocrata liderado pelo PT e a tentativa de reeleição do prefeito Melo (MDB). Na prática, a agenda petista continua sendo a manutenção da conciliação de classes através do aparelhamento de entidades representativas e “movimentos sociais” (com a nostalgia dos “bons tempos” da participação popular de outrora), concedendo algumas migalhas de políticas de inclusão e assistência social que possuem a função de anestesiar processos de revolta proletária. Por outro lado, a direita e ultradireita representadas pelo MDB investem numa cooptação da situação de crise e revolta para promover uma solução reacionária, aprofundando os processos de espoliações em curso na cidade sob sua gestão.

Da parte da pseudo-esquerda, persiste uma retórica moralista de enfrentamento dos “setores reacionários” que a socialdemocracia ajudou a colocar no poder, seja desmobilizando as forças de luta do proletariado, seja pavimentando o caminho institucional ao viabilizar grandes empreendimentos da indústria de megaeventos. Economicamente, o projeto de governo expressa as mesmas tendências da direita, enquanto que politicamente conservam um verniz progressista de liberdades democráticas e mecanismos de participação social que conduzem os movimentos sociais a darem legitimidade popular ao programa econômico. Durante o período eleitoral, as entidades representativas de bairro (associações de moradores, centros culturais de caráter “popular”, etc.), sindicais, de estudo, assim como os “movimentos sociais” são usados como palanque.

Da parte da direita e da ultradireita, trata-se de generalizar o saque imperialista da cidade, seja para grupos empresariais imobiliários, seja para empresas transnacionais que visam se apropriar de recursos estratégicos, sobretudo a água. Diferentemente da pseudo-esquerda, a direita tem assumido um caráter mais autoritário e populista, algo que os sociaisdemocratas chamam de “desdemocratização institucional” (desmantelamento das prerrogativas de controle social, de fiscalização popular, etc.), com recorrente uso de clientelismo (serviços pontuais para setores periféricos da cidade amplamente midiatizados nas redes, ampliação de cargos de confiança para incorporar representantes de comunidades que funcionam como cadeia de transmissão da auto-promoção do governo, etc.).

Não existe “mal menor” nesse cenário, apenas duas tendências de assimilação do proletariado visando promover diferentes frações da burguesia que representam os grupos eleitorais. Nessa disputa interburguesa há uma complementariedade não premeditada: a pseudo-esquerda pode contribuir com o desmantelamento da independência de classe e das iniciativas de luta diminuindo o ritmo dos ataques e a direita pode ampliar a guinada autoritária e agravar o saque imperialista num ritmo acelerado na medida em que a capacidade de reagir das massas foi desarmada pela pseudo-esquerda.

2. Capitalismo em crise e as cidades:


O capitalismo passa por diferentes momentos históricos de desenvolvimento de suas contradições onde orbitam os projetos políticos de regulamentação de suas tendências que são incorporados pelos partidos da ordem burguesa. Ao compreender a base social concreta desses partidos, é possível situá-los no quadro mais amplo das disputas interburguesas a nível mundial.

Atualmente, os alinhamentos e realinhamentos das diferentes frações da classe dominante ocorrem em função da centralidade da guerra comercial entre EUA e China, fruto do esgotamento da partilha inter-imperialista do mundo do pós-Segunda Guerra Mundial. Não é necessário entrar em detalhes sobre esse processo no momento [7], mas destacamos que atualmente os capitalistas são reféns do esgotamento da capacidade do processo de valorização do valor que caracteriza a fase de decomposição do modo de produção [8].

A guinada nas políticas econômicas de austeridade fiscal no Brasil é resultado da crise de 2008. O ponto de inflexão ocorre em 2014, embora este ano seja o resultado das decisões tomadas nos governos anteriores que apenas resultaram num agravamento da crise [9]. Nenhum governo brasileiro, seja a nível municipal, seja a nível estadual ou federal fez outra coisa senão viabilizar as mudanças necessárias às exigências capitalistas diante da crise.

Mesmo com as boas intenções do reformismo, a tendência geral mundial e nacional é uma piora nas condições de vida do proletariado e do conjunto dos explorados. Além disso, as pressões da crise econômica impulsionam processos de espoliação fundiária que culminam nos saques de territórios indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses, de preservação ambiental, dos lugares de valor cultural não-rentável ao capital nas cidades, etc.

