1. Tornar-se necessário, devir libertário:
Spinoza distingue duas qualidades de causa: adequada e inadequada (ou parcial). A primeira é “aquela cujo o efeito pode ser percebido clara e distintamente por ela mesma” (Ética, Parte 3, def. 1) e a segunda é “aquela cujo o efeito não pode ser compreendido por ela só” (idem). A causa adequada contem em si as premissas das consequências e a inadequada contém apenas uma parte das premissas das consequências.
Dadas essas definições, vejamos como prossegue Spinoza: “Digo que agimos quando, em nós ou fora de nós, sucede algo de qual somos a causa adequada” (Ética, Parte 3, def. 2), ou seja, “quando de nossa natureza se segue, em nós ou fora de nós, algo que pode ser compreendido clara e distintamente por ela só” (idem). “Digo, ao contrário, que padecemos quando, em nós, sucede algo, ou quando de nossa natureza se segue algo de que não somos causa senão parcial” (idem).
Usando uma terminologia exógena, mas de acordo com o pensamento de Spinoza, podemos afirmar que: na interação universal das séries de causalidade, cada modo de existência se relaciona com os demais no duplo aspecto da determinação: como determinante e como determinado. Tanto nos corpos quanto nas mentes, nós sempre seremos uma determinada distribuição da relação entre ser determinante e ser determinado (simultaneamente e desigualmente).
Tanto mais certos efeitos dependerem da ação determinante que tem nossa existência como causa, tanto mais somos causa adequada destas realizações (e inversamente: quanto menos somos causas dos efeitos, tanto menos nossa participação na realização de uma consequência é adequada). Da mesma forma, se dependermos mais de causas exteriores para agir, ou seja, quanto mais determinados por forças exteriores nós formos, menor será nossa participação como poder causal de algo (uma vez que seremos mais causados do que causadores). Em outras palavras: a auto-determinação das ações e a necessidade da nossa existência como premissa das consequências são os critérios que definem o grau de liberdade de um modo de existência.
Será mais livre aquele modo de existência que conseguir tornar-se a causa adequada de uma realidade determinada. Produzir a realidade em que se existe é o fator de nossa liberdade. Repetir em ato a auto-produção da matéria, uma vez que somos seres materiais, é como ser causa sui da existência.
A servidão consiste em ser determinado a agir pelas próprias paixões e a libertação (sempre parcial e de acordo com o grau de capacidade em auto-determinar a existência) é tornar-se necessário, isto é, fazer da necessidade de sua natureza (singular) uma necessidade da própria Natureza (universal). Isso tanto mais será possível, do ponto de vista do grau e potência, quanto maior for a força associativa da comunidade de seres que participam de uma vida comum em busca da auto-determinação da própria existência coletiva.
A conquista de liberdade depende da cooperação de outros modos de existência no aumento da potência coletiva que implica necessariamente no aumento da potência de cada um dessa associação.
2. Da servidão civil para uma sociedade comum baseada no direito natural:
Para nosso filósofo holandês, a passagem de um direito natural para um estado civil não era algo racional, pois, diz ele, “se os homens vivessem sob a condução da razão, cada um desfrutaria desse seu direito sem qualquer prejuízo para os outros” (Ética, IV parte, prop. 37, esc. 2). Mas, pra alcançar tal estado em que se poderia viver conforme o “direito supremo da natureza” (isto é: sem um “estado civil”), era necessário o desenvolvimento individual (pelos afetos de firmeza) e coletivo (pelos afetos que derivam da “ajuda mútua”, expressão que o próprio Spinoza utiliza em: Ética, IV parte, prop. 35, esc. e esc. 2 da prop. 37 da mesma parte).
Conforme seu Tratado Político: “Se dois se põem de acordo e juntam forças, juntos podem mais, e consequentemente têm mais direito sobre a natureza do que cada um deles sozinho; e quantos mais assim estreitarem relações, mais direito terão todos juntos”. Esta afirmação entra em ressonância com outra passagem de sua Ética: “Com efeito, se, por exemplo, dois indivíduos de natureza inteiramente igual se juntam, eles compõem um indivíduo duas vezes mais potente do que cada um deles considerado separadamente” (Ética, IV parte, prop. 18, esc.). A igualdade de natureza, neste trecho, deve ser entendida como se entende as distinções entre as espécies, portanto dois modos de existências humanos são ditos iguais neste sentido. Spinoza considerava que os seres humanos eram os mais úteis para os seres humanos.
Na medida em que existem esforços de pessoas em busca de se tornarem causa adequada das consequências de suas ações, elas tendem a conduzir os demais no mesmo sentido, pois: “Todo aquele que busca a virtude desejará, também para os outros homens, um bem que apetece para si próprio” (Ética, IV parte, prop. 37).
A despeito da diferença entre Spinoza e Hobbes, diz o primeiro: “Quanto à diferença entre mim e Hobbes, acerca da qual me interroga, ela consiste em que eu mantenho sempre intacto o direito natural e sustento que, em qualquer urbe, não compete ao supremo magistrado mais direito sobre os súditos senão na medida em que ele supera em poder o súbdito, coisa que tem sempre lugar no estado natural” (SPINOZA, 2009, p. XVII). Ou seja, se o Estado ainda domina nossas relações, é porque, conforme o direito natural spinoziano (jus sive potentia), a potência da multidão é menor do que a potência do Soberano. Do contrário, se as pessoas se ajudam umas às outras a saírem da impotência, elas eliminam a necessidade do Estado (embora isso não signifique abolir o Estado).
De todo o modo, ainda segundo o jus sive potentia, seria necessário uma potência superior ao do Estado para destruí-lo. Historicamente tivemos exemplos de contrapoderes que conseguiram realizar tal virtude (alguns exemplos: a Comuna de Paris de 1871, de modo parcial, em 71 dias; o Território Livre da Ucrânia em 1918-1921; Revolução na Manchúria, com a constituição da Comuna de Shimin, em 1929-1932). No entanto, seria necessário trazer essas contribuições de Spinoza para um debate sobre as classes sociais (além de outras questões sociais que estão, evidentemente, suprimidas aqui, pois nossa intenção é trazer as contribuições específicas do autor supracitado), o que está (por enquanto) fora de nosso alcance.
Referências:
ESPINOSA, Baruch. Tratado Político. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
SPINOZA, Baruch. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
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