quinta-feira, 30 de julho de 2020

Dívida: os primeiros 5000 anos (2011) – David Graeber

Foto do livro de David Graeber, extraída de: link.


Apesar do esforço hercúleo que será transpor todo o conteúdo dessa obra, tentaremos, na medida do possível, publicá-la aos poucos aqui no blog. Atualizaremos essa publicação sempre que tivermos conseguido extrair um capítulo completo. Utilizamos um pdf inédito da obra compartilhado nesse mesmo anos e que pode ser acessado neste link:


Em resumo, Dívida: Os primeiros 5.000 anos é um livro do antropólogo David Graeber, publicado em 2011. Ele explora a relação histórica de dívida com uma série de instituições sociais, como o casamento, a amizade, a escravidão, as leis, a religião, a guerra e o governo; em suma, é um estudo da humanidade a partir da dívida. Graeber se baseia em estudos de história e antropologia de várias civilizações, grandes e pequenas, a partir dos primeiros registros conhecidos de dívida na Suméria em 3500 a.C até o presente. 

***


Sumário


Capítulo 1. Sobre a experiência da confusão moral
Capítulo 2. O mito do escambo 
Capítulo 3. Dívidas primordiais
Capítulo 4. Crueldade e redenção
Capítulo 5. Breve tratado sobre os fundamentos morais das relações econômicas
Capítulo 6. Jogos com sexo e morte
Capítulo 7. Honra e degradação, ou Sobre as fundações da civilização contemporânea
Capítulo 8. Créditos versus lingotes e os ciclos da história
Capítulo 9. Idade Axial (800 a.C. – 600 d.C.)
Capítulo 10. Idade Média (600 d.C. – 1450 d.C.)
Capítulo 11. Idade dos Grandes Impérios Capitalistas (1450 d.C. – 1971 d.C.)
Capítulo 12. O começo de algo ainda por determinar (1971 – presente)
Posfácio: 2014

Observação: o Capítulo 2 já havia sido compartilhado pelos camaradas da “subta”, disponível em: link. E também existe um escaneamento alternativo, disponível em: link.

***


Capítulo 1: Sobre a experiência da confusão moral


Dívida: substantivo, 1) quantia que se deve em dinheiro. 2) estado em que se encontra quem deve dinheiro (em dívida). 3) sentimento de gratidão por um favor ou um bem recebido (Oxford English Dictionary).

Se você deve ao banco 100 mil dólares, o banco controla você. Se você deve ao banco 100 milhões de dólares, você controla o banco (Provérbio Norte-Americano).


Há alguns anos, em razão de uma série de coincidências estranhas, fui a uma festa ao ar livre na Abadia de Westminster. Ao chegar ali, senti um pouco de desconforto. Não por causa dos convidados. Eles eram agradáveis e cordiais, e a festa fora organizada por um homem generoso e encantador, o padre Graeme. O problema é que me senti um peixe fora d'água. Em dado momento, padre Graeme se aproximou de mim e disse que havia uma pessoa, junto a um chafariz ali perto, que eu certamente gostaria de conhecer. Então me apresentou a uma mulher esbelta e elegante que, segundo ele, era advogada, “mas do tipo ativista; ela trabalha para uma fundação que dá suporte jurídico a grupos que lutam contra a pobreza em Londres. Provavelmente vocês terão muita coisa para conversar”.

Nós conversamos. Ela me falou de seu trabalho. Eu contei que estive envolvido durante muitos anos com o movimento de justiça global – “movimento antiglobalização”, como costumava ser chamado pelos meios de comunicação. Ela ficou curiosa: é claro que já havia lido sobre Seattle, Gênova, gás lacrimogêneo e conflitos nas ruas, mas quis saber se tínhamos de fato realizado algo.

— Na verdade – disse eu –, fico bastante impressionado com o tanto que conseguimos realizar nesses primeiros dois anos.

— Por exemplo?

— Bem, por exemplo, nós conseguimos destruir quase completamente o FMI.

Por ironia do destino, ela disse que não sabia o que era o FMI. Então expliquei que o Fundo Monetário Internacional agia basicamente como fiscal das dívidas do mundo – diríamos que é “o equivalente, nas altas finanças, dos caras que vêm quebrar as suas pernas”. Comecei a falar sobre os aspectos históricos, explicando que, durante a crise do petróleo na década de 1970, os países da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) injetaram tanto dinheiro obtido com suas riquezas recém-descobertas nos bancos do Ocidente que estes ficaram sem saber onde investir; falei que o Citibank e o Chase, com isso, começaram a espalhar agentes pelo planeta para tentar convencer os políticos e os ditadores do Terceiro Mundo a tomar empréstimos (na época, isso era chamado de “go-go banking”); falei de como eles começaram fazendo os empréstimos a taxas de juros extremamente baixas que quase imediatamente dispararam para 20% ou coisa assim, devido à rígida política financeira dos Estados Unidos no início da década de 1980; de como, nas décadas de 1980 e 1990, isso levou à crise da dívida externa dos países do Terceiro Mundo; de como o FMI interveio e insistiu que, para obterem refinanciamento, os países pobres deveriam abandonar o subsídio de preços dos produtos alimentícios básicos, ou mesmo políticas para manutenção de reservas estratégicas de alimentos, e abandonar a assistência médica e a educação públicas; falei de como tudo isso levou ao colapso dos principais apoios com que contavam alguns dos povos mais pobres e vulneráveis do mundo. Falei da pobreza, do saque dos recursos públicos, do colapso das sociedades, da violência endêmica, da subnutrição, da falta de esperança e de vidas destruídas.

— Mas sobre isso o que você defende? – perguntou a advogada.

— Sobre o FMI? Queremos aboli-lo.

— Não, sobre a dívida do Terceiro Mundo.

— Ah, queremos aboli-la também. Nossa primeira reivindicação foi que o FMI parasse de impor políticas de ajuste estrutural, que estavam provocando todos os danos mais imediatos, mas isso, para a nossa surpresa, nós conseguimos realizar rapidamente. O objetivo de mais longo prazo era a anistia da dívida. Algo como o Jubileu bíblico. Na nossa opinião – eu disse –, trinta anos de transferência de dinheiro dos países mais pobres para os países mais ricos já bastam.

— Mas – contestou ela, como se fosse uma coisa óbvia – eles pegaram o dinheiro emprestado! É preciso pagar as próprias dívidas.

Então percebi que aquela seria uma conversa muito diferente da que eu tinha imaginado no início.

Por onde começar? Eu poderia ter explicado que esses empréstimos foram originalmente tomados por ditadores não eleitos, que depositaram a maior parte do dinheiro diretamente em suas contas particulares na Suíça, e poderia ter dito para ela pensar se era justo insistir que os emprestadores fossem reembolsados, não pelo ditador ou seus camaradas, mas com o dinheiro da comida que literalmente se tirava da boca de crianças famintas. Ou pensar que muitos desses países pobres na verdade já tinham pagado três ou quatro vezes a quantia que tomaram emprestada, mas que, graças ao milagre dos juros compostos, ainda não haviam reduzido de maneira significativa o principal da dívida. Eu também poderia observar que existe uma diferença entre tomar empréstimos e refinanciar empréstimos, e que para obter refinanciamentos os países precisam seguir uma política econômica ortodoxa de livre mercado criada em Washington ou Zurique, com a qual seus cidadãos nunca concordaram nem jamais concordariam. E poderia observar ainda que era um pouco desonesto insistir que os Estados adotassem constituições democráticas e depois ressalvar que, independentemente de quem fosse eleito, os países não teriam controle nenhum sobre a política. Eu poderia ter dito ainda a ela que as políticas econômicas impostas pelo FMI nem sequer funcionavam. Entretanto, o problema ali era mais básico; a suposição de que dívidas têm de ser quitadas.

Na verdade o que mais me chamou atenção na frase “é preciso pagar as próprias dívidas” foi que, mesmo de acordo com a teoria econômica padrão, isso não é verdade. O emprestador deve aceitar determinado grau de risco. Se todos os empréstimos, mesmo que insignificantes, fossem recuperáveis – se não existissem as leis de falência, por exemplo –, os resultados seriam desastrosos. Que razões teriam os emprestadores para conceder empréstimos absurdos?

— Eu sei que isso pode parecer senso comum – disse eu –, mas o engraçado é que, em termos econômicos, não é assim que os empréstimos devem funcionar. As instituições financeiras são veículos de direcionar recursos para investimentos lucrativos. Se o banco tivesse a garantia de receber o seu dinheiro de volta, mais os juros, não importando o que ele fizesse, o sistema como um todo não funcionaria. Imagine se eu entrasse na agência mais próxima do Royal Bank of Scotland e dissesse: “Vejam só, acabo de apostar uma fortuna em cavalos. Será que vocês podem me emprestar alguns milhões de libras?”. É claro que eles ririam na minha cara. Mas fariam isso só porque sabem que, se o meu cavalo não chegar em primeiro lugar, não haverá chance de receberem o dinheiro de volta. Mas imagine se houvesse um tipo de lei que garantisse ao banco receber o dinheiro de volta, não importando o que acontecesse, mesmo que isso significasse, por exemplo, eu vender a minha filha como escrava, retirar os meus órgãos para comercializar ou algo desse tipo. Nesse caso, por que não? Por que perder tempo esperando que alguém entre no banco com um plano viável de montar uma lavanderia ou alguma coisa assim? Essa é basicamente a situação que o FMI criou em escala global – por isso vimos todos aqueles bancos dispostos a desembolsar bilhões de dólares para um bando de vigaristas.

A conversa não foi tão longe porque, em determinado momento, apareceu um especialista em finanças, bêbado, que nos viu conversando sobre dinheiro e começou a contar histórias engraçadas sobre risco moral – que logo derivou para uma explicação longa e enfadonha de suas conquistas sexuais. Fui me esquivando e escapuli.

Eu nunca soube certo como interpretar essa conversa. Seria possível que uma advogada ativista nunca tivesse ouvido falar do FMI ou ela estava só brincando comigo? Concluí que, de um jeito ou de outro, não fazia diferença. Durante vários dias, aquela frase continuou ressoando na minha cabeça:

“É preciso pagar as próprias dívidas”.

***


A razão de a frase soar tão poderosa se deve ao fato de ela não ser um enunciado econômico: é uma afirmação moral. Afinal de contas, a moralidade em si não diz respeito a pagar as próprias dívidas? Dar às pessoas o que lhes é devido? Aceitar as próprias responsabilidades? Cumprir as obrigações para com os outros, assim como esperamos que os outros cumpram as suas para conosco? Quebrar uma promessa ou se recusar a pagar uma dívida não são exemplos mais óbvios de como fugir da própria responsabilidade?

Percebi que era essa aparente obviedade que justamente tornara a declaração tão capciosa. Esse é o tipo de discurso capaz de fazer as coisas terríveis parecerem totalmente banais e desinteressantes. Talvez eu pareça estar exagerando, mas é impossível não ser contundente com questões desse tipo depois de testemunharmos seus efeitos. Eu os testemunhei. Durante quase dois anos morei nas montanhas de Madagascar. Pouco tempo depois da minha chegada houve um surto de malária. Foi um surto particularmente mortal porque a doença tinha sido erradicada daquela região havia muitos anos, de modo que, depois de algumas gerações, a maioria das pessoas tinha perdido a imunidade. O problema era obter dinheiro para manter o programa de erradicação do mosquito: realizar testes periódicos para garantir que os transmissores não procriassem, e também para as campanhas de pulverização, caso se descobrisse que eles haviam procriado. Não era tanto dinheiro assim, mas, devido aos planos de austeridade impostos pelo FMI, o governo teve de cortar o programa de monitoramento. Dez mil pessoas morreram. Conheci jovens mães chorando a morte de seus filhos. É difícil defender o argumento de que a perda de 10 mil vidas humanas se justifique pelo fato de que o Citibank não poderia ter prejuízos acarretados por um empréstimo irresponsável que, de todo modo, não faria grande diferença no balanço patrimonial do banco. Mas a advogada da festa era uma pessoa inteiramente correta – alguém que, além disso, trabalhava para uma instituição beneficente – e considerava a questão ao pé da letra, em toda a sua obviedade. Como ela mesma disse, os países, afinal de contas, deviam dinheiro, e certamente “é preciso pagar as próprias dívidas”.

Essa frase continuou me perseguindo durante as semanas seguintes. Por que dívida? O que torna esse conceito tão estranhamente poderoso? A dívida dos consumidores é a força vital da nossa economia. A dívida passou a ser questão central da política internacional. Mas ninguém parece saber exatamente o que ela é, ou como pensá-la.

O próprio fato de não sabermos o que é a dívida, a própria flexibilidade do conceito, é o fundamento de sua força. Se há algo que a história nos mostra, é que não existe maneira melhor de justificar relações baseadas na violência, de fazer essas relações parecerem morais, do que reenquadrá-las na linguagem da dívida – sobretudo porque isso faz com que a vítima seja vista como alguém que comete algo errado. Os mafiosos sabem disso. Assim como os comandantes de exércitos conquistadores. Há milhares de anos, homens violentos se sentem autorizados a dizer a suas vítimas que elas lhes devem algo. No mínimo, elas “devem suas próprias vidas” (uma frase impressionante) por terem sido poupadas da morte.

Hoje em dia, por exemplo, a agressão militar é definida como um crime contra a humanidade, e os tribunais internacionais, quando são acionados, geralmente exigem que os agressores paguem uma compensação. A Alemanha teve de arcar com reparações gigantescas depois da Primeira Guerra Mundial, e o Iraque ainda está pagando ao Kuwait pela invasão comandada por Saddam Hussein em 1990. No entanto, a dívida do Terceiro Mundo, a dívida de países como Madagascar, Bolívia e Filipinas, parece funcionar precisamente no sentido oposto. Os países devedores do Terceiro Mundo são quase exclusivamente nações que, em algum momento da história, foram atacadas e conquistadas por países europeus – muitas vezes aqueles mesmos aos quais devem dinheiro. Em 1895, por exemplo, a França invadiu Madagascar, dissolveu o governo da rainha Ranavalona III e declarou o país colônia francesa. Uma das primeiras ações do general [Joseph] Gallieni depois da “pacificação”, como gostavam de chamá-la, foi impor impostos pesados à população de Madagascar, em parte para reembolsar os custos de terem sido invadidos, mas também, como se esperava que as colônias francesas fossem fisicamente autossuficientes, para custear estradas de ferro, rodovias, pontes, plantações, etc. que o regime francês queria instalar ali. Ninguém perguntou aos contribuintes de Madagascar se eles queriam aquelas estradas de ferro, rodovias, pontes, e plantações, nem permitiu que opinassem sobre onde e como elas seriam construídas [1]. Ao contrário: durante os cinquenta anos seguintes, o exército e a polícia da França assassinaram muitos malgaxes que se opunham fortemente ao sistema (100 mil, segundos alguns relatos, durante uma revolta em 1947). É como se Madagascar tivesse causado à França algum dano semelhante, o que não é o caso. Apesar disso, desde o começo da colonização dizia-se que os habitantes da ilha deviam dinheiro à França, e até hoje eles estão presos a essa dívida, e o restante do mundo considera justo esse esquema. Em geral, a “comunidade internacional” só nota que existe aí uma questão moral quando percebe que o governo de Madagascar está demorando para pagar as suas dívidas.