Apesar da construção da Usina de Belo Monte (2011) e outros megaempreendimentos preparassem o terreno para os processos de espoliação (assim como mudanças na legislação, como no caso da mudança do código florestal de 2012 que facilitava o desmatamento para favorecer o avanço do agronegócio sobre as matas), podemos dizer que os ataques mais incisivos no meio urbano vieram dos portões da boiada dos megaeventos da Copa do Mundo (2014) e das Olimpíadas (2016) que culminaram nos ajustes governamentais urbanos necessários para que o setor do capital imobiliário avançasse e determinasse a política municipal em toda a malha urbana do país.

No caso portoalegrense, enquanto cidade sede da Copa, uma pesquisadora de urbanismo percebe em certo momento parte do fenômeno:

é possível constatar que sediar o megaevento foi estratégico para acessar recursos internacionais e difundir a imagem de uma cidade moderna, desenvolvida e eficiente (…). Além disso, a escolha e a gestão dos projetos se articulam sempre com temas relacionado ao crescimento econômico, ao empreendedorismo e à criação de um ambiente favorável aos negócios, todos considerados positivos segundo a lógica do empreendedorismo. Nesse contexto se aprofundam as práticas gerencialistas (…). Por fim, a realização do megaevento em Porto Alegre, estimulou a compressão espaço-tempo no processo de produção do espaço urbano, uma vez que o megaevento teve uma data determinada para acontecer. Esta compressão de cunho neoliberal alterou as formas de organização vigentes até então. Cabe destacar que, principalmente na década de 1990, movimentos sociais e os moradores de Porto Alegre haviam vivenciado processos participativos e inclusivos. A realização do megaevento configura, portanto, não apenas a oportunidade de investimentos estatais e estrangeiros, mas sobretudo, a oportunidade de transformação das relações sociais de produção até outrora vigentes (Misoczky de Oliveira, 2020, pp. 24-25, disponível em: link).

Percebe-se a nostalgia da autora dos anos dourados da socialdemocracia e um equívoco conceitual ao final, pois as relações sociais de produção do espaço continuam sendo as mesmas, mudando apenas a práticas governamentais e institucionais que as regulamentam.

Em suma, a doutrina de choque dos megaeventos consiste em mudanças abruptas na administração das cidades para poder viabilizar as obras dos megaempreendimentos, deixando um legado de precedentes jurídicos, técnicos, legislativos, etc., em benefício de uma aplicação de ativos do capital em processos de urbanização por espoliação [10].

Assim, todas as eleições municipais que se seguiram foram perpassadas por uma participação cada vez mais crescente do capital imobiliário enquanto agente político influente. Atualmente, essa situação tem sido denunciada pela campanha socialdemocrata sobre o “Melnickstão” [11], com o esquecimento conveniente de que este é herdeiro direto do legado dos megaeventos de governos petistas!

De todo modo, antes de verificarmos em nível local os efeitos desse processo em Porto Alegre, podemos constatar a inescapável continuidade da política econômica neoliberal no governo federal, visto que as eleições municipais derivam dos embates travados com relação à essa instância.

3. O governo Lulalckmin na prática:


No início do ano, escrevemos algumas considerações acerca do primeiro ano do governo Lulalckmin (elas se encontram em nosso texto sobre a criminalização da revolta). Assim, um balanço das medidas do governo federal em 2023 demonstraram a continuidade da política econômica de Temer e Bolsonaro, com as particularidades das políticas de inclusão e assistência social anestesiantes. Destacamos como indicadores dessa manutenção as seguintes medidas:

  • A não revogação das reformas trabalhista, previdenciária e da política de preços da Petrobras, além de encaminhar novas reformas como a tributária e administrativa.
  • A criação de um novo Teto de Gastos (denominado de “arcabouço fiscal”).
  • A ampliação das privatizações, incluindo as áreas de Educação, Saúde, Presídios, etc. além de cortes milionários em Saúde e Educação.
  • O Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) voltado para expandir a acumulação de capital da grande burguesia nacional e internacional.
  • O apoio do Brasil em mais uma ocupação militar imperialista no Haiti.
  • A submissão perante o massacre israelense contra os palestinos que se expressa no não rompimento das relações comerciais e diplomáticas com Israel.
  • O apoio do governo ao “PL do Veneno” e a uma liberação ainda maior no uso de agrotóxicos.
  • A continuidade dos desmatamentos, da violência no campo e das chacinas nas favelas, com o aprofundamento da política de apoio aos militares e latifundiários.
  • A postura dúbia e oportunista em relação ao Marco Temporal e ao Novo Ensino Médio.

