terça-feira, 28 de julho de 2020

Democracia ou Anarquia (1890) – Charlotte Wilson

Foto de Charlotte Wilson, extraída de: link.


O curto ensaio “Democracy or Anarchy”, escrito por Charlotte Wilson, teria sido publicado em 1884, segundo o site “panarchy”. Não obstante, nesse ano só se tem registro de duas publicações da Wilson acerca do anarquismo, realizadas no “Justice em novembro de 1884, assinando-se como ‘An English Anarchist’” (QUAIL, 1978). Segundo Nicolas Walter (2000, pp. 19-28), as publicações que se encontram no Justice são dois artigos de título “Anarchism” (ambos formam um texto só na verdade, divido em duas partes). Ainda segundo o livro editado por Walter, o “Democracy or Anarchy” é de 1890 (2000, pp. 66-72). Não obstante, não tivemos acesso à fonte de onde Walter extrai essa informação, porque não tivemos acesso ao livro completo (apenas ao sumário – que é possível acessar gratuitamente pela Amazon) e tal ensaio não consta como publicação no jornal Freedom (editado por Charlotte Wilson). Podemos acrescentar aqui a seguinte informação extraída do centenário da Freedom: “Em janeiro de 1889, a Freedom foi temporariamente suspensa por causa de sua [refere-se a Wilson] doença e, quando foi retomada em março de 1889, foi editada por James Blackwell com a ajuda de um ‘comitê de trabalhadores’. Ela assumiu novamente em fevereiro de 1891, quando Blackwell saiu” (veja-se a página 10 do link do centenário).

Apesar de desconhecermos onde havia sido publicado pela primeira vez o ensaio que ora traduzimos, consideramos essencial publicá-lo devido à pertinência do debate envolvendo a diferenciação entre anarquia e democracia, embora a autora não especifique o que entende precisamente por “anarquia” (ainda que fique implícito no texto que a “livre associação sem coerção” possa ser entendida como “anarquia” mesmo). Futuramente pretendemos descobrir com precisão onde foi realizada a publicação original de Wilson e colocaremos a referência aqui.

Demais referências: QUAIL, John. The Slow Burning Fuse: the lost history of the british anarchists. London: Granada, 1978 | WALTER, Nicolas (Ed.). Anarchist Essays, by Charlotte Wilson. London: Freedom Press, 2000.

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Democracia é a teoria política que supõe que todos os membros de uma comunidade se encontrem iguais em termos iguais, mas que, no entanto, a maioria tem o direito absoluto de dominar a minoria. E vale a pena examinar atentamente o real significado desse curioso non sequitur, que começa com a fórmula da livre associação e termina com a fórmula da autoridade.

De onde a maioria obtém seu direito absoluto? Direito é uma palavra duvidosa que não se pode usar sem explicação; mas suponho que nós entendemos por isso, de maneira geral, uma reivindicação apresentada por membros de uma sociedade e admitida pelo resto, seja porque eles acham que é justa ou porque estão com medo ou relutantes em contestar – uma reivindicação socialmente reconhecida, de fato. Costuma-se dizer que os homens não possuem direitos uns contra os outros, individual e coletivamente, mas, como tais, são capazes de manter por força superior. E acho que, embora essa teoria bárbara e desumana seja perfeitamente falsa em relação a muitos direitos sociais, essa é a explicação universal da aceitação de uma reivindicação para governar. Mas o governo da maioria pode reivindicar seu direito por esses motivos?

Não é uma verdade clara e óbvia que a supremacia em força bruta não repousa de maneira alguma na maioria. A história e a vida cotidiana nos mostram exemplos “espessos como as amoras” de uma minoria enérgica e resoluta derrotando totalmente a maioria nas provas mais desesperadas da força física real, desde os dias em que um punhado de gregos derrotou os poderosos exércitos da Pérsia na planície de Maratona e Horácio e seus dois companheiros mantiveram a ponte do Tibre contra o exército de Lars Porsena. A providência luta do lado do batalhão mais forte, mas de modo algum do lado maior. E isso é ainda mais óbvio quando o concurso é transferido para o campo intelectual.

Não; a história da autoridade consistiu em uma série de regras minoritárias, cada uma das quais existindo em virtude da posse superior da força real da energia vital, de uma forma ou de outra. E onde está a evidência de que a força dominante está prestes a se tornar ou está se tornando o quinhão da maioria? Hoje a maioria mantém a relação que sempre manteve com a minoria energética da população. Ela representa o flagelo morto de uma adesão cega ao hábito e aos costumes, de insensibilidade, embotamento e apatia, de inclinação preguiçosa para evitar toda responsabilidade, toda reforma, todo esclarecimento, de fato, todos partem pelos caminhos mais conhecidos, todos precisam de um esforço inabitual, mesmo em pensamento. Se é para exercer autoridade, ela será exercida apenas pelo peso morto da inércia, a força cega do irracional e da irresponsabilidade estúpida – no sentido, de fato, em que a exerce agora e que sempre exerceu.

Sem dúvida, “o público coletivamente”, como Mill diz, “está abundantemente pronto para impor não apenas suas visões geralmente estreitas de seus próprios interesses, mas também sua opinião abstrata e até seu gosto sobre os indivíduos”. E se este tiver uma maquinaria sob seu comando para fazer isso sem problemas, oprimirá sem piedade. Você acha que a maioria dos cidadãos americanos não estava relutante de que os homens de Chicago ou John Brown deveriam ser enforcados assim como a maioria dos judeus de que Cristo deveria ser crucificado? Você acha que um plebiscito dos cidadãos de Londres, ou os habitantes da Inglaterra, manteriam o direito de se encontrar na Trafalgar Square? Em nome do progresso humano e da iniciativa individual espontânea da qual depende, podemos agradecer às nossas estrelas que a maioria ainda não mostra sinais de adquirir esse direito de governar fundado na força superior. Mas se a teoria da democracia ou o governo da maioria não pode basear-se no apelo à força que tem sido a base de todas as outras decisões soberanas [over-ruling], qual é a sua base? Deveríamos dizer conveniência? Esta é uma primeira aproximação – uma tentativa desajeitada de retornar ao princípio da livre associação, permanecendo dificultada pelas ideias de autoridade ainda atuais na sociedade. Em todas as ocasiões para ação comum, ou onde um entendimento geral é desejável, é preciso ter algum princípio de decisão e o recente desenvolvimento do sentimento social tornou-se um apelo para as antigas espécies de autoridade como moralmente odiosas, conforme isso é intelectualmente desprezível. É uma questão de experiência comum que homens, como ovelhas e todos os outros animais gregários e sociais, possuem uma tendência bastante geral de ir em massas e agir em conjunto, a menos que sejam impedidos por alguma divisão anormal de interesses. Cada um de nós é inclinado por nosso sentimento social a gostar de uma maneira geral de fazer o que o resto gosta. Em noventa e nove casos de cem, onde várias pessoas se reúnem para decidir sobre algum curso de conduta comum, no final, todos chegarão a uma decisão definitiva em favor de uma coisa; porque aqueles que antes estavam dispostos a discordar preferem, no final, agir com a maioria, se o assunto for de importância prática; não porque eles são forçados a fazê-lo pela maioria soberana [over-ruling], mas porque o maior corpo de opinião tem tanto peso com eles que eles escolhem não agir de maneira contrária.

Todos admitimos esse fato geral. Seria completamente impossível tomar qualquer ação comum, se não fosse assim. Mas a teoria especial da democracia é que a tendência geral da humanidade, que se torna tão aparente sempre que os homens se associam a algo em termos de igualdade econômica, deve ser transformada pelos homens em uma lei arbitrária da conduta humana a ser aplicada não apenas nos noventa e nove casos em que a natureza a aplica, mas pelos métodos arbitrários de coerção no centésimo lugar em que ela não o faz. E pelo bem do centésimo caso, pelo bem de impor essa tendência natural geral onde a natureza não a impõe, os democratas nos manterão em nossa relação política esse princípio fatal da autoridade do homem sobre o homem que tem sido a causa de confusão e desordem, de erro e miséria nas sociedades humanas desde os primórdios da história.

“Os homens não são sociais o suficiente para sobreviver sem isso”, já foi dito. De nossa parte, não sabemos quando eles serão sociais o suficiente para fazer isso. A experiência ainda não revelou o homem em quem poderia seguramente confiar com poder sobre seus companheiros; e o governo da maioria nada mais é na prática do que colocar nas mãos de indivíduos ambiciosos a oportunidade de esmagar seus companheiros pelo peso morto da massa cega da qual falamos.


Capa do livro com ensaios de Charlotte Wilson, editado por Nicolas Walter.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Extratos de um artigo de Carlo Romani sobre o anarquismo italiano (2013)

Errico Malatesta & Luigi Fabbri, dois militantes importantes do anarquismo italiano.



Com o objetivo de difundir informações acerca da formação histórica do movimento anarquista, vamos compartilhar trechos de uma Conferência proferida pelo historiador Carlo Romani, publicada na forma de artigo na Revista de Estudos Afro-americanos em 2013. Esse material aborda as especificidades da contribuição do anarquismo italiano para a doutrina social do anarquismo como um todo. Selecionamos os trechos que consideramos mais pertinentes. É possível acessar o documento completo em:

Como sugestão de leitura complementar, indicamos os seguintes artigos: 

Observação: incluíamos entre colchetes as notas do autor utilizadas nos trechos selecionados e adaptamos a numeração das mesmas ao nosso próprio extrato.

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A ideia de federações anarquistas, de grupos declaradamente anarquistas só começa a surgir em meados da década de 1880, até então, não se encontrava nos grupos locais sua associação efetiva à palavra anarquismo, anarquista, apesar de que, enquanto militantes, se declaravam assim.

Os historiadores começaram a identificar isso como uma descontinuidade, para quem não conhece a forma de organização inicial anarquista o movimento é aparentemente invisível até a metade dos anos 1880, pois está diluído no que sobrou das antigas seções locais e regionais dos trabalhadores [1]. Mas, esse movimento sindicalista é somente visível para essa historiografia marxista como um movimento social não socialista de trabalhadores, com componentes muito pouco próximos ao pensamento revolucionário de Marx dentro das sessões da Internacional. Santarelli entendeu isso como um ponto de fragilidade da organização dos operários e trabalhadores italianos.

As sessões da Internacional na Itália desde 1868, particularmente, se aproximaram muito mais das propostas coletivistas bakuninistas do que da vertente do comitê central liderado teoricamente por Marx. Em 1872, quando houve a cisão - o rompimento que encerra a Primeira AIT – a maioria das sessões italianas não seguiu o caminho do comitê central, elas aderiram à Federação do Jura e depois à Internacional fundada em Saint-Imier que dá continuidade ao internacionalismo operário até o ano de 1878. Cerca de 90% das sessões italianas seguiram esse mesmo caminho sindical, do mundo mediterrâneo e eslavo, apenas alguns centros do norte da Itália não realizaram esse caminho e migraram para as posições socialistas que levariam à criação do Partido Socialista [2].

Ocorre que os historiadores que se debruçaram sobre a gênese do movimento anarquista, somente conseguiram localizar efetivamente a presença do nome anarquismo a partir da segunda metade da década de 1880, quando há uma retomada da movimentação e da organização dos trabalhadores após uma forte repressão desencadeada no final da década anterior no sentido de combater efetivamente todas as sessões da Primeira Internacional.

O que tivemos foram momentos mais combativos dos movimentos de organização de trabalhadores na Itália durante a década de 1870. A partir da segunda metade da década de 1870, temos um declínio acentuado. Em 1878 foram promulgadas pela primeira vez leis que foram de chamadas leis contra as “associações para delinquência”, uma forma legal de punir os membros da Internacional, que foram colocados na categoria de bandidos, de delinquentes, malfeitores [3].

Entre 1878 e 1885, houve uma varrida muito grande contra os trabalhadores envolvidos em organizar sindicalmente seus companheiros, acontecendo a primeira diáspora desses militantes italianos para outros países da Europa que ainda eram mais flexíveis como a Suíça, a França e a Alemanha. E começa também a emigração de italianos para os EUA e depois para a Argentina. Malatesta, por exemplo, em 1885 vai para a Argentina e vai procurar ouro na Patagônia como forma de financiar a luta revolucionária socialista, antiparlamentar. Esses militantes emigrantes saídos da Itália ainda não se declaravam anarquistas, mas em grande parte seguidores das ideias de Bakunin. Malatesta somente vai enunciar um projeto socialista e anarquista de libertação social em Buenos Aires com a publicação de seu periódico La Questione Sociale em meados de 1885.

A partir de 1886, há uma organização efetiva do movimento anarquista italiano até mais ou menos o ano de 1893. Em 1893, no ápice do novo movimento de organização dos trabalhadores, começam a eclodir processos de convulsão social como os fasci operários na Sicília em novembro e dezembro.

Na realidade, os fasci, que hoje vinculamos ao fascismo, tiveram justamente sua origem nesses grupos de anarquistas federados em suas cidades (Palermo, Catânia) operantes na Itália meridional. O fasci corresponderia hoje a uma espécie de bonde de pessoas que promoverá um arrastão, um tumulto. Essa tática de luta dos trabalhadores sicilianos depois será usada pelas esquadras fascistas adeptas de Mussolini a partir de 1919 para atacar seus opositores.

Em 1894, o movimento dos fasci operários sicilianos assumiu outra proporção e atingiu os trabalhadores anarquistas federados da Lunigiana na Toscana, região das marmorarias de Carrara, onde vão acontecer os grandes motins que se propagaram por toda a península. E temos em seguida outro ciclo forte de repressão dentro do governo do primeiro-ministro Francesco Crispi, que novamente vai criminalizar a associação anarquista como associação de delinquentes [4].

Em 1898, teremos um último grande motim na Itália desse século, que aconteceu em maio em Milão, onde o general Bava-Beccaris – sob a ordem de Umberto I – mandou atirar na multidão, matando cerca de 400 pessoas entre homens, mulheres e crianças, que estavam atrás das barricadas [5]. A vingança será o motivo reclamado por Gaetano Bresci para fazer o atentado que vai matar o rei Umberto I dois anos depois.

O movimento socialista dos trabalhadores na Itália, inicialmente fortemente influenciado pelos bakuninistas que vão assumir o caráter anarquista na metade da década de 1880, é muito intermitente, não conseguimos perceber uma linha de continuidade ascendente. O movimento também sofre com a concorrência dos socialistas parlamentaristas, do Partido Socialista Italiano criado em 1890.