Entretanto, a dívida não é apenas um item da justiça do conquistador; ela também pode ser uma das maneiras de punir os vencedores que não deviam ter vencido. O exemplo mais espetacular disso é a história da República do Haiti – o primeiro país pobre a ser posto em permanente servidão por dívida. O Haiti foi um país fundado por antigos escravos que tiveram a ousadia não só de organizar uma rebelião, acompanhada de grandiosas declarações de direitos e liberdades universais, mas também de derrotar os exércitos de Napoleão enviados para rendê-los e fazê-los retornar à servidão. A França imediatamente afirmou que a recém-criada república lhe devia 150 milhões de francos em danos pelas plantações expropriadas, além de custos de aprovisionamento das expedições militares fracassadas, e de todos os outros países, incluindo os Estados Unidos, concordaram em impor um embargo ao Haiti até que essa dívida fosse paga. A soma era intencionalmente impossível de ser paga (o equivalente a cerca de 18 bilhões de dólares), e o embargo assegurou que desde então o nome “Haiti” passasse a ser usado como sinônimo de dívida, pobreza e miséria [2].

Algumas vezes, porém, a dívida parece significar exatamente o oposto. Os Estados Unidos, que insistiam, em termos rigorosos, que o Terceiro Mundo tinha de pagar as suas dívidas, acumularam tantas a partir da década de 1980 – alimentadas pelos gastos militares – que rapidamente ultrapassaram a quantia devida por todos os países do Terceiro Mundo juntos. A dívida externa dos Estados Unidos, contudo, assume a forma de títulos do Tesouro mantidos por investidores institucionais em países que, na maioria dos casos, são praticamente protetorados militares dos Estados Unidos – Alemanha, Coreia do Sul, Japão, Tailândia, Taiwan e países do Golfo –, quase todos protegidos por bases norte-americanas carregadas de armas e equipamentos pagos com aquele mesmo deficit público. Isso mudou um pouco depois que a China entrou no jogo (esse país é um caso especial, por razões que serão explicadas mais adiante), mas não muito – até mesmo a China acha que possuir tantos títulos do Tesouro norte-americano faz o país estar comprometido, até certo ponto, com os interesses dos Estados Unidos, e não o contrário.

Desse modo, qual é a situação de todo esse dinheiro que é continuamente canalizado para o Tesouro dos Estados Unidos? São empréstimos? Ou tributos? No passado, as potências militares que mantinham centenas de bases militares fora do próprio território eram comumente chamadas de “impérios”, e os impérios regularmente exigiam tributos de seus súditos. O governo dos Estados Unidos, é claro, afirma que não é um império – mas é fácil defender o argumento de que o país insiste em tratar esses pagamentos como “empréstimos”, e não como “tributos”, com o único objetivo de negar a realidade do que está acontecendo.

Ora, é verdade que, ao longo da história, certos tipos de dívidas, e certos tipos de devedores, sempre foram tratados de maneira diferente. Nos anos 1720, uma das descobertas que mais escandalizaram o povo britânico, quando as condições das prisões em que se encarceravam os devedores foram expostas na imprensa popularm foi o fato de essas prisões serem divididas em dois setores. Os presos aristocratas, que muitas vezes consideravam aúltima moda passar uma curta estada nas prisões de Fleet ou Marshalsea, tinham jantares regados a vinho, servidos por criados uniformizados, e podiam receber visitas frequentes de prostitutas. No “setor comum”, devedores pobres eram agriolhados juntos em celas minúsculas, “cobertos de sujeira e bichos”, como nos diz um relato, “e sofriam impiedosamente até morrer de fome e febre tifoide” [3].

De certo modo, podemos imaginar os acordos econômicos mundiais da atualidade como uma versão muito ampliada da mesma situação: nesse caso, os Estados Unidos são os devedores aristocráticos e Madagascar é o pobre faminto na cela ao lado – e os criados dos devedores aristocráticos lhes ensinam como seus problemas foram causados por sua própria irresponsabilidade.

Porém, há algo mais fundamental em jogo, uma questão filosófica que precisamos contemplar. Qual a diferença entre um gângster que aponta a arma para você e exige o pagamento de mil dólares de “taxa de proteção” e um que, com a arma apontada para você, exige que você lhe faça um “empréstimos” de mil dólares? Na maior parte dos casos, obviamente, nenhuma. Mas em outros há uma diferença. Como no caso da dívida dos Estados Unidos com a Coreia ou o Japão: se o equilíbrio de poder mudasse em algum ponto, se os Estados Unidos perdessem sua supremacia militar, se o gângster perdesse seus escudeiros, aquele “empréstimo” começaria a ser tratado de maneira bem diferente. Ele se transformaria em uma obrigação genuína. Mas o elemento crucial continuaria sendo a arma.

Há uma antiga piada de vandeville que diz a mesma coisa de maneira bem mais elegante – vejamos a cena, melhorada pelas palavras do comediante Steven Wright:

Certo dia eu caminhava com um amigo, quando, de repente, pulou diante de nós, vindo de uma rua transversal, um sujeito com uma arma que gritou: “Passa a grana!”.

Enquanto eu alcançava a carteira, pensei: “Até que o prejuízo não será tão grande”. Peguei o dinheiro, me virei para o meu amigo e disse: “Ei, Fred, toma aqui aqueles cinquenta paus que eu estava te devendo”.

O ladrão ficou tão injuriado que arrancou uma nota de cem do bolso e, com a arma apontada para o Fred, obrigou-o a pagar o dinheiro e a me emprestar, para depois resgatar tudo de volta.

Em última instância, o sujeito armado não tem de fazer nada que não queira fazer. No entanto, a fim de ser capaz de controlar até mesmo um regime baseado na violência, é preciso estabelecer um conjunto de regras. As regras podem ser completamente arbitrárias. De certo modo, na verdade nem importa quais são essas regras. Ou, pelo menos, isso não importa a princípio. O problema é que, quando se começa a enquadrar as coisas em termos de dívida, as pessoas inevitavelmente começam a perguntar quem de fato deve o que a quem.

Discussões sobre a dívida existem há pelo menos 5 mil anos. Durante a maior parte da história humana – pelo menos da história dos Estados e de impérios –, a maioria dos seres humanos recebeu a informação de que é devedora [4]. Os historiadores, em especial os historiadores das ideias, estranhamente têm relutado em considerar as consequências humanas dessa situação, tanto mais quando se leva em conta que ela – mais do que qualquer outra – tem causado indignação e ressentimento. É improvável que as pessoas fiquem satisfeitas se dissermos a elas que são inferiores, mas muito raramente isso as levará a uma rebelião armada. Contudo, é bastante provável que inspiremos manifestações de fúria nas pessoas se dissermos que elas são iguais ao seu fracasso, que por isso não merecem nem mesmo aquilo que têm, ou seja, o que têm não é seu por direito. É isso que a história parece nos ensinar. Durante milhares de anos, a luta entre os ricos e pobres assumiu de modo geral a forma de conflitos entre credores e devedores – de argumentos sobre o que é certo e o que é errado em relação a pagamentos de juros, servidão por dívida, anistia, reintegração de posse, restituição, sequestro de ovelhas, apreensão de vinhas e venda de filhos dos devedores como escravos. Nessa mesma lógica, nos últimos 5 mil anos, com uma regularidade impressionante, as insurreições populares começaram da mesma maneira: com a destruição ritual dos registros de dívidas – fossem eles tabuletas, papiros, placas ou qualquer outra forma existente em dada época e local. (Depois disso, os rebeldes geralmente foram atrás dos registros de posse de terra e apuração fiscal). Como o grande helenista Moses Finley gostava de dizer, no mundo antigo todos os movimentos revolucionários tinham um único plano: “Anular as dívidas e redistribuir a terra” [5].

Nossa tendência a ignorar isso é ainda mais estranha quando pensamos em tudo que nossa linguagem moral e religiosa contemporânea deve, originalmente, a esses mesmos conflitos. Termos como “ajuste de contas” e “remissão” são apenas os mais óbvios, pois foram tirados diretamente da linguagem das antigas finanças. Em sentido mais amplo, podemos dizer o mesmo de palavras como “culpa”, “liberdade”, “perdão” e até “pecado”. Discussões sobre quem realmente deve o que a quem tiveram papel central no nosso vocabulário básico para nomear o que é certo e o que é errado.

O fato de grande parte dessa linguagem ter se originado de debates sobre a dívida torna o conceito estranhamente incoerente. Afinal de contas, para debater com o rei era preciso usar a linguagem do rei, quer as premissas iniciais fizessem sentido, quer não.

Se analisarmos a história da dívida, então, o que descobrimos em primeiro lugar é uma profunda confusão moral. Sua manifestação mais óbvia é que, praticamente em todos os lugares, a maioria dos seres humanos sustenta ao mesmo tempo que: 1) pagar dinheiro que se tomou emprestado é uma obrigação e 2) toda e qualquer pessoa que tenha o costume de emprestar dinheiro é má.

É verdade que as opiniões sobre esse último ponto variam consideravelmente. Um exemplo extremo poderia ser a situação que o antropólogo francês Jean-Claude Galey encontrou na região do leste do Himalaia, onde, ainda na década de 1970, as castas inferiores – chamadas de “derrotados”, pois se acreditava que essas pessoas fossem descendentes de uma população conquistada muitos séculos antes pela casta dos donos das terras – viviam em uma situação de permanente dependência financeira. Sem terras e sem dinheiro, elas eram obrigadas a solicitar empréstimos aos proprietários simplesmente para ter o que comer – não pelo dinheiro, pois as quantias eram insignificantes, mas porque os pobres devedores tinham que pagar os juros na forma de trabalho, o que significava que, quando muito, eles tinham comida e abrigo enquanto limpavam as dependências dos credores e arrumavam o telhado de suas choupanas. Para os “derrotados” – assim como para a maior parte da população, na verdade – as despesas mais importantes da vida eram casamentos e funerais. Para isso era preciso uma boa quantia de dinheiro, que sempre tinha de ser tomada emprestada. Nesses casos era prática comum, explica Galey, que os agiotas exigissem uma das filhas do tomador do empréstimo como garantia. Assim, muitas vezes, quando um homem pobre precisava fazer um empréstimo para o casamento da filha, a garantia era a própria noiva. Ela tinha de aparecer na casa do emprestador depois da noite de núpcias, passar alguns meses lá como concubina e mais tarde, quando ele já se entediara, era enviada para algum campo de extração de madeira da região para trabalhar durante um ou dois anos como prostituta, pagando assim a dívida do pai. Uma vez paga a dívida, ela voltava para o marido e começava a sua vida de casada [6].

Isso parece chocante, talvez até ultrajante, mas Galey não relata nenhum sentimento de injustiça generalizado na população. Todos pareciam achar que era assim mesmo que as coisas funcionavam. Tampouco havia muita preocupação entre os brâmanes locais, que eram os árbitros supremos em questões de moralidade – o que não surpreende muito, uma vez que os agiotas mais proeminentes muitas vezes eram os próprios brâmanes.

Mesmo nesse caso, é claro, torna-se difícil saber o que as pessoas diziam entre quatro paredes. Se um grupo de rebeldes maoistas estivesse prestes a tomar de repente o controle da região (alguns atuavam nessa parte da Índia rural) e capturassem usurários locais para serem julgados, nós ouviríamos todo tipo de opiniões.

Ainda assim, o que Galey descreve, como eu disse, representa um extremo dessa possibilidade: o extremo em que os próprios usurários são as autoridades morais supremas. Compare isso, digamos, com a França medieval, onde o status moral dos agiotas estava seriamente em questão. A Igreja Católica sempre proibiu a prática de emprestar dinheiro a juros, mas as regras muitas vezes caíam em desuso, levando a hierarquia da Igreja a autorizar campanhas de pregação, a mandar frades mendicantes de cidade em cidade para alertar os usurários de que, se não se arrependessem e restituíssem plenamente todos os juros cobrados das vítimas, eles certamente iriam para o inferno.

Esses sermões, muitos dos quais sobreviveram, são cheios de histórias de horror sobre o julgamento de Deus reservado aos emprestadores impenitentes: casos de homens ricos acometidos pela loucura ou por doenças terríveis, assombrados no leito de morte por pesadelos com cobras ou demônios que logo lacerariam ou comeriam a sua carne. No século XII, quando essas campanhas chegaram ao auge, começaram a ser empregadas sanções mais diretas. O papado expediu ordens aos párocos locais para que todos os usurários conhecidos fossem excomungados: estavam proibidos de receber os sacramentos e sob nenhuma circunstância seus corpos seriam enterrados em solo sagrado. Um cardeal francês, Jacques de Vitry, registrou por volta de 1210 a história de um agiota particularmente influente cujos amigos tentaram pressionar o pároco para que fizesse vista grossa e permitisse seu enterro no cemitério local:

Como os amigos do usurário morto foram muito insistentes, o padre cedeu à pressão e disse: “Vamos colocar o corpo em cima de um asno e observar qual é a vontade de Deus e o que Ele fará com o corpo. Para onde quer que o asno o leve, seja uma igreja, campo-santo alhures, lá eu o enterrarei”. O corpo foi colocado sobre um asno que seguiu em linha reta, sem desviar para a direita ou para a esquerda, até sair da cidade e chegar a um local onde havia um patíbulo em que ladrões eram enforcados. O asno então deu um pinote e lançou o corpo sobre um monte de excrementos embaixo do patíbulo [7].

Ao examinarmos a literatura mundial, é quase impossível encontrar uma única representação favorável a algum agiota – ou, seja como for, a um agiota profissional, que, por definição, é aquele que cobra juros. Não sei se existe outra profissão (a de algoz?) com uma imagem ruim tão consagrada. Trata-se de algo especialmente notável quando pensamos que, ao contrário dos algozes, os usurários geralmente estão entre os mais ricos e poderosos de suas comunidades. Contudo, o próprio nome, “usurário”, evoca imagens de abutres, dinheiro sujo, cobranças abusivas, comércio de almas e, por trás disso tudo, o demônio, muitas vezes representado como uma espécie de usurário, um contador maligno com livros e registros, ou como uma figura que paira às costas do usurário, esperando o momento de tomar posse da alma de um vilão que, em razão de seu ofício, obviamente fez pacto com o inferno.

Em termos históricos, houve apenas duas maneiras eficazes de um emprestador tentar fugir de seu opróbrio: ou jogando a responsabilidade em um terceiro, ou afirmando que o tomador do empréstimo é ainda pior. Na Europa medieval, por exemplo, os fidalgos incorriam na primeira categoria, empregando judeus como seus sub-rogados. Muitos falavam inclusive em “nossos” judeus – ou seja, judeus sob sua proteção pessoal –, embora na prática isso geralmente significasse que eles, em primeiro lugar, negariam aos judeus que viviam em seus territórios quaisquer meios de arcar com a própria sobrevivência, exceto a usura (assegurando-se de que fossem muito odiados), e depois se voltariam contra esses judeus, afirmando serem criaturas detestáveis e tomando para si o dinheiro deles. A segunda categoria é mais comum – mas costuma levar à conclusão de que ambas as partes envolvidas no empréstimo são igualmente culpadas; de que a situação como um todo é desprezível e de que, muito provavelmente, as duas partes são malditas.