A garantia dessa agenda do governo Lulalckmin ocorre através do aparelhamento socialdemocrata, ou seja: no controle dos sindicatos e demais aparatos de organização de massa que possuem suas direções burocratizadas pelas distintas frações da socialdemocracia (que conjuntamente estão todas submissas na frente que elegeu Lulalckmin). Destaca-se o novo teto de gastos do Arcabouço Fiscal como o carro chefe da continuidade da política econômica de Temer e Bolsonaro (que nada mais é do que a já mencionada ingerência fiscal do capital financeiro para saquear países semicoloniais através da dívida pública).

Em 2023 as direções burocráticas desviaram qualquer descontentamento para as “mesas de negociação” com as promessas de “aberturas de diálogo” que o governo Lulalckimin criou apenas para manobrar politicamente os trabalhadores (uma vez que as “mesas de enrolação” serviram apenas para um constrangimento de iniciativas de luta).

Em termos de política indigenista, nas eleições de 2022, a coalizão Lulalckmin se comprometeu em aprovar o “Revogaço” de uma série de medidas implementadas no governo Bolsonaro que afetavam negativamente os povos indígenas. A promessa de um “Revogaço” foi feita por Lula no Acampamento Terra Livre daquele ano. No entanto, o que se sucedeu em 2023?

Houve uma retomada extremamente tímida nas ações de fiscalização e repressão às invasões em alguns territórios indígenas, mas a demarcação de terras e as ações de proteção e assistência às comunidades permaneceram muito aquém do prometido. Houve uma continuidade das invasões, conflitos e ações violentas contra comunidades e manutenção de altos índices de assassinatos, suicídios e mortalidade infantil entre os povos indígenas. Somente em 2023, foram registrados 276 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio em pelo menos 202 territórios indígenas em 22 estados do Brasil. Além disso, o governo federal avançou no sentido de explorar petróleo no território indígena da foz do Amazonas, deu prioridade máxima orçamentária ao agronegócio, apoiou grandes projetos de infraestrutura através do PAC e de exploração minerária em conflito com povos indígenas, como a ferrovia “Ferrogrão” e as investidas de empresas estrangeiras sobre o território Mura, no Amazonas [12].

Também presenciamos o agravamento da situação brutal do povo Yanomami, mesmo depois da declaração do estado de Emergência Sanitária de Importância Nacional (Espin) na Terra Indígena Yanomami. O desmonte das conquistas dos povos indígenas seguiu a mesma tendência dos anos anteriores [13], o que se refletiu também na insuficiência do Espin do governo. Assim, em 2023 houve um aumento de 6% de mortes de Yanomamis em relação a 2022 segundo dados do Ministério da Saúde [14].

Todos que compuseram a frente eleitoral de Lulalckmin contribuíram direta ou indiretamente para esse cenário, embora a responsabilidade principal seja das direções burocráticas que desviam as lutas dos explorados para projetar eleitoralmente suas figuras públicas com promessas políticas vazias ou mesmo com a ameaça de crescimento do fascismo. No entanto, como já demonstramos diversas vezes, é precisamente o desarmamento do proletariado pela socialdemocracia que nos impossibilita de enfrentar realmente a onda reacionária (que tanto mais cresce quanto mais o oportunismo socialdemocrata impede a independência de classe do proletariado).

Nesse sentido, os candidatos da pseudo-esquerda são empurrados cada vez mais para a direita, formalizando alianças com aqueles que também já foram chamados de “fascistas” (como o próprio Geraldo Alckmin). Na esteira desse processo, a necessidade de governabilidade exige a colaboração das forças políticas que contribuíram na eleição do governo. Assim, o que vimos ao longo de 2024 até o mês de setembro é a política das burocracias das direções sindicais contribuindo nas derrotas das greves dos trabalhadores do serviço público federal.

