sábado, 28 de novembro de 2020

Orientações gerais para a luta de classes: da gênese do capitalismo até a formalização do partido social-democrata

Desenho das barricadas da revolução francesa de 1848, na entrada da Rue du Faubourg Saint Antoine, em Paris, durante a revolta proletária de junho de 1848. Imagem extraída de: link.


Proposição: As orientações gerais que se seguem são um conjunto articulado de teses que tratam da gênese do capitalismo, da relação entre as classes sociais centrais desse modo de produção, da formalização do partido social-democrata e das premissas revolucionárias que foram desenvolvidas até um pouco antes da Comuna de Paris. O que vamos afirmar aqui deriva do aprendizado secular de nossas lutas para destruir o modo de produção capitalista. Neste sentido, as ideias aqui enunciadas são sínteses históricas da consciência revolucionária do proletariado, da qual nossa autoria é tão somente um resultado pontual e situado no processo como um todo.

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1. Acumulação originária de capital:


De forma bem resumida, a acumulação originária de capital foi uma complexa associação entre os seguintes processos:

  • O século XVI foi perpassado por um conjunto de fatores interdependentes que se integram através da efetuação de um sistema mundial de comércio. O processo histórico subjacente se dá através do conjunto das formas de pilhagem colonial durante a acumulação de capital mercantil, a incorporação dessas espoliações no orçamento dos Estados Absolutistas, o efeito multiplicador disso na geopolítica do período mercantilista (financiamento de expedições de guerra, monopólios comerciais, etc.), o ímpeto desse processo na constituição das nações (sistema de impostos unificado, protecionismo, dívida pública, etc.). Esse período durou dois séculos e resultou na formação social de novas relações de produção e forças produtivas associadas às formas de colonização.
  • No caso da colonização hispânica, as colônias e a metrópole formam uma unidade complexa, na qual os assentamentos hispânicos possuem especificidades em função das condições (populacionais, ambientais, vinculação com o mercado mundial e até mesmo climáticas) que orientam o tipo de foça produtiva e relação de produção a se estabelecer nos territórios. Não obstante, as “Leis Novas” (1542) da metrópole determinam a uniformidade com a qual deveria ser efetuada a utilização da mão de obra nativa através do repartimiento, conjugando os interesses da Coroa, da Igreja e dos conquistadores (que cobravam seus direitos de conquista – as suas “prebendas”). Neste caso, a Coroa retirava vantagens da exploração tributária, tanto no nível econômico enquanto se apropriava dos excedentes quanto no nível político enquanto controlava as relações entre a aristocracia emergente das colônias e sua relação com os nativos. A Igreja se beneficiou dos processos de aldeamentos (ou reduções) que formavam assentamentos indígenas com mão de obra de custos muito reduzidos (sendo que esses agrupamentos funcionavam como autarquias político-econômicas, a mais conhecida delas foi a “República Guarani” onde atualmente é o Paraguai). Já os conquistadores se aliavam com as aristocracias dos impérios pré-coloniais que haviam sido derrotados na guerra de conquista, através da política matrimonial e gerando descendentes mestiços que iriam herdar as “prebendas”, bem como a relação de dominação sobre as comunidades agrícolas dos indígenas (que era uma mistura da forma tributária pré-colonial como a nova forma tributária mediada pela Coroa). Essa sobreposição de relações não forma uma síntese enquanto um modo de produção específico, sendo um processo histórico limiar subsumido na acumulação originária de capital. Na colonização lusitana do território “brasileiro”, por sua vez, se instaura o que podemos chamar de “modo de produção subordinado” que Jacob Gorender denominou de “escravismo colonial”, baseado nas relações de produção e forças produtivas do modelo de plantation. Em suma, se tratam de condições históricas específicas em que a acumulação originária de capital se realizou de forma heterogênea, mas combinada enquanto um processo cuja realização dependia do mercado mundial.