O estudo sobre o anarquismo italiano para ser bem realizado implica, em primeiro lugar entender a especificidade de sua organização, de um movimento que não tem um partido, uma estrutura centralizada, que, portanto, sofre rapidamente com a uma possível repressão colocada em curso, mas que, ao mesmo tempo, pode se reorganizar quatro ou cinco anos depois, justamente por ser flexível, não ter essa estrutura rigidamente organizada.

Esse é um problema historiográfico, do anarquismo como um todo e particularmente do anarquismo italiano. A Itália é uma península dividida economicamente e culturalmente desde o centro em direção ao norte, que tem uma população de origem germânica. O norte tem um perfil capitalista bastante avançado, onde a Igreja não tem uma participação junto ao latifúndio, aos velhos sistemas agrários do sul. As cidades de Milão, Turim, Bolonha, já eram centros industriais importantes nas últimas décadas do XIX, de grande destaque no cenário europeu.

Desde a década de 1870, todo o norte da Itália já está integrado por linhas férreas ao resto da Europa. Há uma ponte comercial que liga Turim a Lyon, um importante eixo de comunicação que vem desde a época da rota da seda, ainda no século XV, da transferência de mercadorias de Florença para os centros têxteis que existiam em Lyon. Portanto, o centro-norte da Itália é efetivamente integrado a uma Europa que tem um forte dinamismo econômico capitalista, que o centro-sul não tem.

Estão aí, as raízes dos problemas contemporâneos da Itália, da cisão dela em duas, do surgimento do “populismo” de Berlusconi, da tentativa de separação promovida pela Lega Norte, de uma Itália capitalista e uma Itália economicamente mais atrasada, ainda ligada aos valores morais da Igreja católica, o centro-sul onde justamente o fascismo se estabeleceu.

A Itália não é como a França, país que faz efetivamente a ponte entre o mundo germânico e o mundo latino na Europa. Por isso que a França possui sua grandeza cultural no elemento de união entre duas culturas distintas. Já a Itália a tem em uma proporção bem menor e apenas em parte dela, a setentrional, cuja região tem um perfil importante dentro da dinâmica do capitalismo europeu a partir da segunda metade do século XIX, tanto que o Risorgimento, ou seja, o movimento de unificação da Itália, parte da região mais próxima da França, do Piemonte, de Turim, local onde será a futura sede da fábrica nacional de automóveis, a FIAT, financiada pelo Estado.

(…)

Como as ideias anarquistas chegaram à Itália? No sentido de que ainda não se tinha o conceito claro de anarquismo no movimento, mas você tinha a prática, uma prática pouco organizada e que buscava uma ideia de organização sem autoridade.

Chegam via Bakunin. O anarquismo na Itália começa a se desenvolver quando Bakunin chega em Florença em 1863, onde vai criar uma sociedade secreta e depois segue para Nápoles, local em que encontra com Malatesta que se tornará seu discípulo na irmandade internacional fundada pelo russo.

Esse é outro ponto, por que Bakunin vai para Nápoles e não para Milão ou Turim? Porque Bakunin tinha um princípio, uma ideia que desenvolve mais claramente em sua estada na Itália, é o que ele vai debater em 1868 dentro da AIT. Bakunin dirá que não adianta o senhor Marx e os delegados ligados ao comitê acharem que os operários ingleses ou alemães, ou a aristocracia operária nas fábricas, serão a linha de frente de um processo revolucionário, porque não serão. Eles serão os primeiros a se aburguesarem, como é a tendência de todo operário na medida em que ascende socialmente, como por exemplo, é o caso do operário do ABC paulista.

(…)

Do ponto de vista da economia, os princípios máximos dos liberais não se realizarão, porque irá aparecer um fator de divisão de classe interno à sociedade, dentro daquela lógica burguesa, fazendo com que alguém trabalhe para alguém que já acumulou antes. Estava posta a divisão em classes que rompeu com a utopia liberal da igualdade política criticada por Godwin.

Esse último grupo social formará o proletariado, que ainda se encontrava mais próximo dos elementos da antiga comuna, mas que uma parte dele, com a disciplina das igrejas protestantes começam a ter uma perspectiva de aburguesamento pelo caminho do trabalho fabril. Nos locais onde não se teve esse processo de disciplina, como é o caso da Itália meridional, extremamente ligada ao campo e aos valores transcendentes da Igreja Católica, em que há mais o interesse da população em permanecer no seu modo de vida original comunitário, é onde Bakunin vai falar que haveria maior possibilidade de se encontrar uma resistência ante esse novo fenômeno que é o capitalismo, que está se desenvolvendo no mundo inteiro, a partir da superação das lógicas agrárias anteriores e do casamento entre a burguesia que ascendeu junto aos antigos proprietários de terra. Não serão nesses operários da indústria em vias de se aburguesar que encontraremos essa resistência para uma revolução, porque a tendência deles seria a de se incorporarem nessa dinâmica maior em curso dentro do capitalismo. E é no sul da Itália, que Bakunin vai encontrar essa vitalidade pré-capitalista.

(…)

Voltando ao problema historiográfico do anarquismo italiano, tanto Cerrito, que é o primeiro a colocar esse problema no final dos anos 1960, quanto depois, em um segundo momento, Carl Levy, que escreve sobre a Itália e o anarquismo italiano no final dos anos 1980 e Davide Turcato, já no século XXI, farão alguns apontamentos.

Cerrito fala que as fontes da polícia são importantes, porque o movimento, mesmo antes de ser efetivamente anarquista, já sofria continuamente com a repressão da polícia durante três décadas, a partir de 1871, da Comuna de Paris, até 1902-03. Será extremamente perseguido pela polícia italiana. Logo, as fontes da polícia nos permitem identificar os momentos em que os agentes da repressão, as chamadas “forças da ordem” tiveram um efetivo enfrentamento contra o movimento que tentava se organizar.

As fontes da polícia começaram a ficar disponíveis justamente a partir da década de 1960, quando se organiza um grande inventário no Arquivo Central do Estado, em Roma, o do CPC (Casellario Politico Centrale), que consegue estruturar toda a atuação da Pubblica Sicurezza, a segurança pública italiana, desde 1880. Contêm fichários nominais, fichários das federações, fichários de partidos, fichários relativos a jornais, entre outros, que permitem essa reconstrução, mesmo que no século XIX ainda não existisse uma organização efetiva de controle social na polícia italiana. Mas a partir de 1894, no governo Crispi, a Itália passa a ter uma ação preventiva mais sistemática, algo que no Brasil só vai começar a existir em 1922, com a criação da Delegacia Auxiliar do Rio de Janeiro que tinha a tarefa de delegacia política. Essa política preventiva de segurança brasileira inicia-se no governo de Arthur Bernardes que vai criar o DOPS, cujos fundos estaduais cumprem atualmente para o historiador brasileiro guardado as devidas proporções, o papel do CPC (ROMANI, 2011, pp. 161-178).

Essa política de repressão começou a ser realizada na Itália em comum acordo com a Suíça e a França no final dos anos de 1880. Nesse sentido, os arquivos da polícia são importantes para que se construa uma história da relação da repressão oficial com o movimento anarquista.

Um segundo ponto inicia-se a partir da luta específica da organização do movimento e de como ele se difunde. Como seria possível rastrear um movimento que não tem uma organização formal? Será através da imprensa e daqueles que escrevem, dos atores sociais, dos agentes políticos, que são os protagonistas dos periódicos. Porque, às vezes, os periódicos mudam de nome, mas os diretores permanecem, dificilmente acontece o contrário, quando você tem um periódico que muda de diretor.

Temos então, uma linha de identificação do periódico ao individuo que o dirige e ao grupo de colaboradores, que eventualmente assume a direção de um periódico posterior, e ai se dá o personalismo. Essa linha de continuidade que devemos traçar é muito intermitente, como por exemplo, L’Agitazione, fundado por Malatesta, que começa em 1897 e acaba em 1898, e somente retorna com o mesmo nome em 1913. Mas, essa mesma tendência anarquista publica desde 1894 L’Avvenire Sociale e a partir de 1903 vai publicar Il Libertario, cujo diretor Pasquale Binazzi havia estado antes no periódico de Malatesta e que se reencontrarão em 1920 em Umanità Nova. Se não prestarmos atenção em que a política de redação, os colaboradores e o editor são os mesmos, o que representa uma continuidade, aparentemente terão sinais de descontinuidade do movimento.

Segundo aqueles historiadores citados, a melhor forma de se fazer a história do anarquismo seria a de confrontar as fontes oficiais, que são as fontes da polícia, com as fontes produzidas pelos anarquistas através do que eles deixaram de legado, principalmente a imprensa. Pois, por não ter estatutos, atas, o movimento anarquista é mais difícil de produzir uma história processual, diferentemente do procedimento dos partidos políticos. E do entendimento de como se movem essas diferentes tendências em relação a como o mundo muda, mudam também os problemas históricos sociais colocados, e nesse sentido, como as perspectivas de transformação dos anarquistas vão mudar também.

Turcato coloca outro problema, no caso específico do anarquismo italiano, sendo necessário para o entendimento dessa continuidade, ter um olhar não limitado, estudar não somente a Itália. Porque o anarquismo italiano é um anarquismo que se realiza na diáspora, a partir principalmente da repressão do governo Crispi na década de 1890.

A repressão feita a partir do final da década de 1880, através de um tipo de confinamento de prisioneiros políticos acusados de associação à delinquência, em prisões que não são como as convencionais, eram penhascos, ilhas, onde eram confinados os chamados agitadores políticos, integrantes de diversos movimentos sociais. Eles permaneciam presos durante anos, até um momento em que uma determinada mudança acontecia, um acalmar da convulsão social que assolava periodicamente a Itália, que permitia um relaxamento da prisão possibilitando o retorno do preso ao seu local de origem.

Muitos deles, nessas idas e vindas, como foi o caso de Oreste Ristori, de Malatesta, de Damiani, emigraram. Damiani chegou ao Brasil em 1897, indo para Curitiba e depois vai para São Paulo. E em São Paulo, Damiani – que é uma figura importantíssima no anarquismo italiano – é menos conhecido do que Ristori, porque Ristori chegou ao Brasil com status de propagandista vindo da Argentina e veio para cá publicar La Battaglia, enquanto Damiani só será seu sucessor no periódico em 1912, depois de Ristori ser preso e se desiludir com o movimento anarquista.

Para se reconstruir a história do movimento anarquista da Itália, devemos confrontar os arquivos oficiais, analisar a imprensa, buscar essas linhas de continuidade que existem, mas que não são evidentes, e procurar refletir sobre como esses elementos se articulam com os de outros países, pois o anarquismo vai na esteira da emigração, não como um movimento migratório exclusivamente por motivos econômicos, mas por conta de sua perseguição política. Primeiro, buscando refúgio nos países limítrofes, particularmente no sul da França, em Nice, em Marselha, ou na Suíça, que são os grandes centros iniciais da rearticulação do anarquismo italiano na década de 1890 fora da Itália, e depois indo para os EUA e em seguida para a Argentina, Uruguai e, enfim, o Brasil, em São Paulo.

O Risorgimento é o movimento que começa a partir da casa real de Turim, com o objetivo de unificação nacional, pois já se tinha um nome nacional, mas a Itália ainda não era unificada, o que tem a ver com a perspectiva do republicanismo jacobino que não ocorrerá.

Contudo, no começo da década de 1860, os republicanos eram muito fortes, principalmente na pequena burguesia e em uma parcela dos trabalhadores que acreditavam em uma transformação herdeira de certo jacobinismo arraigado na península.

Quando Bakunin chega a Nápoles em 1864, começa a se difundir no sul da Itália outro ideal de libertação, não mais nacional. Nessa década começam a proliferar sessões da Internacional inicialmente nas cidades de Palermo, Nápoles, Bari, Catânia, que não eram os grandes centros operários industrializados, que ficavam na região do centro-norte do país.

Dois nomes vão aparecer como interlocutores de Bakunin nessa época e que depois vão dar o primeiro impulso à organização do movimento anarquista no começo da década de 1870 na Itália: Carlo Cafieiro e Errico Malatesta.

Por conta da influencia bakuninista, as associações assumem de certa forma, uma tentativa de buscar permanecer como associações secretas, porque a visibilidade facilitaria a possibilidade de repressão ao grupo, mas que os grupos visíveis se organizariam não na forma de ação política declarada, mas na ação de forma sindical, através das sessões da Internacional, para burlar a repressão por parte da polícia e dos agentes militares para quem, depois da Comuna de 1871, as sessões da Internacional foram ligadas diretamente à causa da revolução. A partir de 1872, as sessões italianas da Internacional serão perseguidas também.

Surge na Itália então, uma vertente que vai ser muito forte, uma forma de associação socialista e anárquica denominada de anti-organizacionista. O anti-organizacionismo vai dominar o cenário do movimento social italiano, os grupos sociais de trabalhadores e anarquistas na década de 1880 não ligados a uma concepção de partido tanto republicano quanto socialista.

Mas, junto com Malatesta, outros nomes importantes do anarquismo da década de 1880, como Andrea Costa, que depois se tornará socialista, e principalmente no final dessa década, Francesco Saverio Merlino, vão perceber a carência, a necessidade, a falta de uma organização dos grupos socialistas anárquicos voltados para o movimento social.

Porque a palavra de ordem de todos os grupos e movimentos na década de 1870, inclusive dos jovens malatestianos era a “revolução social”. Havia uma ideia fortemente influenciada por Bakunin, de que não seria necessária uma grande organização articulada em todo o país para se empreender uma revolução social, porque a revolução aconteceria por uma demanda, uma necessidade dos trabalhadores, uma necessidade dada veementemente por um desequilíbrio econômico existente, pela desigualdade social, também essa a fragilidade do capitalismo da década de 1870 na Itália. E as sessões da Internacional passaram a ser braços dessa agitação social, de difusão da revolução social, e por isso foram perseguidas.

Em 1878, por conta dessa perseguição mais acentuada da polícia italiana, há um desmantelamento das primeiras organizações, que só voltarão a se reorganizar a partir de 1886 na região da Toscana, mudando assim o epicentro do anarquismo italiano da região meridional, onde ele se iniciou, para a região que em meados do século seguinte será denominada de região vermelha da Itália, porque fortemente comunista, na Emília-Romanha, em Bolonha, e na Toscana.

O anarquismo será inserido mais efetivamente dentro das organizações operárias no final dos anos de 1880 e começo dos anos de 1890 quando vão aparecer federações anarquistas como a de Livorno, Florença, Carrara, depois em Imola, em Cesena, e em várias outras cidades.

Na década de 1890, o anarquismo na Itália começa a adquirir uma característica mais organizada, mas muitos ainda permanecem individualistas e resistentes à organização, porque entendem que a organização seria uma forma de centralização política e ainda tem em mente o que acontecera anos antes na Internacional [6].

