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| Patch sobre o caráter cancerígeno do capitalismo |
Resumo: Esse texto é uma síntese do desenvolvimento teórico da crítica da economia política acerca da crise estrutural do capital. Consideramos que a Wertkritik tem avanços significativos nesse campo, apesar dos limites programáticos. Não vamos discutir diretamente os pressupostos teóricos dos “críticos críticos” do valor, apenas indicar a distinção de nossa perspectiva ao longo do texto.
Introdução metodológica:
A teoria revolucionária se desenvolve a partir da experiência histórica da luta de classes através da: 1) apropriação e desenvolvimento dos aprendizados das lutas (aspecto programático); e 2) compreensão das transformações sociais entre modos de produção e no próprio modo de produção (aspecto categorial). O fator preponderante é o programa, pois a crítica categorial só aparece como problema a partir da determinação da classe cujas tarefas revolucionárias exigem a transformação estrutural da sociedade.
“A Crítica crítica vislumbra por tudo apenas categorias” (Marx & Engels, 2011, p. 54), como manifestações fetichistas de “trabalho”, “valor”, “mercadoria”, “capital”, etc. Deste modo, é obrigada a dividir o método em duas partes, exotérico e esotérico, onde o segundo se proclama incondicionado pela sociedade e capaz de criar um “movimento emancipatório” como obra da crítica categorial. Porém, “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” (Marx, 2008, p. 47). Essa determinação não impede a compreensão da realidade social, pelo contrário, é justamente a partir do caráter irreconciliável dos conflitos que é possível adquirir a consciência necessária para levá-los até o paroxismo. Não se trata do que esse ou aquele grupo de pessoas pode imaginar que sejam seus objetivos, mas do que são e estão obrigados a fazer de acordo com o seu ser social.
Por isso a apropriação programática do legado da consciência prática, isto é, das lutas dos explorados na história, é o ponto de partida da crítica e deve estar acompanhada de uma caracterização das situações históricas, ou seja, das condições nas quais ocorre a intervenção militante. Com relação à esse segundo aspecto, a teoria da crise cumpre um papel fundamental no programa e a Wertkritik deve ser reconhecida pela sistematização dos seus fundamentos.
Mas para desfazer confusões, consideramos necessário explicar o seguinte: a objetivação de categorias sob as quais se assentam formas de relações sociais (como trabalho, capital, Estado, etc.) derivam e também condicionam a luta de classes historicamente. Não é a “humanidade” que faz história, mas seres humanos concretos que ocupam diferentes posições no processo social de produção. A história não é feita de livre e espontânea vontade, as circunstâncias sob as quais ela é feita não são escolhidas (Marx, 2011, p. 25). As pessoas se defrontam com a reprodução social tal como encontram como um poder estranho que surge das consequências das ações das gerações anteriores.
Mesmo que as condições não sejam escolhidas, não são as categorias da reprodução social que fazem a história e nem tampouco a “História” é um “movimento autonomizado”. Neste caso, é preciso rejeitar toda forma de teleologia progressista da história que concebe o ser humano como instrumento do “desenvolvimento do espírito” ou do “desenvolvimento das forças produtivas”. O choque entre relações sociais de produção e forças produtivas não deve ser interpretado mecanicamente como um “obstáculo ao desenvolvimento tecnológico” (pensado como “progresso trans-histórico” da humanidade). O “entrave” nada mais é do que uma tendência a tornar obsoleto o modo de apropriação sob a qual se assenta certa forma social de produção baseada no acúmulo. Qualquer interpretação que utilize essa particularidade histórica para reduzir a transição entre modos de produção a um “desenvolvimentismo/progressismo” não passa de uma projeção ideológica dessa mesma particularidade.
“A História não faz nada, ‘não possui nenhuma riqueza imensa’, ‘não luta nenhum tipo de luta’! Quem faz tudo isso, quem possui e luta é, muito antes, o homem, o homem real, que vive; não é, por certo, a ‘História’, que utiliza o homem como meio para alcançar seus fins – como se tratasse de uma pessoa à parte –, pois a História não é senão a atividade do homem que persegue seus objetivos” (Marx & Engels, 2011, p. 111).
