sexta-feira, 24 de junho de 2022

Considerações sobre a mobilização nacional dos povos indígenas contra o Marco Temporal

Foto de nosso próprio acervo (23.06.22). Esquina Democrática, Porto Alegre, RS.

No dia 23.06.22, participamos do ato realizado em Porto Alegre (RS) como parte da mobilização nacional contra o Marco Temporal, organizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Observação: o Marco Temporal é uma tese jurídica que defende uma alteração na política de demarcação de terras indígenas no Brasil. Segundo essa tese, só poderia reivindicar direito sobre uma terra o povo indígena que já estivesse ocupando-a no momento da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. O Projeto de Lei 490 (PL 490) regularia esse Marco Temporal, pois altera a Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio.

No dia 2 de junho, o ministro Luiz Fux, presidente do STF, retirou da pauta do Tribunal a continuidade do julgamento sobre a aplicação da tese do Marco Temporal na demarcação de terras indígenas no Brasil. A retomada da audiência estava prevista para o dia 23 de junho, mas não ocorreu e foi postergada indefinidamente.

Diante desse quadro, a APIB coordenou uma mobilização em várias regiões do Brasil. No site da APIB podemos verificar as demais pautas em questão [1]:

Também estiveram entre as reivindicações a justiça pelos assassinatos do jornalista Dom Philips e do indigenista Bruno Pereira e a exoneração do presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Delegado Marcelo Xavier, pela condução de uma política anti-indígena à frente do órgão. Ao todo, foram 40 ações, em todas as regiões do Brasil, envolvendo dezenas de territórios, entre atos políticos e fechamentos de BR, além de atos em 40 sedes da Funai realizados pelos servidores em greve. No extremo sul da Bahia, território Comexatibá, em Prado, o povo Pataxó realizou a retomada da fazenda Santa Bárbara. A área era utilizada para produção de eucalipto, com amplo uso de agrotóxicos, o que poluiu e reduziu o fluxo das águas do Rio Cahy.

No que diz respeito ao caso dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Philips, divulgamos esse vídeo do Coletivo Antimídia [2] que consideramos de suma importância para compreender o que está por trás desses eventos:


Nesta publicação vamos fazer uma avaliação da manifestação de Porto Alegre e considerações gerais sobre nossa perspectiva acerca da luta pela terra e territórios dos povos indígenas.

Recomendamos a leitura da publicação que fizemos sobre a luta dos Yanomami contra garimpo, pois não vamos repetir as premissas fundamentais que já discutimos nesse outro texto (acesse neste link). Acrescentamos que o caso que denunciávamos naquela ocasião recebeu novas informações decorrentes da investigação da Polícia Federal e que precisam ser levadas em consideração (veja-se: link). No entanto, é nítido que a PF usa sua investigação para tranquilizar os ânimos e fazer pouco-caso dos problemas reais provocados pelo avanço dos garimpeiros.

1. O disparador da luta e a condição de classe do indígena:


A luta contra o Marco Temporal é apenas a ponta jurídica do imenso iceberg que é o conflito real existente entre os povos indígenas e os espoliadores de terra. Barrar o Marco Temporal é apenas a necessidade imediata de uma luta que deve se estender até a retomada definitiva de todos os territórios historicamente invadidos pela classe dominante. Mas esse processo de luta não vai surgir espontaneamente por si só, dado que será necessário uma união entre todos os explorados na luta comunista contra o capitalismo, algo que depende da organização e direção revolucionária do movimento.

Em nossa perspectiva, não consideramos que apenas descendentes de europeus (“homens brancos”) são parte da classe proletária, assim como não consideramos que os povos indígenas (com toda a sua diversidade cultural) não seriam proletarizados apenas por “possuírem culturas diferentes” ou porque a Constituição brasileira de 88 diz que eles teriam, supostamente, direito à “autodeterminação”. Questionamos a “ideologia culturalista” e a ideia de um “operário abstrato” que ignora a heterogeneidade fundamental da classe revolucionária.

Historicamente, a espoliação de terras do século XVI que transformou o indígena em colonizado também transformou o camponês em assalariado e, com a consolidação do capitalismo (em sua maturação), esse processo se prolonga através da proletarização que pode converter tanto o antigo servo europeu quanto o nativo colonizado em proletários do campo ou da cidade.

Isso pode ser ilustrado através de um caso empírico: a colheita de maçã no Sul do Brasil. Tanto indígenas quanto não-indígenas acabam compondo a mão de obra baseada em contrato temporário que emprega a força de trabalho nas safras de empresas como a Bortolon Agro, de Vacaria (Rio Grande do Sul). Na safra/2022 existem 3.290 indígenas trabalhando na colheita de maçã no Sul do país, segundo a Fundação do Trabalho de Mato Grosso do Sul (Funtrab), dado que grande parte da mão de obra indígena provém do Mato Grosso do Sul (MS) [3].

