sexta-feira, 27 de novembro de 2020

A bandeira negra, o anarquismo e um comentário adicional sobre a Jolly Roger

Imagem atribuída a um panfleto convocando ao Congresso de Amsterdã de 1907 (Congresso Internacional Anarquista).


Resumo: discussão acerca da presença da bandeira negra como símbolo anarquista na luta do proletariado e sua possível origem histórica remota.

Observação: todas as citações utilizadas foram traduzidas do original.

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1. Bandeira Negra na história do movimento operário e no anarquismo


Não existe um consenso sobre qual seria a origem “exata” da bandeira negra no movimento anarquista. Registram-se emergências difusas num mesmo período histórico, mas não se sabe ao certo qual a associação possível entre esses usos. No entanto, antes mesmo da consolidação do comunismo anarquista, a bandeira negra já havia sido hasteada nas lutas proletárias. Portanto, podemos começar por esses precedentes.

Albert Meltzer argumentou que a associação entre a bandeira negra e a revolta da classe trabalhadora “se originou em Rheims [França] em 1831 ([com a palavra de ordem] ‘Trabalho ou Morte’) em uma manifestação de desempregados” (1976, p. 49). Sharif Gemie também registra essa ocorrência das bandeiras negras em ocasião das revoltas de Lyon em novembro de 1831. Menciona-se um relatório policial enviado ao prefeito de Lyon que dizia: “Os tecelões de seda da Croix-Rousse decidiram que amanhã irão para Lyon, carregando uma bandeira negra, pedindo trabalho ou morte” (GEMIE, 1999, p. 52).

No caso dessas duas situações, estamos diante de lutas proletárias que precederam as revoluções de 1848 que sacudiriam a Europa. O proletariado ainda estava desenvolvendo seu programa de lutas, mas não havia amadurecido em sua perspectiva revolucionária. Como argumenta Piotr Kropotkin: “Quando, em 1848, os trabalhadores reclamavam o direito ao trabalho, organizavam-se ateliês nacionais ou municipais, e mandavam-se os homens penar nesses ateliês à razão de 40 soldos por dia!” (2011, p. 31). Essas demandas, como a noção de “República Social” com a qual se insurgiram em 1848 na França, não poderiam instituir uma nova sociedade, mas já preparavam as bases do futuro programa comunista (onde se abdicaria da “demanda por trabalho” em prol da luta pelas necessidades contra o Capital).

Mais uma vez na França, um pouco antes da Comuna de Paris (1871), teríamos outra ocorrência das bandeiras negras, conforme relata Louise Michel. Em ocasião da noite que precedeu o armistício de Thiers na guerra franco-prussiana, ela descreve que: “Por um momento, as bandeiras negras nas janelas tremularam no ar, e então não havia mais um sopro de vida” (MICHEL, 2014, p. 132). Nesse caso, a bandeira hasteada nas casas estava significando que não haveria rendição da parte do povo (o oposto da bandeira branca) em caso de assinatura do armistício. Como ela sintetizaria num de seus poemas, escrito durante a Comuna: “A morte carregará a bandeira; A bandeira negra que rasteja em sangue; E o roxo florescerá da terra; Livre sob o céu escaldante” (Michel, “Canção das Prisões” [Chanson des Prisons], maio de 1871, in: BRÉCY, 1991, p. 43).

Depois desses precedentes, o movimento operário revolucionário, que estava se organizando desde a Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1876), além de sofrer o revés em função da repressão pós-Comuna, também vai se dividir em duas tendências: uma “federalista”, reunida na Internacional de Saint-Imier (fundada por Bakunin e James Guillaume em setembro de 1872, após a expulsão dos bakuninistas e coletivistas da AIT, dissolvida em 1877) e a outra mais “centralista”, reunida entorno do Conselho Geral da AIT, que transferiu sua cede para Nova Iorque e foi dissolvido em 1876.