Assim, ao perseguir seus objetivos e interesses particulares, grupos determinados de seres humanos esbarram nas próprias contradições da vida social. As transformações estruturais se impõem como necessárias quando as incompatibilidades e compatibilidades de desejos, interesses, sonhos, etc., desses grupos excedem os limites das determinações gerais da sociedade.
Podemos demonstrar isso se considerarmos a transição do feudalismo para o capitalismo, onde temos uma situação em que: 1) a classe dominante senhorial foi obrigada a centralizar poder político na forma absolutista diante das revoltas camponesas e das tensões entre os estados (Anderson, 1995); 2) isso reorganizou os exércitos (criação do sistema dos “soldos”, uma das primeiras formas de salário moderna) e as relações inter-militares num sistema de estados na Europa (Teschke, 2003); 3) que essa alienação do poder senhorial local pelo poder absoluto monárquico torna a exploração extra-econômica direta inviável em certos casos, sendo necessário uma exploração propriamente econômica, o que acabou gerando os melhoramentos ingleses nas propriedades agrárias, desenvolvendo a tríade proprietário-arrendatário-trabalhador no campo (Wood, 2001).
Portanto, não é a síntese fetichista religiosa-agrária que está “fazendo a história”, mas sim o antagonismo de classe e as consequências impremeditadas das estratégias empregadas para a realização de objetivos particulares dessas classes. Inclusive, o que o poder senhorial conjurou para se proteger dos camponeses acaba por se transformar no próprio algoz desse poder ao abrir caminho para o desenvolvimento da burguesia que culmina nas “revoluções” políticas da mesma. O mesmo ato que coroou reis fez suas cabeças rolarem.
Neste caso, são as mudanças históricas nas relações de classe que vão criando uma “independência pessoal numa estrutura sistêmica de dependência coisal” (Postone, 2014, p. 149), pois foram grupos humanos concretos que agiram de tal forma que transformou a dominação senhorial baseada na dependência pessoal na dominação burguesa baseada em “uma subjugação das pessoas que se efetiva por meio do direito às coisas” (Sahlins, 1983, p. 109, tradução própria).
Em suma, todo modo de produção é histórico, no duplo sentido de que: 1) sua existência e reprodução social possui determinações categoriais próprias; 2) sua gênese e transformação estão associadas com as lutas concretas dos seres humanos.
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Com base nessas considerações iniciais, reconhecemos a centralidade da luta de classes como força motriz histórica das sociedades de classe. Porém, a análise que se segue busca aprofundar a crítica categorial, uma vez que a tarefa de desenvolvimento teórico da intervenção exige uma crítica da ideologia do “capitalismo eterno”, isto é, da noção segunda a qual a reprodução social deste modo de produção poderia continuar indefinidamente, como se não houvessem limites históricos dentro do seu próprio desenvolvimento. Nosso método apreende a processualidade histórica, portanto a coesão funcional ou coerência lógico-categorial da sociedade é apenas uma síntese parcial da reprodução social.
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1. Contradição em processo e limite interno absoluto:
No capitalismo, a forma social de riqueza que lhe é específica é o valor, uma medida de quantidades abstratas de tempo de trabalho. O capitalismo é um modo de produção baseado na valorização do valor, sua existência depende do acúmulo de tempo de trabalho objetivado. Portanto, o capital precisa sempre acrescentar mais valor ao valor criado. O movimento do capital é “o impulso ilimitado e desmedido de transpor seus próprios limites” (Marx, 2011, p. 264), pois a cada valorização o momento superado agora aparece como pressuposto, como novo limite a ser superado. Porém, apenas aparentemente esse movimento seria “ilimitado”. Na verdade, seu limite é a própria necessidade inexorável de se superar, uma vez que a cada novo ponto de partida aumenta o obstáculo que o capital se coloca para transpor.