A estratégia das direções burocráticas consistiu e consiste em isolar de modo corporativista as lutas e impedir ações mais combativas para desgastar a categoria até a aceitação das propostas extremamente rebaixadas do governo. Vimos isso nas greves dos Técnicos-Administrativos da Educação (TAEs), dos docentes, dos servidores ambientais (ICMBio e Ibama), nas iniciativas de luta dos estudantes em certos casos, assim como nas atuais greves do Correios e do INSS. Todas foram e estão sendo derrotadas com os mesmos métodos [15]. E todas essas derrotas continuam ocorrendo em função do teto de gastos.

Os cortes em saúde [16], educação [17], ambiente [18], etc., também ocorreram em função da dívida pública. A meta fiscal do governo foi zerar o déficit das contas públicas para atender aos interesses do capital financeiro, ao mesmo tempo que propunha o maior Plano Safra da história ao agronegócio [19], além de atender prontamente à demanda de reajuste de mais de 20% das forças repressivas da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal e da Polícia Penal.

Na prática, o governo federal se revelou representante dos mesmos interesses que governavam o país na gestão Temer e Bolsonaro. Por isso que, nessas eleições municipais de 2024, em 85 cidades brasileiras houveram alianças entre PT e o PL (partido do ex-presidente Bolsonaro) [20]. Portanto, enquanto a pseudo-esquerda recua e cede no governo, dissimula e manobra politicamente nas greves, manifestações, etc., a direita e ultradireita reacionária crescem e aprovam sua agenda política [21].

4. O abstencionismo revolucionário:


As seções anteriores resumem bem a situação e o que está em jogo no espetáculo eleitoral da burguesia. Em alguns destaques do Instagram do blog (principalmente os que tratam da Carris e da Corsan), demos exemplos da luta de classes em curso que demonstram que as eleições simplesmente servem para desorganizar as mobilizações e a mudança governamental não trás nenhum “mal menor” como argumentam, porque ambos os males caminham na mesma direção (futuramente apresentaremos uma análise mais detalhada desse processo). A diferença é que o grau de intensidade da socialdemocracia não é percebido em sua totalidade devido à colaboração dos “movimentos sociais”, partidos, sindicatos, etc., que buscam responsabilizar os reacionários pela própria nulidade política ao mesmo tempo em que tentam preservar formalmente mecanismos institucionais de participação social que servem para desviar as energias de luta para  que os explorados administrem a própria miséria.

Desde as últimas eleições municipais [22], as burocracias tentam cooptar a revolta proletária para transformá-la em uma política de “desgastar o governo Melo”, promovendo o impeachment com a palavra de ordem do “Fora Melo” que é simplesmente uma campanha oportunista para a projeção eleitoral [23].

Mal passamos pela pandemia e sofremos a maior enchente da história do território ocupado pelo Estado do Rio Grande do Sul. Todos os danos e mortes, assim como a reação burguesa na forma de uma ofensiva para agravar a exploração atestam por si só o quão inúteis acabam sendo os apelos da socialdemocracia “pelo clima”.

Nesse momento estamos respirando fuligem dos incêndios florestais provocados pelo agronegócio, depois desse mesmo setor da classe dominante realizar uma série de ataques aos povos indígenas (Kaingang, Ava Guaranis e os Kaiowás, em três estados brasileiros: Rio Grande do Sul, Paraná e Mato Grosso do Sul).

Ao mesmo tempo, a grande maioria dos movimentos da pseudo-esquerda se dedicam principalmente em suas campanhas eleitoreiras e deixam qualquer “boiada” passar ilesa.

Se comprova na prática que somente a ação direta dos explorados representa um verdadeiro enfrentamento e, portanto, é fortalecendo e construindo as lutas diretamente que podemos traçar uma alternativa.