  • Esse processo histórico mundial repercute na Europa no fortalecimento econômico e político dos Estados Absolutistas, como mencionamos acima. Os ingleses se inseriam nesse processo de comércio global através da Companhia Britânica das Índias Orientais. Mas uma característica muito peculiar da unificação absolutista da Inglaterra era a regulação quase total de toda a vida social pelo Estado, suprimindo qualquer corporação de ofício ou senhor feudal que estivessem separados da administração estatal. Ainda nessa época a terra continuava sendo símbolo de riqueza e poder, e a classe dominante inglesa se caracterizava por ser uma aristocracia incorporada pela centralização política (ficando sem seus meios particulares de força militar) e portadora de amplos domínios territoriais (vastas extensões de terras sem precedentes na história europeia). Tudo isso criou uma condição econômica em que a classe dominante inglesa teve sua reprodução social atrelada com a produtividade da terra, dado que precisava explorar trabalhadores rurais, não mais como senhores feudais, mas através de arrendamentos de suas terras. Os interesses de classe se orientaram no sentido de impor a mercantilização de forma imperativa (surgimento de uma competitividade de mercado e das taxas de lucro por produtividade). Essa imposição veio acompanhada, no período histórico que citamos no primeiro ponto, do roubo de terras dos camponeses, conhecido como os enclosures (cercamentos). Nesta conjuntura histórica emerge o que ficou conhecido como “capitalismo agrário” (ideia defendida por historiadores como Robert Brenner e Ellen Meiksin Wood). Neste caso, a transformação mais fundamental desse período histórico é a expropriação dos produtores diretos mediante impulsionada pelos imperativos de mercado (resultados necessários da mundialização econômica). Assim se assentam as bases do modo de produção capitalista, o primeiro modo de produção mundial. A emergência do capitalismo foi capaz de integrar todo o processo histórico precedente em sua reprodução ampliada. A lógica dos imperativos do mercado colonizou todo o comércio mundial, globalizando as premissas do sistema capitalista.
  • Uma vez que sempre foi necessário (re)produzir a mão de obra, no sentido de controlar as condições de procriação da classe dominada, o processo que citamos acima é impensável sem a compreensão da transformação do poder reprodutivo (dominação sobre a natalidade humana). Na acumulação originária, segundo Silvia Federici, uma nova organização patriarcal emerge a partir da “caça às bruxas” (veja-se: “Calibã e a Bruxa”). Trata-se de um processo de feminização das atividades que envolvem a reprodução humana, durante a formação de uma esfera doméstica onde tais processos reprodutivos deveriam ocorrer (gênese da família nuclear especificamente burguesa). Isso implica em toda uma série de regulações sobre a sexualidade humana e normalizações das performances de gênero de cada classe.
  • A combinação histórica da racialização moderna com a escravização também foi um fator de acumulação originária que se expressa atualmente através do racismo social que subdivide o proletariado. A segregação e hierarquização racial durante os processos de proletarização serviu para criar “estamentos étnico-raciais” na força de trabalho. Desta forma, também se planejou impedir a coalizão unitária do proletariado ao colocar uns contra os outros segundo critérios raciais (o famoso “dividir e conquistar”).

2. Capitalismo amadurecido:


A consolidação do modo de produção capitalista se torna efetiva com a subsunção real do processo de trabalho ao capital com a emergência do industrialismo. A indústria não é um momento da gênese do Capital, mas sim o resultado expressivo de suas relações sociais. Desde o nascimento da indústria, o modo de produção capitalista começa a realizar sua “reprodução ampliada”: a transformação progressiva de suas bases em novos ciclos de acumulação (período industrial, monopolista, etc.). Neste sentido, houve um período de subsunção formal do processo de trabalho ao capital (cooperação simples, divisão do trabalho na manufatura), isto é, o processo de trabalho efetuado em condições técnicas herdadas do período pré-capitalista que é superado pela subsunção real do processo de trabalho ao capital, com o maquinismo da grande indústria que começa após o primeiro terço do século XVII e já está plenamente estabelecido no final do século XVIII.