No site do governo do MS lemos:

Desde 2015 cerca de 32 mil indígenas de Mato Grosso do Sul foram enviados para atuar nas macieiras do Sul do Brasil. Parceria firmada nesse período entre Ministério Público do Trabalho (MPT), a Fundação do Trabalho de Mato Grosso do Sul (Funtrab), Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo de Mato Grosso do Sul (Coetrae/MS), Coletivo dos Trabalhadores Indígenas e empresários, ampliou a segurança tanto para os trabalhadores quanto para os contratantes [ver nota 3]

Portanto, o que está por trás da questão do Marco Temporal é o processo de espoliação de terras para garantir os interesses capitalistas como: mineração, pecuária, agronegócio, garimpo e demais atividades tanto extrativistas quanto de cultivo e criação orientadas principalmente para a exportação, uma vez que a valorização de commodities unida com uma articulação política e governamental dos exportadores acaba culminando nessa constante violação de territórios. Ao mesmo tempo: as consequências desse processo culminam numa maior proletarização indígena, numa passagem da subsunção formal para a subsunção real dos indígenas ao Capital [4].

2. Composição da manifestação:


Em linhas gerais, o ato de Porto Alegre estava composto por uma maioria indígena e pessoas ligadas ao indigenismo, partidos, sindicatos e demais organizações e militantes (bem como aqueles que não possuem vínculos orgânicos). Neste sentido, a primeira questão que evidenciamos é a baixa adesão das massas ao protesto, o que pode ser sintomático das relações entre a luta indígena e proletária. Além do mais, grande parte dos presentes não-indígenas pertencem à posições intermediárias entre o proletariado e a classe dominante (que é o caso de membros da burocracia do Estado que chamamos de “funcionários públicos” e demais assalariados não ou semi-proletários).

Em nossa avaliação, essa desconexão e mesmo ausência das massas proletárias em manifestações como essas não diz respeito à pauta em si (que está conectada com necessidades vitais da luta comunista, relacionadas com a questão agrária), mas à política de assimilação e desorganização perpetrada pela social-democracia nos últimos anos. E nesse ano eleitoral eles vão concentrar suas energias principalmente em questões eleitoreiras para reconquistarem a gestão do Estado Burguês e serem novamente os baluartes da conciliação anti-revolucionária.

A social-democracia, além de desorganizar o proletariado impondo uma política de conciliação de classes [5], também contribuiu com os ataques aos povos indígenas [6], assim como tenta a todo custo impedir a união entre o proletariado do campo e da cidade, bem como barrar a solidariedade entre proletários indígenas e não-indígenas, pois é através da divisão e da fragmentação identitária que eles conseguem desarticular as forças proletárias para manobrá-las em favor de seus próprios interesses desenvolvimentistas.

3. Percurso da manifestação:


Dado a baixa composição do ato, o protesto saiu do largo do Mercado Público, passou pela Praça da Alfândega e depois subiu a Andradas até a Esquina Democrática onde ficou até o final (estacionário).

Na Esquina Democrática, ocorreram demonstrações dos povos Kaingang, Mbya Guarani, Charrua e Xokleng que coordenavam o ato e depois houveram falas de diferentes lideranças indígenas, representantes sindicais, grupos de luta pela democracia e de organizações partidárias. Sobre o conteúdo dessas falas que vamos tratar na próxima seção.

4. Discursos políticos que perpassam o movimento:


Os discursos dos indígenas, de modo geral, reproduzem em alguma medida o que chamamos de “ilusão jurídica” em nosso texto sobre o garimpo na terra indígena dos Yanomami. Apesar disso, a motivação da luta contra o Marco Temporal é baseada numa condição de interesse geral para a revolução social, qual seja: a questão dos territórios e da terra. Na medida em que vivem sob a tutela estatal das demarcações de terra, os povos indígenas sofrem o exercício de um mecanismo de dependência institucional (com a Funai, por exemplo) para realizarem minimamente a manutenção de seus modos de vida. Então acabam reproduzindo pautas mais institucionais e imediatas como o “Fora Xavier” e “Por uma Funai Indígena”.

No entanto, existe disposição de luta e capacidade efetiva de mobilização que podem convergir para uma direção revolucionária se estiverem bem coordenados e orientados por uma organização autônoma com um programa de destruição do capitalismo e construção do comunismo libertário.