A crise estrutural do capitalismo é o desenvolvimento imanente da “contradição em processo” que define o capital, isto é, a tendência para reduzir o tempo de trabalho socialmente necessário da produção ao mínimo e, ao mesmo tempo, conservar a medida da riqueza na forma do tempo de trabalho (Marx, 2011, pp. 588-589). Portanto, existe um limite interno absoluto do capital que é o próprio capital, isto é, quando seu movimento é bloqueado por si mesmo, tornando o valor obsoleto para si mesmo.
Daqui se deduz a decomposição histórica do modo de produção, a partir de sua própria reprodução. Isso não significa, entretanto, que se trata de uma predestinação ou de uma teleologia histórica. Essa é uma dedução lógico-categorial que acompanha o desenvolvimento do modo de produção a partir da base econômica da dominação capitalista (que é a acumulação de capital sob a ditadura do valor).
Apesar de haver crise estrutural (que demonstraremos a seguir), não significa que o capital vá colapsar automaticamente. Na verdade, ele vai deslocar seu limite pela capitalização (financeira e monetária) até onde conseguir simular acumulação com capital fictício. Mas essa transformação que muitos chamam de “financeirização” não é uma solução para a crise, mas sim uma administração da crise e conservação do poder de classe capitalista às custas da exploração, extermínio e destruição do planeta.
2. A crise estrutural:
A crise estrutural da “contradição em processo” ocorre pelo próprio movimento dos capitais que concorrem pela maximização da mais-valia. Através de inovações tecnológicas, os capitais inovadores adquirem vantagens temporárias de produtividade com base no aumento da eficiência no processo produtivo. Porém, a concorrência nivela as massas de lucro assim que se disseminam as inovações para a produção global, se tornando o novo padrão de produtividade médio. A questão que se coloca é a seguinte: em um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas, esses aumentos conduzem necessariamente à regressão absoluta da massa de mais-valia produzida socialmente.
Se a fonte da mais-valia é o trabalho produtivo e a produtividade busca aumentar a proporção do mais-trabalho diminuindo o trabalho necessário, então existe um limite na mais-valia relativa. Conforme Marx: “o trabalho excedente não aumenta na mesma proporção numérica que a força produtiva. Se a proporção inicial é 1/2 e a força produtiva duplica, o tempo de trabalho necessário (para o trabalhador) se reduz a 1/4 e o valor excedente só aumenta 1/4” (Marx, 2011, pp. 266-267). Neste caso, quanto menor o trabalho necessário antes do aumento da produtividade, menor o aumento conseguido na parcela do mais-trabalho.
Podemos ilustrar isso com um caso extremo:
“Se, por exemplo, o trabalho necessário já representar somente 2/100 da jornada de trabalho (e o mais-trabalho representar, portanto, 98/100), então uma duplicação da força produtiva do trabalho – nos setores que produzem bens de subsistência – implicará que a proporção do trabalho necessário diminua para 1/100 da jornada de trabalho, enquanto a proporção do mais trabalho aumentará para 99/100 de jornada de trabalho; ou seja, o mais-trabalho aumentará somente 1% apesar de a força produtiva do trabalho ter aumentado 100%!” (Machado, 2019, p. 173).
Logicamente, portanto, cada vez mais incrementos colossais de forças produtivas são necessários para aumentos homeopáticos de mais-trabalho explorado.
Segundo a tese da Wertkritik, a racionalização da produção pela microeletrônica atinge o limite interno absoluto da produção da massa de mais-valia social. Nessas condições, o aumento da produtividade não é capaz de aumentar a parcela do mais-trabalho. E quando a taxa de exploração atinge um patamar quasi-estacionário devido a essa racionalização da produção, a massa de mais-valia produzida somente poderia crescer se o número de trabalhadores produtivos ocupados aumentar em termos absolutos. Porém, é precisamente o contrário que acontece devido ao processo de automação: a expulsão do trabalho vivo do processo imediato da produção é maior do que a capacidade do capitalismo em reabsorver esse excedente de trabalhadores produtivamente. Consequentemente, além do desemprego estrutural que resulta da diminuição progressiva dos postos de trabalho pela racionalização microeletrônica, esse excesso de força de trabalho passa a engrossar o trabalho improdutivo empregado pelos capitais improdutivos (que não produzem mais-valia, mas a consomem).