As tendências que analisamos confirmam que nenhum partido ou governo poderá impedir o agravamento da crise, ainda mais através da institucionalidade burguesa. Não existe nenhuma alternativa para a emancipação humana senão através da revolução social. As eleições se apresentam como um obstáculo político e ideológico para a realização dos objetivos libertários de nossa classe. Portanto, o abstencionismo revolucionário aparece como tarefa de intervenção para os elementos mais conscientes do proletariado.

Se impõe a necessidade de desmascarar a farsa eleitoral, intervir em cada local de moradia, estudo e trabalho para construir uma campanha que seja pela conquista, através da ação direta, de necessidades imediatas em cada fração de nossa classe. O desenvolvimento da autonomia do proletariado através do antagonismo prático na luta de classes é o objetivo do abstencionismo revolucionário.

Cartaz que difundimos na cidade.


Notas:


[1] – Para nossa análise da “destruição ambiental” no capitalismo, veja nosso texto escrito em conjunto com a editora Amanajé: A crise do sociometabolismo capitalista.

[2] – A partir dos dados e pesquisas realizados pelas próprias instituições burguesas podemos ter um indicativo superficial da situação. Segundo o Relatório Mundial da Desigualdade de 2022, os 10% mais ricos detêm 76% da riqueza e 52% da renda, enquanto que metade da população mundial fica com apenas 2% da riqueza e 8,5% da renda (Piketty et al., 2022). Até o Banco Mundial (BM) precisou admitir o aumento da desigualdade em 2023 (World Bank, 2023). Conforme um relatório da Oxfam (2024), 6 a cada 10 países com empréstimos realizados com o Fundo Monetário Internacional (FMI) estão ficando mais pobres. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) também alerta que a taxa de desemprego apresenta sinais de aumento em 2024 e que a desigualdade também se aprofundará. Referências:  PIKETTY, T. et al. World Inequality Report 2022. Paris: World Inequality Lab, 2022. Disponível em: link2023 in Nine Charts: A Growing Inequality. World Bank. Disponível em: link. |  FÉLIX, Thiago. Desigualdade cresce em seis de 10 países com empréstimos do FMI ou Banco Mundial, diz Oxfam. CNN Brasil. Disponível em: link. | Taxa de desemprego mundial deverá aumentar em 2024 e as crescentes desigualdades sociais são motivo de preocupação, segundo relatório da OIT. International Labour Organization. Disponível em: link.

[3] – Aqui nos referimos ao conjuntos dos conflitos militares envolvendo a disputa pela partilha do mundo inter-imperialista. Destacam-se no cenário atual: 1) o avanço da OTAN sobre o Leste Europeu como marcha do imperialismo sobre os territórios da antiga URSS até culminar na atual guerra da Ucrânia, na medida em que a Rússia interviu militarmente para afirmar seu poder de potência regional contra esse avanço; 2) o genocídio palestino realizado pelo Estado sionista de Israel que evolui para uma escalada bélica no Oriente Médio para consolidar um enclave imperialista estadunidense-israelense na região; 3) o aumento das tensões na guerra comercial entre EUA e China e a nucleação desse conflito nas tensões envolvendo Taiwan. A Rússia é uma potência militar e aliada fundamental da China. Todos os conflitos citados estão articulados. Para compreender melhor essa situação, consulte nosso manifesto escrito em conjunto com a editora Amanajé sobre as tendências que apontam para uma possível guerra mundial: Nenhuma guerra, senão a guerra de classes!.

[4] – Uma exposição mais elaborada desse posicionamento foi realizada pelo Réseau de Discussion International no texto: Definir o proletariado.

[5] – A estratégia nas ciências do conflito é determinada em função do objetivo final contido no programa que se busca realizar. No entanto, estamos tratando de uma guerra que constitui a própria realidade social imanente (o antagonismo de classes no capitalismo). Ao longo dos nossos textos buscamos aplicar esse método.