Não obstante, as demais falas (principalmente dos movimentos de “luta pela democracia”), com exceção da Frente Quilombola, incorporavam o esquema do “Fora Bolsonaro” e deixavam implícita ou explicitamente que a luta derradeira seria nas urnas. O que demonstra o quanto a social-democracia ainda exerce uma grande hegemonia ideológica que se faz presente mesmo em um movimento (a luta contra o Marco Temporal) que, ano passado, os sociais-democratas fizeram de tudo para tirar de pauta.

A Frente Quilombola, apesar de enfatizar corretamente que as mudanças na sociedade não ocorrem por vias jurídicas e através das instituições vigentes, apesar de dizer que é necessário mudanças radicais e que a luta contínua é fundamental, acaba por reproduzir uma noção abstrata de autodeterminação nacional pluriétnica e falam de um “povo nacional” no lugar da luta de classes e da posição revolucionária do proletariado o modo de produção capitalista. Inclusive, os objetivos políticos deles estão baseados na noção de Reparação Histórica e, portanto, divergem da perspectiva revolucionária de ruptura total com o capitalismo e suas instituições jurídicas.

5. Considerações finais:


Enquanto comunistas libertários (anarquistas), reafirmamos nosso compromisso com a causa revolucionária do socialismo/comunismo/anarquismo em prol da emancipação integral da humanidade. Nesse sentido, consideramos de extrema importância a continuidade da luta, bem como o aprofundamento e radicalização da mesma. É necessário que a luta pela Terra perca seu invólucro ideológico-jurídico, pois somente sob a direção de um programa revolucionário libertário podemos avançar para além dos limites estreitos da institucionalidade burguesa e conquistar objetivos emancipatórios efetivos (em direção na construção do socialismo sob os escombros do Estado capitalista).

Já existem premissas para o desenvolvimento desse movimento real. A noção de retomada contém o pressuposto da ação direta em germe, portanto pode ser o ponto de partida para se realizar um projeto de expropriações sob uma orientação anarquista, ou seja: através da auto-organização do poder e das forças dos explorados sob direção revolucionária do proletariado.

Mas para caminharmos nessa direção, é necessário criticar todos os desvios que nos separam de nossa autonomia, todos os oportunismos que nos impedem de seguir o rumo da revolução social, em suma, criticar todas as ideologias que são instrumentos de reprodução do capitalismo e que buscam desarticular nossas forças, fragmentando a unidade revolucionária de todo o proletariado entorno de seus objetivos históricos comuns.

Notas:


[1] – Veja-se: Indígenas de todo o Brasil lutam para que STF acabe com a ameaça do Marco Temporal. APIB. Disponível em: <https://apiboficial.org/2022/06/24/indigenas-de-todo-o-brasil-lutam-para-que-stf-acabe-com-a-ameaca-do-marco-temporal/>. Acesso em: 24 jun. 2022.

[2] – Veja-se: Segurança, Tutela e Morte na Guerra Colonial Amazônica – Acácio Augusto – Vozes Anarquistas Ep. 10 – Antimídia. Disponível em: <https://antimidia.org/seguranca-tutela-e-morte-na-guerra-colonial-amazonica-acacio-augusto-vozes-anarquistas-ep-10/>. Acesso em: 24 jun. 2022.

[3] – Ver: OBANDO, Mireli. Em 7 anos, parceria garantiu trabalho para 32 mil indígenas na colheita de maçã no Sul do Brasil. Portal do Governo de Mato Grosso do Sul. Disponível em: <http://www.ms/em-7-anos-parceria-garantiu-trabalho-para-32-mil-indigenas-na-colheita-de-maca-no-sul-do-brasil/>. Acesso em: 24 jun. 2022.

[4] – Este não será o local onde vamos desenvolver uma reflexão mais abrangente acerca dessa questão. Entre os indígenas também poderíamos analisar certas divisões de classe, mas elas são bem mais restritas (não existem indígenas burgueses que exploram mais-valor, por exemplo). Lembrando que já escrevemos no blog algo a respeito na publicação mencionada sobre os Yanomami.

[5] – Veja-se: Notas sobre o partido social-democrata brasileiro. Communismo Libertário. Disponível em: <https://communismolibertario.blogspot.com/2020/05/notas-sobre-o-partido-dos-trabalhadores.html>. Acesso em: 24 jun. 2022.

[6] – Relembre o ostracismo do Fora Bolsonaro contra a pauta do Marco Temporal em nosso texto (especificamente na parte A cooptação da revolta pelo “Fora Bolsonaro”): As vicissitudes da luta de classes brasileira na pandemia capitalista. Communismo Libertário. Disponível em: <https://communismolibertario.blogspot.com/2021/08/as-vicissitudes-da-luta-de-classes.html>. Acesso em: 24 jun. 2022.