Outras tradições religiosas têm perspectivas diferentes. Nos códigos de leis hindus medievais, além de os empréstimos a juros serem admissíveis (a única condição era que os juros não excedessem o principal), era comum dizer que o devedor que não pagasse renasceria como escravo da residência de seu credor – ou, em códigos posteriores, renasceria como seu cavalo ou boi. A mesma atitude tolerante para com os emprestadores, e alertas de vingança cármica contra os tomadores de empréstimo, reaparece em muitas correntes do budismo. Todavia, no momento em que se supunha que os usurários estavam indo longe demais, começava a aparecer exatamente o mesmo tipo de histórias encontradas na Europa. Um escritor japonês medieval conta uma delas – insistindo tratar-se de uma história verdadeira –, sobre o terrível destino de Hiromushime, esposa de um abastado governante distrital, por volta de 776 a.C. Por ser uma mulher excepcionalmente gananciosa,

ela acrescentava água à aguardente de arroz que vendia e lucrava bastante com esse saquê diluído. No dia em que emprestava algo para alguém, ela usava um medidor pequeno, mas no dia da coleta, usava um medidor grande. Quando emprestava arroz, sua escala registrava porções pequenas, mas quando recebia o pagamento, era em grandes quantidades. O lucro que ela obtinha de maneira forçada era enorme – geralmente dez ou até cem vezes mais que a quantidade do empréstimo original. Ela era rígida ao cobrar as dívidas, e não demonstrava nenhuma compaixão. Por causa disso, muitas pessoas ficaram angustiadas; abandonaram sua residência para se afastarem dela, peregrinando para outras províncias [8].

Depois que ela morreu, monges rezaram sobre seu caixão durante sete dias. No sétimo, misteriosamente ela voltou à vida:

Aqueles que chegavam para vê-la deparavam com um fedor indescritível. Da cintura para cima, ela já havia se transformado em um boi com chifres de dez centímetros na testa. As duas mãos tinham virados cascos, e as unhas estavam rachadas, lembrando agora a frente do casco de um boi. Da cintura para baixo, porém, o corpo ainda era humano. Ela já não gostava de arroz e preferia se alimentar de grama. Não comia, ruminava. Nua, deitava sobre o próprio excremento [9].

Curiosos chegavam de todo o canto. Sentindo culpa e vergonha, a família tentou desesperadamente comprar o perdão: saldou todas as dívidas que tinha com as pessoas e doou grande parte de sua riqueza para instituições religiosas. Por fim, compassivamente, o monstro morreu.

O autor, um monge, sentia que essa história representava um claro exemplo de reencarnação prematura – a mulher estava sendo punida, de acordo com a lei do carma, por violações que cometera contra “o que é tanto razoável quanto correto”. O problema era que as escrituras budistas, no que diz respeito ao tratamento que davam explicitamente à questão, não forneciam um precedente. Em geral, eram os devedores que supostamente reencarnariam como bois, não os credores. Sendo assim, no momento de explicar a moral da história, o autor deu um esclarecimento confuso:

Assim diz um sutra: “Quando não restituímos aquilo que tomamos emprestado, nosso pagamento será renascer na forma de boi ou cavalo”. “O devedor é como um escravo, o credor é como um mestre”. Ou, repetindo: “O devedor é um faisão, seu credor, um falcão”. Se sua situação for a de quem concedeu um empréstimo, não pressione excessivamente o devedor para que lhe pague. Se assim o fizer, você renascerá como cavalo ou boi e terá de trabalhar para seu devedor e pagar muito mais do que lhe é devido [10].

Como fica, então? Os dois não podem acabar como animais instalados no curral um do outro.

Todas as grandes tradições religiosas parecem martelar nesse dilema, de uma forma ou de outra. Por um lado, uma vez que todas as relações humanas envolvem a dívida, todos estão moralmente comprometidos. É provável que as duas partes sejam culpadas de algo tão somente por entrarem em relação; na melhor das hipóteses, correm um grande risco de se tornarem culpadas se o pagamento for atrasado. Por outro lado, quando dizemos que uma pessoa age “como se não devesse nada a ninguém”, dificilmente estamos descrevendo alguém como um modelo de virtude. No mundo secular, a moralidade consiste basicamente em cumprir obrigações para com os outros, e temos uma persistente tendência a imaginar essas obrigações como dívidas. Os monges talvez possam evitar o dilema isolando-se totalmente do mundo secular, mas o restante de nós parecemos condenados a viver em um universo que não faz muito sentido.

***


A história de Hiromushine é o exemplo perfeito do impulso de devolver a acusação para o acusador – assim como na história do usurário morto e o asno, a ênfase dada ao excremento, aos animais e à humilhação claramente tem um sentido de justiça poética, que força o credor a experimentar as mesmas sensações de desgraça e degradação que os devedores sempre são obrigados a sentir. Há um modo mais intenso e visceral de colocar a mesma questão: “Quem realmente deve o que a quem?”.

Ela também é um exemplo perfeito de como, no momento em que alguém faz a pergunta “quem deve o que a quem?”, essa pessoa já começou a adotar a linguagem do credor – da mesma forma que, se não pagarmos as nossas dívidas, “nosso pagamento será renascer como cavalo ou boi”, também se você for um credor injusto terá que “pagar de volta”. Até mesmo a justiça cármica pode ser reduzida a uma linguagem de negócios.

Chegamos, assim, às questões centrais deste livro: o que significa dizer exatamente que nosso senso de moral e justiça é reduzido à linguagem de um acordo comercial? O que significa reduzirmos as obrigações morais a dívidas? O que muda quando uma se transforma na outra? E como falar sobre elas se nossa linguagem tem sido de tal forma moldada pelo mercado? Até certo ponto, a diferença entre obrigação e dívida é simples e óbvia. A dívida é a obrigação de pagar certa quantia de dinheiro. Disso resulta que a dívida, diferentemente de qualquer outra forma de obrigação, pode ser quantificada com precisão. Isso permite que as dívidas sejam tomadas como alguma coisa simples, fria e impessoal – o que, por sua vez, permite que sejam transferíveis. Quando se deve um favor, ou a própria vida, a outro ser humano, trata-se de algo devido apenas àquela pessoa. Mas quando são devidos 40 mil dólares a 12% de juros, na verdade não importa quem é o credor; tampouco importa, a qualquer uma das partes, pensar no que a outra precisa, deseja ou é capaz de fazer – como ocorreria pensar se o que se deve é um favor, respeito ou gratidão. Não é preciso calcular os efeitos humanos; só é preciso calcular o principal, o saldo a pagar, as multas e as taxas de juros. Se você tiver de abandonar a sua casa e mudar para outras províncias, se sua filha for para um garimpo como prostituta, tudo bem, será uma desgraça, mas isso é secundário para o credor. Dinheiro é dinheiro, trato é trato.

Dessa perspectiva, o fator crucial, e o assunto que será explorado detalhadamente nestas páginas, é a capacidade que tem o dinheiro de transformar a moralidade em uma questão de aritmética impessoal – e, ao fazer isso, de justificar situações que, de outra maneira, pareceriam ultrajantes ou obscenas. O fator da violência, ao qual dei algum destaque até agora, pode parecer secundário. O que cria a diferença entre uma “dívida” e uma simples obrigação moral não é a presença ou a ausência de homens armados que podem fazer com que a obrigação seja cumprida tomando as posses do devedor ou ameaçando quebrar as suas pernas, mas é simplesmente o fato de o credor ter os meios de especificar, em termos numéricos, exatamente quanto o devedor lhe deve.

No entanto, a luz de uma análise mais profunda, descobrimos que esses dois elementos – a violência e a quantificação – estão intimamente ligados. Na verdade, é quase impossível encontrarmos um sem o outro. Os usurários franceses tinham amigos e mandantes poderosos, capazes de intimidar até mesmo as autoridades da Igreja. De que outra maneira eles conseguiriam cobrar dívidas que eram tecnicamente ilegais? Hiromushine era totalmente inflexível com seus devedores – “não demonstrava nenhuma misericórdia” –, mas, por outro lado, seu marido era o governante. Ela não tinha de demonstrar misericórdia. Quem não dispõe de um exército armado atrás de si não tem condições de ser tão severo.

O modo como a violência, ou a ameaça de violência, transforma as relações humanas em matemática vai aparecer muitas outras vezes no decorrer deste livro. Trata-se da maior fonte de confusão moral que parece rodear tudo o que se diz respeito ao tema da dívida. Os dilemas resultantes parecem ser tão antigos quanto a própria civilização. Podemos observar o processo nos primeiros documentos da antiga Mesopotâmia; sua expressão filosófica inicial aparece nos Vedas, reaparece em infindáveis formas ao longo da história escrita e ainda serve de base para a estrutura essencial de nossas instituições atuais – Estado e mercado, nossas concepções básicas de natureza e liberdade, moralidade, sociabilidade –, todas elas moldadas por histórias de guerra, conquista e escravidão de uma tal maneira que já não somos capazes de perceber isso porque já não conseguimos imaginar as coisas de outra forma.

***


Por motivos óbvios, este é um momento particularmente importante para reexaminar a história da dívida. Em setembro de 2008 viu-se o início de uma crise financeira que quase levou a economia mundial à repentina estagnação. Em muitos aspectos, isso de fato ocorreu: muitos navios pararam de cruzar os oceanos e outros milhares foram abandonados ou até destruídos e mandados para o ferro-velho [11]. Guindastes de construção foram desmontados, pois não havia o que construir. Os bancos pararam de fazer empréstimos. A fúria e a perplexidade das pessoas não foram a única consequência da crise: começou também um debate público efetivo sobre a natureza da dívida, do dinheiro e das instituições financeiras, um debate que poderia mudar o destino dos países.

Mas foi apenas um momento. O debate nunca chegou a acontecer realmente.

Havia uma razão para as pessoas ao menos estarem prontas para essa conversa: a história que todas elas tinham ouvido nos dez ou mais anos anteriores se revelou uma mentira colossal. Não há maneira mais palatável de dizer isso. Durante anos, todos nós ouvimos falar de uma penca de inovações financeiras ultrassofisticadas: derivativos de crédito e mercadoria, derivativos de títulos garantidos por hipoteca, títulos híbridos, conversões da dívida, etc. Esses novos mercados de derivativos eram tão inacreditavelmente sofisticados que – de acordo com uma história que se ouvia à época – uma famosa empresa de investimentos teve de empregar astrofísicos para operar programas de compra e venda tão complexos que nem os financistas conseguiam entender. A mensagem era clara: deixe isso para os profissionais, você provavelmente não conseguirá entender nada. Mesmo que você não goste muito dos investidores financeiros (e poucos parecem dispostos a defender que eles tenham algo de agradável), trata-se de um pessoal muito capacitado; na verdade, tão excepcionalmente capacitado que a fiscalização democrática dos mercados financeiros nem sequer era cogitada. (Até mesmo diversos acadêmicos se deixaram levar por isso. Eu bem me lembro de ir a conferências em 2006 e 2007 em que cientistas sociais badalados apresentaram artigos argumentando que essas novas formas de secularização, aliadas a novas tecnologias da informação, anunciavam uma transformação iminente na própria natureza do tempo, da possibilidade – e até da própria realidade. Lembro de ter pensado: “Otários!”. E eles eram mesmo).

Então, quando a situação degringolou, descobriu-se que muitas dessas inovações financeiras, e talvez a maior parte delas, não passavam de fraudes muito bem elaboradas. Consistiam em operações – como oferecer hipotecas para famílias pobres – planejadas de tal maneira que tornavam inevitável o não pagamento; juntar hipoteca e aposta no mesmo pacote e vendê-lo para investidores institucionais (representando, talvez, os fundos de pensão do titular da hipoteca), afirmando que ele renderia dinheiro independentemente do que acontecesse e que permitiria aos ditos investidores passarem os pacotes para frente como se fossem dinheiro; transferir a responsabilidade de pagar a aposta para um conglomerado de seguros gigante que, caso tivesse de se esconder embaixo do peso de sua dívida resultante ( o que certamente aconteceria), teria então de ser socorrido pelos contribuintes (como de fato esses conglomerados foram socorridos) [12]. Em outras palavras, parece muito com uma elaborada e incomum versão do que os bancos fizeram quando emprestaram dinheiro a ditadores na Bolívia e no Gabão no final da década de 1970: realizaram empréstimos totalmente irresponsáveis com a plena ciência de que, quando os políticos e burocratas soubessem o que tinham feito, estes lutariam para garantir que fossem reembolsados de qualquer maneira, não importavam quantas vidas humanas tivessem de ser arruinadas e destruídas.

A diferença, no entanto, foi que dessa vez os banqueiros o fizeram em uma escala inconcebível: a soma total da dívida acumulada era muito maior do que a soma do produto interno bruto de todos os países – isso deixou o mundo em um estado de pânico e quase destruiu o próprio sistema.

Exércitos e polícia se reuniram rapidamente para combater as revoltas e agitações esperadas, mas, a princípio, nenhuma se materializou. Tampouco houve mudanças significativas no modo de funcionamento do sistema. Na época, todos imaginaram que, com instituições centrais do capitalismo (Lehman Brothers, Citibank, General Motors) desmoronando, e vindo à luz tudo que havia sido de logro naquela suposta sabedoria superior, nós pelo menos recomeçaríamos uma discussão mais ampla sobre a natureza da dívida e das instituições de crédito. E não apenas uma discussão.

A maior parte dos norte-americanos parecia estar aberta a soluções radicais. Pesquisas mostraram que uma maioria avassaladora achava que os bancos não deviam ser resgatados, independentemente das consequências econômicas, mas que os cidadãos comuns acuados por causa das hipotecas podres deviam ser socorridos. Por isso ter ocorrido nos Estados Unidos, trata-se de algo bastante extraordinário. Desde a época colonial, os norte-americanos são a população menos solidária com os devedores. O que é estranho, de certa forma, pois o país foi povoado por devedores em fuga. Mas trata-se de um país onde a ideia de que a moralidade está relacionada ao pagamento das próprias dívidas é muito mais arraigada do que em qualquer outro. Na época colonial, costumava-se pregar nos postes pelas orelhas, os devedores insolventes. Os Estados Unidos foram um dos últimos países do mundo a adotar uma lei de falência: embora em 1787 a Constituição tenha incumbido o novo governo da criação de uma, todas as tentativas foram rejeitadas ou revogadas em razão de “fundamentos morais” até 1898 [13]. Foi uma mudança histórica. Por isso mesmo, talvez, as pessoas encarregadas de conduzir no século XXI debates nos meios de comunicação e os legisladores decidiram que esse não era o momento. O governos dos Estados Unidos fez um curativo de 3 trilhões de dólares para tentar resolver o problema e não mudou nada. Os banqueiros foram salvos, mas os devedores pequenos – com pouquíssimas exceções – não [14]. Pelo contrário, no meio da maior recessão econômica desde a década de 1930, já começamos a ver a reação adversa contra os devedores – conduzida pelas corporações financeiras que, para aplicar toda a força da lei contra os cidadãos comuns que passam por problemas financeiros, agora recorrem ao mesmo governo que as socorreu. “Não é crime dever dinheiro”, afirma Star Tribune de Menneapolis-Saint Paul, “mas as pessoas estão sendo presas rotineiramente por não conseguirem pagar suas dívidas”. Em Minnesota, “o uso de mandados de prisão contra devedores aumentou 60% nos últimos quatro anos, com 845 casos em 2009. […] Em Illinois e no sudoeste de Indiana, alguns condenam à prisão devedores que não cumprem os pagamentos de dívidas expedidos pela Justiça. Em casos extremos, as pessoas ficam presas até conseguirem o valor do pagamento mínimo. Em janeiro [2010], um juiz sentenciou um cidadão de Kenney, Illinois, à prisão ‘por tempo indeterminado’, até que conseguisse a quantia de trezentos dólares para pagar a dívida feita em depósito de madeira” [15].