Essa situação ocorre precisamente nas condições de uma economia mundialmente integrada, de modo que a mais-valia de capitais com menor composição orgânica (seja intersetorial, seja intrassetorial) é transferida para os com maior composição orgânica (isto é, para os que menos contribuem com o aumento da massa de mais-valia social).
Portanto, em todos os níveis o capital encontra entraves para se autovalorizar. Em outras palavras: a autovalorização do capital se torna um obstáculo para si mesma. A expulsão massiva e absoluta de força de trabalho do capital produtivo é o mesmo que uma superprodução absoluta do capital, isto é, “o capital acrescido C + ∆C não produziria lucro maior (…) do que o capital C antes de receber o acréscimo ∆C” (Marx, 1986, p. 190). Ou seja: o capital variável diminuto deixa de se tornar rentável na composição orgânica.
Como consequência dessa superacumulação de capital, surgem os mecanismos de ficcionalização da riqueza e a transferência dos custos da crise para o proletariado através de diversos mecanismos: conflito distributivo da inflação, cortes nos custos da reprodução social que afetam a previdência, a saúde e qualificação da força de trabalho pelo ensino formal, etc. Além disso, a espoliação fundiária de territórios também se torna uma necessidade cada vez mais imperativa. Por fim, o entrave na acumulação condiciona a colisão dos capitais que disputam pela partilha do mundo, cujo ponto culminante é a guerra imperialista.
3. A crise estrutural através das categorias do modo de produção:
A crise estrutural do capitalismo se expressa também como uma crise categorial de sua reprodução social. Essa crise se caracteriza por um conjunto de fatores relacionados entre si (Botelho, 2018):
Crise do trabalho: conforme vimos na seção anterior, a racionalização da produção com a microeletrônica produz um desemprego estrutural, uma vez que elimina mais empregos do que é possível recompor no capital produtivo. Isso também gera uma transferência irreversível de assalariados dos setores produtores de valor (trabalho produtivo) para setores economicamente improdutivos, como o comércio e as finanças (terciarização). Se nos momentos das expansões extensivas e intensivas do capital a acumulação era possível devido à composição orgânica ainda manter crescente a massa de lucro às custas da diminuição da taxa, com a diminuição absoluta do capital variável diminui a massa de mais-valia socialmente produzida, diminuindo a massa de lucro real progressivamente. Instaura-se uma situação onde o excesso de meios de produção (capacidade ociosa) leva a um excesso de força de trabalho (desemprego) que é acompanhado de um excesso de mercadorias (superprodução) e um rebaixamento do poder de compra (subconsumo).
Crise do valor: a queda no volume geral de valor é o que conduz à queda da taxa e da massa de lucro, tornando-os insuficientes para dar destino rentável ao capital acumulado, forçando o capital a buscar formas substitutivas e fictícias de riqueza para simular sua reprodução. Aqui ocorre a capitalização monetária-financeira com a multiplicação do capital fictício (antecipação de mais-valia futura, real ou especulativa, na forma de títulos, derivativos, ações, etc.). No lugar da reprodução ampliada de capital, ocorre uma reprodução simulada pela ficcionalização da riqueza: deslocamento da “valorização do valor” para a geração de juros.