3. Classes sociais no capitalismo:


Algumas premissas de como compreender as relações de classe centrais do modo de produção capitalista:

  • Como vimos, a transformação de um contingente de pessoas em proletárias (proletarização) ocorre mediante a expropriação dos meios de produção dos produtores diretos durante o processo de acumulação originária de capital (vedação, cercamentos, etc.). Portanto, o proletariado passa a existir historicamente pela expropriação que sofreu e existe socialmente através da posição que ocupa no modo de produção que surge precisamente desse processo de acumulação precedente. É uma classe de despossuídos e, portanto, de sujeitos dissociados da comunidade ambiental ao qual pertenciam. O proletariado participa no modo de produção capitalista vendendo a única mercadoria que lhe sustenta: a força de trabalho (oferecida no mercado de trabalho em troca de salário). Ou seja: o pressuposto do trabalho assalariado especificamente capitalista é o constrangimento que obriga o proletário a vender sua força de trabalho para sobreviver através do consumo mercantil. O proletariado vai vender o valor de uso de sua capacidade viva de trabalhar, de forma mais ou menos contingente, segundo as demandas do mercado de trabalho para gastar o que recebe no mercado de bens de consumo – este modo de sobrevivência é expresso pela equação M – D – M (mercadoria força de trabalho – salário – mercadorias que permitem a subsistência proletária). Em “Quanto custa a força de trabalho? Produção de mercadorias e reprodução de pessoas” já discutimos a questão do trabalho doméstico. Em outras palavras: a situação proletária é explicada pela condição de expropriado que é, por isso mesmo, obrigado a vender força de trabalho para conseguir subsistir. Essas são as premissas históricas e sociais que servem apenas para situar a classe proletária na reprodução social do modo de produção capitalista.
  • A classe social burguesa é a proprietária privada dos meios de produção que realiza sua perseveração de classe através do processo: D – M – D’. Trata-se da fórmula universal do capital: disposição de um capital dinheiro para investimento – compra de capital variável + capital constante – rendimento do investimento na forma de capital dinheiro + dinheiro ganho sobre o excedente de valor explorado do capital variável (isto é, do mais-valor gerado pelo trabalhador). Mas a classe burguesa não existe apenas como proprietária privada dos meios de produção sob a forma de capital (classe em si), pois também existe enquanto portadora de interesses de classe próprios para sua perseveração e dominação (classe para si). Como a burguesia é a classe dominante, ela exprime seu interesse de classe através de seu domínio, portanto, conservando a sociedade atual através de um conjunto de instituições que funcionam segundo esse objetivo. A organização do poder político da classe dominante é o Estado em sua forma moderna e este exprime a consciência de si do capitalista (o capitalista coletivo ideal).
  • A dinâmica da constituição da classe dominada é diferente. Uma vez que o proletariado é objeto de dominação, sua existência imediata enquanto sujeito histórico é socialmente heterônoma (porque a dominação é a organização imposta por um outro, ou seja, a heterorganização do dominado pelo dominante). Enquanto vendedor individualizado da mercadoria força de trabalho, é classe em si (produtor de mais-valor). Com efeito, o proletariado não pode se constituir como classe para si sem ter a experiência de ser em si mesmo um proletário (daí o erro de quem separa o “em si” e o “para si” como momentos distintos e não como unidade contraditória). Não obstante, na medida em que busca a satisfação de suas necessidades humanas, o proletário tende a ter consciência da contradição de sua condição de miséria social diante de um mundo de riquezas que, embora provenha de “suas mãos”, lhe é extraenisada/alienada. Isso faz com que seja uma classe que tem interesse objetivo em se suprimir como classe (abolindo todas as classes), porque sua existência social é a personificação coletiva da exploração e dominação do humano sobre o humano. Ao mesmo tempo: esse interesse em se suprimir só poderia emergir numa classe cujo pertencimento histórico não envolve nenhum “enraizamento particular”, justamente porque é uma classe de “desenraizados”, ou seja, uma classe que surge do desmembramento comunitário e, portanto, se impõem a essas pessoas a necessidade de reconstruir uma comunidade para viver (e como o proletário é classe histórica mundial, a reconstrução da comunidade só pode ocorrer como fato global). Ao experimentar a situação de que suas necessidades e capacidades só poderiam ser realizadas contra o Capital, o proletariado é dessubjetivado da subjetividade capitalística e passa por uma subjetivação anticapitalista. Neste sentido, quando o proletariado almeja suas necessidades contra esse mundo, começa a desenvolver a sua consciência de classe. Como resultado disso, a ação autônoma do proletariado passa a constituir-se como horizonte de seu ser coletivo (destituindo sua heteronomia). As primeiras ações diretas indicam os primeiros níveis de constituição de classe. Estas começam de forma difusa e tendem a se organizar enquanto aumenta na classe a consciência de si como sujeito coletivo. O desenvolvimento do proletariado como classe para si é esse processo que lhe torna uma força histórica atuante até a formação de seu partido material e, portanto, a definição seus objetivos sociais num programa (eis o motivo histórico pela qual existe socialismo/comunismo/anarquismo). Em resumo: não é possível falar em classe sem falar de consciência e movimento social (práxis) que se exprime como “partido” (no sentido de coalizão coletiva em função dos interesses comuns).
  • Além do proletariado e da burguesia existem as classes de transição (Übergangsklasse) que são os profissionais liberais, burocracia e trabalhadores intelectuais no geral (podemos definir coletivamente estes últimos pelo conceito de intelligentsia). Eles são assalariados não-proletarizados e, portanto, possuem interesses materiais específicos que não coincidem imediatamente com os do proletariado. Eles tendem a formalizar esses interesses através do partido social-democrata (veja a orientação geral número 10).