Mas, foi principalmente com Malatesta e com Merlino que se começa a colocar o outro problema do anarquismo italiano, o que diz respeito à sua organização e relação com os sindicatos.

No início do século XX, o que está na pauta das discussões dos agrupamentos locais, o tema central do debate no seio do anarquismo, é a questão da organização e da não organização.

Em 1902, os organizacionistas já se tornaram ampla maioria na Itália e é nesse momento que surgirá a liderança histórica do anarquismo italiano, como o grande nome, aquele que vai difundir por todo o mundo a ideia de comunismo anarquista, que é Errico Malatesta. É quem pega Kropotkin e o transforma, fazendo uma fusão entre o ideal anarquista do voluntarismo, do princípio da não hierarquia, da ação individual, da importância das individualidades continuarem tendo papel fundamental na construção e na organização do social, associando isso a uma forma de luta, que é mais articulada, que tem um prenuncio não de estrutura de partido que vai concorrer às eleições, mas em um sentido lato de um partido da anarquia, um grupo da população que defende uma nova possibilidade de organização social diferente da existente.

A partir de 1902, Malatesta começa a escrever com mais intensidade e um de seus trabalhos é justamente desmontar essa tendência individualista que pretende resolver a revolução social por si própria através da ação direta e dos atentados, combatendo a posição dos chamados “galleanistas”.

O ano de 1907 é também um momento histórico para o anarquismo italiano em sua relação histórica com o sindicalismo. É um ponto de virada, não só porque reafirma a supremacia numérica da vertente organizacionista dentro do movimento, mas também porque a partir do debate iniciado por Malatesta no Congresso de Amsterdam, anuncia-se o predomínio na Itália da vertente anarco-comunista sobre a do sindicalismo, que passaria a se chamar de revolucionário. É quando Malatesta rechaça a redução do anarquismo a uma concepção sindicalista apenas da revolução social, mas reafirma o compromisso de um anarquismo de classe, portanto, coloca a questão classista como questão prioritária dentro do anarquismo, apesar de entender que não é a classe operária a única protagonista da revolução, mas que ela tem um elemento importante de contribuição. Com isso, manteve-se a aproximação da tendência do anarquismo comunista com as ideias sindicalistas, das quais Neno Vasco, por exemplo, foi grande disseminador no Brasil (SAMIS, 2009), mas nunca confundindo-as, ou reduzindo apenas o anarquismo a uma luta revolucionária de socialistas sindicalistas, diferenciado-o, inclusive, daquilo que na Argentina se tornaria o finalismo da FORA (COLOMBO, 2004) e na Espanha o anarco-sindicalismo que gerará posteriormente a CNT (MADRID, 2004). Para Malatesta, as classes oprimidas tem o dever e a primazia da condução da revolução socialista anarquista, mas sua realização é uma tarefa a ser empreendida por toda a sociedade.

A partir de 1907, o anarquismo da Itália começa a ter componentes cada vez mais próximos do comunismo, no sentido organizativo da palavra.

Eu vou parando por aqui no momento histórico em que a questão da organização deixou de ser um problema para o anarquismo italiano e em que ele pode também se distanciar da relação direta com o sindicalismo, fenômeno que será muito mais forte no anarquismo ibérico.


Notas do autor:


[1] – Na Itália, durante o início da década de 1870 proliferaram muitas seções regionais e locais da Associação Internacional dos Trabalhadores, a AIT. O esmagamento da Comuna de Paris em 1871 e a perseguição em seguida aos internacionalistas atingiram não somente a França, mas espalhou-se por toda a Europa, principalmente na Suíça e Itália. Da repressão aos comunnards (participantes da Comuna de Paris) e aos internacionalistas forma-se uma primeira articulação conjunta entre as polícias de diversos países europeus. Notadamente empenhadas em perseguir e derrotar a rede de ativistas e de sindicalistas que havia sido formada nessa década. O italiano Amilcare Cipriani, por exemplo, que havia sido também um comunnard foi desterrado para a Nova Caledônia em comum acordo com o Estado italiano que recusou sua deportação.

[2] – O movimento sindical na década de 1880 foi fortemente abalado pela perseguição ocorrida aos internacionalistas na década anterior. Muitos trabalhadores e suas organizações, principalmente nos centros operários mais desenvolvidos no norte-nordeste da Europa, optaram por seguir um caminho de luta parlamentar institucional. Essa política levou à fundação dos Partidos Socialistas (democráticos) nos países europeus e ao surgimento em 1889-90 da chamada II Internacional dos Trabalhadores, articulada em torno do parlamentarismo socialista, estratégia que se afasta do pensamento revolucionário marxista e opta pela política da luta pelos direitos constitucionais dos trabalhadores.

[3] – Vemos que o enquadramento de militantes anarquistas ou de revolucionários de qualquer tipologia na categoria de delinquentes tem uma longa história que continua até o presente. Com pequenas modificações de nomes, malfeitores na Itália, delinquentes, terroristas, subversivos em períodos de anticomunismo, até chegarmos aos vândalos na mídia atual. As atuais leis antiterrorismo são apenas uma versão repaginada das primeiras leis contra a associação de delinquentes como resultado da organização dos trabalhadores durante a Primeira Internacional.

[4] – Como resultado dessa nova onda de repressão aos trabalhadores, principalmente aos anarquistas, será reativado o regime do domicílio coatto, no qual o prisioneiro é confinado em uma ilha ao largo da península. Oreste Ristori, que citamos acima, por exemplo, passará por quase todas as ilhas de confinamento na Itália (Tremiti, Ponza, Ustica Favignana, Port'Ercole), fator que longe de desarticular o anarquismo, como pensava o governo, permitiu aos anarquistas de diversas regiões da Itália se conhecerem mutuamente como se estivessem vivendo em um congresso permanente, fortalecendo, paradoxalmente, o movimento.

[5] – Sobre os motins de maio há o excelente estudo de Louise Tilly em língua inglesa (Tilly, 1992).

[6] – Nessa corrente o principal nome do chamado individualismo italiano (nome como ficou conhecida essa corrente anarquista na história) é Luigi Galleani.


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domingo, 19 de julho de 2020

Crítica de Pierre Clastres ao etnocídio

The Modern Bed of Procustes (A Moderna Cama de Procusto), charge de Project Gutenberg, Punch, Volume 101, September 19, 1891, por: John Tenniel.
Procusto aos demais: “Agora, então, companheiros; pretendo encaixar todos vocês na minha pequena cama!”


Resumo: o objetivo desse texto é realizar uma síntese das contribuições teóricas de Pierre Clastres desenvolvidas no artigo “Do Etnocídio” (1974). Busca-se demonstrar que Clastres considera o “etnocídio” como efeito de uma dinâmica mais profunda (dos Estados em particular e do Capitalismo no geral). Dividimos o texto em 7 seções, onde buscamos apresentar: 1) a origem do conceito de etnocídio, 2) a apresentação de nossa proposta de “teoria clastreana do etnocídio”, 3) uma discussão sobre o significado de “etnos”, 4) o conceito de etnocídio do ponto de vista formal (no dizer de Clastres, a partir da “escola do etnocídio”), 5) as diferenças entre etnocentrismo e etnocídio, 6) crítica do ocidentalismo e, por fim, 7) a proposta de um conceito concreto de etnocídio (que consideramos a contribuição mais importante do autor). Após as referências deixamos a indicação de dois documentários em que é possível ter uma noção dos processos aqui teorizados.

1. Breve genealogia do conceito de etnocídio


Raphael Lemkin, polonês de origem judaica, foi o linguista e advogado que criou a expressão genocídio em 1943. Esse neologismo deriva da união da palavra grega γένος, transliterada para genos (que pode significar família, tribo ou raça) e da latina -cidĭum, sufixo que designa a ação de matar, adaptado para -cídio (assassinato). Ele também teria sugerido a palavra etnocídio como uma alternativa para representar o mesmo conceito, a partir do grego etnos no lugar de genos, mas essa segunda opção não foi adotada pela comunidade internacional.

Durante os Julgamentos de Nuremberg (novembro de 1945 – outubro de 1946), a expressão “genocídio” foi escolhida para designar um dos “crimes contra a humanidade” que teriam praticado os nazistas.

Por sua vez, o etnólogo francês Robert Jaulin (1928-1996) propôs uma redefinição do conceito de etnocídio em 1970, para se referir, não sobre os meios propriamente ditos do ato de destruição, mas os fins que definem tal empreendimento. Para Jaulin, o etnocídio seria a destruição sistemática do pensamento e o modo de vida das pessoas diferentes daqueles que realizam esse empreendimento de destruição.

É a partir do desenvolvimento da categoria de etnocídio que Clastres vai propor mais uma redefinição, onde ele buscará articular seus estudos em antropologia política com sua formulação. A ideia geral dele era ir de uma concepção formal (puramente lógica) para um conceito concreto, a partir de uma pesquisa histórica e social. É neste sentido que podemos falar de uma “teoria clastreana do etnocídio”, uma vez que ele não dissocia suas próprias reflexões antropológicas da definição do etnocídio.

2. Uma “teoria clastreana do etnocídio”?


O texto de Pierre Clastres, “Do Etnocídio”, foi publicado na Encyclopaedia Universalis (Paris) em 1974. O autor sugere vagamente uma genealogia como a que foi exposta na seção anterior e faz alguns comentários críticos acerca do “sub-reconhecimento” dos genocídios realizados historicamente pelas nações europeias. Ele critica as autoridades internacionais por não reconhecerem o genocídio cometido contra os povos durante o colonialismo (e também sob o neocolonialismo).

Em seguida, Clastres toma o caso da colonização do continente americano como paradigmático, uma vez que foi palco tanto do etnocídio quanto do genocídio. “Desde o descobrimento da América em 1492, pôs-se em funcionamento uma máquina de destruição dos índios” (CLASTRES, 2004, p. 82). Um exemplo de etnocídio seriam as missões jesuíticas e seu objetivo de catequização dos indígenas. Em relação ao genocídio, Clastres é mais generalista: “a história da constituição de impérios coloniais pelas grandes potências europeias, está pontuada de massacres metódicos de populações autóctones” (idem).

Todavia, para Clastres não se trata de apenas denunciar os empreendimentos genocidas e etnocidas, mas de explicar as causas que determinam tais processos. É com base nessa necessidade de fundamentar uma explicação do gênero que o autor vai elaborar o que podemos chamar de uma “teoria do etnocídio”.

Para sintetizar esta “teoria clastreana do etnocídio”, subdividimos a exposição dos argumentos do autor em partes. Primeiro trataremos do nível formal do conceito (seções 4 e 5), atribuídos por Clastres à “escola do etnocídio”, pois ele está fazendo uma apropriação crítica desse conceito a partir dos pressupostos dos autores dessa “escola”. Digamos que o procedimento clastreano se assemelha ao que fizera Marx com os economistas clássicos: partir dos pressupostos abstratos para reconstituir as categorias sociais como conceitos concretos (discutimos sobre isso em: Diferença e produção de si em Marx, mais especificamente na seção 5). A seguir veremos as críticas de Clastres às abstrações da “escola do etnocídio” (seções 5 e 6). Finalizaremos com a formulação do conceito de etnocídio como categoria histórico-social, onde ele apresenta processos históricos para corroborar suas ideias (seção 7).

Mas primeiro vamos fazer alguns comentários “etimológicos” sobre o termo “etnos” antes de continuar, uma vez que a diferenciação de “etnos” e “genos” pode ajudar a compreender as especificidades de cada categoria (uma mais associada à noção de “povo”, a outra a uma noção de “raça”).

3. Genealogia do “etnos” e a possibilidade de sua assimilação


Na seção 1, nós vimos que o “genos” está associado a uma noção racial, portanto é utilizado originalmente para se referir a um grupo de pessoas que partilham uma determinada consanguinidade. O termo “etnos”, por sua vez, não se refere necessariamente a uma determinada linhagem. Tomemos a Grécia Antiga para ilustrar isso.

Os naturais de Hélade eram conhecidos como Helenos. Foram os romanos que chamaram Hélade de Grécia e os Helenos de Gregos. Com efeito, um helênico se chamava de “elenoe” (“homem grego”). O não-grego era chamado de “etnoe” (ou seja, todos os outros povos que não eram gregos).

Os gregos antigos usavam a palavra “ethos” para caracterizar as condutas orientadas por um conjunto de valores. Conclui-se, portanto, que os elenoe teriam seu próprio ethos e os etnoe teriam outros ethos.

Portanto, a palavra “etnos” pode ser compreendida a partir de dois fatores: 1) aquele que não é grego, pois não nasceu na mesma terra (Hélade) e 2) como aquele que não é grego, pois não dispõem do ethos helênico.

É neste sentido que etnos não está associado diretamente a uma noção de linhagem ou consanguinidade, pois este termo seria utilizado para se referir aos não-gregos a partir de um critério de “pertencimento comunitário” (território + costumes).

Um filósofo grego antigo, o sofista Isócrates, nos ajuda a compreender melhor as relações possíveis entre os etnoe e elenoe. No entanto, é necessário compreender alguns aspectos da “noção de pessoa” dos gregos antigos para que isso fique mais evidente.

Em primeiro lugar, destaca-se a diferenciação entre os humanos e os animais (zoe), a partir da linguagem (logos): “de todos os animais, somos por natureza os únicos a possuir essa particularidade e que, superando-os nisso, em tudo mais somos superiores a eles” (ISÓCRATES apud BERTACCHI, 2014, p. 101).

Isócrates enuncia uma premissa ontológica comum entre os gregos antigos, segundo o qual a linguagem (logos) é o que define a vida ativa (bios) dos “homens”, pois permite a realização do zoon politikon (“animal político”) na pólis (cidade), justamente porque o discurso (logoi) tem “o poder de convencer-nos mutuamente, de fazer aparecer a nós próprios o objeto de nossas decisões, não só nos desembaraçando da vida selvagem, mas nos reunindo para construir cidades” (ISÓCRATES apud SENNE, 2009, p. 61).

Daí que a noção de participação nesta vida pública seja utilizada como o critério do “homem helênico”, do elenoe, mais do que a genos (raça): “Nossa cidade está tão à frente do restante dos homens no pensar e no falar que seus alunos se tornam os professores dos demais, e que ela fez com que o nome dos gregos parecesse não mais à raça, mas à inteligência pertencer, e fez com que sejam chamados de gregos mais os que partilham da nossa educação do que da natureza comum” (ISÓCRATES apud BERTACCHI, 2014, p. 101, grifos nossos).