Crise do dinheiro: o fim do sistema de Bretton Woods (fim da conversibilidade do dólar em ouro) representa a substituição da mercadoria-dinheiro (equivalente geral) para o dinheiro-mercadoria (nesse caso, o dinheiro fiduciário de curso forçado, como “moeda de crédito”), uma consequência da improdutividade generalizada de valor que também torna sem substância a multiplicação monetária. Uma vez que o capital busca resolver o problema da acumulação com capitalização, esse processo resultou na emissão monetária excedentária: o aumento da quantidade de dinheiro em circulação cresceu muito mais rapidamente do que o volume do output material, movendo-se na direção contrária à queda acentuada dos valores reais das mercadorias. Como consequência, surge o fenômeno da inflação permanente, caracterizada pelo desfasamento do nível de preços face à grandeza decrescente do valor produzido socialmente. A inflação permanente também serve como uma arma ao serviço da classe capitalista, que procura travar a queda da taxa e da massa de lucro através da compressão dos salários reais (conflito distributivo). Os salários nominais geralmente aumentam mais lentamente do que os preços de outras mercadorias, então se os preços crescem mais rapidamente do que os salários, a distribuição do produto social é alterada para assegurar a lucratividade do capital: aquilo que não pode ser extraído dos trabalhadores na produção é-lhes retirado no processo de circulação. Além disso, a desvalorização da moeda, promovida pelo Estado, é uma ação que torna o capital autóctone mais competitivo no plano internacional e favorece as exportações. Contudo, essa mesma desvalorização cambial aumenta os preços das importações e, consequentemente, provoca um aumento dos preços no mercado doméstico, rebaixando ainda mais o consumo (Machado, 2020).
Crise do capital global: a interdependência econômica mundial do capitalismo contemporâneo gera simultaneamente a dispersão geográfica e integração econômica das cadeias produtivas. Assim, a expansão geográfica absoluta (incorporação de novos mercados) e relativa (reestruturação interna) atinge o limite de não haver mais condições de expansão (que muitas vezes resulta em “destruições criativas”, por exemplo: destruição de edificações urbanas apenas para construir outras no lugar). Cada mercadoria passa a ser o resultado geral da produção globalizada que contém em si todos os momentos da crise estrutural mundial. Além das cadeias globais de produção integradas, surgem circuitos deficitários: a dívida, a desindustrialização e o desemprego são exportados para os países-alvo dos excedentes de exportação. Porém, isso só ocorre porque os mercados consumidores não são mais integrados às próprias potências produtoras, ou seja, o consumo endividado de uns financia a produção sem substância de outros (o próprio crescimento econômico sendo ele mesmo um endividamento sem acrescentar valor suficiente à produção global). No centro dessa dinâmica está o circuito deficitário do pacífico (principalmente as relações China-EUA): de um lado, a economia chinesa tem uma dependência estrutural do mercado consumidor dos Estados Unidos (a produção chinesa depende fundamentalmente do mercado externo, cujo maior consumidor é os EUA), de outro lado, a economia norte-americana tem uma dependência estrutural do financiamento chinês (todo esse consumo se sustenta na base de compra de títulos da dívida pública dos Estados Unidos, a maior do mundo, sustentada pela garantia de estabilidade militar do sistema). Em outras palavras: os maiores consumidores do mundo pedem emprestado o dinheiro com o qual pagam aos maiores fornecedores pela enxurrada de mercadorias (Botelho, 2024). Além desse desacoplamento estrutural entre mercado consumidor e potência produtora, em que a própria economia chinesa apenas expande materialmente sua produção “por meio da reciclagem do capital monetário multiplicado” nos EUA (Botelho, 2024, p. 37), a força de trabalho asiática não solucionou o problema do desemprego estrutural, pois apenas absorveu as vagas deixadas pelos outros países devido aos custos reduzidos de sua mão-de-obra. A própria economia chinesa só cresceu devido à inversão de papéis entre o capital fictício e o capital produtivo: através dos veículos de financiamento dos governos locais (LGFVs), usou a bolha imobiliária da expansão urbana para desenvolver-se industrialmente, porém as dívidas emitidas por LGFVs são lastreadas na venda futura de terras urbanas, o que implica em mais construções para serem valorizadas. Essa situação gerou a crise das incorporadoras, como o colapso da Evergrande em 2023 (Botelho, 2025). Como resume Botelho (2025, p. 2): “o contrário de um passado em que a produção de infraestrutura urbana, financiada por dívida, aquecia o mercado e se tornava parte de um surto de crescimento econômico amplo, a inovação financeira das últimas décadas do século XX multiplicou recursos financeiros numa escala que não podem ser realizados. Os mercados secundários, com uma diversidade de instrumentos de financiamento, bombeiam gigantescos recursos de crédito para o setor imobiliário, mas esse volume é elevado demais para se realizar na forma de capital ‘real’, isto é, passar pelos circuitos produtivos da exploração econômica (produção de mais-valia)”.