Em outras palavras, estamos vendo o retorno de algo muito parecido com as prisões de devedores. Alguma coisa afinal tinha que acontecer. Em 2011, depois que uma onda de movimentos populares varreu o Oriente Médio e ecoou no mundo todo, milhares de pessoas na Europa e na América do Norte começarem a insistir na necessidade de uma discussão sobre as questões básicas levantadas em 2008. As manifestações logo conseguiram chamar a atenção para si e, em seguida, foram alvo de uma repressão violenta e da reprovação da imprensa. Tudo isso apesar de a economia mundial estar mergulhando inexoravelmente em uma nova catástrofe financeira – e a única pergunta verdadeira é quanto tempo ela vai durar. Chegamos ao ponto em que até mesmo algumas das principais instituições são obrigadas a admitir, ainda que de maneira tática, que essa catástrofe está de fato se aproximando. Em meados de 2012, o Banco Central americano propôs um ambicioso plano de alívio das hipotecas, plano que a classe política simplesmente não quis levar em consideração. Durante um tempo, até o FMI, sob direção de Dominique Strauss-Kahn, começou a tentar se reposicionar como a consciência do capitalismo global, emitindo alertas de que se a economia continuasse no curso atual, algum tipo de crise seria inevitável e provavelmente não haveria outro resgate financeiro: as pessoas simplesmente não apoiariam isso, e, por fim, tudo iria desmoronar. “FMI alerta que segundo resgate financeiro seria uma ‘ameaça à democracia’”, dizia uma manchete à época [16]. (É claro que por “democracia” eles entendem “capitalismo”). Certamente isso significa que, mesmo aquelas pessoas que se sentem responsáveis por manter o funcionamento do sistema econômico global atual, pessoas qe há apenas alguns anos agiam como se pudessem adivinhar que o sistema em vigor existiria para sempre, agora veem por todo lado a iminência do apocalipse.

***


Neste caso, o FMI tem razão. E nós temos todos os motivos para acreditar que estamos no limiar de transformações extremamente importantes.

Sabe-se que a tendência comum é imaginar tudo o que nos cerca como absolutamente novo. E isso é tão mais verdadeiro com relação ao dinheiro. Quantas e quantas vezes não nos disseram que o aparecimento da moeda virtual – ou seja, a transformação do dinheiro em plástico e das cédulas em informação – está nos levando a um mundo financeiro novo, nunca visto? A suposição de que já vivíamos nesse território inexplorado, é claro, foi um dos fatores que ajudaram grupos como Goldman Sachs e AIG a convencer as pessoas com tanta facilidade de que provavelmente ninguém entenderia seus novos e fascinantes instrumentos financeiros. Quando analisamos a questão em uma escala histórica ampla, no entanto, a primeira coisa que aprendemos é que não há novidade nenhuma na moeda virtual. Na verdade, essa era a forma original de moeda. Sistemas de crédito, contas a pagar, até mesmo contabilidade de despesas, tudo isso já existia muito antes do dinheiro vivo. Essas coisas são tão antigas quanto a própria civilização. Também descobrimos que a história tende a alternar períodos denominados por lingotes – em que o ouro e a prata são considerados moeda – e períodos em que a moeda é tida como uma abstração, uma unidade virtual de contabilidade. No entanto, em termos históricos, a moeda virtual, ou o dinheiro de crédito, vem primeiro, e o que testemunhamos hoje é um retorno de suposições que teriam sido consideradas óbvias e de senso comum, digamos, na Idade Média – ou até mesmo na antiga Mesopotâmia.

Porém, a história nos dá pistas fascinantes do que podemos esperar. Por exemplo: no passado, os períodos de moeda virtual, ou dinheiro de crédito, implicaram invariavelmente a criação de instituições feitas para evitar um descontrole completo – para evitar que os emprestadores se juntassem aos burocratas e políticos e esvaziassem o bolso das pessoas, como parecem fazer agora. Esses períodos são acompanhados pela criação de instituições destinadas a proteger os devedores. A nova era do dinheiro de crédito em que estamos parece ter se iniciado de maneira invertida. Ela começou com a criação de instituições globais como o FMI, destinadas a proteger não os devedores, mas os credores. Ao mesmo tempo, dentro da escala histórica que empregamos aqui, uma década ou duas não é nada. Não temos ideia do que esperar.

***


Este livro, portanto, é uma história da dívida, mas também recorre a essa história a fim de fazer perguntas fundamentais sobre o que são os seres humanos e a sociedade humana, ou sobre o que eles poderiam ser – sobre o que realmente devemos uns aos outros e até o que significa fazer essa pergunta. Assim, o livro tenta, de início, destruir uma série de mitos – não só o mito do escambo, que é discutido no próximo capítulo, mas também mitos rivais sobre dívidas primordiais para com os deuses, ou para com o Estado – mitos que, de uma forma ou de outra, são a base das suposições criadas pelo senso comum sobre a natureza da economia e da sociedade. Na ótica do senso comum, Estado e Mercado se destacam acima de tudo como princípios diametralmente opostos. A realidade histórica, porém, revela que os dois nasceram juntos e sempre estiveram entrelaçados. Veremos que todas essas concepções equivocadas têm em comum o fato de tenderem a reduzir todas as relações humanas à troca, como se nossos laços com a sociedade, ou mesmo com o próprio Cosmos, pudessem ser imaginados nos mesmos termos de um acordo comercial. Isso nos leva a outra questão: se elas não foram troca, o que são? No capítulo 5, começarei a responder a essa questão recorrendo aos frutos da antropologia para fazer uma descrição ampla da base moral da vida econômica. Depois retorno à questão das origens do dinheiro para mostrar como o próprio princípio de troca surgiu em toda parte como efeito da violência – as origens verdadeiras do dinheiro devem ser buscadas no crime e na recompensa, na guerra e na escravidão, na honra, na dívida, na redenção. Isso, por sua vez, abre caminho para começar, no capítulo 8, uma verdadeira história dos últimos 5 mil anos da dívida e do crédito, com suas grandes alternâncias entre períodos de dinheiro virtual e físico. Muitas das descobertas do capítulo são surpreendentes, como o fato de os conceitos modernos de direitos e liberdades terem sua origem na antiga lei da escravidão, de o capital de investimento ter sua origem no budismo chinês medieval, ou ainda o fato de que muitas das famosas teses de Adam Smith parecem ter sido plagiadas de obras escritas por teóricos do livre mercado na Pérsia medieval (uma ideia que, a propósito, tem implicações interessantes para compreender o apelo atual do Islã político). Tudo isso arma o cenário para uma abordagem nova dos últimos quinhentos anos, dominados pelos impérios capitalistas, e nos permite pelo menos começar a perguntar o que pode realmente estar em jogo nos dias atuais.

Durante muito tempo, o consenso intelectual foi que não podemos mais fazer Grandes Perguntas. A cada dia que passa, no entanto, parece que não temos outra escolha.

Capítulo 2: O mito do escambo


Para cada pergunta sutil e complexa há uma resposta perfeitamente simples e clara: a que está errada. H. L. MENCKEN (citação livremente adaptada).


Qual é a diferença entre a mera obrigação, a sensação de que é preciso se comportar de determinada maneira, ou de que se deve algo a alguém, e a dívida propriamente dita? A resposta é simples: o dinheiro. A diferença entre a dívida e a obrigação é que a dívida pode ser quantificada com precisão. E isso requer dinheiro.

Não é só o dinheiro que torna a dívida possível: dinheiro e dívida aparecem em cena exatamente ao mesmo tempo. Alguns dos primeiros documentos escritos que chegaram até nós são tabuletas mesopotâmicas com registros de créditos e débitos, provisões distribuídas pelo templo, dinheiro devido pelo aluguel das terras do templo, com o valor de cada item especificado precisamente em grãos e prata. Algumas das primeiras obras de filosofia moral, por sua vez, são reflexos do que significa conceber o comportamento moral nos mesmos termos com que se trata a dívida – ou seja, em termos monetários.

Uma história da dívida, portanto, é necessariamente uma história do dinheiro – e a maneira mais fácil de compreender o papel que a dívida desempenhou na sociedade humana consiste em acompanhar as formas que o dinheiro assumiu, e o modo como o dinheiro foi usado ao longo dos séculos, bem como as discussões resultantes sobre o significado disso tudo. Ainda assim, esta é necessariamente uma história do dinheiro bem diferente daquela com a qual estamos acostumados. Quando os economistas falam sobre a origem do dinheiro, por exemplo, eles sempre consideram a dívida algo secundário. Primeiro vem o escambo, depois o dinheiro; o crédito só se desenvolve posteriormente. Mesmo quando consultamos livros sobre a história do dinheiro, por exemplo, na China, França ou Índia, o que geralmente encontramos é uma história da cunhagem, com pouquíssimas discussões sobre acordos de crédito. Durante quase um século, antropólogos que seguem a mesma linha de raciocínio que eu têm apontado que há algo muito errado nessa abordagem. A versão comum da história econômica tem pouco a ver com o que observamos quando analisamos como a vida econômica é de fato organizada, nos mercados e comunidades reais, em praticamente todos os lugares – nos quais é muito provável encontrarmos pessoas endividadas de diversas maneiras, e transações que em sua maioria se dão sem o uso de moeda.

Por que essa discrepância?

Parte dela diz respeito apenas à natureza dos fatos: moedas são preservadas nos arquivos arqueológicos; acordos de crédito em geral não o são. Todavia, os problemas são mais profundos que isso. A existência do crédito e da dívida sempre teve uma conotação de escândalo para os economistas, uma vez que é praticamente impossível fazer de conta que as pessoas que emprestam dinheiro e tomam empréstimos estejam agindo por interesses puramente “econômicos” (por exemplo, que o empréstimo para um estranho seja a mesma coisa que o empréstimo para um primo); parece importante, portanto, começar a história do dinheiro em um mundo imaginário do qual o crédito e a dívida tenham sido eliminados. Antes de aplicarmos as ferramentas da antropologia para reconstruir a história real do dinheiro, precisamos entender o que há de errado com a explicação convencional.

Os economistas geralmente falam em três funções do dinheiro: meio de troca, unidade de contas e reserva de valor. Todos os manuais econômicos tratam o meio de troca como função primária. Vejamos um trecho razoavelmente típico do livro Economics, de Karl Case, Ray Fair, Mandred Gärtner e Ken Heather:

O dinheiro é vital para o funcionamento da economia de mercado. Imagine como seria a vida sem ele. A alternativa à economia monetária é o escambo, em que as pessoas trocam diretamente bens e serviços por outros bens e serviços, em vez de trocá-los por meio do dinheiro.

Como funciona o sistema de escambo? Suponha que você queira croissants, ovos e suco de laranja para o café da manhã. Em vez de comprar os produtos na mercearia usando dinheiro, você teria de encontrar alguém que tivesse esses produtos e quisesse trocá-los. Além disso, você precisaria ter algo que o padeiro, o fornecedor de suco e o vendedor de ovos quisessem. Ter lápis para trocar não adiantará de nada se o padeiro, o fornecedor de suco e o vendedor de ovos não quiserem lápis.

O sistema de escambo requer uma dupla coincidência de desejos para que a troca aconteça. Ou seja, para efetuar a troca, eu não preciso apenas encontrar alguém que tenha o que quero, mas a pessoa também precisa querer o que tenho. Quando a variedade de bens trocados é pequena, o que costuma acontecer em economias relativamente rudimentares, não é difícil encontrar alguém para realizar a troca, e o escambo costuma ser usado [1].

Esse último ponto é questionável, mas é colocado de maneira tão vaga que seria difícil contestá-lo:

Em uma sociedade complexa com muitos bens, o escambo requer muito esforço. Imagine-se tentando encontrar pessoas que ofereçam todos os tipos de produtos comprados na mercearia e que queiram aceitar os produtos que você tem a oferecer em troca dos dados que eles possuem.

Algum meio de troca acordado (ou meio de pagamento) praticamente elimina o problema da dupla coincidência de desejos [2].

É importante ressaltar que isso não é apresentado como algo que de fato aconteceu, mas sim como um exercício puramente imaginário. “Para entender como a sociedade se beneficia de um meio de troca, imagine uma economia de escambo”, escrevem David Begg, Stanley Fischer e Rudiger Dornbusch [Economics, 2005]. “Imagine a dificuldade que você teria hoje se tivesse de trocar seu trabalho diretamente pelos frutos do trabalho de outra pessoa”, escrevem Peter Maunder, Danny Myers, Naney Wall e Rober Miller [Economics Explained, 1991]. “Imagine que você tenha galos, mas queira rosas”, escrevem Michael Parkin e David King [Economics, 1995] [3]. Poderíamos multiplicar infinitamente esses exemplos. Quase todos os manuais de economia usados hoje em dia colocam o problema da mesma maneira. Historicamente, afirmam eles, sabemos que houve uma época em que não existia dinheiro. Como poderia ter sido essa época? Ora, imaginemos uma economia parecida com a que temos hoje, mas sem dinheiro. Seria algo certamente inconveniente! É claro, as pessoas inventaram o dinheiro visando à eficiência.

A história do dinheiro para os economistas sempre começa no reino da fantasia do escambo. O problema é onde situar essa fantasia no tempo e no espaço: estamos falando dos homens das cavernas, dos nativos das ilhas do Pacífico, das primeiras colônias norte-americanas? Um manual, escrito pelos economistas Joseph Stíglitz e John Driffill, nos leva ao que parece ser uma cidade imaginária na Nova Inglaterra ou no Centro-Oeste dos Estados Unidos:

Podemos imaginar um antigo sistema de escambo rural com o ferreiro, o alfaiate. o merceeiro e o médico em uma cidade pequena. Para que o simples escambo funcione, no entanto, deve haver uma dupla coincidência de desejos. […] Henry tem batatas e quer calçados, Joshua tem um par de calçados sobrando e quer batatas. O escambo pode deixar os dois mais felizes. Mas se Henry tem lenha e Joshua não precisa de lenha, o escambo pelos calçados de Joshua requer que os dois, ou apenas um deles, saiam procurando mais pessoas na esperança de realizar uma troca multilateral. O dinheiro proporciona um modo muito mais simples de realizar a troca multilateral. Henry vende a lenha para outra pessoa por dinheiro e usa o dinheiro para comprar os calçados de Joshua [4].

Repetindo, essa é apenas uma terra imaginária, muito parecida com a nossa, mas sem o dinheiro. Sendo assim, ela não faz sentido nenhum: quem, em sã consciência, montaria uma mercearia em um lugar desses? E como conseguiria suprimentos? Mas deixemos isso de lado. Há uma razão simples que leva todos os autores de manuais de economia a nos contar a mesma história. Para os economistas, trata-se, em um sentido muito verdadeiro, da história mais importante que já nos foi contada. Foi contando essa história, no significativo ano de 1776, que Adam Smith, professor de filosofia moral da Universidade de Glasgow, criou efetivamente a economia como disciplina.