Uma prova dessa relativização da genos consiste na ideia de que seria possível converter um etnoe em um elenoe a partir da educação (paideía), ou seja, o “estrangeiro” poderia ser integrado à comunidade grega por meio da socialização do ethos dos elenoe. Isócrates mesmo defendia isso.

Em outras palavras: a alteridade (etnoe) poderia se tornar uma identidade (elenoe), a partir da educação (paideía) dos costumes (ethos) dos helênicos.

Com essa situação em mente, podemos prosseguir com o estudo do etnocídio.

4. A formalização do conceito de “etnocídio”


Pierre Clastres considerou que seria necessário deixar mais nítida a diferença entre os termos “genocídio” e “etnocídio”. Nas palavras do autor: “Se o termo genocídio remete à ideia de ‘raça’ e à vontade de extermínio de uma minoria racial, o termo etnocídio aponta não para a destruição física dos homens (caso em que se permaneceria na situação genocida), mas para a destruição de sua cultura” (CLASTRES, 2004, p. 83). Neste caso, ele toma de Jaulin a definição formal do conceito:

O etnocídio, portanto, é a destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição. Em suma, o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito. Em ambos os casos, trata-se sempre da morte, mas de uma morte diferente: a supressão física e imediata não é a opressão cultural com efeitos longamente adiados, segundo a capacidade de resistência da minoria oprimida (idem).

Esta definição é funcional ao acontecimento etnocida em si. Mas Clastres vai além e se interroga acerca das motivações que orientariam este tipo de empreendimento. Neste caso, o que se torna perceptível, ainda em nível formal, é que o etnocídio:

tem em comum com o genocídio uma visão idêntica do Outro: o Outro é a diferença, certamente, mas é sobretudo a má diferença. Essas duas atitudes distinguem-se quanto à natureza do tratamento reservado à diferença. O espírito, se se pode dizer, genocida quer pura e simplesmente negá-la. Exterminam-se os outros porque eles são absolutamente maus. O etnocida, em contrapartida, admite a relatividade do mal na diferença: os outros são maus, mas pode-se melhorá-los obrigando-os a se transformar até que se tornem, se possível, idênticos ao modelo que lhes é proposto, que lhes é imposto. A negação etnocida do Outro conduz a uma identificação a si (idem).

Neste caso, a diferença (alteridade) assume um significado negativo ao etnocida: o outro está aquém do nosso “nível de vida”, o outro está alheio às “verdadeiras crenças”, o outro não tem “organização social” (pois não possui nossos costumes). “Testemunha-o, por exemplo, o que diziam os primeiros descobridores europeus do Brasil a propósito dos Índios Tupinamba: «Gentes sem fé, sem lei, sem rei»” (CLASTRES, 1979, p. 13). Em outras palavras: como no mito de Procusto, o olhar etnocida só enxerga no outro uma falta com relação a um modelo pressuposto.

Devemos destacar que, em todos os casos, a justificativa do empreendimento etnocida é projetada sobre essa alteridade concebida negativamente. O etnocida não quer outra coisa senão o “bem” daquele que busca assimilar. Por exemplo: diante do “atraso do selvagem”, o civilizado quer “oferecer” os “avanços da civilização”. Como sintetizou Clastres:

O etnocídio é praticado para o bem do selvagem. O discurso leigo não diz outra coisa quando enuncia, por exemplo, a doutrina oficial do governo brasileiro quanto à política indigenista: “Nossos índios, proclamam os responsáveis, são seres humanos como os outros. Mas a vida selvagem que levam nas florestas os condena à miséria e à infelicidade. É nosso dever ajudá-los a libertar-se da servidão. Eles têm o direito de se elevar à dignidade de cidadãos brasileiros, a fim de participar plenamente do desenvolvimento da sociedade nacional e de usufruir de seus benefícios”. A espiritualidade do etnocídio é a ética do humanismo (CLASTRES, 2004, p. 84).

Nesse nível formal já dispomos de três componentes da categoria de etnocídio: 1) reconhecimento da diferença alheia como “má diferença” (tanto em grau como em natureza), 2) necessidade de supressão desta diferença (correção de uma “defasagem” ou de uma “anomalia”) e 3) este ato é eticamente justificado por uma espécie de “humanismo” (que nada mais é do que a universalização das particularidades dos próprios etnocidas como se fossem os “atributos da humanidade”). Estes componentes são indissociáveis da definição formal de etnocídio.

5. Diferenças entre etnocentrismo e etnocídio


Segundo Clastres, não se pode confundir o “etnocentrismo” com o “etnocídio”. O etnocentrismo seria a “vocação de avaliar as diferenças pelo padrão da própria cultura” (CLASTRES, 2004, p. 85), o que não implica em nenhum dos três componentes citados na seção anterior.

O autor sugere usar os etnônimos como demonstração de que essa “vocação” é partilhada por todas as culturas: “os índios Guarani nomeiam-se Ava, que significa os Homens; que os Guayaki dizem deles mesmos que são Aché, as ‘Pessoas’, que os Waika da Venezuela se proclamam Yanomami, a ‘Gente’; que os Esquimós são Innuit, ‘Homens’” (idem). Ou seja: o significado dos nomes étnicos não dão a entender algo como “somos apenas um povo particular”, mas sim que cada etnia se pensa como “as pessoas por excelência”.

Não obstante, gostaríamos de utilizar um caso para demonstrar que, embora seja um fato generalizado, não é dado que os etnônimos fundamentam-se no mesmo critério de distinção.

De acordo com Carlos Lenkersdorf, o etnônimo dos maya-tojolabal significaria “homens verdadeiros” (Tojolab'al). Mas essa interpretação é apenas o resumo do significado de Tojolab'al. Com efeito, esta palavra funciona tanto como língua quanto como etnônimo desse povo e significa algo como: “palavra que é ouvida sem enganos”, composta por tohol, que significa “reta”, “correta” ou “justa” e 'ab’al que se refere à palavra que é ouvida ou ao discurso que é dado. Neste sentido, se dizer Tojolabal equivale a afirmar que se é uma “pessoa da palavra certa”.

No entanto, essa “autenticidade” (o ser tojolabal) é inclusiva e engloba todas as relações que forem pautadas na intersubjetividade (lajan lajan `aytik). Segundo a cosmologia maya-tojolabal, a alteridade é incluída em uma comunidade cósmica onde todos co-participam de sua formação. A condição de participação comunitária é que cada singularidade permaneça díspar e, portanto, se assemelhe aos demais enquanto diferentes (desde que essa diferença esteja amparada e confirmada nas demais). Uma concepção semelhante ao de um maya-yucateco que:

Ao dirigir-se ao papa João Paulo II em Izamal, Yucatan, lhe disse no final de seu discurso representando os povos indígenas da América Latina: “Você pode nos ajudar a entender que temos o direito de ser diferentes porque somos iguais” (LENKERSDORF, 1996, p. 77, tradução nossa).

No caso específico dos tojolabales, temos o wa xtojol `ab’alaxi (“tojolobalización”), que descreve esse processo de inclusão de alteridades na comunidade como união das diferenças.

Como afirma Lenkersdorf (1996, pp. 99-100, tradução nossa): “Os Tojolab'al são o que são, porque constantemente precisam colocá-lo em prática”. Ou seja, não são as relações de parentesco que determinam a pertença ou não à comunidade tojolab'al, mas a participação no seu modo de ser social. Este modo de ser é identificado como o “caminho verdadeiro” – tojol b’ej – dos “homens verdadeiros, tojol winik” (LENKERSDORF, 1996, p. 105). O oposto da “tojolobalización” é o wa xjnalaxi, isto é, a “destojolobalización”. A razão dessa inclusão ou exclusão é dada pela linha divisória das transformações (o devir tojolabal ou o devir não-tojolabal), portanto é histórica.

Conclui-se que cada etnônimo traduz um modo específico de exprimir o etnocentrismo cultural, sendo necessário estudar cada caso particular (vimos isso com os “elenoe” e seu modo de ser “politikos”). Contudo, a “vocação etnocêntrica” permanece sendo o aspecto comum entre todos, o que inclui os Tojolab'al (daí que eles postulem que existe sim um “caminho verdadeiro”, tojol b’ej). Neste caso:

O etnocentrismo aparece então como a coisa do mundo mais bem distribuída e, desse ponto de vista pelo menos, a cultura do Ocidente não se distingue das outras. Convém mesmo, aprofundando um pouco mais a análise, pensar o etnocentrismo como uma propriedade formal de toda formação cultural, como imanente à própria cultura. Pertence à essência da cultura ser etnocêntrica, na medida exata em que toda cultura se considera como a cultura por excelência. Em outras palavras, a alteridade cultural nunca é apreendida como diferença positiva, mas sempre como inferioridade segundo um eixo hierárquico (CLASTRES, 2004, pp. 85-86, grifos nossos).

No entanto, se a prática etnocida fosse a consequência lógica da convicção etnocêntrica, então toda cultura deveria ser etnocida, o que não acontece de fato. Daí que, por exemplo, os Mbya Guarani preservem a denominação de Juruá para os brancos, os Tojolab'al usem o wa xjnalaxi para ex-tojolab'al, os Yanomami chamem os brancos de Naba, etc.. Nenhum desses povos deseja empreender uma sistemática assimilação destes “outros”, pois essas alteridades são consideradas como “diferenças irredutíveis”, ou seja, não são percebidas como graus distintos de uma mesma “cultura universal da humanidade” ou como “desvios” da “verdadeira fé”.

6. Crítica à abstração da “civilização ocidental”


Criticando o reducionismo que consiste em identificar o etnocídio pura e simplesmente com a “civilização ocidental”, Clastres afirma que: “A análise do etnocídio implica, para além da denúncia dos fatos, uma interrogação sobre a natureza, historicamente determinada, de nosso mundo cultural. Portanto, trata-se de encarar a história” (CLASTRES, 2004, p. 86). Explicar as causas do etnocídio praticado secularmente pelas sociedades ocidentais é empreender essa análise histórica.

Para que fique mais evidente: uma vez que “o Ocidente” não é uma entidade monolítica, é necessário uma genealogia do que podemos chamar vulgarmente de “ocidentalismo”, pois só assim poderíamos compreender os motivos dessa abstração. Ora, é justamente a ausência de historicidade na definição do etnocídio que conduziu seus propositores a se reterem em abstrações no nível puramente formal das proposições lógicas (por exemplo: “o Ocidente é etnocida”).

Neste caso, segundo Clastres (2004, pp. 86-87, grifos nossos):

Da leitura dos trabalhos dedicados ao etnocídio retira-se a impressão de que, para seus autores, a civilização ocidental é uma espécie de abstração, sem raízes sócio-históricas, uma vaga essência que sempre envolveu em si o espírito etnocida. Ora, nossa cultura não é de modo algum uma abstração, é o produto lentamente constituído de uma história, ela é passível de uma pesquisa genealógica. (…) Assim como não é abstração extratemporal, a civilização do Ocidente tampouco é uma realidade homogênea, um bloco indiferenciado idêntico em todas as suas partes.

Até porque, como diria Clastres, “se o Ocidente é etnocida assim como o sol é luminoso, então esse fatalismo torna inútil e mesmo absurda a denúncia dos crimes e o apelo à proteção das vítimas” (CLASTRES, 2004, p. 87). Logo: para sair do nível puramente formal da definição de etnocídio, será necessário uma explicação das determinações historicamente específicas que envolvem o conceito concreto de etnocídio, compreendido agora como um efeito de uma dinâmica mais profunda.

7. Do formalismo lógico ao conceito concreto de etnocídio


Todos os comentários históricos do texto clastreano se articulam para dar consistência à historicidade concreta do etnocídio como realidade social específica. Isso indica que a intenção de Clastres era incorporar a noção de etnocídio ao seu repertório teórico de antropologia política. O objetivo do autor, pode-se presumir, seria somar aos seus estudos sobre poder político uma genealogia das sociedades etnocidas, pois assim ele poderia realizar uma crítica histórica da morte da diversidade cultural empreendida sistematicamente pelo ímpeto etnocida.

Todo o teor do texto se modifica a partir da seguinte objeção: “Não seria, ao contrário, porque a civilização ocidental é etnocida em primeiro lugar no interior dela mesma que ela pode sê-lo a seguir no exterior, isto é, contra as outras formações culturais?” (CLASTRES, 2004, p. 87, grifos originais).

Clastres demonstra que não é possível falar apenas do que seria o etnocídio em si, sendo necessário dar a gênese histórica desta postura diante das alteridades. O que faz com que haja etnocídio numa sociedade? Sobre que base se assenta o ímpeto etnocida?

A primeira fundação do etnocídio é identificada por Clastres como uma necessidade intrínseca da formação estatal. Vejamos como ele estabelece a homologia estrutural (formalmente):

[O etnocídio] é a aplicação de um princípio de identificação, de um projeto de redução do outro ao mesmo ([exemplo:] o índio amazônico suprimido como outro e reduzido ao mesmo como cidadão brasileiro). Em outras palavras, o etnocídio resulta na dissolução do múltiplo no Um. O que significa agora o Estado? Ele é, por essência, o emprego de uma força centrípeta que tende, quando as circunstâncias o exigem, a esmagar as forças centrífugas inversas. (…) Descobre-se assim, no núcleo mesmo da substância do Estado, a força atuante do Um, a vocação de recusa do múltiplo, o temor e o horror da diferença. Nesse nível formal em que nos situamos atualmente, constata-se que a prática etnocida e a máquina estatal funcionam da mesma maneira e produzem os mesmos efeitos: sob as espécies da civilização ocidental ou do Estado, revelam-se sempre a vontade de redução da diferença e da alteridade, o sentido e o gosto do idêntico e do Um (CLASTRES, 2004, pp. 87-88, grifos nossos).

Percebe-se, portanto, que:

Não se pode pensar a vocação etnocida da sociedade ocidental sem articulá-la com essa particularidade de nosso próprio mundo, particularidade que é inclusive o critério clássico de distinção entre os selvagens e os civilizados, entre o mundo primitivo e o mundo ocidental: o primeiro reúne o conjunto das sociedades sem Estado, o segundo compõe-se de sociedades com Estado. E é nisso que se deve tentar refletir: pode-se legitimamente colocar em perspectiva essas duas propriedades do Ocidente, como cultura etnocida, como sociedade com Estado? Se fosse assim, compreenderíamos porque as sociedades primitivas podem ser etnocêntricas sem, no entanto, serem etnocidas, já que elas são precisamente sociedades sem Estado (CLASTRES, 2004, p. 87, grifos nossos).

Clastres propõem sair dos conceitos abstratos para tornar a categoria de etnocídio mais concreta: “Abandonando esse eixo formal e de certo modo estruturalista para abordar o da diacronia, da história concreta, consideremos a cultura francesa como caso particular da cultura ocidental” (CLASTRES, 2004, p. 88, negritos nossos). Neste sentido, em vez de analisar toda a civilização ocidental, Clastres se propõem a tarefa mais modesta de analisar a história de seu próprio país.