4. Breve comentário sobre ideologia:


Antes de falar o que é ideologia, é necessário dizer o que é consciência social. Os revolucionários do século XIX entendiam por consciência o modo de exprimir a subjetividade (sensação, intuição e representação), mas essas expressões não ocorrem em seres isolados, porque o ser humano é um ser social. Portanto, considerando que as pessoas produzem sua vida em relações sociais, elas adquirem a consciência que é congruente com estas relações. Por exemplo: seguindo a lógica de produção de comunidades originárias, o mito é um modo de expressão da consciência social, onde é possível afirmar a noção de pessoa de uma comunidade através de uma narrativa mitológica. Neste sentido, é através da consciência social expressa por meio de um mito de origem que um grupo social comunitário produz as subjetividades que são necessárias para perseverar historicamente seu modo de organização social (trata-se também de uma mnemotécnica social, segundo argumentava Nietzsche em seu “Genealogia da Moral”).

A consciência social se altera com a emergência da dominação humana. Em existindo dominação humana, a comunidade originária (onde a consciência social de “origem comum” se exprimia a partir de relações de aliança inter-comunitárias correlacionadas com a descendência de linhagens intra-comunitárias) é rompida em seu interior: um grupo (geralmente uma linhagem que acumulou de forma exclusiva alguma condição objetiva da comunidade) passa a estabelecer sobre os demais grupos uma relação de dominação na medida em que obriga aos demais formas variáveis de subordinação ao trabalho (que são exógenas às necessidades comuns de subsistência, dado que essa obrigação gera um sobretrabalho em prol do grupo dominante). Para que haja reprodução social nessa situação em que emerge uma divisão de classes, é necessário que ambos os grupos partilhem premissas comuns. O grupo que domina a orientação geral da produção social estabelece essas premissas, pois as relações de seu domínio se tornam as relações sociais em ato (controle sobre as condições de reprodução social). Neste caso, a “produção da ideologia” emerge como consciência do domínio social estabelecido (subjetividade congruente com a situação vigente).