Ele não criou essa história sem algum embasamento na realidade. Em 330 a.C., Aristóteles já especulava sobre o assunto em uma linha bastante similar em seu tratado sobre política. Antes, sugeria ele, as famílias deviam produzir tudo aquilo de que precisavam. Gradualmente, algumas delas presumivelmente teriam se especializado, algumas plantando milho, outras fabricando vinhos, e teriam passado a trocar seus produtos [5]. O dinheiro, supunha Aristóteles, deve ter surgido de tal processo. Mas, assim como os estudiosos medievais que de vez em quando repetiam a história, Aristóteles nunca disse claramente como ele surgiu [6].

Nos anos que se sucederam a Colombo, enquanto aventureiros espanhóis e portugueses varriam o mundo em busca de novas fontes de ouro e prata, essas histórias imprecisas desapareceram. Certamente ninguém relatou ter descoberto uma terra onde vigorava o escambo. A maioria dos viajantes dos séculos XVI e XVII, nas Índias Ocidentais ou na África, supunha que todas as sociedades teriam necessariamente as próprias formas de dinheiro, uma vez que todas as sociedades tinham governos e todos eles emitiam moeda [7].

Adam Smith, por outro lado, estava determinado a subverter a sabedoria comum de sua época. Em primeiro lugar, ele se opôs à ideia de que o dinheiro era criação de governos. Nesse aspecto, Smith foi o herdeiro intelectual da tradição de filósofos liberais como John Locke, que argumentava que o governo começa na necessidade de proteger a propriedade privada e funciona melhor quando tenta se limitar a essa função. Smith ampliou o argumento, insistindo que propriedade, dinheiro e mercados não só existiam antes das instituições políticas, como eram os próprios fundamentos da sociedade humana. Desse modo, uma vez que o governo tinha de exercer algum papel nas questões monetárias, ele deveria se limitar a garantir a estabilidade da moeda. Foi em decorrência dessa tese que Adam Smith conseguiu afirmar que a economia é por si só um campo da investigação humana com princípios e leis próprios – ou seja, algo distinto da ética ou da política, por exemplo.

É válido esmiuçar o argumento de Adam Smith porque, como eu disse, trata-se do grande mito fundador da economia como disciplina.

Qual é – assim ele começa – a base da vida econômica propriamente dita? “Trata-se de certa tendência ou propensão existente na natureza humana […] a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra”. Os animais não fazem isso. “Ninguém jamais viu um cachorro fazer uma troca justa e deliberada de um osso por outro, com um segundo cachorro” [8]. Os seres humanos, se deixados agir por conta própria, inevitavelmente começarão a permutar e comparar as coisas. É isso que eles fazem. Até mesmo a lógica e a conversação não passam de modos de estabelecer trocas, e, como em todas as outras coisas, os seres humanos sempre tentarão tirar o máximo de vantagem, buscarão o maior lucro que possam obter com a troca [9].

É esse impulso para a troca, por sua vez, que cria a divisão do trabalho, responsável por todo avanço da humanidade e pela civilização. Aqui a cena muda para outra terra da fantasia dos economistas – que parece um amálgama dos índios norte-americanos com os pastores nômades da Ásia Central [10]:

Em uma tribo de caçadores ou pastores, por exemplo, determinada pessoa faz arcos e flechas com mais habilidade e rapidez do que qualquer outra. Muitas vezes os trocará com seus companheiros por gado ou por carne de caça; considera que, dessa forma, pode conseguir mais gado e mais carne de caça do que conseguiria se ele mesmo fosse à procura deles no campo. Considerando primeiramente, portanto, o interesse próprio, resolve que fazer arcos e flechas será sua ocupação principal, tornando-se uma espécie de armeiro. Outra pessoa é particularmente hábil em fazer o madeiramento e as coberturas de suas pequenas cabanas ou casas removíveis. Ela está habituada a ser útil a seus vizinhos dessa forma, os quais a remuneram da mesma maneira, com gado e carne de caça, até que, ao final, acaba achando interessante dedicar-se inteiramente a essa ocupação e tornar-se uma espécie de carpinteiro dedicado à construção de casas. Da mesma forma, um terceiro torna-se ferreiro ou funileiro, um quarto se faz curtidor ou preparador de peles ou couros, componente primordial da roupa dos silvícolas […]

É somente quando surgem fabricantes de arcos, cabanas etc. que as pessoas percebem a existência de um problema. Observe que, como ocorre em tantos outros exemplos, nós tendemos a passar de silvícolas imaginários para pequenos comerciantes em cidadezinhas:

Quando a divisão do trabalho estava apenas em seu início, esse poder de troca deve ter deparado frequentemente com grandes empecilhos. Podemos perfeitamente supor que um individuo possua uma mercadoria em quantidade superior àquela de que precisa, ao passo que outro tem menos. Consequentemente, o primeiro estaria disposto a vender uma parte do que lhe é supérfluo, e o segundo a comprá-la. Todavia, se esse segundo indivíduo não possuir nada daquilo que o primeiro necessita, não poderá haver nenhuma troca entre eles. O açougueiro possui mais carne do que a quantidade de que precisa para seu consumo, e o cervejeiro e o padeiro estariam dispostos a comprar uma parte do produto. Entretanto, estes nada têm a oferecer em troca […]. A fim de evitar o inconveniente de tais situações, todo homem prudente, em qualquer sociedade e em qualquer período da história após ter se estabelecido pela primeira vez a divisão do trabalho, deve naturalmente ter se empenhado em conduzir seus negócios de tal forma que a cada momento tivesse consigo, além dos produtos diretos de seu trabalho, certa quantidade de uma mercadoria ou outra – mercadorias tais que, em seu entender, poucas pessoas recusariam receber em troca do produto do trabalho delas [11].

Desse modo, todos começaram inevitavelmente a estocar aquilo que supunham ser da necessidade de outras pessoas. Isso produziu um efeito paradoxal porque, em dado momento, em vez de aquela mercadoria ficar menos valiosa (uma vez que todos já têm um pouco dela), ela se torna mais valiosa (porque se transforma, efetivamente, em moeda):

Conta-se que na Abissínia o instrumento comum para comércio e trocas é o sal; em algumas regiões da costa da Índia, é determinado tipo de conchas; na Terra Nova é o bacalhau seco; na Virgínia, o tabaco; em algumas das nossas colônias do oeste da Índia, o açúcar; em alguns outros países, peles ou couros preparados; ainda hoje – segundo me foi dito – existe na Escócia uma aldeia em que não é raro um trabalhador levar pregos em vez de dinheiro, quando vai ao padeiro ou à cervejaria [12].

Por fim, obviamente, pelo menos para o comércio de longa distância, tudo se reduz a metais preciosos, pois estes idealmente são apropriados para servir como moeda por serem duráveis, portáteis e capazes de serem divididos continuamente em porções idênticas:

Diferentes foram os metais utilizados pelas diversas nações para esse fim. O ferro era o instrumento comum de comércio entre os espartanos; entre os antigos romanos era o cobre; e o ouro e a prata em todas as nações ricas e comerciantes.

De início, parece que os referidos metais eram utilizados para esse fim em barras brutas, sem gravação e sem cunhagem. […]

O uso de metais nesse estado apresentava dois consideráveis inconvenientes: a pesagem e a verificação da autenticidade ou qualidade do metal. No caso dos metais preciosos, em que uma pequena diferença de quantidade representa uma grande diferença no valor, até mesmo o trabalho de pesagem, para ser feito com a precisão necessária, requer no mínimo pesos e balanças muito exatos. Particularmente a pesagem do ouro é uma operação precisa e sutil [13].

Não é difícil deduzir o resultado disso. Usar lingotes irregulares de metal é mais fácil que praticar o escambo, mas padronizar as unidades – digamos, prensar peças de metal com designações uniformes que garantam o peso e a pureza da liga, em diferentes denominações – não facilitaria ainda mais as coisas? Certamente sim, e dessa forma nasceu a cunhagem. De fato, a difusão da cunhagem implicou o envolvimento dos governos, pois geralmente eram os governos que forjavam as moedas; mas, na versão clássica da história, os governos tinham apenas esse papel limitado – garantir a oferta monetária – e tendiam a exercê-lo sem a menor competência, uma vez que, durante a história, reis inescrupulosos muitas vezes fraudavam a cunhagem, desvalorizando a moeda, gerando inflação e outros tipos de danos políticos àquilo que originalmente era apenas uma questão de simples bom senso econômico.

De maneira reveladora, essa história teve um papel crucial não só na fundação da economia como disciplina, mas na própria ideia de que existia algo chamado “economia”, que funcionava com regras próprias, separado da vida moral ou política – ou seja, algo que os economistas podiam tomar como campo de estudos. “A economia” é a área em que exercemos nossa propensão natural a intercambiar e permutar. Ainda estamos intercambiando e permutando e sempre estaremos. A moeda é apenas o meio mais eficaz para isso.

Mais tarde, economistas como Karl Menger e Stanley Ievons melhoraram os detalhes dessa história, basicamente acrescentando diversas equações matemáticas para mostrar que um agrupamento aleatório de pessoas com desejos aleatórios poderia, em teoria, produzir não só uma única mercadoria para ser usada como dinheiro, mas também um sistema de preços uniformes. Nesse processo, eles também substituíram todo o vocabulário técnico pomposo (por exemplo, “inconveniências” se transformou em “custos de transação”). O problema, contudo, é que essa história se tornou senso comum para a maioria das pessoas. Nós a ensinamos para crianças nos livros escolares e nos museus. Todo mundo a conhece. “Era uma vez o escambo, um sistema difícil. Então as pessoas inventaram o dinheiro. Depois veio o desenvolvimento do sistema bancário e do crédito”. Tudo isso constitui uma progressão perfeitamente simples e objetiva, um processo de sofisticação e abstração cada vez maior que levou a humanidade, de maneira lógica e inexorável, da troca de presas de mastodonte na Idade da Pedra às bolsas de valores, aos fundos de hedge e aos derivativos securitizados [14].

Essa ideia tornou-se realmente onipresente. Onde quer que haja dinheiro, haverá essa história. Certa vez, na cidade de Arivonimamo, em Madagascar, tive o privilégio de entrevistar um kalanoro, uma criaturinha fantasmagórica que um médium local dizia manter escondida dentro de um baú em sua casa. O espírito era do irmão de uma agiota local, uma mulher horrenda chamada Nordine, e, para ser sincero, relutei um pouco em me envolver com a família, mas alguns amigos insistiram – afinal de contas, tratava-se de um ser de tempos remotos. A criatura falava por trás de uma cortina com a voz trêmula e sinistra. Mas o único assunto que lhe interessava era o dinheiro. Por fim, um pouco irritado com toda aquela farsa, eu perguntei: “Então, o que você usava como dinheiro nos tempos antigos, quando ainda estava vivo?”.

A voz misteriosa respondeu imediatamente: “Não. A gente não usava dinheiro. Nos velhos tempos, trocávamos diretamente uma mercadoria por outra”.

***


Essa história, portanto, tornou-se o mito fundador do nosso sistema de relações econômicas. E esse mito está estabelecido de modo tão profundo no senso comum que, até mesmo em lugares como Madagascar, a maioria das pessoas não imaginaria outra maneira possível de aparecimento do dinheiro.

O problema é que não há nenhum indício de que isso um dia aconteceu, mas há numerosos indícios sugerindo que possa não ter acontecido.

Há séculos os pesquisadores tentam encontrar essa lendária terra do escambo – sem sucesso. Adam Smith usa como pano de fundo para seu relato a América do Norte e seus aborígenes (outros preferem a África ou o Pacífico). Em defesa de Smith, pelo menos poder-se-ia dizer que na época dele não havia informações confiáveis sobre os sistemas econômicos dos norte-americanos nativos em bibliotecas escocesas. Já seus sucessores não podem recorrer a desculpas. Mas, em meados do século, as descrições de Lewis Henry Morgan das Seis Nações dos Iroqueses, entre outras, foram amplamente difundidas – e deixaram claro que a principal instituição econômica nas nações iroquesas eram habitações coletivas, chamadas longhouses, em inglês, onde a maior parte dos produtos era estocada e depois distribuída pelos conselhos de mulheres, e ninguém nunca trocava pontas de flecha por pedaços de carne. Os economistas simplesmente ignoraram essa informação [15]. Stanley Jevons, que em 1871 escreveu o que seria considerado o livro clássico sobre as origens do dinheiro, retira seus exemplos de Adam Smith, como ao falar de índios que trocam carne de caça por cervos e pele de castor, e não utiliza nenhuma descrição real da vida indígena, deixando claro que Adam Smith simplesmente inventou esses exemplos. Mais ou menos na mesma época, missionários, aventureiros e administradores coloniais viajavam pelo mundo todo e levavam consigo cópias do livro de Adam Smith, esperando encontrar a terra do escambo. Ninguém nunca encontrou. O que descobriram foi uma variedade quase infinita de sistemas econômicos. Até hoje, ninguém conseguiu localizar nem uma parte do mundo sequer onde o modo comum de transação econômica entre vizinhos seja na forma de troca de “vinte galinhas por uma vaca”.

A obra antropológica definitiva sobre o escambo, escrita por Caroline Humphrey, da Universidade de Cambridge, não poderia ser mais enfática em suas conclusões: “Nunca foi descrito nenhum exemplo puro e simples da economia de escambo, muito menos de que o dinheiro tenha surgido do escambo; toda a etnografia existente sugere que esse tipo de economia nunca existiu” [16].

Ora, tudo isso dificilmente quer dizer que o escambo não existiu – ou que nunca tenha sido praticado pelo tipo de gente que Adam Smith chamaria de “selvagens”. Significa apenas que quase nunca era empregado, como ele imaginava, entre homens de uma mesma aldeia. Comumente, ele acontecia entre estranhos, até entre inimigos. Tomemos como exemplo os índios nambiquaras, no Brasil. Eles parecem corresponder a todos os critérios: uma sociedade simples, praticamente sem divisão de trabalho, organizada em pequenos grupos que tradicionalmente são formados, quando muito, por cem pessoas cada um. De vez em quando, se um grupo vê que outro grupo acendeu as fogueiras para cozinhar, manda emissários para negociar um encontro com propósitos de troca. Se a oferta é aceita, eles primeiro escondem as mulheres e as crianças na floresta, depois convidam os homens do outro grupo para visitar o acampamento. Cada grupo escolhe um chefe; depois que todos se reúnem, cada chefe profere um discurso formal enaltecendo a outra parte e subestimando o próprio grupo; todos deixam as armas de lado para cantar e dançar juntos – embora a dança imite o confronto de guerra. Depois, os indivíduos de um grupo se dirigem aos do outro para a troca:

Se um indivíduo quer um objeto qualquer, ele o enaltece dizendo o quanto é bom. Se um homem valoriza um objeto e quer algo em troca por ele, em vez de dizer o quanto é valioso, diz que não é bom, demonstrando assim seu desejo de mantê-lo consigo. “Esse machado não é bom, é muito velho e perdeu o corte”, dirá ele, referindo-se ao seu machado que o outro quer.