Crise fiscal dos Estados: o fenômeno do endividamento estatal, na própria moeda ou no sistema monetário internacional, está fundamentalmente relacionado com as demais crises. Nessas condições se manifesta a incapacidade econômica estrutural do Estado de financiar suas próprias atividades devido a uma combinação de demandas sociais crescentes (políticas de administração da estabilidade social burguesa decorrentes da crise do trabalho) e uma base de arrecadação cada vez mais frágil (devido à crise do valor e à globalização do capital). A concorrência global de custos leva à guerra fiscal dos investidores, onde o capital é atraído por locais que garantem redução de impostos e financiamento subsidiado. Assim, a crise do trabalho aumenta os gastos sociais enquanto a crise do valor e a globalização destroem a base de arrecadação. O resultado é a crise fiscal estrutural, onde o Estado busca salvação na crise do dinheiro, trocando arrecadação real por endividamento e riqueza fictícia para simular sua capacidade de atuação: a emissão monetária se torna uma adrenalina injetada na economia em estado terminal, gerando a inflação que rebaixa ainda mais o poder de compra. Nessas condições, também rebentam as contrarreformas de austeridade fiscal, transferindo mais uma vez os custos da crise na força de trabalho (liquidação da seguridade social, dos sistemas de ensino públicos e demais políticas assistenciais), além de favorecer a rapinagem com as privatizações e aumentar o orçamento com repressão (fortalecimento do fundamento policialesco do Estado).
4. Multipolarização:
A estratégia estadunidense de integração regional e nearshoring (transferência empresarial de parte das operações de produção para países geograficamente próximos) representa um passo na saída da posição onerosa de sustentar como país hegemônico o sistema monetário-financeiro internacional. O aumento do protecionismo e das pressões imperialistas na América Latina (um revival da Doutrina Monroe) não representam senão uma resposta desesperada perante o impacto das tendências dissolutivas comentadas acima.
A passagem da globalização neoliberal para a “desglobalização” multipolar é impulsionada pela comercial entre China e EUA, o centro do qual também se encontra a corrida armamentista pelos espólios cada vez mais escassos de valor. Assim, o financiamento bélico agrava ainda mais a crise fiscal estrutural, descarregada principalmente nos países subordinados ao imperialismo.
Portanto, a reabilitação dos movimentos reacionários se torna historicamente necessária às necessidades do capitalismo em crise, com novas formas de ingerência imperialista (como a criação da categoria de “narcoterrorista” como justificativa para intervenções diretas) e novas formas de fascismo (mais associados a uma integração em gangues que buscam favorecer frações unilaterais da burguesia do disciplinar uma unidade corporativista da classe dominante na nação).
Muito embora os organismos financeiros internacionais possuam dados limitados e muita subnotificação das dimensões reais da crise, se usarmos os próprios dados do FMI (Gaspar et al., 2025), veremos que atualmente o déficit público de todos os países representa 94% do PIB mundial. Soma-se a isto o endividamento privado (empresas e famílias) que representa 143% do PIB mundial. Assim, o Estado é pressionado a arcar ainda mais com essas dívidas privadas por meio de salvamentos, subsídios, isenções fiscais, etc.
Nas relações entre as nações, esses endividamentos geralmente são externalizados na forma de contrarreformas de austeridade fiscal e programa de privatizações para que os países semi-coloniais canalizem suas verbas para o capital financeiro, enquanto que as potências imperialistas flexibilizam a própria dívida com emissões monetárias, juros baixos, etc. Algo semelhante já ocorreu no circuito deficitário da Zona Euro, quando “Berlim aproveitou para transferir os custos da crise para o Sul da Europa, sob a forma dos infames ditames de austeridade de Schäuble” (Konicz, 2024).
Assim, a unidade do capital financeiro com as frações espoliadoras do capital nos países imperialistas exige uma cooperação das frações exportadoras nos países semi-coloniais, cujos governos locais podem ser impostos por golpes e até mesmo intervenção direta nas circunstâncias atuais. Apesar disso, se for possível realizar a submissão imperialista por governos de conciliação, estes ainda seriam os mais eficazes por conter a instabilidade interna do regime (a exemplo do Brasil de Lulalckmin).