Segundo Pierre Clastres, a formação cultural da França (o que equivale a falar de uma nacionalidade particular do “ocidentalismo”) está “enraizada num passado secular” de “expansão” e “fortalecimento do aparelho do Estado”. Em primeiro lugar através da Monarquia (Estado Absolutista) e, em segundo lugar, através da República (Estado Burguês). Em síntese: “A cada desenvolvimento do poder central corresponde um desdobramento acrescido do mundo cultural. A cultura francesa é uma cultura nacional, uma cultura do francês” (idem).

Um dos primeiros atos da extensão da autoridade do Estado ocorre por meio do “expansionismo da língua do Estado, o francês” (idem). Neste sentido, a constituição da nação, por meio do processo pelo qual o Estado assenta seu poder, pressupõem a supressão das diferenças linguísticas, a afirmação de uma “língua oficial”, isto é, “quando as pessoas sobre as quais se exerce a autoridade do Estado falam a mesma língua” (idem). Ao que tudo indica, a uniformização é tanto literal quanto figurativa: “falar a mesma língua” também implica em “se portar em conformidade”, obedecer ao modus operandi do Estado.

No que se refere à formação nacional francesa, Clastres apresenta a seguinte descrição empírica:

É assim que, na aurora da nação francesa, quando a França era apenas o reino dos francos e seu rei um pálido senhor feudal do norte do Loire, a cruzada dos albigenses abateu-se sobre o sul para abolir sua civilização. A extirpação da heresia cátara, pretexto e meio de expansão para a monarquia capetiana, traçando os limites quase definitivos da França, aparece como um caso puro de etnocídio: a cultura do Midi – religião, literatura, poesia – foi irreversivelmente condenada, e os habitantes do Languedoc passaram a ser súditos leais do rei da França (idem).

Este teria sido o primeiro processo dessa expansão nacional de lógica estatista. A Revolução de 1789 foi o corolário da tendência centralista, incorporada, segundo Clastres, pelos jacobinos (que ele opõem aos girondinos, considerando-os, equivocadamente, como a tendência federalista). Antes da “revolução francesa”, as “províncias, como unidades territoriais, apoiavam-se cada qual numa antiga realidade, homogênea do ponto de vista cultural: língua, tradições políticas etc.” (idem), depois da centralização: “Elas foram substituídas pela divisão abstrata em departamentos, própria a romper toda referência às particularidades locais, e portanto a facilitar em toda parte a penetração da autoridade estatal” (idem).

Esse movimento de “forças centrípetas” passa por “etapas”, das quais a última teria ocorrido, segundo Clastres, na IIIª República, onde os habitantes do território francês foram convertidos em:

cidadãos graças à instituição da escola leiga, gratuita e obrigatória, e posteriormente do serviço militar obrigatório. Com isso sucumbiu o que subsistia de existência autônoma no mundo provincial e rural. A francização estava completa, o etnocídio consumado: línguas tradicionais enxotadas enquanto dialetos de indivíduos atrasados, vida aldeã rebaixada à condição de espetáculo folclórico destinado ao consumo de turistas etc. (CLASTRES, 2004, p. 89).

Conclui-se da experiência francesa “que o etnocídio pertence à essência unificadora do Estado”, o que “conduz logicamente a dizer que toda formação estatal é etnocida” (idem). Portanto: “o etnocídio, como supressão mais ou menos autoritária das diferenças sócio-culturais, está inscrito de antemão na natureza e no funcionamento da máquina estatal, a qual procede por uniformização da relação que mantém com os indivíduos: o Estado conhece apenas cidadãos iguais perante a Lei” (idem, grifos nossos).

Se todo o estatismo é necessariamente etnocida, então é necessário corroborar essa hipótese através de outro caso empírico. Para descentralizar a análise do Ocidente, Clastres se propõem a utilizar o modelo estatal dos Incas. Segundo Clastres:

Os Incas haviam conseguido edificar nos Andes uma máquina de governo que causou a admiração dos espanhóis, tanto pelo tamanho de sua extensão territorial quanto pela precisão e a minúcia das técnicas administrativas que permitiam ao imperador e a seus numerosos funcionários exercer um controle quase total e permanente sobre os habitantes do império. O aspecto propriamente etnocida dessa máquina estatal aparece em sua tendência a incaizar as populações recentemente conquistadas: não apenas obrigando-as a pagar tributo aos novos senhores, mas sobretudo forçando-as a celebrar prioritariamente o culto dos conquistadores, o culto do Sol, isto é, do próprio Inca. Religião de Estado, imposta pela força, em detrimento dos cultos locais. É verdade também que a pressão exercida pelos Incas sobre as tribos submetidas nunca atingiu a violência do zelo maníaco com que os espanhóis aniquilariam mais tarde a idolatria indígena. Embora fossem hábeis diplomatas, os Incas sabiam utilizar a força quando necessário e sua organização reagia com a maior brutalidade, como todo aparelho de Estado quando seu poder é questionado. As freqüentes insurreições contra a autoridade central de Cuzco, impiedosamente reprimidas de início, eram a seguir castigadas pela deportação em massa dos vencidos para regiões muito distantes de seu território natal, isto é, aquele marcado pela rede dos locais de culto (fontes, colinas, grutas etc): desenraizamento, desterritorialização, etnocídio… (CLASTRES, 2004, pp. 89-90).

A partir dessas exposições, Clastres conclui que: “Há portanto uma certa universalidade do etnocídio, no sentido de ser característico não apenas de um vago ‘mundo branco’ indeterminado, mas de todo um conjunto de sociedades que são as sociedades com Estado” (CLASTRES, 2004, p. 90, grifos nossos). O etnocídio, apreendido historicamente, funciona a serviço da organização estatal, não é uma violência a-histórica e indeterminada. No entanto, outras objeções são feitas:

Mas deve ela [a análise] deter-se aí, limitar-se à constatação de que o etnocídio é o Estado e que, desse ponto de vista, todos os Estados se equivalem? Seria recair no pecado de abstração que precisamente reprovamos à “escola do etnocídio”, seria uma vez mais desconhecer a história concreta de nosso próprio mundo cultural (…). Onde se situa a diferença que impede colocar no mesmo plano, ou pôr no mesmo saco, os Estados bárbaros (Incas, faraós, despotismos orientais etc.) e os Estados civilizados (o mundo ocidental)? (idem).

Segundo Clastres, dois fatores nos impede de colocar todos os Estados no mesmo plano: um deles é endógeno à força e coesão do próprio Estado e o outro é determinado pelo modo de produção subjacente.

  • “Percebe-se primeiro essa diferença no nível da capacidade etnocida dos aparelhos estatais. No primeiro caso, essa capacidade é limitada não pela fraqueza do Estado mas, ao contrário, por sua força: a prática etnocida – abolir a diferença quando ela se torna oposição – cessa a partir do momento em que a força do Estado não corre mais nenhum risco” (CLASTRES, 2004, pp. 90-91).
  1. Demonstração: “Os Incas toleravam uma relativa autonomia das comunidades andinas quando estas reconheciam a autoridade política e religiosa do Imperador. Em compensação, no segundo caso – Estados ocidentais –, a capacidade etnocida se mostra sem limites, ela é desenfreada” (CLASTRES, 2004, p. 91).
  2. Consequência lógica da demonstração: “É exatamente por isso que ela pode conduzir ao genocídio e que se pode falar do mundo ocidental, de fato, como absolutamente etnocida” (idem). Problema que extrai da consequência lógica: “Mas de onde provém isso? O que a civilização ocidental contém que a torna infinitamente mais etnocida que qualquer outra forma de sociedade?” (idem).
  • O dispositivo etnocida é ampliado (pode-se dizer: “multiplicado”) pela dinâmica específica da produção econômica que funciona no “mundo ocidental”, ou seja, “É seu regime de produção econômica, espaço justamente do ilimitado, espaço sem lugares por ser recuo constante do limite, espaço infinito da fuga permanente para diante. O que diferencia o Ocidente é o capitalismo, enquanto impossibilidade de permanecer no aquém de uma fronteira, enquanto passagem para além de toda fronteira; é o capitalismo como sistema de produção para o qual nada é impossível, exceto não ser para si mesmo seu próprio fim: seja ele, aliás, liberal, privado, como na Europa ocidental, ou planificado, de Estado, como na Europa oriental. A sociedade industrial, a mais formidável máquina de produzir, é por isso mesmo a mais terrível máquina de destruir. Raças, sociedades, indivíduos; espaço, natureza, mares, florestas, subsolo: tudo é útil, tudo deve ser utilizado, tudo deve ser produtivo; de uma produtividade levada a seu regime máximo de intensidade” (idem, grifos do autor, sublinhados nossos).

Neste caso, revela-se, para Clastres, uma cumplicidade entre “progresso” (reprodução sempre ampliada da produtividade) e etnocídio, pois os “povos” são tomados uniformemente como “disponibilidade de mão de obra” para ser aproveitada na reprodução do modo de produção. Caso sejam inutilizáveis (ou gastos além do limite possível), ocorre o genocídio, pois os povos mesmos constituem um entrave para o “desenvolvimento das forças produtivas” (e precisam ser suprimidos, como no caso de uma conquista colonial) ou são trucidados numa máquina de produzir insustentável (como, por exemplo, o massacre dos indígenas escravizados nos ciclos econômicos da borracha, na Amazônia, primeiro entre 1879 e 1912, depois entre 1942 e 1945).

Eis por que nenhum descanso podia ser dado às sociedades que abandonavam o mundo à sua tranquila improdutividade originária; eis por que era intolerável, aos olhos do Ocidente, o desperdício representado pela não exploração econômica de imensos recursos. A escolha deixada a essas sociedades era um dilema: ou ceder à produção ou desaparecer; ou o etnocídio ou o genocídio (idem, grifos nossos).

Agora procederemos através de uma série de evidências empíricas com as quais trabalha Pierre Clastres para demonstrar a concreticidade de seu conceito de etnocídio como efeito do estatismo e do capitalismo.

  • Demonstração 1: “No final do século passado, os índios do pampa argentino foram totalmente exterminados a fim de permitir a criação extensiva de ovelhas e vacas, que fundou a riqueza do capitalismo argentino” (idem). Clastres se refere à “conquista do Chaco argentino”, da qual dispomos do seguinte estudo: QUINTERO, Pablo. La colonización del Chaco argentino: procesos de territorialización, expansión del capital y colonialidad del poder en la “Guerra contra el Indio” (1875-1917). In: MURA, Fabio e SILVA, Alexandra Barbosa da (Orgs.). Povos indígenas e relações de poder: olhares sobre a América do Sul. Campina Grande: EDUEPB, 2019, (pp. 147-178).
  • Demonstração 2: “No início deste século, centenas de milhares de índios amazônicos pereceram sob a ação dos exploradores de borracha” (CLASTRES, 2004, pp. 91-92). Trata-se, como mencionamos, dos ciclos da borracha. É possível ter uma descrição intensa do processo no primeiro capítulo da seguinte obra: TAUSSIG, Michael. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um estudo sobre o terror e a cura [1987]. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. O livro de Taussig pode ser encontrado neste link.
  • Demonstração 3: “Atualmente, em toda a América do Sul, os últimos índios livres sucumbem sob a pressão enorme do crescimento econômico, brasileiro em particular. As estradas trans-continentais, cuja construção se acelera, constituem eixos de colonização dos territórios atravessados: azar dos índios com quem a estrada depara!” (CLASTRES, 2004, p. 92). Veja-se: BRASIL. Relatório Figueiredo: documento na íntegra [1967]. 2013. Disponível em: link. Acesso em 10 mar. 2017. O livro de Alvaro Ricardo De Souza Cruz é bem sugestivo: “Relatório Figueiredo: genocídio brasileiro”.
  • Demonstração 4: “Os índios da América do Norte aprenderam isso na carne, quase todos mortos a fim de permitir a produção. Um de seus carrascos, o general Sherman, declarava-o ingenuamente numa carta endereçada a um famoso matador de índios, Buffalo Bill: ‘Pelo que posso calcular, havia, em 1862, cerca de 9 milhões e meio de bisões nas planícies entre o Missouri e as Montanhas Rochosas. Todos desapareceram, mortos em troca de sua carne, de sua pele e de seus ossos. [...] Na mesma data, havia cerca de 165 mil Pawnee, Sioux, Cheyenne, Kiowa e Apache, cuja alimentação anual dependia desses bisões. Eles também partiram e foram substituídos pelo dobro ou o triplo de homens e mulheres de raça branca, que fizeram dessa terra um jardim e que podem ser recenseados, taxados e governados segundo as leis da natureza e da civilização. Essa mudança foi salutar e se cumprirá até o fim” (idem). Clastres colocou numa nota de rodapé a referência dessa citação: René Thévenin & Paul Coze, Moeurs et histoire des Indiens Peaux-Rouges (Paris: Payot, 1952).

A síntese de Clastres diante dessas demonstrações é bem pessimista: “O general tinha razão. A mudança se cumprirá até o fim, só acabará quando não houver absolutamente mais nada para mudar” (idem). Ou ainda: “Que importância podem ter alguns milhares de selvagens improdutivos comparada à riqueza em ouro, minérios raros, petróleo, em criação de bovinos, em plantações de café etc? Produzir ou morrer, é a divisa do Ocidente” (idem).

De nossa parte, podemos dizer que a nós importa saber as causas do etnocídio e do genocídio para acabar de vez com esses processos. Portanto, posto que o etnocídio é tanto um efeito da organização estatal (uma vez que a homogeneidade cultural é uma necessidade da “unificação” centralizadora do Estado), quanto do capitalismo (nivelamento de todas as diferenças como “quantidades abstratas” do “valor que as valoriza”, isto é, do Capital), a única forma de impedir a contínua supressão da diversidade cultural é destruindo todos os Estados do mundo, conjuntamente com o modo de produção capitalista. De todo o modo, isso se resume (pelo menos do ponto de vista destrutivo) na luta anticapitalista, uma vez que este modo de produção está efetivamente globalizado e subordinou todos os Estados à sua reprodução.


Referências:


BERTACCHI, André Rodrigues. O Panegírico, de Isócrates: tradução e comentário. 2014. Dissertação (Mestrado em Letras Clássicas) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. Acesso em: 2020-07-18.

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado [1974]. Porto: Afrontamento, 1975.

