Tradução: “capitalismo também depende do trabalho doméstico”. |
Resumo: neste pequeno texto nós apresentaremos argumentos que demonstram como o capitalismo necessariamente impõem relações servis no âmbito das unidades domésticas de reprodução da força de trabalho, partindo da premissa que este “trabalho reprodutivo” (Federici) é uma das bases nas quais se assenta a categoria de gênero do patriarcado especificamente capitalista.
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Na “Contribuição à Crítica da Economia Política” (1859), Marx formulou a seguinte pergunta: “como é que a produção, sobre a base do valor de troca criado [unicamente] pelo tempo de trabalho, conduz ao resultado de que o valor de troca do trabalho é menor que o valor de troca de seu produto?” (MARX, 2008, p. 92). Dito de forma mais simples: como que o trabalhador produz um produto que vale mais do que o valor que é pago pelo trabalho que desempenhou ao produzí-lo?
Em “O Capital” (1867), no capítulo sobre o salário, ele respondia que isso resultava de um tempo excedente não pago que aparecia como algo supostamente pago através da relação contratual e a forma salário: “Como o valor do trabalho é apenas uma expressão irracional para o valor da força de trabalho, segue por si mesmo que o valor do trabalho tem de ser sempre menor que seu produto-valor, pois o capitalista sempre faz a força de trabalho funcionar por mais tempo do que o necessário para a reprodução de seu próprio valor. (…) A forma salário extingue, portanto, todo vestígio da divisão da jornada de trabalho em trabalho necessário e mais-trabalho, em trabalho pago e trabalho não pago. Todo trabalho aparece como trabalho pago. (…) No trabalho assalariado, (…) o mais-trabalho ou trabalho não pago aparece como trabalho pago. (…) a relação de dinheiro oculta o trabalho gratuito do assalariado” (MARX, 1996, p. 169, grifos nossos).
Ele reproduz essa conclusão em “Crítica do Programa de Gotha” (1875): “o trabalhador assalariado só tem permissão de trabalhar para sua própria vida, isto é, para viver, desde que trabalhe de graça um determinado tempo para o capitalista (por isso, também para aqueles que, juntamente com ele, consomem a mais-valia)” (MARX, 2012, pp. 38-39, grifos nossos).
Vale destacar que o preço da força de trabalho vai variar de acordo com a produtividade do trabalho, sendo que quanto mais se produz em menos tempo no processo de produção, mais se aumenta esse tempo não pago na forma de mais-valia relativa. Mas também é possível aumentar esse tempo de trabalho não pago de forma bruta, com o aumento da jornada de trabalho e, consequentemente, aumento da mais-valia absoluta.
De todo o modo, somos colocados diante de outra questão: como se expressa o valor de troca da força de trabalho? Marx afirma que essa pesquisa deveria partir da seguinte premissa: “dado o tempo de trabalho como medida imanente do valor de troca, desenvolver o salário operário sobre essa base” (MARX, 2009, p. 91).
Em “Salário Preço e Lucro” (1865), Marx coloca esse problema dessa forma: “Que é, pois, o valor da força de trabalho?”. Ao que responde: “Como o de toda outra mercadoria, esse valor se determina pela quantidade de trabalho necessário para produzi-la. A força de trabalho de um homem consiste, pura e simplesmente, na sua individualidade viva. Para poder crescer e manter-se, um homem precisa consumir uma determinada quantidade de meios de subsistência; o homem, como a máquina, se gasta e tem que ser substituído por outro homem. Além da soma de artigos de primeira necessidade exigidos para o seu próprio sustento, ele precisa de outra quantidade dos mesmos artigos para criar determinado número de filhos, que hão de substituí-lo no mercado de trabalho e perpetuar a descendência dos trabalhadores” (MARX, 1996, p. 99, grifos nossos). Em resumo: “Depois do que dissemos, o valor da força de trabalho é determinado pelo valor dos artigos de primeira necessidade exigidos para produzir, desenvolver, manter e perpetuar a força de trabalho” (MARX, 1996, p. 100, grifos nossos).
Em outras palavras: Marx reduz o custo de reprodução da força de trabalho ao valor dos artigos de primeira necessidade, isto é, às mercadorias necessárias para produzir, desenvolver, manter e perpetuar a classe vendedora de força de trabalho. No entanto, entre a compra de determinados bens para a subsistência e seu consumo doméstico existe um intervalo que fica abstraído na análise. Essa forma de exposição do processo parece não levar em consideração uma de suas mediações necessárias.
É evidente que a compra de mercadorias não é diretamente seu consumo. Primeiro ocorre a realização da transação no mercado (o ato de compra-venda) e depois há o momento do consumo do conteúdo da mercadoria, isto é, do seu valor de uso (que ocorre domesticamente). O consumo do valor de uso das mercadorias envolve um trabalho reprodutivo, na medida em que, por exemplo, o arroz não vem pronto, sendo necessário cozinhá-lo, o que significa gasto de tempo de vida em tempo de trabalho doméstico. O conjunto dos trabalhos necessários para essa manutenção da vida dos portadores de força de trabalho é chamado, portanto, de trabalho reprodutivo.