5. O papel da espoliação fundiária:
Um processo tem se destacado na esteira da financeirização econômica e está fundamentalmente relacionado com o fenômeno da especulação e das bolhas imobiliárias. Trata-se da espoliação e especulação das propriedades fundiárias.
A terra, seja no campo, seja na cidade, se torna um importante ativo financeiro, uma vez que a renda da terra é um adiantamento que especula com a produtividade da propriedade, pois o que se vende através dessa renda é um direito a rendimentos futuros. Neste caso, o mercado de terras é um ramo das transações do capital a juros (Botelho, 2016). Porém, esse mecanismo, longe de resolver os entraves da crise, apenas aprofunda o descompasso entre, por um lado, a ficcionalização de riqueza (aumento vertiginoso da capitalização monetária) e, por outro, a incapacidade de acumulação real de valor (diminuição em termos absolutos da massa de mais-valia socialmente produzida no modo de produção como um todo).
Em nosso texto: Para enfrentar a assimilação eleitoral em Porto Alegre (setembro de 2024), descrevemos em parte esse processo nas condições particulares da capital gaúcha. É possível encontrar no texto várias ressonâncias com todo o conjunto da discussão mais categorial que desenvolvemos aqui.
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Vê-se, portanto, que há uma transformação histórica do capitalismo e não simplesmente a reprodução estrutural inalterada de suas bases categoriais. Mas a transformação histórica é ela mesma imanente ao desenvolvimento categorial, à contradição em processo que anima seu ser.
A situação histórica do modo de produção é sua decomposição, mas o choque entre as forças produtivas e as relações de produção não resulta diretamente na transição para outro modo de produção. Somente quando o problema é posto e apenas quando se busca resolvê-lo de modo revolucionário que é possível falar em superação da decomposição. Isso significa que apenas quando a riqueza abstrata (baseada na ditadura do valor da classe capitalista) passa a ser substituída por outra forma de riqueza social que se pode falar em transição. Porém, a condição de possibilidade dessa transformação é a ditadura revolucionária do proletariado.
6. Para um resumo dos arcos históricos do modo de produção e a necessidade da teoria da crise em cada momento do desenvolvimento do programa revolucionário:
A espoliação de terras e a imposição da subsunção formal ao processo de trabalho forma um regime de acumulação baseado na mais-valia absoluta e no colonialismo. Nesse regime de acumulação expansivo, a luta pela libertação da dominação colonial e a luta pela redução da jornada de trabalho formam uma unidade da luta de classes que obriga a classe dominante a reestruturar seu poder de classe na exploração de mais-valia relativa com a subsunção real ao processo de trabalho e a renovação do poder colonial no imperialismo de exportação de capitais transnacionais para exploração das taxas de lucro diferenciais de países subdesenvolvidos (regime de acumulação intensivo).
No entanto, a orientação para a mais-valia relativa esbarra num limite interno absoluto com a revolução microeletrônica, gerando a atual crise de desvalorização e dessubstancialização do valor. A decomposição da base da valorização não acaba com a ditadura do valor, mas muda sua orientação para um sentido ficcionalizante com a financeirização e suas formas novas de espoliação via transformação em capital fictício da estrutura fundiária combinada com desemprego estrutural, subemprego, endividamento, superpopulação supérflua.
Marx tinha desenvolvido a caracterização da superpopulação absoluta e a relativa dos respectivos regimes de acumulação anteriores, torna-se necessário uma teoria da superpopulação supérflua. É bom lembrar que: “Por ‘proletariado’ deve-se entender do ponto de vista econômico, apenas o assalariado que produz valor e valoriza ‘capital’ e é posto na rua assim que se torna supérfluo para as necessidades de valorização do ‘Monsieur Capital’” (Marx, 2017, p. 690, nota 70). Portanto, a superpopulação supérflua é parte da composição de classe do proletariado, é a força de trabalho excedente (que é “posta na rua assim que se torna supérflua”). Inclusive, em nossa perspectiva não se deve assumir necessariamente que o proletariado se reduza a “apenas” o trabalhador produtivo, pois essa é uma noção de composição de classe limitada pelo obreirismo (porém, não vamos desenvolver essa discussão neste texto).