A reorganização do movimento revolucionário do proletariado, a partir da tendência “federalista”, vai passar por uma série de críticas que vão levar à constituição do Comunismo Anarquista. Uma das principais críticas se voltava contra o apelo fetichista ao trabalho do “coletivismo” presente no princípio de “repartir os produtos segundo a contribuição na produção”. Em 1880, em um congresso da seção de La Chaux-de-Fonds, remanescente federação jurassiana da “Internacional Federalista”, foi lido e aprovado o comunicado “Anarchie et communisme” de Carlo Cafiero (disponível em português: link). O periódico L'Avant-Garde difundiu o comunicado que, no mesmo ano, foi publicado em Le Révolté, em Genebra. Desde então, podemos falar em consolidação das bases fundamentais do programa revolucionário anarquista.

O movimento anarquista emergente tinha consciência da necessidade de coordenar a luta internacional do proletariado segundo uma orientação revolucionária. Neste sentido que, em julho de 1881, os anarquistas fundam a Associação Internacional das Pessoas de Trabalho (IWPA), como uma tentativa de organizar o anarquismo em nível internacional, estabelecida em uma convenção realizada em Londres. Essa organização ficou conhecida na época como “Internacional Negra”, popularizando a cor negra como símbolo do movimento operário revolucionário. Participaram da reunião na Inglaterra delegados estadunidenses que, no mesmo ano, adotariam as linhas políticas da IWPA na Convenção de Chicago.

Podemos associar à “Internacional Negra” as seguintes ocorrências da bandeira negra como símbolo do anarquismo enquanto programa revolucionário do proletariado:

  1. Em uma reunião pública de 18 de março em 1882, para comemorar a Comuna de Paris, Louise Michel proclamou que “a bandeira vermelha não era mais apropriada; [os anarquistas] deveriam levantar a bandeira negra da miséria” (An Anarchist FAQ). No ano seguinte, ela colocou suas palavras em prática. Segundo George Woodcock, Michel hasteava a bandeira negra em 9 de março de 1883, durante uma manifestação de desempregados em Paris. O protesto dos desempregados foi interrompido pela polícia e cerca de 500 manifestantes, com Michel na frente carregando uma bandeira preta e gritando “Pão, trabalho ou chumbo!”, marchou em direção ao Boulevard Saint-Germain. A multidão saqueou três padarias antes que a polícia atacasse. Michel foi presa e condenada a seis anos de confinamento solitário (An Anarchist FAQ).
  2. O jornal “Le Drapeau Noir” (A Bandeira Negra), iniciado em 1882, como uma das primeiras publicações do movimento a usar o preto como símbolo.
  3. O anarquista estadunidense, August Spies, teria hasteado a bandeira negra desde 1884 nas lutas de Chicago até a Revolta de Haymarket em 1886. Vale destacar que Spies adotava a linha política da Internacional Negra, desde a Convenção de Chicago que mencionamos acima. Os eventos de Haymarket geraram a comoção social pelos militantes que foram condenados a morte injustamente. Eles ficaram conhecidos como os “mártires de Chicago”, dando mais ênfase ao caráter expressivo da cor negra (luto pelos que tombaram e luta contra seus algozes).

Nesses fatos históricos, o princípio da ação direta está associado tanto no caso estadunidense quanto no caso francês. O sentido da cor negra demonstra uma negação a qualquer forma de conciliação de interesses com os dominantes, tanto que esse foi um dos motivos pelos quais a IWPA se chamou de “Black Internacional”, dado que estavam se opondo ativamente à reorganização da tendência social-democrata e seus métodos reformistas de ação indireta (disputa no parlamento da burguesia, apelo aos capitalistas por reformas trabalhistas, regulação legal dos sindicatos, dentre outras coisas). Os anarquistas continuavam fiéis ao princípio da AIT de que “a emancipação da classe trabalhadora será obra da própria classe trabalhadora” e adotavam isso na prática que denominavam de ação direta [1].

Mas é necessário reconhecer que a bandeira vermelha não havia sido abandonada pela classe proletária. O anarquismo acrescentou ao movimento socialista o princípio de não mediação com as organizações sociais burguesas. A bandeira negra foi hasteada justamente para demonstrar que não haveria mais capitulações que fizessem o socialismo recuar, pois se lutaria desde o princípio em função do objetivo socialista: o comunismo. Uma luta sem tréguas, empregando os meios de nossa própria classe social através da ação direta. Quando o proletariado adotou a cor negra como um de seus símbolos de luta, ele anunciou para classe dominante seu grito de guerra: “socialismo ou morte”!