Não obstante, uma vez que seja socialmente necessário para a classe trabalhadora trabalhar “em casa” para se reproduzir, temos aqui uma jornada extra de trabalho que não é assalariada (que é ocultada pela propriedade privada das unidades domésticas – o mesmo vale para quando a família proletária vive de aluguel). Mas os sujeitos historicamente encarregados desse trabalho, no sentido de sofrerem imperativos sociais opressivos, são as proletárias mulheres que acabam sendo submetidas a um regime de servidão no âmbito da família em sua forma especificamente burguesa (do ponto de vista das determinações estruturais da sociedade capitalista, pois certamente vão ocorrer variações – aliás, os filhos e filhas da classe proletária costumam trabalhar nos afazeres domésticos também).
É importante destacar que família burguesa é o nome dado ao modelo de família da sociedade burguesa na medida em que a classe dominante que condiciona a forma social das relações familiares vigentes, mas isso não significa, de forma alguma, que todas as famílias seriam “da burguesia” no sentido de pertencerem a essa classe social. As famílias não-burguesas são realmente distintas das famílias da burguesia, mas a forma social geral que serve de “modelo de família” (normativamente) provém do poder dominante da classe social dominante, portanto é nesse sentido específico que se fala em “família burguesa”, ou seja: o modelo de relações familiares historicamente específico das formações sociais burguesas.
Em suma, existe uma forma de dominação patriarcal histórica e especificamente capitalista. Essa dominação, no âmbito das famílias proletárias se expressa como: a subordinação das mulheres proletárias ao trabalho reprodutivo na esfera doméstica de reprodução, desenvolvimento, manutenção e perpetuação da força de trabalho. No momento não vamos especificar as relações familiares da classe burguesa, pois esse texto tem o objetivo de definir a forma social da subordinação do trabalho reprodutivo das mulheres proletárias.
Tradução: “Morte ao Capitalismo! Morte ao Patriarcado!”. |
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Agora podemos trazer as contribuições de Silvia Federici para resolver essa lacuna da “crítica da economia política”. Federici considera o trabalho reprodutivo como mediação historicamente necessária da dinâmica capitalista de reprodução social.
Segundo Federici, parece que, para Marx, nenhum outro trabalho aconteceria “para preparar os bens que os trabalhadores consomem ou para restaurar física e emocionalmente sua capacidade para trabalhar” (FEDERICI, 2019, p. 198). No entanto, Silvia Federici reconhece que na época da publicação d'O Capital, o proletariado ainda vivia uma pauperização generalizada, onde havia baixíssima expectativa de vida para um operário e o trabalho infantil ainda era amplamente utilizado nas fábricas. “Apenas no final do século XIX a classe capitalista começou a investir na reprodução do trabalho, em conjunto com uma mudança na forma de acumulação, da indústria leve à pesada, exigindo uma disciplina de trabalho muito mais intensa e um tipo de trabalhador menos extenuado. Em termos marxianos, podemos dizer que o desenvolvimento do trabalho reprodutivo e a consequente emergência de uma dona de casa em tempo integral foram os produtos da transição da extração do valor ‘absoluto’ para a extração do ‘valor relativo’ como modelo de exploração do trabalho” (FEDERICI, 2019, p. 200).
Sobre a questão relativa ao valor da força de trabalho, é necessário reconhecer, como vimos, o custo de sua reprodução. Segundo Federici: “o capitalismo precisa de trabalho reprodutivo não remunerado a fim de conter o custo da força de trabalho” (2019, p. 36, negritos nossos). Se Marx “reconheceu que, como qualquer outra mercadoria, a força de trabalho deve ser produzida e, na medida em que ela tem um valor monetário, representa uma ‘quantidade determinada do trabalho social médio nela objetivado’” (FEDERICI, 2019, p. 197), então a questão da contribuição do trabalho reprodutivo nesse processo é fundamental, embora não tenha sido desenvolvida teoricamente.
Se fosse socialmente reconhecido e se houvesse uma contabilidade das horas gastas em trabalho doméstico como custo de reprodução da força de trabalho, o valor da força de trabalho seria “calculado” de forma diferente. Justamente porque, como já afirmamos, no capitalismo: a mercadoria vale o tempo de trabalho médio socialmente necessário para produzí-la, o que inclui a mercadoria força de trabalho. Portanto, para deixar mais nítido: no capitalismo existe um tempo de trabalho gratuito além daquele que se efetiva durante o processo de produção de coisas. Esse tempo é o tempo de trabalho reprodutivo dispendido na manutenção de seres humanos. Isso significa que: “o capitalismo depende tanto de uma imensa quantidade de trabalho doméstico não remunerado para a reprodução da força de trabalho quanto da desvalorização dessas atividades reprodutivas para diminuir os custos com a força de trabalho” (FEDERICI, 2019, p. 195).
Para concluir (ainda que seja necessário mais pesquisas para que se possa extrair conclusões mais concretas), vale destacar que Silvia Federici admite que “o número de trabalhadoras domésticas e o valor de seu trabalho também são difíceis de mensurar” (2019, pp. 279-280), mas sustenta concretamente sua questão ao afirmar que: “por trás de toda fábrica, de toda escola, de todo escritório, de toda mina, há o trabalho oculto de milhões de mulheres que consomem sua vida e sua força em prol da produção da força de trabalho que move essas fábricas, escolas, escritórios ou minas” (FEDERICI, 2019, p. 68).
Referências:
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução de Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2019.
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Vol. 2. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.
MARX, Karl. Salário, preço e lucro. In: _____. O Capital: crítica da economia política. Vol. 1. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
Eu fui doutrinada pra me cagar de medo dos comunistas aqui no RS. Õbvio que a religião
ResponderExcluirestá por trás desse terror.