CLASTRES, Pierre. Do etnocídio [1974]. In: _____. Arqueologia da violência. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

LENKERSDORF, Carlos. Los hombres verdaderos: voces y testimonios tojolabales : lengua y sociedad, naturaleza y cultura, artes y comunidad cósmica. Cidade do México: Siglo Veinteuno Editores, 1996.

SENNE, Wilson Alves. Educação, política e subjetividade (pp. 43-78). In: MEDONÇA FILHO, Manoel; NOBRE, Maria Teresa (Orgs.). Política e afetividade: narrativas e trajetórias de pesquisa [online]. Salvador: EDUFBA; São Cristóvão: EDUFES, 2009.

Para assistir e refletir:




Sinopse: Um poderoso pajé passa a questionar sua fé depois do primeiro contato com brancos que julgam sua religião como demoníaca. No entanto, a missão evangelizadora comandada por pastor intolerante é posta em cheque quando a morte passa a rondar a aldeia e a sensibilidade do índio em relação aos espíritos da floresta mostra-se indispensável.

Direção: Luiz Bolognesi;
Elenco: Perpera Suruí, Kabena Cinta Larga, Ubiratan Suruí;
Nacionalidade: Brasil.



Sinopse: Uma análise da violência sofrida pelo grupo Guarani Kaiowá, uma das maiores populações indígenas do Brasil nos dias de hoje e que habita as terras do centro-oeste brasileiro, entrando constantemente em conflito com as forças de repressão e opressão organizadas pelos latifundiários, pecuaristas e fazendeiros locais, que desejam exterminar os índios e tomar as terras para si.

Direção: Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho, Tita;
Elenco: Celso Aoki, Myriam Medina Aoki, Oriel Benites;
Nacionalidade: Brasil.

O documentário “Martírio”, pode ser assistido nesse link.

sábado, 11 de julho de 2020

Trabalho cerebral e trabalho braçal (1890) – Piotr Kropotkin

Encounter (1944) de Maurits Cornelis Escher (1898 – 1972).



Originalmente publicado como artigo em março de 1890 na revista The Nineteenth Century (pp. 456-475), “Brain Work and Manual Work” será incluído como penúltimo capítulo de “Fields, Factories, and Workshops” (1899). A tradução que disponibilizaremos nessa publicação foi extraída de: KROPOTKIN, Pedro. Trabalho cerebral e braçal. In: MORIYÓN, Félix García (Org.). Educação libertária. Tradução de José Claudio de Almeida Abreu. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.


***



Nos tempos antigos, os homens de ciência, em particular aqueles que mais fizeram em favor da filosofia natural, não desprezaram o trabalho braçal; Newton aprendeu na juventude a arte de manejar as ferramentas, exercitando a imaginação na construção de aparelhos bastante engenhosos e quando começou suas pesquisas em ótica estava em condições de poder polir as lentes de seus instrumentos e fazer sozinho o grande telescópio, que, na época era uma obra meritória; Leibniz era aficionado a inventar mecanismos: os moinhos de vento e as carroças que andavam sem cavalos preocupavam sua imaginação, tanto quanto as especulações matemáticas e filosóficas; Lineu tornou-se botânico, ao mesmo tempo que ajudava diariamente o seu pai, que era jardineiro; em suma, para nossos gênios, as artes mecânicas não foram obstáculo para as pesquisas abstratas, podendo-se dizer que, antes, as favoreceram. Por outro lado, se os trabalhadores de outros tempos tiveram poucas oportunidades para dominar a ciência, muitos pelo menos, tiveram as suas inteligências estimuladas pela própria variedade de trabalhos realizados naquelas oficinas em que ainda não havia penetrado a especialização, tendo muitos deles a vantagem de estarem familiarmente ligados a homens de ciência. Watt e Rennie eram amigos do professor Robinson; Brindley, o peão caminheiro, apesar de ganhar 1,50 francos por dia, tinha ligações com pessoas cultas, o que lhe permitiu desenvolver capacidades notáveis no campo da engenharia; outros passaram a juventude em lojas e oficinas, tornando-se mais tarde um Smeaton ou um Stephenson.

Nós mudamos tudo isso; sob o pretexto da divisão do trabalho, separamos violentamente o trabalho intelectual do braçal. A massa trabalhadora não recebe mais educação científica do que seus avós, e, ademais, se vê privada da pouca educação que poderia adquirir nas pequenas oficinas, enquanto que seus filhos, homens e mulheres, condenados a viverem na mina ou na fábrica desde a idade de treze anos, esquecem logo o pouco que aprenderam na escola. Os homens de ciência, por sua parte, desprezam o trabalho braçal. Quem poderia fazer um telescópio ou outro instrumento menos complicado? Muitos não são capazes nem mesmo de desenhar um aparelho científico, somente dão uma vaga ideia ao construtor, e deixam a este o cuidado de inventar o aparelho de que necessitam. E mais ainda, elevam o desprezo pelo trabalho braçal à altura de uma teoria: “O homem de ciência – dizem – deve descobrir as leis da natureza, o engenheiro deve aplicá-las e o operário deve executar em madeira ou aço, em ferro ou pedra, os desenhos e formas traçadas por aquele, devendo trabalhar com máquinas inventadas para o seu uso, mas não inventadas por ele. Não importa que ele não as entenda nem possa melhorá-las; o homem de ciência e o engenheiro cientista cuidarão do progresso da ciência e da indústria”.

A isto pode-se objetar que, não obstante, há uma classe de homens que não pertence a nenhuma das três categorias indicadas: na juventude foram trabalhadores braçais, e alguns continuam sendo ainda; mas, devido a algum acontecimento feliz, conseguiram adquirir certo conhecimento científico, e deste modo combinar a ciência com a arte mecânica. É verdade que existem tais pessoas, e não é falta de sorte existir um núcleo de homens que tenha escapado da tão ponderada especialização do trabalho, sendo exatamente a eles que a indústria deve os seus principais e mais recentes inventos. Mas, pelo menos na velha Europa, eles são exceção, o anormal, os soldados que, afastando-se das filas, assaltam a barreira levantada, com tanto interesse, entre as classes. E são tão poucos, comparados com as crescentes necessidades da indústria – e também da ciência –, como demonstrarei a seguir, que em todo o mundo as pessoas lamentam a sua escassez.

Que significa esse fruto que vem ao mesmo tempo da Inglaterra, França, Alemanha, Estados Unidos e Rússia, pedindo a educação técnica, se não o desagrado geral pela divisão anual em cientistas, engenheiros e trabalhadores? Escutem os que conhecem a indústria e vocês verão que a base de suas queixas é esta: “O operário cujo trabalho é especializado pela divisão permanente da faina, perde todo o interesse intelectual por ela, o que ocorre principalmente na grande indústria, assim como na sua capacidade inventiva. - O operário antigamente inventava muito; os trabalhadores braçais, e não os homens de ciência ou os engenheiros, foram os que descobriram ou aperfeiçoaram os primeiros motores e todo esse mundo de maquinaria que transformou a indústria nos últimos cem anos; mas desde que introduziu a fábrica de grandes proporções, o operário, deprimido pela monotonia do trabalho deixou de inventar. Que pode inventar o tecelão que trabalha com quatro teares e não sabe nada sobre os seus complicados movimentos, nem qual foi a progressão do mecanismo para chegar ao estado atual? Que pode aprender um homem condenado por toda a vida a ligar os extremos de dois fios com a maior rapidez e não sabe nada mais do que dar um nó?

No princípio da indústria moderna, três gerações de operários inventaram, mas agora deixaram de fazê-lo. E quanto aos avanços introduzidos pelos engenheiros, educados especialmente para idealizar máquinas, ou lhes falta o gênio ou são pouco práticos. Faltam a seus inventos essas pequenas coisas, das quais uma vez falou sir Frederich Bramwell, em Bath; esses detalhes que só se aprendem na oficina e que permitiram a Murdoch e aos trabalhadores de Soho fazer uma máquina completa do engenho de Watt. Somente quem conhece a máquina, não só no desenhoe no papel, mas em pleno funcionamento, é que poderá melhorá-la. Não há dúvida de que Smeaton e Newcomen eram grandes engenheiros, e no entanto, em suas máquinas, um menino tinha que abrir a válvula do vapor a cada batida do pistom, e foi um desses meninos que idealizou a ligação da válvula com o resto da máquina para que ele abrisse automaticamente, e ele pudesse ir brincar com os companheiros. Mas na maquinaria moderna não há espaço para descobertas deste tipo. A educação científica em alta escala se tomou necessária para a realização de novos avanços, e esta é negada aos trabalhadores, de modo que não há meio de sair do atoleiro, a menos que não se integrem a educação cientificamente mecânica, a menos que a fusão dos conhecimentos venha substituir a atual divisão”.

Este é o verdadeiro significado do atual movimento em favor da educação técnica; mas em vez de apresentar à consideração pública as causas, talvez inconscientes do descontentamento atual, em vez de elevar a discussão e dar à questão toda a amplitude que ela merece, os porta-estandartes do movimento a mantêm dentro dos limites mais reduzidos. Alguns deles lançam mão de uma linguagem com pretensões patrióticas e na verdade ridícula, falando em deixar fora de combate toda indústria estrangeira, enquanto que os outros não veem na educação técnica mais que o meio de melhorar um pouco a máquina humana da fábrica, permitindo que alguns operários ascendam a uma classe superior.

Semelhante ideal pode satisfazer a tais pessoas, mas não àqueles que não perdem de vista os interesses integrados da ciência e da indústria, e consideram ambas como um meio de elevar a humanidade a mais alto nível. Nós, portanto, defendemos que, no interesse das duas, assim como da sociedade em geral, todo ser humano, sem diferenças de origem, deveria receber uma educação que lhe permitisse, seja homem ou mulher, ligar o verdadeiro conhecimento científico a outro, igualmente profundo, da arte mecânica. Reconhecemos sem reservas a necessidade da especialização dos conhecimentos, mas afirmando que esta deve vir depois da educação geral, que deve compreender tanto a ciência quanto o trabalho braçal. À divisão da sociedade em trabalhadores intelectuais e braçais, nós opomos a integração de ambos os tipos de atividades; e em vez de “educação técnica”, que impõe a manutenção da atual divisão dos dois tipos de trabalho referidos, proclamamos a educação integral ou completa, o que significa o desaparecimento dessa distinção tão perniciosa. Expressando mais claramente, a aspiração da escola sob este sistema deveria ser a seguinte: dar uma educação tal, que ao deixar as salas de aula com a idade de dezoito ou vinte anos, os jovens de ambos os sexos estariam dotados de um cabedal de conhecimentos científicos que lhes permitisse trabalhar com proveito para a ciência, e que ao mesmo tempo tivessem um conhecimento geral das bases do ensino técnico e a habilidade necessária em qualquer indústria especial, para poder ocupar o seu posto dignamente no grande mundo da produção manual da riqueza. Sei que muitos acharão esta aspiração demasiado ampla ou impossível de alcançar, mas acredito que se tiverem a paciência de ler as páginas seguintes, verão que, para ela, não necessitamos mais do que se pode obter com facilidade, ou melhor dizendo, do que se obteve; e o que se pôde fazer em pequena escala, poderia ser feito em outra maior, se não fossem as causas econômicas e sociais que impedem que se leve a cabo uma reforma de importância em nossa sociedade, tão miseravelmente organizada.

A experiência foi feita na Escola Técnica de Moscou, durante vinte anos consecutivos, com centenas de crianças, e, segundo o testemunho dos mais competentes jurados de Bruxelas, Filadélfia, Viena e Paris, a tentativa deu resultado satisfatório. A escola de Moscou admite jovens de até quinze anos, e não exige deles, a esta idade, mais do que um conhecimento geral de geometria e álgebra junto com um conhecimento comum da língua do país, e recebe também alunos mais jovens das classes preparatórias. A escola é dividida em duas seções, a mecânica e a química; mas como eu, pessoalmente, conheço melhor a primeira, e, como é também a mais importante com referência à questão de que estamos tratando, limitarei minhas observações à educação dada na seção mecânica.

Depois de cinco ou seis anos de escola, o estudante a deixa com um profundo conhecimento de matemática superior, física, mecânica e ciências afins; é, na verdade, tão completo o conhecimento, que não deixa nada a desejar ao que se adquire nos melhores cursos de matemática das mais eminentes Universidades europeias. Quando eu estudava na Universidade de São Petersburgo, pude comparar a instrução dos estudantes da Escola Técnica de Moscou com a nossa e vi os cursos de geometria superior que alguns deles haviam recompilado para os colegas. Admirei a facilidade com que aplicavam o cálculo integral aos problemas dinâmicos, chegando à conclusão de que enquanto nós, estudantes da Universidade, mal sabíamos nos servir das mãos, os alunos da Escola Técnica fabricavam com as suas, e sem a ajuda de operários profissionais, lindas máquinas de vapor, desde a pesada caldeira até o último parafuso, maquinaria agrícola e aparelhos científicos, tudo para a indústria, recebendo os primeiros prêmios pelo trabalho manual nas Exposições Internacionais. Eram hábeis artesãos educados cientificamente – trabalhadores com educação universitária –, altamente apreciados até pelos fabricantes russos, que tanto desconfiam da ciência.

Pois bem, o método adotado para obter tão excelente resultado foi o seguinte. No tocante à ciência, decorar era pouco conveniente, mas a pesquisa independente era estimulada por todos os meios possíveis: ensinava-se a ciência ao lado de suas aplicações e o que se aprendia na sala de aula se aplicava na oficina, dando-se muita atenção às mais elevadas abstrações da geometria, como meio de desenvolver a inteligência e o amor à pesquisa. Quanto ao ensino da arte mecânica, o sistema adotado era bem diferente daquele que fracassou na Universidade de Cornell, e bem diferente também dos usados na maioria das escolas técnicas. Não se mandava o estudante a uma oficina para aprender um determinado ofício e ganhar com ele a vida o mais rápido possível, mas sim praticar um ensino conforme o plano elaborado pelo fundador da escola, M. Dellavros, e que agora é aplicado também em Chicago e Boston, do mesmo modo sistemático que se usa para ensinar o trabalho de laboratório nas universidades.

O desenho, como é natural, era considerado como o primeiro passo na educação técnica. Depois se levava o aluno à oficina de carpintaria, ou melhor, laboratório, onde se lhe ensinava por completo o ofício, não se poupando nenhum esforço para alcançar tal resultado, pois ele era considerado, e com razão, a verdadeira base de toda a indústria. Mais tarde era encaminhado à oficina do torneiro, onde aprendia a construir em madeira os modelos das coisas que teria de fazer em metal nas oficinas seguintes. Depois seguia a fundição, onde se lhe ensinava a fundir as partes das máquinas que preparara na madeira. E só depois de ter passado pelos três primeiros estágios é que era admitido nas oficinas de ferreiro e maquinaria. Este é o sistema que os leitores encontrarão detalhadamente descrito numa obra de Mr. Ch. H. Ham. Quanto à perfeição do trabalho mecânico dos estudantes, não vejo nada melhor do que referir-me às memórias dos jurados nas mencionadas exposições.