Esse argumento é defendido em um tom furioso até que se chega a um entendimento. Feito o acordo, um pega o objeto da mão do outro. Se um homem fez o escambo de um colar não irá retirá-lo e entregá-lo, é o outro que deve arrancá-lo exibindo força. Discussões, que muitas vezes levam a lutas, ocorrem quando uma das partes é um pouco precipitada e apanha o objeto antes que o outro tenha terminado de argumentar [17].

Toda a negociação termina com um grande banquete para o qual as mulheres reaparecem, mas isso também pode causar problemas, uma vez que a música e a boa comida costumam dar margem à sedução, [18] o que muitas vezes leva a rixas provocadas pelo ciúme. De vez em quando, algumas pessoas são mortas.

O escambo, portanto, apesar de todos os elementos festivos, era realizado entre pessoas em geral inimigas e podia estar a um passo de se converter em uma guerra completa – e caso o etnógrafo esteja correto, se um dos lados concluía que havia sido explorado pelo outro, a situação podia muito facilmente levar de fato a um conflito real.

Viremos agora os holofotes para o outro lado do mundo, mais precisamente para o lado ocidental da Terra de Arnhem, na Austrália, onde o povo gunwinggu é famoso por divertir os povos vizinhos em rituais de escambo cerimonial chamados dzamalag. Aqui, a ameaça de violência real parece muito mais distante. Isso porque, parcialmente, as coisas são mais fáceis por causa da existência de um sistema de metades exogâmicas adotado em toda a região: não é permitido se casar ou fazer sexo com pessoas da mesma metade em que o grupo se divide, não importa de onde elas tenham vindo, mas qualquer pessoa que seja da outra metade tecnicamente é um par potencial. Desse modo, para os homens, mesmo em comunidades distantes, metade das mulheres é estritamente proibida, e a outra parte é um alvo legítimo. A região também é unida pela especialização local: cada povo tem seu próprio produto de troca para realizar o escambo com outros grupos.

O que se segue se baseia na descrição de um dzamalag ocorrido na década de 1940, tal como observado pelo antropólogo Ronald Berndt.

Mais uma vez, a história começa quando estranhos, depois de algumas negociações iniciais, são convidados para o acampamento dos anfitriões. Os visitantes, nesse exemplo, eram conhecidos por suas “lanças dentadas muito apreciadas” – e os anfitriões tinham acesso a boas vestimentas vindas da Europa. O negócio começa quando o grupo visitante, formado por homens e mulheres, entra na área circular reservada para as danças, e três pessoas começam a entreter os anfitriões com música. Dois homens cantam e um terceiro os acompanha tocando didjeridu. Pouco tempo depois, as mulheres do grupo de anfitriões chegam e atacam os músicos:

Homens e mulheres se levantam e começam a dançar. O dzamalag tem início quando duas mulheres gunwinggus da metade oposta à dos homens que cantam “dão o dzamalag” para estes. Elas presenteiam cada homem com um pedaço de tecido, dão uma pancada neles ou os tocam, jogando-os no chão, chamando-os de marido do dzamalag e brincando com eles de maneira erótica. Depois outra mulher da metade oposta à do homem que toca o instrumento de sopro lhe dá um tecido, golpeia-o e brinca com ele.

Esse é o início da troca dzamalag. Os homens do grupo visitante sentam-se quietos enquanto as mulheres da metade oposta se aproximam, acertam-lhes um golpe e os convidam para a cópula; elas tomam todas as liberdades para com os homens, entre diversão e aplausos, enquanto o canto e a dança continuam. As mulheres tentam tirar as vestimentas que cobrem os quadris dos homens ou tocar o pênis deles, arrastando-os para fora da área de dança para o coito. Os homens saem com suas parceiras de dzamalag, demonstrando relutância, para copular em moitas distantes das fogueiras que iluminam os dançarinos. Eles dão tabaco e contas para as mulheres. Quando elas voltam, dão parte do tabaco para os maridos, que as haviam encorajado a ir para o dzamalag. Os maridos, por sua vez, usam o tabaco para pagar por suas próprias parceiras de dzamalag […] [19].

Novos cantores e músicos aparecem; também são abordados e levados para os matagais; os homens encorajam suas esposas a “não terem vergonha”, para assim manter a reputação hospitaleira dos gunwinggus; algumas vezes esses homens tomam a iniciativa com as esposas dos visitantes, oferecendo roupas, golpeando-as e levando-as para os matagais. Contas e tabaco circulam. Por fim, depois que todos os participantes saíram aos pares pelo menos uma vez, e os convidados estão satisfeitos com as vestimentas que adquiriram, as mulheres param de dançar, formam duas fileiras, e os visitantes se organizam para pagar a elas.

Então os visitantes de uma metade dançam para as mulheres da metade oposta para “dar-lhes o dzamalag”. Eles seguram lanças de ponta triangular e fingem espetar as mulheres, mas, em vez de golpeá-las com a ponta, eles as golpeiam com a haste da lança. “Nós não espetaremos vocês com a lança porque já esperamos com o pênis”. Eles entregam as lanças para as mulheres. Depois os visitantes da outra metade procedem da mesma maneira com as mulheres da metade oposta, dando-lhes lanças de pontas dentadas. Com isso a cerimônia termina e segue-se uma ampla distribuição de comida [20].

Esse caso é particularmente dramático, mas casos dramáticos são reveladores. O que os anfitriões gunwinggus parecem fazer aqui, devido às relações relativamente amigáveis com os povos vizinhos da Terra de Arnhem, é tomar todos os elementos do escambo dos nambiquaras (a música e a dança, a hostilidade potencial, a intriga sexual) e os transformar em um tipo de jogo festivo – um jogo que talvez não deixe de ter seus perigos, mas (como enfatiza o etnógrafo) é considerado extremamente divertido por todos os envolvidos.

Esses casos de troca pelo escambo têm em comum o fato de serem encontros entre estranhos que muito provavelmente jamais se encontrarão de novo, e entre os quais certamente não se desenvolverão relações duradouras. É por isso que uma relação de troca direta, de um para um, é apropriada: cada uma das partes faz sua troca e vai embora. Tudo se torna possível quando se firma o primeiro estágio da sociabilidade na forma de prazeres compartilhados, música e dança – a base comum de convívio sobre a qual o comércio deve sempre se construir. Depois vem a troca real, em que os dois lados fazem uma bela exibição da hostilidade latente que necessariamente existe em qualquer troca de bens materiais entre estranhos – nenhuma das partes tem razões particulares para não tirar vantagem da outra parte – por meio de uma falsa agressão, em tom de brincadeira, embora no caso dos nambiquaras, em que o manto da sociabilidade é extremamente tênue, a falsa agressão corra o constante perigo de se transformar em agressão real. Os gunwinggus, com sua atitude mais relaxada ante a sexualidade, conseguiram de um modo engenhoso transformar os prazeres comuns e a agressividade que compartilham exatamente na mesma coisa.

Recordemos aqui a linguagem dos manuais de economia: “Imagine uma sociedade sem dinheiro” ou “imagine uma economia de escambo”. Esses exemplos deixam muito claro como é limitada a imaginação da maioria dos economistas [21].

Por quê? A resposta mais simples seria esta: para que exista uma disciplina chamada “economia”, uma disciplina que diga respeito, em primeiríssimo lugar, a como os indivíduos buscam o acordo mais vantajoso para a troca de calçados por batatas, ou de roupas por lanças, é preciso assumir que a troca desses bens não tem nada a ver com guerra, paixão, aventura, mistério, sexo ou morte. A economia pressupõe uma divisão entre diferentes esferas do comportamento humano que, entre povos como os gunwinggus e os nambiquaras, simplesmente não existe. Essas divisões, por sua vez, são possibilitadas por acordos institucionais bem específicos – a existência de advogados, prisões e polícia – para garantir que até mesmo as pessoas que não gostam umas das outras, que não têm interesse nenhum em desenvolver qualquer tipo de relação duradoura, mas só estão interessadas em se apoderar ao máximo das posses do outro, não tenham de recorrer ao expediente mais óbvio (o roubo). Isso, por sua vez, nos permite assumir que a vida é harmoniosamente dividida entre o mercado, onde fazemos nossas compras, e a “esfera de consumo”, onde nos envolvemos com a música, os banquetes e a sedução. Em outras palavras, a visão de mundo que está na base dos manuais de economia, cujo estabelecimento se deve tanto a Adam Smith, tornou-se parte tão fundamental do senso comum que para nós é difícil imaginar outra possível configuração.

Com esses exemplos, começa a ficar claro por que não existem sociedades baseadas no escambo. Uma tal sociedade só poderia ser aquela em que todos estão o tempo todo a um passo de se engalfinharem, em constante tensão, prontos para atacar, mas nunca atacando de fato. É verdade que o escambo às vezes acontece entre pessoas que não se consideram estranhas umas às outras, mas elas poderiam muito bem ser estranhas – ou seja, são pessoas sem espírito de confiança ou responsabilidade mútua, ou que não têm desejo nenhum de desenvolver relações duradouras. Os pachtuns do norte do Paquistão, por exemplo, são famosos por sua generosa hospitalidade. O escambo é o que se pratica com as pessoas às quais você não é ligado por laços de hospitalidade (ou parentesco, ou qualquer outra coisa):

A forma predileta de troca entre os homens é o escambo, ou adal-badal (toma lá, dá cá). Os homens estão sempre atentos à possibilidade de escambar uma de suas posses por algo melhor. É comum a troca acontecer entre coisas semelhantes: um rádio por outro rádio, óculos de sol por outros óculos de sol, um relógio por outro relógio. No entanto, objetos diferentes também podem ser trocados, como, por exemplo, uma bicicleta por dois jumentos. O adal-badal é sempre praticado entre pessoas que não são aparentadas e proporciona muito prazer aos homens, pois eles tentam tirar vantagem de seu parceiro de troca. Uma boa troca, na qual o homem sente que se saiu melhor depois do acordo, é motivo de vaidade e orgulho. Se a troca é ruim, o recebedor tenta voltar atrás no negócio ou, quando não consegue, [procura] se livrar do objeto defeituoso passando-o para outra pessoa que não suspeita de nada. O melhor parceiro de adal-badal é uma pessoa distante em termos espaciais, ou seja, que terá poucas chances de reclamar [22].

Porém, esses motivos inescrupulosos não estão limitados à Ásia Central. Eles parecem inerentes à própria natureza do escambo – o que explicaria o fato de, um ou dois séculos antes de Adam Smith, as palavras inglesas truck e barter [troca e escambo], assim como seus equivalentes em francês, espanhol, alemão, holandês e português, significarem à época “trapacear, enganar e tirar vantagem” [23]. Trocar uma coisa diretamente pela outra enquanto se tenta conseguir a melhor vantagem com a transação é a forma comum de lidar com as pessoas pelas quais não se tem muita consideração e que não se espera ver de novo. Quais seriam os motivos para não tentar tirar vantagem de uma pessoa assim? Se, por outro lado, alguém tem certa consideração por uma pessoa – um vizinho, um amigo – a ponto de realizar um acordo justo e honesto, inevitavelmente também se interessará por levar em conta as necessidades e os desejos dessa pessoa. Ainda que estejamos fazendo a troca de uma coisa pela outra, provavelmente encararemos a troca como um presente.

***


Para esclarecer o que quero dizer com isso, voltemos aos manuais de economia e ao problema da “dupla coincidência de desejos”. Quando falamos de Henry, ele precisava de um par de calçados, mas só dispunha de algumas batatas. Joshua tinha um par de calçados sobrando, mas não precisava de batatas. Como o dinheiro ainda não foi inventado, eles têm um problema. O que vão fazer?

A primeira coisa que deve ficar clara nesse ponto é que precisamos realmente conhecer um pouco mais sobre Joshua e Henry. Quem são eles? São parentes? Se sim, qual é o parentesco? Os dois parecem viver em uma comunidade pequena. Quaisquer pessoas que vivam na mesma comunidade pequena terão algum tipo de história complicada em relação às outras. Eles são amigos, rivais, aliados, amantes, inimigos ou várias dessas coisas ao mesmo tempo?

Os autores do exemplo original pensaram em dois vizinhos mais ou menos na mesma condição, não tão próximos, mas amigáveis – ou seja, uma relação com a maior neutralidade possível. Mesmo assim, isso não diz muito. Por exemplo, se Henry morasse em uma habitação coletiva e precisasse de calçados, Joshua nem sequer entraria na jogada; Henry simplesmente comentaria o fato com a esposa, que tocaria no assunto com outras matronas, buscaria material no depósito da habitação coletiva e confeccionaria os calçados. Uma alternativa, para encontrarmos um cenário que se encaixe em um manual imaginário de economia: teríamos de posicionar Joshua e Henry juntos em uma comunidade pequena e bem íntima, como uma tribo nambiquara ou um grupo de gunwinggus:

CENÁRIO 1:

Henry se aproxima de Joshua e diz: “Calçados bonitos!”.

Joshua diz: “Ah, nem são tão bonitos assim, mas, como você gostou deles, pegue-os”.

Henry pega os calçados.

Eles não tratam das batatas de Henry porque os dois sabem perfeitamente que, se Joshua precisar de batatas em algum momento, Henry lhe dará algumas.

E nada mais que isso. Obviamente não está claro, nesse caso, quanto tempo Henry ficará com os calçados. Provavelmente depende do estado deles. Se os calçados forem comuns, esse pode ser o fim da questão. Se forem bonitos ou únicos de alguma maneira, podem ser passados adiante. Há uma história famosa contada por John e Lorna Marshall, antropólogos que fizeram um estudo na década de 1960 com bosquímanos do deserto Kalahari [África]: eles deram uma faca de presente para um de seus informantes prediletos. Um ano depois eles voltaram e descobriram que quase todos os indivíduos do grupo tiveram a posse da faca em algum momento. Por outro lado, vários amigos árabes me confirmaram que, em contextos estritamente menos igualitários, ocorre certo expediente. Se um amigo elogia um bracelete ou uma bolsa, espera-se que você diga imediatamente: “Tome” – mas, se você está determinado a manter o objeto consigo, você sempre pode dizer: “É bonito, não é? Foi um presente”.

Está claro, no entanto, que os autores do manual de economia têm em mente uma transação um pouco mais impessoal. Eles parecem imaginar os dois homens como chefes de unidades familiares patriarcais, mantendo boas relações entre si, mas que guardam os próprios suprimentos. Talvez eles vivam em um daqueles vilarejos escoceses, com o açougueiro e o padeiro do exemplo de Adam Smith, ou em um assentamento de colonos na Nova Inglaterra. A diferença é que eles nunca ouviram falar em dinheiro. É uma fantasia peculiar, mas vejamos o que podemos fazer:

CENÁRIO 2:

Henry se aproxima de Joshua e diz: “Calçados bonitos!”.

Ou então – para deixar esse cenário um pouco mais realista – a esposa de Henry está conversando com a esposa de Joshua e deixa escapar estrategicamente que o estado dos calçados de Henry está tão ruim que ele começou a reclamar dos calos.

A mensagem é transmitida e Joshua aparece no dia seguinte para oferecer a Henry, como presente, seu par de calçados que está sobrando, insistindo que se trata apenas de um gesto amigável. Jamais ele aceitaria alguma coisa como compensação.

Não importa se Joshua está sendo sincero. Ao fazer o que fez, Joshua registra um crédito. Henry lhe deve uma.