2. Aproximações com a Jolly Roger


Uma de nossas referências afirma ser possível fazer uma associação das bandeiras de pirata (Jolly Roger) com a bandeira negra. Vamos explicar aqui porque consideramos plausível essa hipótese. Mas não somente isso: porque é necessário cultivar nosso imaginário com outros mundos possíveis.

Apesar de não concordarmos com os posicionamentos desse autor e também considerá-lo um tanto quanto tendencioso, precisamos reconhecer o esforço de pesquisa realizado por Peter Lamborn Wilson para desenvolver seu conceito de “Utopias Piratas”:

Os piratas e corsários do século XVIII montaram uma “rede de informações” que se estendia sobre o globo. Mesmo sendo primitiva e voltada basicamente para negócios cruéis, a rede funcionava de forma admirável. Era formada por ilhas, esconderijos remotos onde os navios podiam ser abastecidos com água e comida, e os resultados das pilhagens eram trocados por artigos de luxo e de necessidade. Algumas dessas ilhas hospedavam “comunidades intencionais”, mini-sociedades que conscientemente viviam fora da lei e estavam determinadas a continuar assim, ainda que por uma temporada curta, mas alegre (Hakim Bey, em pdf: “TAZ – Zona Autônomas Temporárias”).

Segundo Wilson, esses assentamentos eram transculturais (agregavam pessoas de diferentes origens) e, em certos casos, eram abolicionistas (no sentido de que libertavam escravizados, inclusive através de ataques a navios negreiros). Essa “história alternativa” da pirataria é cheia de controvérsias e acusada de romantizar “bandidos”. Mas também temos motivos para duvidar da versão “hegemônica”, pois sabemos muito bem como a historiografia dominante tem retratado qualquer “movimento social” desviante dos “padrões da época”. Mas vejamos outra fonte antes.

Na introdução do romance “Cidades da noite escarlate” (1981), de William Burroughs, também há um esforço de pesquisa onde o autor menciona o que poderia ter sido estas “utopias piratas”. Já no início de seu livro, Burroughs afirma que “os princípios liberais englobados na revolução francesa e americana, e mais tarde nas revoluções liberais de 1848, já haviam sido codificados e aplicados por comunidades de piratas cem anos antes” (BURROUGHS, 1995, p. 9). Ele cita como exemplo a colônia pirata do capitão Mission fundada no século XVIII:

A colônia recebeu o nome de Libertaria e era regida pelos Artigos elaborados pelo capitão Mission. Os Artigos proclamam, entre outras coisas: todas as decisões relacionadas com a colônia serão submetidas à votação dos colonos; a abolição da escravidão por qualquer motivo, inclusive dívida; a abolição da pena de morte; e liberdade para seguir quaisquer crenças ou práticas religiosas, sem sanção ou molestamento (BURROUGHS, 1995, p. 10).

A referência que é utilizada ao se falar da Libertaria é um livro assinado por um desconhecido “Charles Johnson”, Uma História Geral dos Roubos e Crimes de Piratas Famosos (publicado pela primeira vez em 1724). Acredita-se que o autor verdadeiro tenha sido Daniel Defoe (autor do romance de Robinson Crusoé).