Na América se introduziu o mesmo sistema quanto à parte técnica, primeiro, na Escola de Artes e Ofícios de Chicago, e mais tarde na de Boston que, conforme me garantiram, é a mais perfeita de todas. Neste país, ou melhor, na Escócia, encontrei o sistema aplicado com muito bom êxito, durante alguns anos, sob a direção do doutor Olgivie, no colégio de Gordon, em Aberdeen, numa escala mais limitada. Dá-se ao aluno, ao mesmo tempo, uma profunda educação científica e uma boa prática de oficina. Mas não num ofício específico, como infelizmente ocorre com frequência. Passa pela oficina de carpintaria, de fundição e de maquinaria, e em cada uma delas aprende os fundamentos dos três ofícios, a ponto de equipar a escola com uma boa quantidade de coisas úteis. Ademais, segundo o que pude observar nas aulas de geografia e física, assim como também no laboratório de química, o sistema “da mão ao cérebro”, e vice-versa, encontra-se totalmente em ação, sendo coroado de êxito. Os meninos trabalham com os instrumentos físicos, e estudam geografia no campo, com instrumento na mão, do mesmo modo que na aula. Como velho geógrafo, alguns trabalhos topográficos encheram me o coração de alegria. É evidente que o departamento industrial do colégio de Gordon não é uma mera cópia de nenhuma escola estrangeira, pelo contrário, não posso deixar de acreditar que, se Aberdeen deu um grande passo para a integração entre a ciência e o ofício, foi como consequência natural do que se vinha praticando, em pequena escala, nas escolas da referida cidade.

A Escola Técnica de Moscou não é, entretanto, uma escola ideal. Não dá aos jovens a educação humanitária. Mas, não obstante, devemos reconhecer que essa experiência, sem falar de centenas de outras parciais, demonstrou de modo incontestável a possibilidade de integrar uma elevada educação científica com o que é necessário para se chegar a ser um hábil artesão. Ela provou que o melhor meio de produzir artesãos verdadeiramente hábeis era tomar a coisa pela base, abrangendo o problema da instrução em toda a sua extensão, em vez de dar alguns conhecimentos num determinado ofício e instruir um pouco em algum tipo especial de ciência. E isto fez ver também o que se pode obter sem apertar muito os alunos, se se tiver sempre o cuidado de aplicar uma economia racional ao tempo dedicado ao trabalho, e se a teoria caminhar sempre ao lado da prática. Considerados sob este ponto de vista, os resultados de Moscou não oferecem nada de extraordinário e poderiam mesmo ser melhores se estes métodos fossem aplicados desde os primeiros anos da educação. A perda de tempo é o traço mais característico do nosso sistema atual. Ensina-se uma quantidade de coisas inúteis e de tal modo que gastamos muito mais tempo do que o necessário para aprender. O nosso atual sistema de ensino tem origem numa época em que o que se exigia de uma pessoa bem instruída era mais limitado, e isto não se modificou, apesar do considerável aumento de conhecimentos que o estudante deve ter, desde que a ciência ultrapassou os seus antigos limites. Daí o aumento de pressão nas escolas, assim como também a urgente necessidade de modificar, tanto o texto como o sistema, de acordo com as novas necessidades e os exemplos que aqui e ali nos dão as diferentes escolas e diferentes professores.

Não há dúvida de que os anos da infância não deveriam ser empregados tão inutilmente como acontece hoje. Os professores alemães demonstraram até que ponto os brinquedos infantis servem de instrumento para dar conhecimentos concretos em geometria e matemática. Os meninos que fizeram os quadros do teorema de Pitágoras com pedaços de cartolina colorida não o verão, quando chegar a hora de estudar geometria, como um instrumento de tortura idealizado pelo professor para martirizá-los, e muito menos ainda, se o aplicarem da maneira como fazem os carpinteiros. Problemas complicados de aritmética, que dão tanto trabalho na infância, são resolvidos facilmente por crianças de sete ou oito anos, se forem apresentados sob forma atrativa e interessante. E se o Kindergarten, do qual os professores alemães fazem frequentemente uma espécie de barraca em que cada movimento da criança é regulado de antemão, se transformou numa pequena prisão para os meninos, a ideia que precedeu à sua fundação é, no entanto, válida. Em suma, é quase impossível imaginar, sem haver experimentado, quantos conhecimentos úteis, hábitos de classificação e gosto pelas ciências naturais podem ser inculcados na mente da criança. E se uma série de cursos concêntricos, adaptados às várias fases do desenvolvimento do ser humano, fossem utilizados na educação, os primeiros conhecimentos em todas as ciências, excetuando a sociologia, poderiam ser ensinados antes dos dez ou doze anos, de modo que dessem uma ideia do universo, da terra e seus habitantes e dos principais fenômenos físicos, químicos, sociológicos e botânicos, deixando a descoberta das suas leis para um outro tipo de estudos mais profundos e específicos. Por outro lado, sabemos como as crianças gostam de fazer elas mesmas os seus brinquedos e com que prazer imitam o trabalho dos adultos, quando os veem ocupados na oficina ou na obra. Mas os pais estupidamente bloqueiam essa paixão ou não sabem como utilizá-la. A maior parte deles deprecia o trabalho braçal e prefere mandar os filhos estudarem história romana ou o método de Franklin para fazerem dinheiro, em vez de vê-los dedicar-se a um trabalho que é próprio das “classes inferiores”. Assim, os pais fazem todo o possível para aumentar as dificuldades dos estudos posteriores.

Depois vêm os anos de colégio e de novo se torna a perder o tempo de modo incrível. Tomemos, por exemplo, a matemática, que todos deveriam saber porque é a base de toda educação posterior, e que tão poucos aprendem em nossas escolas. Infelizmente se perde muito tempo em geometria usando um sistema que consiste em confiar tudo à memória. Na maioria dos casos, a criança lê várias vezes a demonstração de um teorema até que sua memória retém a série de raciocínios. Por esta razão, nove entre dez meninos, dois anos depois de deixarem a escola, não conseguirão reproduzir a demonstração de um teorema elementar, a não ser que se tenham dedicado à matemática. Esquecerão quais as linhas auxiliares que devem traçar, uma vez que nunca aprenderam a descobrir a demonstração por si mesmos. Não é, pois, de se admirar que mais adiante eles encontrem tantas dificuldades em aplicar a geometria à física, que progridam tão penosamente e que sejam tão poucos os que dominem os altos estudos matemáticos. E, no entanto, há outro método que facilita o avanço em geral, com muito mais rapidez, e com o qual aquele que uma vez aprendeu geometria jamais o esquecerá. Este sistema se apresenta como um problema cuja solução não é dada de antemão e, portanto, o aluno terá que buscá-la por si mesmo. Deste modo, se se fizerem antes alguns exercícios com régua e compasso, não haverá nem uma criança entre vinte ou trinta que não consiga traçar um ângulo que seja igual a outro lado e demonstrar que são iguais, através somente de algumas indicações do professor. E se os problemas posteriores se apresentarem numa sucessão sistemática (há excelentes livros de texto dedicados a tal propósito), e se o professor não apressar os alunos, fazendo-os avançar mais rapidamente do que podem, eles passarão de um problema a outro com surpreendente facilidade. O professor só terá de fazer com que o aluno resolva o primeiro problema e deste modo adquira confiança em seu modo de raciocinar.

Além disso, cada verdade geométrica deve ser gravada na inteligência em sua forma concreta. Tão logo os alunos resolvam alguns problemas no papel, devem fazer o mesmo no espaço dedicado ao recreio, com pause corda, e depois aplicar estes conhecimentos na oficina. Somente então as linhas geométricas adquirirão um significado concreto na mente das crianças, só então verão que o professor não está brincando quando diz que resolvam os problemas com régua e compasso, sem necessidade de apelar para outros meios, só então saberão geometria. “Dos olhos e da mão ao cérebro”, este é o verdadeiro princípio de economia de tempo no ensino. Recordo, como se fosse hoje, como aprendi rapidamente a geometria sob um aspecto novo e como isto facilitou todos os estudos posteriores. Tratava-se de fabricar um balão mongolfier e eu observei que os ângulos da parte superior de cada uma das tiras de papel com que se havia de compor o balão devia, cada uma, cobrir menos da quinta parte de um ângulo reto. Recordo ainda como as raias e tangentes deixaram de ser meros signos cabalísticos, desde o momento em que nos permitiram calcular a altura de um pau no perfil da obra de uma fortaleza, e como se tornava simples a geometria aplicada ao espaço, quando começamos a fazer em pequena escala um baluarte com torneiras e barbetas, ocupação que, como era de se esperar, foi logo proibida por causa do estado em que ficavam nossas roupas. “Vocês parecem operários”, diziam nossos professores, reprovando-nos. Porém isto, e o consequente desenvolvimento do uso da geometria, era para nós uma verdadeira satisfação.

Ao obrigar nossos filhos a estudarem coisas reais, a partir de meras representações gráficas, em vez de procurar que eles as façam por si mesmos, estamos causando uma perda de tempo preciosa. Cansamos inutilmente a sua imaginação. Acostumamo-los ao pior sistema de aprendizagem, matamos em flor a independência do pensamento, e poucas vezes conseguimos dar um verdadeiro conhecimento sobre aquilo que nos propomos ensinar. O caráter superficial, a repetição como papagaio e a prostração e inércia do entendimento são o resultado deste nosso método de educação. Não lhes ensinamos o modo de aprender. E até os próprios princípios da ciência lhe são transmitidos por meio de um sistema bastante abstrato, enchendo-se a cabeça das pobres criaturas somente com regras.

A ideia de unidade, que é arbitrária e pode mudar segundo o nosso modo de medir (o fósforo, a caixa de fósforos, a dúzia de caixa de fósforos ou a grosa, o metro, o centímetro, o quilômetro e assim por diante), não se imprimiu na mente e, por isso, quando os meninos chegam às frações decimais se veem impossibilitados de compreendê-las, enquanto que na França, onde o sistema é coisa corrente, tanto nas medidas quanto nas moedas, até mesmo aqueles operários que só tiveram instrução elementar, são familiarizados com os decimais. Para representar vinte e cinco centavos escrevem “zero vinte e cinco”, e a maioria dos meus leitores deve, sem dúvida, lembrar de como esse mesmo zero no início de uma série de números nos confundia na infância. Procuramos também, por nossa parte, tornar a álgebra incompreensível, e nossos filhos levam um ano inteiro para aprender não a álgebra, mas um simples sistema de abreviaturas que se poderia estudar facilmente se fosse ensinado junto com a aritmética.

O tempo que se perde na física é deplorável. Enquanto os jovens entendem com muita facilidade os princípios da química e suas fórmulas, desde o momento em que começam a fazer experiências com vasos e tubos, a maioria encontra muita dificuldade na parte mecânica da física, devido, em primeiro lugar, ao fato de não saberem geometria, e especialmente porque só lhes dão máquinas complicadas, em vez de induzi-las a fazer simples aparelhos para ilustrar os fenômenos que estão estudando. Em vez de aprender as leis das forças com instrumentos pouco complicados, que um menino de quinze anos poderia facilmente fazer, os alunos estudam por meio de desenhos, de forma puramente abstrata. Em vez de construírem sozinhos uma máquina Atwood com o cabo de uma vassoura e a roda de um relógio velho, ou comprovarem as leis da queda dos corpos fazendo deslizar uma chave por uma corda em diagonal, mostra-se a eles um aparelho complicado, ocorrendo às vezes que o próprio professor não sabe como explicar-lhes os princípios em que o aparelho se fundamenta, o que o obriga algumas vezes a incorrer em erros, e assim acontece com todas as coisas, do princípio ao fim, com poucas exceções.

Se a perda de tempo é um traço característico de nossos métodos para ensinar a ciência, será também para ensinar uma arte. Sabemos como se perde tempo, quando um rapaz aprende numa oficina, e a mesma observação se pode fazer, até certo ponto, sobre os colégios técnicos que procuram ensinar, desde o início, um determinado ofício, em vez de recorrer aos mais amplos e seguros métodos de ensino sistemático. Assim como há nas ciências algumas noções e sistemas que servem de preparação para o estudo de todas, há também aquelas que servem de fundamento para o estudo específico de qualquer ofício. Reuleaux demonstrou num interessante livro, a Theoretische Kinematik, que contém, digamos assim, uma filosofia de toda espécie de maquinaria. Cada máquina, por mais complicada que seja, pode-se reduzir a um número limitado de elementos – pranchas, cilindros, discos, cones, etc. –, assim como as poucas ferramentas – cinzéis, serras, pilões, martelos, etc. – e, por mais complicados que sejam os seus movimentos, podem-se decompor num reduzido número de modificações da ação, tais como, transformação do movimento circular em retilíneo, e outras pelo estilo, com certo número de elos intermediários. Assim também cada ofício pode-se decompor numa grande quantidade de elementos. Em cada um há que se saber fazer uma prancha com superfícies paralelas, um cilindro, um disco, um quadro e um buraco redondo; como manejar um número limitado de ferramentas, não sendo elas mais do que meras modificações de uma dúzia de tipos; e como se transformam os movimentos. Este é o fundamento de toda a arte mecânica. De modo que o conhecimento da fabricação em madeira desses elementos primordiais, o conhecimento do manejo das principais ferramentas de carpinteiro deveria ser a verdadeira base de todo o conhecimento da arte mecânica.

Além disso, ninguém pode ser bom estudante de ciências se não tiver conhecimentos de meios adequados de pesquisa científica, se não tiver aprendido a observar, a descrever com exatidão, a descobrir as mútuas relações entre fatos aparentemente independentes, a levantar hipóteses e prová-las, a raciocinar sobre a causa e o efeito, e assim por diante.

E ninguém poderá ser um bom artesão, se não estiver familiarizado com um bom método de arte mecânica. É necessário que cada um se acostume a conceber o objeto do seu pensamento numa forma concreta, desenhá-lo ou modelá-lo, evitar o descuido das ferramentas, os maus hábitos de trabalho, dar a tudo um bom toque de efeito final, sentir prazer na contemplação do belo e desprezar o feio. Seja arte mecânica, ciências ou belas artes, a principal aspiração do ensino não deve ser a de fazer do principiante um especialista, mas ensinar-lhe os elementos fundamentais e os bons hábitos de trabalho. E sobretudo dar-lhe essa aspiração geral que mais tarde o levará a pôr em tudo o que realizar o amor à verdade, a ver com prazer tudo o que é bonito, tanto na forma quanto no fundo, a sentir necessidade de ser útil aos demais seres humanos e conseguir que o seu coração bata em uníssono com todos os semelhantes.