Como Henry poderia pagar a Joshua? Há infinitas possibilidades. Talvez Joshua realmente queira algumas batatas. Henry espera passar um pequeno intervalo e entrega as batatas para Joshua, insistindo também que se trata apenas de um presente. Ou talvez Joshua não precise de batatas agora, então Henry espera até que ele precise. Ou talvez ainda um ano depois, quando Joshua planejar um banquete, ele passe pelo curral de Henry e diga: “Que belo porco…”.

Em qualquer um desses cenários, o problema da “dupla coincidência de desejos”, tão evocado nos manuais de economia, simplesmente desaparece. Henry pode não ter algo de que Joshua precise agora mesmo. Mas, se os dois são vizinhos, obviamente será uma questão de tempo até que Joshua precise de alguma coisa [24].

Por sua vez, isso significa que a necessidade de estocar itens comumente aceitáveis, da maneira que sugeriu Adam Smith, também desaparece. Com isso extingue-se a necessidade de moeda. Assim como acontece em muitas comunidades pequenas atuais, todas as pessoas simplesmente guardam consigo a informação de quem deve o que para quem.

Há apenas um problema conceitual importante aqui – um problema que o leitor atento já deve ter notado. Henry “deve uma a Joshua”. Uma o quê? Como se quantifica um favor? Baseados em que nós dizemos que essa porção de batatas, ou esse porco grande, parece mais ou menos equivalente a um par de calçados? Porque, mesmo se essas coisas forem meras aproximações rudimentares, tem de haver alguma maneira de estabelecer que X equivale mais ou menos a Y, ou que é um pouco melhor ou um pouco pior. Isso não indica que algo parecido com o dinheiro, pelo menos no sentido de uma unidade de contas que permita comparar o valor de diferentes objetos, já exista?

Na verdade, há um modo rudimentar de resolver o problema na maioria das economias da dádiva. Estabelece-se uma série de categorias de tipos de coisas. Porcos e calçados devem ser considerados objetos de equivalência aproximada: pode-se dar um em troca de outro. Colares de corais já seriam uma questão totalmente diferente; seria preciso dar em troca outro colar, ou pelo menos outra joia – os antropólogos costumam se referir a essas situações como criadoras de diferentes “esferas de troca” [25]. De certa forma, isso simplifica as coisas. Quando o escambo transcultural se torna uma coisa regular e corriqueira, ele tende a funcionar de acordo com princípios semelhantes: existem apenas certas coisas trocadas por outras (roupas por lanças, por exemplo), o que facilita a elaboração de equivalências tradicionais. No entanto, isso não nos ajuda em nada no problema da origem do dinheiro. Ao contrário, torna tudo ainda mais difícil. Por que estocar sal, ouro ou peixe se eles só podem ser trocados por certas coisas e não outras?

Na verdade, há boas razões para acreditarmos que o escambo não é um fenômeno particularmente antigo, mas que só se difundiu de fato nos tempos modernos. Na maioria dos casos que conhecemos ele acontece entre pessoas familiarizadas com o uso da moeda mas que, por uma ou por outra razão, não têm tanto dinheiro disponível. Sistemas de escambo mais elaborados em geral afloram como consequência do colapso de economias nacionais: mais recentemente, na década de 1990, na Rússia, e por volta de 2002, na Argentina, quando os rublos (no primeiro caso) e os dólares (no segundo) desapareceram [26]. Em determinadas ocasiões ainda é possível encontrar algum tipo de moeda começando a se desenvolver: por exemplo, nos acampamentos de prisioneiros de guerra e em muitas prisões é sabido que os reclusos usam cigarros como um tipo de moeda, para o deleite e a comoção dos economistas profissionais [27]. Mas aqui também estamos falando de pessoas que cresceram usando o dinheiro e agora precisam se virar sem ele – exatamente a situação “imaginada” nos manuais de economia com os quais eu comecei.

A solução mais frequente é adotar algum tipo de sistema de crédito. Parece ter sido isso que aconteceu quando a maior parte da Europa reverteu-se para o escambo depois do colapso do Império Romano e também depois que o Império Carolíngio desmoronou da mesma maneira. As pessoas continuaram mantendo suas contas no antigo dinheiro imperial, mesmo que não usassem mais moedas cunhadas [28]. De maneira semelhante, os pachtuns homens, que gostam de trocar bicicletas por jumentos, conhecem muito bem o uso do dinheiro. O dinheiro existiu naquela parte do mundo por milhares de anos. Eles simplesmente preferem a troca direta entre iguais – nesse caso, porque a consideram mais masculina [29].

O mais notável é que mesmo nos exemplos de Adam Smith sobre peixe, pregos e tabaco usados como dinheiro acontecia o mesmo tipo de coisa. Nos anos que se seguiram à publicação de A Riqueza das Nações, os pesquisadores averiguaram a maior parte dos exemplos e descobriram que, quase em todos os casos, as pessoas envolvidas no escambo eram bem familiarizadas com o uso do dinheiro e na verdade usavam o dinheiro – como unidade de contas [30]. Tomemos o exemplo do bacalhau seco, supostamente usado como moeda em Terra Nova. Como afirmou o diplomata inglês A. Mitchell Innes há quase um século, o que Adam Smith descreve na verdade era uma ilusão criada por um simples acordo de crédito:

Nos primeiros dias da indústria de pesca em Terra Nova, não havia uma população permanente europeia; os pescadores iam para lá apenas na temporada de pesca, e os que não eram pescadores eram comerciantes que compravam o peixe seco e vendiam para os pescadores seus suprimentos diários. Estes vendiam a pesca para os comerciantes conforme o preço de mercado em libras, xelins e pennies, e obtinham como retorno um crédito nas contas. com o qual pagavam por seus suprimentos. O saldo devedor por parte dos comerciantes era pago com títulos de crédito na Inglaterra ou na França [31].

Acontecia quase a mesma coisa no vilarejo escocês. Não é que as pessoas realmente entrassem em uma taberna local, jogassem um prego no balcão e pedissem um caneco de cerveja. Os empregadores, na época de Adam Smith, muitas vezes careciam de moedas para pagar aos trabalhadores; os salários podiam atrasar um ano ou mais; nesse ínterim, era considerado aceitável que os empregados levassem embora alguns produtos que fabricaram ou alguma sobra de material de trabalho, como madeira, tecidos, cordas, etc. Os pregos eram de fato interessantes por serem produto dos empregadores. Então eles iam às tabernas, abriam uma conta e, quando a ocasião permitia, levavam um saco de pregos para liquidar a dívida. O fato de a lei ter tornado o tabaco uma moeda corrente na Virgínia parece ter sido uma tentativa dos agricultores de obrigar os comerciantes locais a aceitar o produto como crédito na época de colheitas. Com efeito, a lei obrigou todos os comerciantes na Virgínia a se tornarem revendedores do negócio do tabaco, quisessem eles ou não; da mesma maneira, todos os comerciantes das Índias Ocidentais foram obrigados a negociar açúcar, uma vez que o açúcar era tudo o que os consumidores mais ricos produziam para liquidar suas dívidas.

Os exemplos básicos, portanto, são aqueles em que as pessoas improvisaram sistemas de crédito porque o dinheiro verdadeiro – moedas de ouro e prata – estava escasso. Mas o golpe mais surpreendente à versão convencional da história econômica surgiu com a tradução primeiro dos hieróglifos egípcios e depois da escrita cuneiforme mesopotâmica, que ampliou as fronteiras do conhecimento dos pesquisadores da história escrita em quase 3 mil anos, do tempo de Homero (cerca de 800 a.C.), mais ou menos, que era até onde ia o conhecimento na época de Adam Smith, para aproximadamente 3500 a.C. Esses textos revelaram que sistemas de crédito desse mesmo tipo na verdade precederam a invenção das moedas cunhadas em milhares de anos.

O sistema mesopotâmico é o mais bem documentado, mais do que o sistema do Egito faraônico (que parece semelhante), o da China da dinastia Shang (do qual pouco sabemos) ou o da civilização do Vale do Indo (sobre o qual não sabemos nada). Aliás, sabemos muita coisa sobre a Mesopotâmia porque a grande maioria dos documentos cuneiformes era de natureza financeira.

A economia suméria foi dominada por vastos complexos de templos e palácios. Esses complexos muitas vezes eram presididos por milhares de pessoas: sacerdotes e oficiais, artesãos que trabalhavam em oficinas, fazendeiros e pastores que comandavam suas propriedades. Ainda que a Suméria antiga fosse dividida em diversas cidades-estado independentes, o passado descortinado da Mesopotâmia até cerca de 3500 a.C. revelou que os administradores dos templos já pareciam ter desenvolvido um sistema único e uniforme de contabilidade – um sistema que, em alguns aspectos, continua conosco até hoje, na verdade porque devemos aos sumerianos algumas coisas como a contagem por dúzias, a hora de 60 minutos ou a divisão do dia em 24 horas. 32 A unidade monetária básica era o siclo de prata. O peso de um siclo de prata era estabelecido como o equivalente a um gur, ou bushel de cevada. O siclo era subdividido em sessenta minas, correspondendo a uma porção de cevada com base no princípio de que havia trinta dias em um mês, e os trabalhadores do templo recebiam duas rações de cevada por dia. É fácil perceber que o dinheiro, nesse sentido, não é de modo nenhum o produto de transações comerciais. Na verdade, ele foi criado por burocratas para rastrear os recursos e transferir itens entre departamentos.

Os burocratas do templo usavam o sistema para calcular as dívidas (aluguéis, impostos, empréstimos, etc,) em prata. Efetivamente, a prata era dinheiro. E ela de fato circulava na forma de pedaços não cunhados, barras brutas", como disse Adam Smith [33]. Nisso ele estava certo. Mas praticamente só essa parte do relato estava correta. Para começar, a prata não circulava muito. A maior parte dela ficava armazenada nos tesouros do templo e do palácio, e alguns desses tesouros continuaram guardados no mesmo lugar durante milhares de anos – literalmente. Seria muito fácil na época padronizar os lingotes, prensá-los, criar um sistema confiável para garantir sua pureza. Existiu tecnologia para isso. No entanto, ninguém sentiu a necessidade particular de fazê-lo. Uma das razões é que, apesar de as dívidas serem calculadas em prata, elas não precisavam ser pagas em prata – na verdade, elas podiam ser pagas mais ou menos com qualquer coisa de que se dispusesse. Os camponeses que deviam dinheiro ao templo ou ao palácio, ou para algum oficial do templo ou do palácio, parecem ter liquidado suas dívidas principalmente com cevada, e por isso era tão importante fixar a proporção da prata para a cevada. Mas era perfeitamente aceitável aparecer com cabras, mobília ou lápis-lazúli. Os templos e palácios eram operações industriais gigantescas – desse modo, podiam dar utilidade a praticamente qualquer coisa [34].

Nas praças de mercado que surgiram nas cidades da Mesopotâmia, os preços também eram calculados em prata, e o preço das mercadorias que não eram totalmente controladas pelos templos e palácios tendia a flutuar de acordo com a oferta e a procura. Mas, mesmo aqui, as evidências que temos sugerem que a maioria das transações era baseada no crédito. Os comerciantes (que às vezes trabalhavam para os templos, às vezes de forma independente) estavam entre os poucos que usavam com frequência a prata nas transações; mas até mesmo eles faziam a maior parte de suas transações à base do crédito, e as pessoas comuns que compravam cerveja das “cervejeiras” ou dos estalajadeiros locais também abriam uma conta que seria liquidada, na época da colheita, com cevada ou outra coisa que tivessem em mãos [35].

Nessa altura, praticamente todos os aspectos do relato convencional sobre as origens do dinheiro caem por terra. Pouquíssimas vezes uma teoria histórica foi refutada de maneira tão absoluta e sistemática. Nas primeiras décadas do século XX, já se conheciam todas as peças para que a história do dinheiro fosse inteiramente reescrita. A primeira peça foi movimentada por Mitchell lnnes – o mesmo que citei ao falar do bacalhau – em dois ensaios publicados no Banking Law Journal de Nova York, em 1913 e 1914. Neles, Mitchell lnnes expõe sem nenhum rodeio as falsas suposições nas quais se baseava a história da economia como a conhecíamos e sugere que precisamos na verdade de uma história da dívida:

Uma das falácias populares em relação ao comércio é que, nos tempos modernos, foi introduzido um recurso econômico chamado crédito e que, antes de esse recurso ser conhecido, todas as compras eram pagas em dinheiro vivo. em outras palavras, em moedas. Uma investigação cuidadosa mostra que justamente o inverso é verdadeiro. Antigamente, as moedas tinham um papel muito menor no comércio do que têm hoje. Na verdade, a quantidade de moedas disponível era tão pequena que nem sequer bastava para as necessidades da família real [inglesa medieval] e dos estamentos que regularmente usavam vários tipos de moeda simbólica com o propósito de realizar pequenos pagamentos. Com efeito, a cunhagem era tão insignificante que muitas vezes os reis não hesitavam em retirar todas de circulação para que fossem recunhadas e redistribuídas, e apesar disso o comércio continuava exatamente do mesmo jeito [36].

Na verdade, nosso relato-padrão da história monetária é definitivamente invertido. Nós não começamos com o escambo e depois passamos pela descoberta do dinheiro, até chegarmos ao desenvolvimento dos sistemas de crédito, mas sim o contrário. O que hoje chamamos de moeda virtual veio primeiro. A moeda de metal apareceu muito tempo depois, e seu uso se difundiu apenas de maneira desigual, sem jamais substituir por completo os sistemas de crédito. O escambo, por sua vez, parece ser principalmente um tipo de subproduto acidental do uso da cunhagem ou do dinheiro em papel: em termos históricos, o escambo tem sido principalmente o que as pessoas acostumadas com transações em dinheiro vivo fazem quando, por alguma razão, não têm acesso à moeda corrente.

O curioso é que isso nunca aconteceu: essa nova história nunca foi escrita. Não que os economistas tivessem refutado Mitchell lnnes. Eles simplesmente o ignoraram. Os manuais não mudaram seus relatos – mesmo que todas as evidências deixassem claro que eles estavam errados. As pessoas continuam escrevendo histórias do dinheiro que na verdade são histórias da cunhagem, partindo do pressuposto de que, no passado, as duas coisas eram uma só; os períodos em que a cunhagem desapareceu em grande escala ainda são descritos como épocas em que a economia retornou para o escambo", como se o sentido dessa frase fosse evidente, ainda que ninguém saiba realmente o que significa. De modo que não temos praticamente nenhuma ideia de como os habitantes de uma cidade holandesa em 950 d.C., por exemplo, conseguiam queijo, colheres ou músicos para tocar no casamento de suas filhas – menos ainda como isso se dava em Pemba ou em Samarcanda [37].



Notas:



Capítulo 1

[1] – Com os resultados previsíveis de que na verdade não foram construídas para facilitar a locomoção e a circulação do povo no país, mas principalmente para que os produtos obtidos nas plantações chegassem aos portos, movimentando o câmbio exterior para pagar a construção de estradas rodoviárias e linhas férreas.

[2] – Os Estados Unidos, por exemplo, só reconheceram a República do Haiti em 1860. A França manteve-se obstinadamente presa a sua reivindicação e a República do Haiti foi forçada a pagar o equivalente a 21 bilhões de dólares entre 1925 e 1946 – durante a maior parte desse período o país esteve sob ocupação militar dos Estados Unidos.

