Este artigo de Errico Malatesta foi publicado originalmente em Pensiero e Volontà, nº 6, 15 de março de 1924. Extraímos essa tradução (com algumas correções nossas) de: MALATESTA, Errico. Anarquia. Tradução de Plínio Augusto Coelho. São Paulo: Imaginário, 2001.
Imagem da publicação original do periódico. Disponível em: Pensiero e Volontà. |
Observação: também acrescentamos uma nota explicativa sobre um personagem histórico citado por Malatesta.
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Os governos ditatoriais que grassam hoje na Itália, na Espanha, na Rússia, e que suscitam a inveja e o desejo das frações mais reacionárias e mais temerosas dos diferentes países, estão refazendo uma nova virgindade para a “democracia” que está esgotada. É por isso que vemos velhos politiqueiros malandros, muito experimentados na arte sinistra da política e responsáveis por repressões e massacres dos trabalhadores, apresentarem-se, apesar de tudo, quando eles têm coragem para isso, como homens progressistas, procurando açambarcar o futuro próximo em nome da ideia liberal. E eles poderão atingir seu objetivo, tendo em vista a situação.
Os partidários da ditadura, divertem-se em criticar a democracia e sublinhar todos os seus vícios e as suas mentiras. Isso me faz pensar em Herman Sandomirsky [1], o anarquista bolchevizante com quem tivemos contatos agridoces na época da Conferência de Gênova, e que agora procura conciliar Lênin e Bakunin, apenas isso! A fim de defender o regime russo, usava todo o seu Kropotkin para demonstrar que a democracia não é o melhor dos sistemas sociais possíveis. Como ele é russo, seu modo de raciocinar me trazia à mente um raciocínio semelhante de alguns de seus compatriotas, e penso ter-lhe dito: em resposta à indignação do mundo civilizado perante o czar que fazia despir, açoitar e enforcar as mulheres, eles insistiam na igualdade de direitos, e por conseguinte, das responsabilidades, entre os homens e as mulheres. Esses fornecedores de prisões e de forças só se lembravam dos direitos da mulher quanto estes podiam servir de pretexto a novas infâmias! Assim, também, os partidários da ditadura só se mostram adversários dos governos democráticos quando descobrem que existe uma forma de governo que deixa ainda mais livre o campo dos abusos de poder e à tirania daqueles que conseguem apoderar-se do poder.
Para mim, não há dúvidas de que a pior das democracias é sempre preferível à melhor das ditaduras, pelo menos de um ponto de vista educativo. Certo, a democracia – o pretenso governo do povo – é uma mentira, mas a mentira acorrenta sempre um pouco o mentiroso e limita seu bel-prazer. O “povo soberano” é um soberano de teatro, um escravo com uma coroa e um cetro de papelão; mas pensar que se é livre, mesmo que não seja verdade, é sempre melhor do que saber que se é escravo e aceitar a escravidão como uma coisa justa e inevitável.
A democracia é uma mentira, é uma opressão; é uma oligarquia na realidade, quer dizer, governo de um pequeno número em proveito de uma classe privilegiada. Mas ainda podemos combatê-la em nome da liberdade e da igualdade, mas não aqueles que a substituíram ou querem substituí-la por qualquer coisa pior.
Não somos a favor da democracia, entre outras razões porque, cedo ou tarde, ela conduz à guerra e à ditadura; também não somos pela ditadura, entre outras razões porque a ditadura faz desejar a democracia, provoca seu retorno e, assim, tende a perpetuar esta oscilação da sociedade humana entre franca e brutal tirania e uma pretensa liberdade falsa e mentirosa.
Portanto: guerra à ditadura e guerra à democracia!
Mas substituí-las pelo quê?
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Os democratas não são todos como aqueles que nós evocamos até agora, isto é, hipócritas mais ou menos conscientes de que, em nome do povo, eles querem dominá-lo, explorá-lo e oprimi-lo.
Há muitos, em particular entre os jovens republicanos, que creem realmente na democracia e que aspiram a ela porque veem nela o meio de garantir a todos a liberdade de se desenvolverem plena e totalmente. São estes jovens que gostaríamos que soubessem que estão enganados e de levá-los a não confundir o que é uma abstração, o “povo”, com as realidades vivas que são os homens, com todas as suas várias necessidades, as várias paixões e as várias e, muitas vezes conflitantes, aspirações.