Acabamos de ver que, no capitalismo, existe uma relação social de classes com interesses antagônicos. A “conciliação” desses interesses, enquanto se reproduz socialmente o modo de produção, só é possível através de ideologia. Por exemplo: é necessário uma consciência social em que as pessoas entrem no emprego, não com a consciência de si próprias enquanto classe, mas com a consciência de portadoras de mercadorias de modo equivalente ao capitalista que seria também apenas outro portador de mercadorias, algo que só é possível através da subjetivação da noção de cidadania (igualdade formal perante a lei, algo que vai regular o contrato de trabalho). De fato, a noção de pessoa no capitalismo surge do mercado (fetichismo das mercadorias). Portanto, o contrato de trabalho é, nas relações econômicas, uma manutenção ideológica da relação de classe (que é a exploração de mais valor através do sistema salarial). A democracia é uma expressão política: coloca as pessoas como cidadãs com direito a voto (igualdade jurídica) para que não se relacionem como classes sociais com interesses antagônicos. E assim a sociedade capitalista tende a se conservar, na medida em que seus pressupostos ideológicos (o que inclui instituições, valores, direito, etc.) são reproduzidos.

5. Capitalismo monopolista inglês:


A análise histórica demonstra que a Inglaterra foi a precursora do desenvolvimento do capitalismo. A dominação do mercado mundial exercida pela Inglaterra acelerava, de modo desigual e combinado, o desenvolvimento do modo de produção capitalista nos demais países. Portanto, as forças produtivas especificamente capitalistas já estavam completamente “postas” a nível mundial ainda no século XIX, justamente no centro da acumulação capitalista dessa época. A Inglaterra, antes da segunda metade do século XIX, já tinha um caráter monopolista e era uma potência imperialista. Isso era o que Marx já discutia em 1867 na sua obra “O Capital”.

Na primeira parte do “Capital”, Marx demonstra a subsunção formal do processo de trabalho ao capital (na cooperação simples, na divisão do trabalho da manufatura), isto é, o processo de trabalho efetuado em condições técnicas herdadas de modos de produção não-capitalistas; na segunda, temos a subsunção real do processo de trabalho ao capital, como resultado do surgimento de uma tecnologia especificamente capitalista – o maquinismo da grande indústria –, que começa após o primeiro terço do século XVII e se estabelece no final do século XVIII. Marx argumentava que sua análise partia da área onde o modo de produção capitalista estaria nas condições mais desenvolvidas de sua época, daí sua escolha pela Inglaterra. Ele também tinha consciência do caráter monopolista da Inglaterra quando analisava a relação dessa com a China, desde a segunda guerra do ópio.

6. Comentário sobre a “maturidade” das condições sociais da luta de classes:


Neste sentido, as condições sob as quais se desenvolvem o antagonismo do proletariado com a burguesia já estavam “maduras” na aurora do movimento operário. A luta de classes já se expressava como um confronto histórico sob o qual se dissolve ou conserva o modo de produção capitalista. Somente análises parciais e supérfluas poderiam concluir que não haveria “maturidade material” em determinadas regiões do globo para que houvesse uma luta de classes direta (luta que exprime o combate entre forças revolucionárias e contrarrevolucionárias). Até porque, como dizia um Manifesto de 1848: a luta de classes da sociedade moderna capitalista se desdobra em campo mundial (Manifest der Kommunistischen Partei).