Provavelmente a primeira forma da crise do primeiro regime de acumulação poderia estar mais próximo da análise da Rosa Luxemburgo sobre o entrave da reprodução ampliada de capital e necessidade de expansão do mercado em zonas não-capitalistas para realização da mais-valia. Assim, surge a unidade da luta anti-colonial com a luta contra a subsunção formal ao processo de trabalho. Também surge as deformações ideológicas e o isolamento das lutas: a social-democracia critica a teoria da crise, afirma a superação do capital de suas crises, se apoia na “aristocracia operária” e, portanto, na dissolução da unidade da luta contra a colonização.
A segunda forma da crise mais próxima da versão onde ocorre a queda tendencial da taxa de lucro até afetar a massa de lucro (Henryk Grossmann), cuja recomposição implica na exploração competitiva das taxas diferenciais de lucro noutros países. Aqui se impõe a unidade da luta anti-imperialista com a luta contra a subsunção real ao processo de trabalho. Porém, também a social-democracia tentou escamotear a teoria da crise e apostar mais uma vez na integração nacional, no sindicalismo corporativista, etc.
A terceira versão, a partir da “contradição em processo” do Capital é, na verdade, o próprio fundamento das outras, embora só pudesse ser reconhecida com o desenvolvimento da própria auto-contradição. As teorias da crise anteriores não chegaram a um limite interno absoluto do capital na própria valorização, o que também ocasionou limites do ponto de vista programático.
Apesar de toda a social-democracia em coro com os liberais atacarem a teoria da crise, a decomposição do capitalismo atualmente é uma realidade que se impõe. Suas consequências já são sentidas na combinação desigual de especulação com capital fictício de rendimentos futuros financiados com os déficits dos países em austeridade fiscal. Nessas novas condições de reprodução do capitalismo, as estruturas de poder de cada regime de acumulação são condicionadas pelo “momento predominante” da crise estrutural, isto é, a verdade das duas primeiras formas de manifestação é a terceira.
Se a exploração mais-valia absoluta como uma necessidade e as invasões territoriais de espoliação podem “retornar” como imperativos, é em função da desvalorização do valor. Some-se a esse processo o agravamento da destruição ambiental, uma vez que cada vez mais incrementos colossais de recursos serão necessários para satisfazer as necessidades do capital em crise.
Em todo caso, a expulsão massiva do trabalho vivo do processo imediato da produção não leva à dissolução do proletariado no sentido formal, pelo contrário, é mais uma demonstração de que o proletariado é a dissolução das classes na sociedade de classes, pois sua própria personificação de valor (a substância, o trabalho abstrato) se torna supérflua, tornando também supérflua a “identidade trabalhadora”. Essa “perda do sentido” sistêmico leva o proletariado a devir historicamente desterritorializado da “nostalgia do pertencer”, esse “completo desnudamento” que só pode ser superado retomando a totalidade de suas condições de existência.
Geralmente quando o pensamento anti-dialético decreta o “desaparecimento” do proletariado, é porque estamos prestes a sentir o que na prática é seu verdadeiro “desaparecer histórico”: a ação revolucionária da classe proletária é seu suprassumir, suprassumindo o capital.
Referências:
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BOTELHO, Maurilio Lima. Desenvolvimento econômico chinês e o “circuito deficitário do Pacífico”: Apontamentos sobre a globalização. In: PEREIRA, Luiz Andrei Gonçalves; OLIVEIRA, Leandro Dias de (org.). Geografia, desenvolvimento e luta política. Montes Claros, MG: Editora Unimontes, 2024.
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BOTELHO, Maurilio Lima. Urbanização e desenvolvimento na China: dívida, capital fictício e crise global. Tempo, v. 31, n. 2, p. e310208, 2025.
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