Nós não refaremos aqui a crítica do sistema parlamentar, nem a crítica de todos os meios que foram imaginados para obter dos deputados a representação verdadeira da vontade dos eleitores – crítica que, após cinquenta anos de propaganda anarquista, é enfim aceita e retomada pelos escritores que ostentam o maior desprezo por nossas ideias (ver, por exemplo, La Scienza Política do senador Gaetano Mosaca).
Nós nos limitaremos a convidar nossos amigos a utilizar uma linguagem mais precisa, convencidos como nós estamos de que se eles forem ao fundo das coisas, verão como todas essas frases são vazias.
“Governo do povo”, não, porque isto suporia o que não acontece jamais, a saber, a unanimidade das vontades de todos os indivíduos que compõem o povo.
Aproximar-se-á, pois, muito mais da verdade falar “governo da maioria do povo”. Isto já significa anunciar uma minoria que deverá revoltar-se ou submeter-se à vontade alheia.
Todavia, jamais acontece que esses que a maioria do povo colocou no poder sejam todos da mesma opinião sobre todos os problemas. É preciso, então, recorrer de novo ao sistema da maioria, e é por isso que nós aproximaríamos ainda mais da verdade ao falar “governo da maioria dos eleitos pela maioria dos eleitores”. O que começa realmente a parecer com um governo da minoria.
Enfim, se se considera o modo como as eleições são feitas, o modo como os partidos políticos e os grupos parlamentares se formam, o modo como as leis são elaboradas, votadas e aplicadas, compreende-se sem dificuldade o que a experiência universal demonstrou, a saber, que mesmo na mais democrática das democracias, é sempre uma pequena minoria que domina e impõe pela força sua vontade e seus interesses.
Assim, desejar realmente o “governo do povo” no sentido que cada um possa fazer valer sua própria vontade, suas próprias ideias, suas próprias necessidades, é fazer com que ninguém, maioria ou minoria, possa dominar os outros; dito de outra forma, é querer necessariamente a abolição do governo, isto é, de toda a organização coercitiva, para substituí-la pela livre organização daqueles que têm interesses e objetivos comuns.
Seria extremamente simples se cada grupo ou cada indivíduo pudesse isolar-se e viver por si próprio, ao seu modo, responsabilizando-se, independentemente dos outros, por suas necessidades materiais e morais.
Mas isso é impossível; e mesmo que fosse possível, não seria desejável, porque isso significa a decadência da humanidade, que cairia na barbárie ou no estado selvagem.
É preciso que, ao mesmo tempo em que está decidido a defender sua própria autonomia, sua própria liberdade, cada um – indivíduo ou grupo – compreenda os elos de solidariedade que o unem a toda a humanidade, e que seu sentido da simpatia e do amor por seus semelhantes seja bastante desenvolvido para que ele saiba se impor voluntariamente todos os sacrifícios necessários para uma vida social que garanta a todos os maiores benefícios possíveis num dado momento.
Mas é preciso, antes de tudo, tornar impossível que, pela força material, um pequeno número domine a massa – cuja dominação provém, por sinal, desta força material de que se serve o dominador.
Eliminemos a figura do policial, isto é, do homem armado a serviço do déspota e chegar-se-á ao livre acordo de um modo ou de outro, porque sem acordo, livre ou forçado, não é possível viver.
Entretanto, mesmo o livre acordo será sempre vantajoso para aqueles que estiverem mais bem preparados, intelectual e tecnicamente; e é por isso que recomendamos a nossos amigos, e àqueles que querem realmente o bem de todos, estudar os problemas urgentes, que exigirão uma solução prática no mesmo dia em que o povo tiver sacudido o jugo lhe oprime.
Notas:
[1] – Sandomirsky, defendeu a ideia de um “marxismo bakuninizado” em um artigo publicado no “Izvestia” de Moscou em ocasião da morte de Lênin. cf. (METT, 2017, p. 55), In: METT, Ida. La Comuna de Cronstadt: crepúsculo sangriento de los soviets. Edição de Pablo Mizraji, publicada em abril de 2017, no ITHA. Disponível em: <https://ithanarquista.files.wordpress.com/2017/05/ok-ida-mett-la-comuna-de-cronstadt.pdf>.
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