7. Possibilidades objetivas da primeira vaga revolucionária do capitalismo:


No final da primeira metade do século XIX que ocorreu a primeira expressão da consciência revolucionária do proletariado, cujo ápice foi o que ficou conhecido como “Primavera dos Povos”. Os revolucionários discutiram as seguintes possibilidades históricas daquele período: A luta mais avançada poderia acontecer na Inglaterra (cujo partido histórico era o movimento cartista), mas a França já havia passado por uma revolução burguesa e, em 1848, por uma insurreição proletária de tendência revolucionária. No caso da Alemanha, as análises conjunturais previam uma revolução dupla (que seria chamada de “revolução permanente” no futuro), onde uma revolução burguesa germânica se transformaria imediatamente em revolução proletária após a derrubada do poder absolutista do Kaisereich. Na Rússia e na Áustria ainda reinava a reação da Santa Aliança (contrarrevolução anti-napoleônica), mas os processos de libertação nacional acabariam se convertendo em revoluções caso se inserissem nesse campo histórico mundial da luta de classes. Portanto, nessa conjuntura histórica, da Inglaterra aos países dominados pela Santa Aliança, a vitória proletária só poderia se exprimir como vitória unitária do movimento comunista. Qualquer derrota num desses campos arrastaria consigo a revolução social na Europa. De qualquer forma, desde essa época era evidente que a revolução comunista é um único e mesmo movimento real que resulta da constituição e afirmação do proletariado como classe revolucionária.

8. Consciência da derrota da primeira vaga revolucionária:


Os resultados gerais da luta de classes do período mencionado acima não saíram como planejado. A derrota da classe proletária na França desencadeou uma reação que restabeleceu a monarquia em apenas três anos de república. A burguesia se apoiava na ala mais reacionária para se manter no poder. Consequentemente, a contrarrevolução saiu vitoriosa. Mas isso apenas postergou a luta revolucionária para mais adiante. Portanto, vejamos o que se sucedeu na França.

9. A situação francesa de 1848 até 1852:


Em junho de 1848, quatro meses depois da instauração da República, a classe proletária francesa se insurge contra as revogações de umas poucas medidas que foram adotadas para atender as necessidades das pessoas pobres (a burguesia não era capaz de garantir nem as reformas mais ínfimas para conter a revolta proletária contra o pauperismo). O proletariado, contando apenas com suas próprias forças, ergue barricadas, clama pela revolução social e expressa seu programa através da noção de república social (cuja fração mais avançada era inspirada pelas ideias dos comunistas materialistas como, por exemplo, os responsáveis pelo jornal L'Humanitaire). A repressão brutal do processo revolucionário foi liderada pelo general Cavaignac, que se tornará o bastião do partido burguês republicano. Nesta ocasião, o famoso escritor Victor Hugo (que era membro eleito da Assembleia Constituinte) considerou um dever cívico marchar contra as massas insurretas. Depois da derrota, frações do proletariado haviam sido incorporadas na formação do partido social-democrata que formaria ala da “Montanha” no processo da Constituinte. A repressão de junho possibilitou a consolidação da Assembleia Constituinte na França e, em seguida, a eleição de Luís Bonaparte que, no final do seu mandato (em dezembro de 1851), dá um golpe de Estado e restaura a monarquia na França.

10. Ilustração da “consciência internacionalista” e crítica da social-democracia do período a partir de duas visões daquele contexto:


Sobre a derrota do proletariado como força histórica (partido material) na luta de classes francesa desse período, Marx escrevera: “Quando o proletariado fez do seu túmulo o berço da república burguesa, obrigou-a simultaneamente a vir à frente em sua forma pura, ou seja, como o Estado cujo propósito confesso é eternizar o domínio do capital, a escravidão do trabalho. (…) Por fim, em virtude da vitória da Santa Aliança, a Europa assumiu uma forma que fazia cada novo levante proletário na França coincidir diretamente com uma guerra mundial. A nova revolução francesa é obrigada a abandonar imediatamente o território nacional e a conquistar o terreno europeu, o único em que será possível realizar a revolução social do século XIX” (Luta de Classes na França, 1850).