[3] – HALLAM, Henry. The Constitutional History of England, pp. 269-70. Como o governo não achava apropriado pagar pela manutenção dos improvidentes, os prisoneiros deviam arcar com todos os custos da própria prisão. Se não podiam fazê-lo, simplesmente morriam de fome.

[4] – Se considerarmos as responsabilidades tributárias como dívidas, trata-se da maioria esmagadora – e, no mínimo, as duas estão intimamente relacionadas, uma vez que, no curso da história, a necessidade de juntar dinheiro para pagar impostos sempre foi o maior motivo da contração de dívidas.

[5] – FINLEY, Moses. Slavery in Classical Antiquity, p. 63; The Ancient Greeks, p. 24; The Ancient Economy, p. 80; Economy and Society in Ancient Greece, p. 106; Politics in the Ancient World, p. 108. E esses são apenas os que consegui identificar. O que ele diz sobre Grécia e Roma parece ser igualmente verdadeiro para a China, o Japão ou a Índia.

[6] – GALEY, Jean-Claude. “Creditors, Kings and Death”, 1983.

[7] – Jacques de Vitry citado em LE GOFF, Jacques. Your Money or Your Life, p. 64.

[8] – KYÕKAI, Record of Miraculous Events in Japan (c. 822), citado em LA FLEUR, William R.The Karma of Words, p. 36. Também NAKAMURA, Kyoko Motomochi. Miraculus Stories from the Japanese Buddhist Tradition, pp. 257-9.

[9] – KYÕKAI citado em LA FLEUR, op. cit., p. 36.

[10] – Idem, p. 37.

[11] – Jan Hoffman, “Shipping Out of the Economic Crisis”, sobre a única indústria de navegação especializada em desmontagem de navios de carga e venda do material para ferros-velhos que se expandiu depois de 2008.

[12] – Simon Johnson, diretor econômico do FMI na época, resumiu essa questão em um artigo publicado na The Atlantic: “Quase todas as agências reguladoras, legisladores e acadêmicos assumiram que os gerentes desses bancos sabiam o que estavam fazendo. Em retrospecto, eles não sabiam. A divisão de produtos financeiros do American International Group (AIG), por exemplo, obteve 2,5 bilhões de dólares de lucro bruto em 2005, basicamente revendendo seguros subvalorizados sobre títulos complexos e não muito bem compreendidos. Geralmente descrita como ‘caça niqueis na frente de um rolo compressor’, essa estratégia é lucrativa nos anos comuns e catastrófica nos anos ruins. Quanto à última queda, o AIG teve seguros não pagos sobre mais de 400 bilhões de dólares em títulos. Até esta data, o governo dos Estados Unidos, no esforço de resgatar a empresa, aplicou cerca de 180 bilhões de dólares em investimentos e empréstimos para cobrir as perdas que a sofisticada modelagem de risco do AIG disse que seriam praticamente impossíveis” (JOHNSON, Simon. “The Quite Coup”, 2009). Johnson, é claro, ignora a possibilidade de que o AIG soubesse perfeitamente bem o que poderia acontecer, mas simplesmente não se importou, uma vez que sabia que o rolo compressor achataria outra coisa qualquer. 

[13] – Em contrapartida, a Inglaterra já teve uma bancarrota em 1571. A tentativa de criar uma lei federal de falência nos Estados Unidos em 1800 fracassou; uma lei entrou em vigor brevemente entre 1867 e 1878, destinada a avaliar os veteranos endividados da Guerra Civil, mas foi abolida por fundamentos morais (ver: MANN, Bruce H. Republic of Debtors, 2002, para um bom relato recente). Há mais probabilidade de que a reforma da falência nos Estados Unidos torne os termos mais rigorosos do que o contrário, como aconteceu com as reformas de 2005 de acordo com as exigências da indústria, aprovadas pelo Congresso pouco antes do colapso do crédito.

[14] – O fundo de amparo hipotecário estabelecido depois do resgate financeiro, por exemplo, forneceu ajuda apenas para uma porcentagem minúscula de requerentes, e não houve nenhum movimento para a liberalização das leis de falência que de fato tenha se tornado mais rigoroso, sob pressão da indústria financeira em 2005, apenas dois anos antes do colapso.

[15] – SERRES, Cris; HOWATT, Glenin. “In Jail foi Being in Debt”, 2010. Ver “In for Penny: The Rise of America's New Debtor's Prisions”, America Civil Liberties Union, outubro de 2010, www.aclu.org/files/assts/InForAPenny_web.pdf.

[16] – JAMENSON, Angela; JUDGE, Elizabeth. “IMF Warns Second Bailout Would ‘Threaten Democracy’”, 2009.


Capítulo 2

[1] –  CASE, Karl. et alii. Economics, p. 564. Grifos do original.

[2] – Idem, ibidem.

[3] – BEGG, David; FISCHER, Stanley; DORNBUSCH, Rudiger. Economics, p. 364. Também MAUDER, Peter et alii. Economics Explained, p. 310. Ainda: PARKIN, Michael; KING, David. Economics, p. 65.

[4] – STIGLITZ, Joseph; DRIFFILL, John. Economics, p. 521. Mais uma vez, grifos do original.

[5] – Aristóteles, Política, liv. I, 1.257.

[6] – Tampouco está claro se estamos falando de escambo nesse caso. Aristóteles usa o termo métadosis, cuja tradução atualmente costuma ser “partilhar” ou “distribuir”. Desde Smith, a palavra vem recebendo a tradução de “escambo”, mas, como logo destacou Karl Polanyi (“Aristotle Discovers the Economy”, p. 93), trata-se provavelmente de um emprego impreciso, a não ser que Aristóteles estivesse introduzindo um significado totalmente novo para o termo. Teóricos que estudam a origem do dinheiro grego, de Bernard Laum (Heiliges Geld, 1924) a Richard Seaford (Money and Early Greek Mind, 2004), destacaram que os consumidores de produtos aquinhoados (por exemplo, saques de guerra, carne de sacrifício) provavelmente tiveram um papel importante no desenvolvimento da moeda grega. (Para uma crítica à tradição aristotélica, que supõe que Aristóteles esteja falando de escambo, ver FAYAZMANESH, Sasan. Money and Exchange, 2006).

[9] – Idem. Lectures on Jurisprudence, p. 56: “Se pudéssemos investigar o princípio da mente humana na qual se encontra essa tendência para a troca, veríamos que é claramente a inclinação natural que se tem de persuadir. Oferecer a alguém um xelim, algo que para nós parece ter um significado tão simples e claro, é na realidade oferecer um argumento para persuadir alguém a fazer desta ou daquela maneira como se o fizesse em interesse próprio”. É fascinante perceber que a suposição de que a noção de troca seja a base de nossas funções mentais, e que ela se manifesta tanto na linguagem (como troca de palavras) quanto na economia (como troca de bens materiais), remonta a Smith. A maioria dos antropólogos atribui essa noção a Claude Lévi-Strauss (Structural Antropology, p. 296).

[10] – A referência a pastores indica que ele pode estar se referindo a outra parte do mundo; no entanto, seus exemplos em outros lugares, como o da troca de veado por castor, deixa claro que ele está pensando nos bosques do nordeste da América do Norte.

[11] – SMITH, Adam. A riqueza das nações, liv. I, 4-2. [Ed. bras.: A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1996].

[12] – Idem, 4-3.

[13] – Idem, 4-7.

[14] – A ideia de uma sequência histórica que parte do escambo, passa pelo dinheiro e chega ao crédito parece ter surgido pela primeira vez nas conferências de um banqueiro italiano chamado Bernardo Davanzati (1529-1606). Cf. WASWO, Richard. “Shakespeare and the Formation of the Modern Economy”, 1996. Ela foi desenvolvida como teoria distinta às de historiadores econômicos alemães – Bruno Hidelbrand (“Natural-, Geld- und Creditwirstschaft”, 1864) postulou um estágio pré-histórico de escambo, e então, depois de um ou outro retorno ao escambo na Idade Média, um estágio moderno da economia de crédito. Essa teoria toma forma canônica na obra de um aluno seu, Karl Bücher (Industrial Evolution, 1907). A sequência se tornou senso comum universalmente aceito e reaparece em Marx, de maneira tácita, e em Simmel, de maneira explícita – muito embora quase toda a pesquisa histórica subsequente a tenha demonstrado errada.

[15] – No entanto, tiveram impacto sobre muitas outras. O trabalho de Lewis Henry Morgan em particular (League of the Ho-de-no-sau-nee or Iroquois, 1851; Ancient Society, 1877; Houses and House-Life of the American Aborigines, 1881, republicado em 1965), que dava destaque tanto aos direitos de propriedade coletiva como à extraordinária importância das mulheres, com conselhos femininos que cuidavam sobretudo da vida econômica, impressionou tanto alguns pensadores radicais – inclusive Marx e Engels – que se tornou a base de um tipo de contramito, do comunismo primitivo e do matriarcado primitivo.

[16] – Pode-se dizer que o artigo de Anne Chapman (“Barter as a Universal Mode of Exchange”, 1980) vai além, notando que se o puro escambo for definido como ligado apenas a objetos de troca, e não ao reajuste das relações entre as pessoas, não há evidências claras de que ele existiu. Ver também: HEADY, Patrick. “Barter”, 2005, além do texto mencionado: HUMPHREY, Caroline. “Barter and Economic Disintegration”, p. 48.

[17] – LÉVI-STRAUSS, Claude. “Guerre et commerce chez les Indiens d'Amérique du Sud”, 1943; q tradução é de SERVET, Jean-Michel. “Primitive Order and Archaic Trade. Part II”, p. 33.

[18] – Pode-se imaginar que a tentação pela variação sexual deve ser bem forte para honens e mulheres jovens acostumados a passar a maior parte do tempo, talvez, com uma dezena de pessoas da mesma idade.

[19] – BERNDT, Roland. “Ceremonial Exchange in Werstern Arnhem Land”, p. 161. Cf. GUDEMAN, Stephen. The Anthropology of Economy. pp. 124-5, que faz uma análise bem semelhante à minha.

[20] – BERNDT, Roland, op. cit., p. 162.

[21] – No entanto, como veremos adiante, não é exatamente como se os acordos comerciais internacionais jamais envolvessem música, dança, comida, drogas, prostitutas de alto nível ou a possibilidade de violência. Para um exemplo fortuito dos dois últimos elementos, ver: PERKINS, John. Confessions of an Economic Hit Man, 2005.

[22] – LINDHOLM, Charles. Generosity and Jealousy, p. 116.

[23] – Ver: Jean-Michel Servert (“Le troc primitif”, pp. 20-1), em que há uma compilação enorme desses termos.

[24] – O argumento é tão óbvio que surpreende não ter sido citado com mais frequência. O único economista clássico que penso ter considerado a possibilidade de que pagamentos adiados fariam do escambo algo desnecessário é Ralph Hawtrey (Currency and Credit, p. 2), citado em Paul Einzig (op. cit., p. 375). Todos os outros simplesmente pressupõem, sem motivo nenhum, que todas as trocas, mesmo entre vizinhos, seriam necessariamente o que os economistas gostam de chamar de “trocas imediatas”.

[25] – BOHANNAN, Paul. “Some Principles of Exchange and Investment among the Tiv”, 1955; BARTH, Frederick. “Economic Spheres in Darfur”, 1969. Cf. MUNN, Nancy. The Fame of Gawa, 1986. Também: AKIN, David; ROBBINS, Joel. “An Introduction to Melanesian Currencies”, 1998. Um bm resumo do conceito pode ser encontrado em GREGORY, Christopher A. Gifts and Commodities, pp. 48-9. Gregory cita o exemplo de um sistema das Terras Altas da Papua-Nova Guiné com seis categorias de valores: porcos e casuares vivos estão no topo da classificação, “pingentes de conchas, costelas de porco, machados de pedra, toucados de penas de casuar e tirar de búzios para a cabeça”, em segundo lugar, e assim por diante. Os itens de consumo geralmente são limitados às duas últimas categorias, que consistem em alimentos requintados e vegetais básicos, respectivamente.

[26] – Ver: SERVET, Jean-Michel. “Démonétarisation et remonétarisation en Afrique-Occidentale et Équatoriale”, 1998; HUMPHREY, Caroline. “Berter and Economic Disintegration”, 1985.

[27] – O ensaio clássico sobre esse assunto é Radford, R. A. “The Economic Organization of a POW Camp”, 1945.

[28] – Nos anos 1600, pelo menos, as antigas denominações carolíngias eram chamadas de “dinheiro imaginário” – todos continuavam usando libras, xelins e pennies (ou livres sous e deniers) durante oitocentos anos, apesar do fato de, na maior parte desse período, as moedas reais serem totalmente diferentes ou simplesmente não existirem (EINAUDI, Luigi. “The Theory of Imaginary Money”, 1956).

[29] – Para outros exemplos do escambo coexistindo com o dinheiro: ORLOVE, Benjamin “Barter and Cash Sale on Lake Titicaca”, 1986; BARNES, Robert; BARNES, Ruth. “Barter and Money in an Indonesian Villagy Economy”, 1989.

[30] – Uma das desvantagens, para um autor, ao ver seu livro se tornar um clássico, é que muitas vezes as pessoas vão averiguar a veracidade dos exemplos utilizados. (Uma das vantagens é que, mesmo que descubram que você está errado, as pessoas continuarão citando seu texto como autoridade).

[31] – INNES, A. Mitchell. “What Is Money?”, p. 378. E prossegue: “Uma breve reflexão mostra que uma mercadoria básica não poderia ser usada como dinheiro porque, ex hypothesi, o meio de troca é igualmente recebível por todos os membros da comunidade. Assim, se os pescadores pagam por seus suprimentos em bacalhau, os comerciantes terão igualmente de pagar com bachalhau o bacalhau que adquirem, um absurdo evidente”.

[32] – Os templos parecem ter surgido primeiro os palácios, que se tornaram cada vez mais importantes com o passar do tempo, herdaram o sistema de administração dos templos.

[33] – Smith não sonhou com elas: o termo técnico na época para se referir a esses lingotes era “hacksilver” [prata cortada grosseiramente] (ver: BENJAMIN, Miriam S. Hacksilber to Coinage, 2001).

[34] – Para estabelecer um paralelo com o Egito, compare com GRIERSON, Phillip. The Origins of Money, p. 17.

[35] – Ver: HUDSON, Michael. “Reconstructuring the Origin of Interest-Bearing Debet”, p. 25; Idem. “Archeology of Money”, p. 114.

[36] – INNES, A. Mitchell. “What is Money?”, p. 381.

[37] – O monumental Money and Its Use in Medieval Europe, de Peter Spufford, que dedica centenas de páginas à exploração de ouro e prata, cunhagem de moedas e adulteração do processo de cunhagem, menciona apenas duas ou três vezes os vários tipos de moedas feitas de chumbo ou couro, ou acordos de crédito menores, pelos quais as pessoas comuns parecem ter conduzido a maioria de suas transações diárias. Sobre estas, ele diz que “podemos conhecer quase nada” (p. 336). Um exemplo ainda mais dramático é a talha, sobre a qual ainda vamos ouvir muoto; o uso de talhas em vez de dinheiro vivo era difundido na Idade Média, mas não houve nenhuma pesquisa sistemática sobre esse assunto, sobretudo fora da Inglaterra.