[6] – Nossa posição é fundamentalmente abstencionista. Consideramos equivocada a tática do “parlamentarismo revolucionário”. Sequer existem as condições em que essa tática poderia ser empregada, por isso o que vemos é puro oportunismo para a autoconstrução das organizações. Alguns argumentam que se trata de uma tática excepcional, apenas realizada na medida em que um partido proletário esteja em processo de maturação na classe e que só participa das atividades eleitorais e parlamentares paralelamente, pois o centro de gravidade da luta deve estar situado fora do parlamento (nas greves, insurreições e outras formas da luta de classes) e que as intervenções no parlamento devem corresponder a esta luta (promover suas pautas, atrapalhar sua criminalização, etc.). No entanto, toda a via parlamentar e eleitoral possui um tipo particular de comprometimento com a institucionalidade burguesa que torna inviável qualquer ação revolucionária nesses meios. A ingerência administrativa do Estado Burguês para a atividade parlamentar e eleitoral não é senão um obstáculo para a propaganda revolucionária. A participação nas eleições é um desperdício de energia militante que é desviada da agitação revolucionária para se adaptar ao nível superficial e rebaixado do eleitoralismo. A participação nas eleições promove uma certa legitimidade ao processo eleitoral (ou deslegitimidade do partido aos olhos dos elementos mais conscientes do proletariado), mesmo que supostamente seja utilizado para pura propaganda.

[7] – Seria necessário dois tipos de estudo aqui: uma análise da instrumentalização da energia revolucionária do proletariado por direções sociaisdemocratas que realizaram o desenvolvimento tardio do capital nacional por meio da deformação do valor através do planejamento na esfera da circulação (alterando a lei do valor para aumentar a composição orgânica de capital nacionalmente) e uma análise da totalidade capitalista que, incluindo as contrarrevoluções sociaisdemocratas como momentos de um mesmo processo, desse conta da crise de desvalorização do valor, na medida em que a generalização da produção de mais-valia relativa conduz necessariamente a uma incapacidade intrínseca do capital em aumentar a massa de mais-valia total (passando a declinar em termos absolutos). Certamente, isso não diminui nem obscurece o papel do imperialismo no processo, mas demonstra a razão do esgotamento das partilhas do mundo, o impulso que conduz às guerras comerciais que culminam em disputas bélicas. Essa situação nos leva necessariamente ao aumento nos processos de espoliação fundiária (no campo e na cidade). No pós-crise de 1970, o imperialismo estadunidense, através dos organismos monetários internacionais (FMI e BM), financiou a aplicação do capital sobreacumulado nas infraestruturas de países semicoloniais, endividando-os e tornando-os reféns da austeridade fiscal enquanto que, internamente, crescia sua bolha imobiliária, fruto dessa mesma tendência. A crise de 2008 é resultado dessa combinação de fatores. Na esteira desse processo, os países semicoloniais, na contração do imperialismo ocidental, recorre aos bancos chineses, exportam para a China e realizam parcerias comerciais que repetem, embora de modo diferente, o ciclo anterior, mas é interessante notar que o efeito no território chinês é análogo: cresceu proporcionalmente a bolha imobiliária chinesa. De qualquer forma, a reação do imperialismo estadunidense foi bloquear o desenvolvimento do BRICS que, no Brasil, se expressou na ingerência da Lava Jato e do golpe de 2016, onde a Odebrecht pagou o pato da FIESP (no caso: a empreiteira que cresceu junto com a dívida do país no período militar estava repetindo essa aventura com um negócio da China, até que a guerra comercial entravou o processo).

[8] – A crise da produção microeletrônica dos anos 70 deu início a uma série de instabilidades financeiras, econômicas e monetárias, tornando obsoleta a partilha inter-imperialista do mundo do pós-Segunda Guerra Mundial. A estabilidade econômica relativa do capitalismo foi pontual devido ao período de reconstrução das forças produtivas destruídas pela guerra (durando 30 anos de Bretton Woods, de Bem-Estar Social, etc.). Na medida em que a crise se aprofundava, a financeirização foi a única solução viável para que o sistema não colapsasse. Porem, a onda de financiamentos a base de capital fictício se tornou, de uma solução temporária, em um agravamento do problema, gerando um endividamento público e corporativo cada vez maior. Nesse processo, como de costume, ocorre a socialização dos prejuízos para os proletários e privatização dos benefícios para a burguesia. A manutenção da hegemonia global estadunidense e a estabilidade do sistema monetário internacional foram realizadas mediante a ingerência de organismos financeiros internacionais (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional). As políticas de austeridade fiscal que ficaram conhecidas como neoliberais nada mais são do que uma necessidade do sistema na fase de financeirização econômica. Não foi simplesmente uma escolha ou uma ingerência administrativa, mas a solução que viabilizou a reprodução social das relações de produção capitalistas que se tornaram incapazes de realizar um aumento real da massa de mais-valia total. Esse problema tem sido abordado e aprofundado em nossos textos sobre privatizações, embora somente atualmente as análises tenham maturado. De todo modo, esses textos conservam parcialmente seu valor explicativo: Crítica da privatização da CEEE-D e sua venda para o Grupo Equatorial & Considerações sobre a luta contra a privatização da Corsan e do DMAE.