Apesar das prováveis inconsistências nessas hipóteses que atribuem práticas libertárias aos piratas, além de uma ressonância com o mito da criminologia lombrosiana de que o anarquista seria um “criminoso nato”, não é impossível imaginar que processos do gênero possam ter acontecido. Por exemplo, na Europa Medieval houve um movimento herege conhecido como “Irmãos do Livre Espírito”:

As doutrinas dos Irmãos do Espírito Livre lembram as heresias do primeiro século do cristianismo. Pela contemplação mística, ensinavam, o homem une-se a Deus, une-se de tal forma que ele é Deus, e eleva-se acima de todas as leis, igrejas e ritos criados por Deus para o homem comum, então pode fazer tudo o que deseja. Unido com Deus o pecado torna-se impossível ao místico, portanto ele pode fazer tudo aquilo que deseja. (…) Os Irmãos do Espírito Livre não se colocaram como um movimento organizado, funcionavam como um corpo difuso de esotéricos, satisfeitos em operar dentro da Igreja e no movimento das comunidades místicas seculares. Eles deixaram poucos registros em sua passagem exceto quando eram capturados por seus inimigos, ou em testemunho extraído sob tortura quando eram julgados (REXROTH, 2002).

O que é importante destacar é o seguinte: esses eventos históricos são relembrados pelas gerações posteriores não apenas como meros fatos, mas como situações de significância e inspiração prática. Compreendemos melhor o conceito de “utopia” como um mundo possível que nosso imaginário é capaz de formular a partir das próprias premissas de uma condição histórica. Não se trata de um horizonte romântico de algo que jamais existirá, mas uma forma de fabulação de um modo de vida alternativo pelo qual nos esforçamos ativamente por construir.

Neste sentido, a inspiração nas Jolly Rogers não é uma hipótese descartável para atribuir à escolha da cor negra pelos movimentos sociais que citamos na primeira seção. Segundo Jason Wehling, a simbologia das bandeiras de pirata foi apropriada por movimentos que se colocavam na ilegalidade pelas demandas que faziam. Os piratas geralmente hasteavam as bandeiras antes de um ataque a outro navio para lançar a mensagem “rendam-se ou morram!”. A ideia dos movimentos citados por Wehling (1995) era reproduzir esse lema contra as autoridades dominantes de sua época.

Argumentamos acima que a bandeira negra do proletariado simboliza a luta direta pelo objetivo socialista e falamos que hasteá-la significava declarar: “socialismo ou morte”. Além disso, o conceito de ação direta no anarquismo tem sido usado muitas vezes para praticar o que Luigi Fabbri denomina “terrorismo libertário” (veja-se: link). E embora lutemos pela abolição do próprio tráfico (ou seja, mercado) enquanto instituição que estava presente na pirataria, não negamos que vamos expropriar a classe dominante, ainda isso não seja uma pilhagem, mas sim um ato de tomar de volta tudo que nos fora expropriado no passado. A questão, portanto, reside numa mera semelhança estética, mas que funciona para traduzir o lema de que iremos lutar com todas as nossas forças para destruir o capitalismo e construir o comunismo libertário.

Notas:


[1] – Sobrea oposição entre ação direta e indireta, veja também: COSTA, Emilio. Acção directa e acção legal. Lisboa: União das Associações de Classe de Lisboa, 1912. Disponível em: link.

Referências:


BRÉCY, Robert. La Chanson de la Commune: Chansons et poèmes inspirés par la Commune. Paris: Les Éditions Ouvrières, 1991.

BURROUGHS, William. Cidades da noite escarlate. Tradução de Pinheiro de Lemos. São Paulo: Siciliano, 1995.

GEMIE, Sharif. French Revolutions, 1815-1914: An Introduction. Edimburgo: Edinburgh University Press, 1999.

KROPOTKIN, Piotr. A Conquista do Pão. Tradução de Cesar Falcão. Rio de Janeiro: Achiamé, 2011.

MCKAY, Ian (Org.). Appendix – The Symbols of Anarchy, In: An Anarchist FAQ. Disponível em: link. Acesso em: 18 nov. 2020.

MELTZER, Albert (ed.). The 'Black flag' anarcho-quiz book. Sanday: Simian Publications, 1976.

MICHEL, Louise. La Comuna de París: Historia y recuerdos. Madrid: Lamalatesta, 2014.

REXROTH, Kenneth. Comunalismo: das origens ao século XX. Tradução livre pelo Coletivo Periferia. eBookLibris: link.

WEHLING, Jason. Anarchism and the History of the Black Flag. 14 jul. 1995. Disponível em: link. Acesso em: 18 nov. 2020.

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