Como figura que na época expressava o interesse de libertação dos povos eslavos, Bakunin também reconhecia a necessidade da solidariedade internacional da luta: “É nossa convicção fundamental que todas as liberdades nacionais sendo solidárias, as revoluções particulares de todos os países devem sê-lo também; que doravante na Europa, como em todo o mundo civilizado, não haverá mais revoluções, mas apenas a revolução universal, assim como não há mais que uma única reação europeia e mundial; que, por consequência, todos os interesses particulares, todas as vaidades, pretensões, invejas e hostilidades nacionais, devem fundir-se hoje no único interesse comum e universal da revolução, que assegurará a liberdade e a independência de cada nação, pela solidariedade de todas. Que a santa aliança da reação mundial (…), apoiadas em enormes orçamentos, em exércitos permanentes, numa burocracia formidável, armados de todos os terríveis meios que lhe dá a centralização moderna (…) são um fato imenso, ameaçador, esmagador, e que, para combatê-lo, para opor-lhe um fato de igual força, para vencê-lo e destruí-lo, é necessário nada menos que a aliança e a ação revolucionárias simultâneas de todos os povos do mundo civilizado” (Catecismo Revolucionário, 1866).

Marx faz a seguinte descrição da social-democracia: “Ela havia feito uma aliança com os líderes socialistas. Em fevereiro de 1849, foram celebrados banquetes de reconciliação. Um programa comum foi elaborado, comitês eleitorais comuns foram instituídos e candidatos comuns lançados. A ponta revolucionária das exigências sociais do proletariado foi quebrada e foi-lhe dado um viés democrático, as reivindicações democráticas da pequena-burguesia foram despidas da sua forma meramente política e a sua ponta socialista voltada para fora. Assim surgiu a social-democracia (…). O caráter peculiar da social-democracia se resumia aos seguintes termos: reivindicavam-se instituições republicanas democráticas, não como meio de suprimir dois extremos, o capital e o trabalho assalariado, mas como meio de atenuar a sua contradição e transformá-la em harmonia. Quaisquer que sejam as medidas propostas para alcançar esse propósito, por mais que ele seja ornado com concepções mais ou menos revolucionárias, o teor permanece o mesmo. Esse teor é a modificação da sociedade pela via democrática, desde que seja uma modificação dentro dos limites da pequena-burguesia. Basta não cultivar a ideia estreita de que a pequena-burguesia tenha pretendido, por princípio, impor um interesse egoísta de classe. A social-democracia acredita, antes, que as condições específicas da sua libertação constituem as condições gerais, as únicas nas quais a sociedade moderna pode ser salva e a luta de classes evitada” (18 de Brumário de Luís Bonaparte, entre 1851 e 1852).

Bakunin, por sua vez, descrevia da seguinte forma: “O socialismo burguês, como uma espécie de ser híbrido, colocou-se entre dois mundos doravante irreconciliáveis: o mundo burguês e o mundo operário; e sua ação ambígua e desmoralizante acelera, de fato, por um lado a morte da burguesia, e, por outro, corrompe, ao mesmo tempo, o proletariado. Corrompe-o de duas maneiras: primeiro, diminuindo e deturpando os seus princípios e o seu programa; depois, fazendo-o ter esperanças impossíveis, uma ridícula fé numa próxima conversão dos burgueses, procurando deste modo seduzi-lo com o fim de manobrar o proletariado como instrumento da política burguesa” (L'Egalité, Nº 26, 17 de julho de 1869).

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Nossas orientações gerais do período mencionado foram expostas nas 10 seções acima, mas não consideramos que o debate sobre essas questões deve ser considerado “encerrado”, pois acreditamos no desenvolvimento contínuo da consciência revolucionária do proletariado e na possibilidade de que outros camaradas possam sintetizar análises mais consistentes que fortaleçam nossa crítica histórica. Não obstante, é necessário que fique evidente que qualquer recusa das premissas de classe empregada em nossa análise constitui o que chamamos acima de “ideologia”, pois busca exprimir ideias funcionais à reprodução social do capitalismo, em vez de compreender realmente seu processo de constituição e perseveração.

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