[9] – Para uma análise desse processo, acesse o texto do grupo Robin Goodfellow, em português: A situação política no Brasil (de 2016). Esse texto demonstra com precisão a inutilidade do voluntarismo governamental diante das movimentações econômicas mundiais.

[10] – Importante para compreender esse processo é a obra de Henri Lefebvre. Ele foi pioneiro em considerar que a produção capitalista do espaço poderia ser uma importante fonte de aplicação do capital em momentos de crise, formando uma espécie de segundo circuito. Conforme Lefebvre (2002, p. 146-147):

O importante é sublinhar o papel do urbanismo e especialmente o do “imobiliário” (especulação, construção) na sociedade neocapitalista. O “imobiliário”, como se diz, desempenha o papel de um segundo setor, de um circuito paralelo ao da produção industrial voltada para o mercado dos “bens” não duráveis ou menos duráveis que os “imóveis”. Esse segundo setor absorve os choques. Em caso de depressão, para ele afluem os capitais. Eles começam com lucros fabulosos, mas logo se enterram. Nesse setor, os efeitos “multiplicadores” são débeis: poucas atividades são induzidas. O capital imobiliza-se no imobiliário. A economia geral (dita nacional) logo sofre com isso. Contudo, o papel e a função desse setor não deixam de crescer. Na medida em que o circuito principal, o da produção industrial corrente dos bens “mobiliários”, arrefece seu impulso, os capitais serão investidos no segundo setor, o imobiliário. Pode até acontecer que a especulação fundiária se transforme na fonte principal, o lugar quase exclusivo de “formação de capital”, isto é, de realização da mais-valia. Enquanto a parte da mais-valia global formada e realizada na indústria decresce, aumenta a parte da mais-valia formada e realizada na especulação e pela construção imobiliária. O segundo circuito suplanta o principal. De contingente, torna-se essencial. Mas essa é uma situação perniciosa, como dizem os economistas. Esse papel do imobiliário nos diferentes países (sobretudo na Espanha, na Grécia etc.) ainda é mal conhecido e mal situado nos mecanismos gerais da economia capitalista.
Referência: LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.

[11] – O apelido se deve ao favorecimento da prefeitura aos grupos empresariais do setor imobiliário, dentre eles a Melnick, por isso o apelido de “Melnickstão”. Em 2021, um pesquisador esboçava um panorama do crescimento do que ele chama de “coalizão urbano-imobiliário-financeira”: MELO, Erick Omena De. Financeirização, governança urbana e poder empresarial nas cidades brasileiras. Cadernos Metrópole, v. 23, n. 50, p. 41–66, 2021. Disponível em: link. O caso portoalegrense se mostrou exemplar e mesmo paradigmático para compreender esse processo, daí a importância dessa particularidade municipal, ainda mais pelo fato de ser uma transição do polo mais desenvolvido da socialdemocracia (centro do Fórum Social Mundial, Orçamento Participativo, etc.) para a mais tacanha urbanização neoliberal.

[12] – Veja mais informações em: CIMI. Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2023. Brasília: Conselho Indigenista Missionário, 2024.


[14]Mortes de indígenas Yanomami em 2023 crescem 6% em relação a 2022, mostram dados do Ministério da Saúde. G1. Disponível em: link.

[15] – Ainda não redigimos um balanço sobre essas lutas, então não vamos entrar em mais detalhes no momento. A greve dos técnicos-administrativos contra uma defasagem salarial de mais de 54%, o processo de sucateamento das instituições de ensino federal através dos cortes orçamentários (provenientes dos 10 anos de agravamento da política de austeridade fiscal), em suma, tudo isso está relacionado com as diretrizes fiscais impostas pelo capital financeiro em relação ao déficit público.

[16] – Ministério da Saúde tem congelados R$ 4,4 bilhões do orçamento. Agência Brasil. Disponível em: link.

[17] – Universidades sofrem corte de R$ 1,3 bilhão após um mês do fim da Greve da Educação. Nova Democracia. Disponível em: link.

[18] – Em julho deste ano o governo fez corte de 24% no combate de incêndios para cumprir o Arcabouço Fiscal. Esquerda Diário. Disponível em: link.

[19] – Governo Lula corta R$25 bi em gastos sociais enquanto anuncia mais de R$400 bi para agronegócio reacionário. Esquerda Diário. Disponível em: link.

[20] – PT e PL se unem para disputar eleições em 85 cidades do País; veja quais. Estadão. Disponível em: link.

[21] – O terrorismo climático capitalista no Rio Grande do Sul e o ecocídio incendiário coordenado pelo agronegócio não serão pormenorizados nesse texto, mas também expressam as mesmas tendências analisadas. Para a situação das enchentes, escrevemos dois comunicados e uma análise cronológica disponíveis em: Comunicado sobre a devastação que assola as terras do Rio Grande do SulSegundo comunicado sobre a situação do Rio Grande do SulInformes da luta de classes no território ocupado pelo Estado do RS.

[22] – Em novembro de 2020, em pleno período eleitoral, o assassinato de Beto por seguranças do Carrefour na Zona Norte de Porto Alegre foi o estopim para dois protestos combativos na cidade. Embora com muitos limites, essas ações contribuíram para explicitar os métodos dissimulados da socialdemocracia. Na primeira manifestação, a comunidade do bairro onde ocorreu o assassinato destruiu parte do mercado em revolta, ato de vingança coletiva pelo histórico de discriminações e violências perpetrados no estabelecimento. A socialdemocracia e sua frente ampla eleitoral entorno da então candidata Manuela D'Ávila (PCdoB) não conseguiu impedir, embora tivesse tentado, a ação direta das massas nesse primeiro protesto. A correlação de forças foi desfavorável até mesmo para a brigada militar que fracassou em proteger o mercado. Porém, no segundo ato, realizado em um outro Carrefour de bairro diferente, a situação foi distinta, pois o nível de engajamento das massas foi menor e o efetivo policial maior. Dessa vez a socialdemocracia conseguiu o que queria, dividindo o protesto, permitindo o isolamento dos elementos combativos para facilitar a repressão policial, enquanto que a frente ampla eleitoral saiu ilesa em sua conivência. Na prática, a defesa da projeção eleitoral da frente ampla da Manuela D'Ávila implicava em compromissos com a ordem burguesa, portanto se impôs a tarefa histórica da socialdemocracia de impedir que a revolta se generalizasse e fosse o gatilho de um movimento semelhante ao que aconteceu no mesmo período nos EUA, relacionado com o assassinato de George Floyd. O resultado de nossa intervenção prática nesse contexto está sintetizado na análise da situação presente na seção 3 do texto A revolta da classe proletária: a incidência da luta internacional no território brasileiro e na análise de nossa intervenção no texto: Análise de um protesto contra o Carrefour.

[23] – Não é necessário mais se deter nessas questões que só fazem sentido para uma parcela da pequena burguesia e da “classe média” em decadência, uma vez que eles tentarão em vão defender seus privilégios ameaçados pela crise, personificando suas angústias numa “má gestão” do balcão de negócios da burguesia. Uma outra parcela apenas fará coro com os reacionários, personificando na “corrupção de valores tradicionais” o agravamento das tensões familiares provocadas pelos desastres do capital, responsabilizando as “agendas progressistas” pela angústia gerada pela queda no padrão de vida. Todos os sonhos mesquinhos e fantasias românticas com as quais se entorpecem as gerações de jovens atualmente também contribui para estreitar os horizontes políticos e arrebanhá-los para o eleitoralismo. Outro fator importante foi o isolamento pandêmico e seus efeitos deletérios na ação coletiva, multiplicados pela política do “fica em casa” das direções burocráticas.