Quanto a evitar a monotonia do trabalho, que decorreria do fato de o discípulo só fazer cilindros e discos e não máquinas completas ou outros objetos inúteis, há uma infinidade de meios para impedir que isto aconteça, e um deles, usado em Moscou, é digno de menção. Não é dar trabalho somente como mero exercício, mas utilizar tudo o que o aluno faz desde o primeiro momento. Vocês não se lembram do prazer que sentiam na juventude ao ver que o trabalho que faziam era aproveitado, ainda que só em parte, em qualquer coisa útil? Pois isso se pratica em Moscou: cada peça que o aluno constrói é utilizada como parte de alguma máquina em qualquer das outras oficinas. Quando o estudante entra numa oficina de maquinaria e se põe a fazer um bloco quadrangular de ferro com superfícies paralelas e perpendiculares, este trabalho não deixa de ser interessante para ele, porque sabe que, uma vez concluído e depois de haver provado os seus ângulos e superfícies e corrigido os seus defeitos, não será jogado fora, mas sim passado a outro aluno mais adiantado que irá arrematá-lo, pintá-lo e o enviará à loja do colégio como peso para segurar papéis, recebendo deste modo o ensino sistemático um caráter bastante atrativo.

É evidente que a rapidez no trabalho é um fator importante na produção; de modo que há motivo para perguntar se com este sistema se obteria a necessária velocidade. Respondemos que há dois tipos de rapidez: a que vi numa fábrica de fitas em Nottingham, onde homens adultos, com mão se cabeças trêmulas, trabalhavam de maneira intensa, ligando os restos de fios que sobram nas bobinas, não sendo possível seguir com os olhos a rapidez dos seus movimentos. Mas o próprio fato de se necessitar de um trabalho tão violento é a maior condenação do sistema da grande indústria. O que resta do ser humano atrás destes corpos tão trêmulos? Quais serão as consequências disto? Para que tal desgaste da força humana, quando ela poderia produzir dez vezes o valor do resto do fio que se pretende aproveitar? Este tipo de rapidez só se justifica em função da economia resultante do trabalho escravo na fábrica. Por este motivo não devemos esperar que nenhum colégio aspire a semelhante rapidez no trabalho. Mas existe também a rapidez que representa uma economia de tempo dos operários habilidosos, a que se obtém por meio da educação que apregoamos.

Por mais simples que seja o trabalho, o operário instruído o realizará melhor e mais rápido do que o que carece de instrução. Observe-se, por exemplo, como faz um bom operário para cortar qualquer coisa; suponhamos que se trate de um pedaço de cartolina; é fácil comparar os seus movimentos com os de alguém não adestrado. Este toma a cartolina, pega o instrumento de corte sem olhá-lo, traça uma linha de qualquer jeito e começa a cortar; estará cansado no meio do trabalho, e quando terminar vai ver que o que fez não tem valor algum. E aquele, ao contrário, começará examinando o material que vai utilizar, ajeitando-o se for necessário, traçará a linha com exatidão, segurará ao mesmo tempo a cartolina e a régua, pegará com habilidade o instrumento de corte, cortará facilmente, apresentando assim um trabalho bem feito. Este é o tipo de rapidez que economiza tempo. Assim deve ser com o trabalho humano, e o melhor meio de obtê-la é através da melhor instrução possível. Os grandes mestres pintavam com uma rapidez surpreendente, mas isto era resultante do grande desenvolvimento de sua inteligência e imaginação, de uma delicada concepção do belo e de uma fina percepção das cores. E este é o tipo de trabalho rápido que faz falta à humanidade.

Muito mais poderíamos acrescentar com relação aos deveres da escola, mas me limitarei somente a dizer mais algumas palavras a respeito da conveniência de estabelecer o sistema de educação ligeiramente esboçado nas páginas precedentes. Inútil seria dizer que não se deve alimentar a esperança de que haja em educação e em algum dos pontos tratados nas páginas anteriores alguma reforma verdadeiramente importante, enquanto as nações civilizadas permanecerem sob o atual, estreito e egoísta, sistema de consumo e produção. Tudo o que podemos esperar, enquanto durarem as atuais condições, é tentar, aqui e ali, de maneira microscópica, fazer alguma melhoria em escala limitada; tentativas que, por necessidade, se encontrarão muito abaixo dos resultados desejados, por causa da impossibilidade de informar em pequena escala, quando é tão estreita a conexão existente entre as múltiplas funções de uma nação civilizada. Mas a energia do gênio construtivo da sociedade depende, principalmente, da profundidade de suas concepções a respeito do que se deveria fazer e de que modo; e a necessidade de reconstruir o ensino é uma daquelas que está mais ao alcance de todos e é das mais adequadas para inspirar à sociedade esses ideais, sem os quais o estancamento e até mesmo a decadência são inevitáveis. Suponhamos, pois, que uma comunidade – uma cidade ou um território com pelo menos: alguns milhões de habitantes – desse o tipo de instrução que resenhamos, a todos os seus filhos, sem distinção de origem (e somos bastante ricos para permitir-nos esse luxo), sem pedir-lhes nada em troca, senão o que darão quando se tornarem produtores da riqueza; suponhamos que se tenha dado tal educação e analisemos as suas prováveis consequências.

Não insistirei no aumento de riqueza resultante de se ter um jovem exército de produtores bem instruídos e bem capacitados; nem tampouco nos benefícios sociais provenientes de se eliminar as atuais distinções entre os trabalhadores intelectuais e braçais; e de se chegar assim à concordância harmoniosa de interesses, tão necessária nestes tempos de lutas sociais. Nada direi sobre o complemento de vida de que todos desfrutariam, desde o momento em que pudessem gozar do uso das suas faculdades mentais e corporais e nem das vantagens que resultariam de se elevar o trabalho mecânico ao posto de honra que de direito lhe corresponde na sociedade, em vez de ser, como acontece hoje, um sinal de inferioridade. Não insistirei também na necessidade de desaparecer a miséria e a degradação presentes, com seu cortejo de vícios, crimes, prisões e toda sorte de indignidades, que são suas naturais consequências. Enfim, não tocarei agora na grande questão social sobre que tanto se escreveu e tanto falta ainda para escrever: somente me proponho chamar a atenção nestas páginas sobre os benefícios que a própria ciência lograria com a mudança.

Não faltará naturalmente quem diga que rebaixar os homens de ciência à categoria de trabalhadores braçais representaria a decadência daquela e do gênio; mas, os que assim consideram, é provável que hão de convir em que o contrário é precisamente o que deveria acontecer, isto é, um progresso tal nas ciências e nas artes e tão grande avanço na indústria, que mal poderíamos imaginar, podendo compará-lo com a época do Renascimento. Praticou-se uma vulgaridade, falando com ênfase dos progressos da ciência neste século; e, no entanto, é evidente que se se comparar com os séculos passados há muito de que se orgulhar. Mas se considerarmos que a maior parte dos problemas que o nosso século resolveu já haviam sido propostos e suas soluções previstas há cem anos, teremos que admitir que o avanço não foi tão rápido assim como era de se esperar, e que sem dúvida nenhuma há algo que o dificulta.

A teoria mecânica do calor foi perfeitamente prevista no século passado por Rumford e Humphrey Davy, e mesmo na Rússia ela foi preconizada por Somonoraff. E, no entanto, foi preciso mais de meio século para que a teoria reaparecesse na ciência. Lamark, e mesmo Lineu, Geoffroy Saint-Hilaire, Erasmo, Darwin e muitos outros tinham perfeito conhecimento da variabilidade das espécies; eles abriram o caminho que leva à constituição da biologia dentro dos princípios da diferenciação. Mas neste caso, também foi preciso meio século para que a questão da variabilidade das espécies voltasse à ordem do dia, e todos sabemos de que modo as ideias de Darwin se divulgaram e se impuseram à juventude universitária, em geral, através de pessoas que pertenciam ao magistério, e isto que nas mãos de Darwin a teoria da evolução era limitada, devido à excessiva importância dada a um só fator da evolução.

Há muito tempo a astronomia está precisando fazer uma revisão nas hipóteses de Kant e Laplace, mas ainda não apareceu nenhuma teoria que seja aceita em geral. A geologia fez sem fez, sem dúvida, maravilhosos progressos na reconstituição dos conhecimentos paleontológicos, mas a geologia dinâmica, ao contrário, caminha com uma lentidão espantosa, enquanto que todo avanço posterior na grande questão relacionada com as leis da distribuição dos organismos vivos na superfície da terra fica paralisada pela falta de conhecimentos a respeito da extensão do período glaciário durante a era quaternária. Por último, cm cada ramo da ciência, impõe-se uma revisão das teorias correntes, assim como uma nova e ampla generalização, e se a primeira requer a inspiração do gênio que impulsionou a Galileu e Newton, ela reclama também um aumento no número dos cientistas. Quando os fatos contrários às teorias correntes se tornam numerosos, estas têm que ser revistas (vimos isto no caso de Darwin), e para tanto são necessários muitos cientistas.

Imensas regiões da terra estão ainda por explorar; o estudo da distribuição geográfica dos animais e das plantas se depara a cada passo com sérias dificuldades. Os exploradores atravessam os continentes sem saber nem mesmo como determinar a latitude e nem como manejar um barômetro. A fisiologia, tanto das plantas como dos animais, a psicofisiologia e as faculdades psicológicas do homem e dos animais são outros tantos ramos do saber humano que reclamam mais antecedentes para fortalecer as suas bases. A história continua sendo uma fable convennue [fábula acordada], principalmente pela falta de novas ideias, e também porque necessita de operários que pensem de um modo científico para reconstituir a vida dos séculos passados, do mesmo modo que Harold, Rogers ou Agostinho Kierry fizeram com relação a uma determinada época. Em suma, não há nenhuma ciência que não sofra no seu desenvolvimento por falta de gente que possua uma concepção filosófica do universo, disposta a aplicar sua capacidade de pesquisa num determinado campo, por mais limitado que seja, e que disponha do tempo necessário para se ocupar da especulação científica.

Numa comunidade como a que imaginamos haveria milhares de trabalhadores sempre dispostos a atender ao primeiro chamado. Darwin levou cerca de trinta anos reunindo e analisando fatos para a elaboração da teoria da origem das espécies. Mas se tivesse vivido numa sociedade como a que imaginamos, a um só chamado solicitando o concurso dos demais para dados e explorações parciais, teria encontrado milhares de pessoas para responder a seu chamado. Uma multidão de sociedades teria surgido para discutir e resolver cada um dos problemas parciais englobados na teoria, e em menos de dez anos teria chegado à comprovação dos fatos. Todos esses fatores da evolução que só agora é que começam a ser objeto de atenção, teriam aparecido logo em toda a sua magnitude. A rapidez do progresso científico se teria multiplicado muitas vezes. E se um indivíduo isolado não reunisse em si tantos títulos reconhecidos pela posteridade, como acontece hoje em dia, a massa anônima teria feito o trabalho com mais velocidade e com mais probabilidade de avanços posteriores do que uma pessoa só em toda a sua vida. O Dicionário de Murray é um exemplo deste tipo de trabalho do qual depende o futuro.

Além disso há outro aspecto da ciência moderna que fala com mais veemência ainda a favor da mudança que propomos. Enquanto a indústria, desde fins do século passado e durante a primeira parte do presente, vem criando em tal escala, que se pode bem dizer que transformou a própria face da terra, à ciência vem perdendo a sua capacidade criativa. Os cientistas deixaram de criar ou o fazem em escala muito pequena. Não é estranho que a máquina a vapor, mesmo em seus princípios fundamentais, a locomotiva, o navio a vapor, o telefone, o fonógrafo, o tear mecânico, a fotografia em preto e branco e colorida, e milhares de outras coisas menos importantes não tenham sido inventadas por cientistas profissionais, embora nenhum deles visse inconveniente algum em ligar o seu nome a qualquer uma dessas invenções?

Homens que mal haviam recebido instrução na escola e que só haviam recolhido as migalhas do saber da mesa do rico, tendo que se valer dos meios mais primitivos para fazer os seus ensaios – o tabelião Smeeton, o instrumentalista Watt, o construtor de carroças Stephenson, o aprendiz de prataria Fulton, o construtor de moinhos Rennie, o pedreiro Telford, e centenas de outros de quem nem mesmo os nomes se conhecem – foram, como com razão diz Smiles, “os verdadeiros autores da civilização moderna”. Enquanto que os cientistas profissionais, providos de todos os meios de adquirir conhecimentos e de experimentar, representam uma parte insignificante dos instrumentos, máquinas e primeiros motores que mostraram à humanidade o modo de utilizar e manejar as forças da natureza [1]. O fato é significativo e, no entretanto, a explicação é bem simples: aqueles homens – os Watts e os Stephenson – sabiam algo que os sábios ignoram, sabiam valer-se das próprias mãos; o meio em que viviam estimulava as faculdades criativas, conheciam as máquinas, seus fundamentos e ação, haviam respirado a atmosfera da oficina e da obra.

Os homens de ciência vão dizer com certeza: nós descobrimos as leis da natureza; que outros as apliquem; trata-se de uma simples distribuição de tarefas. Mas esta resposta não se baseia na verdade. O que acontece é justamente o contrário, pois, em noventa e nove por cento dos casos, a invenção mecânica vem antes do descobrimento da lei científica. A teoria dinâmica do calor não apareceu antes da máquina a vapor, mas sim depois. Quando milhões de máquinas já transformavam o calor em movimento, diante dos olhos de centenas de professores, por meio século ou mais; quando milhões de trens, controlados por poderosos freios, desprendiam calor e lançavam inúmeras faíscas nos trilhos ao aproximar-se das estações; quando em todo q mundo civilizado os pesados martelos e as perfuradoras passavam intenso calor às massas de ferro sobre as quais agiam, somente então foi que um doutor, Mayer, se aventurou a anunciar a teoria mecânica do calor com todas as suas implicações, e, no entanto, os cientistas por pouco não o empobreceram, apegando-se obstinadamente ao misterioso fluido calórico, qualificando o livro de Joule sobre a equivalência mecânica do calor de “pouco científico”.

Quando as máquinas demonstravam a impossibilidade de utilizar todo o calor emitido por uma determinada quantidade de combustível queimado é que apareceu a lei de Cláusio. E quando em todo o mundo a indústria já transformava o movimento em calor, som, luz e eletricidade, e vice-versa, foi que apareceu a teoria de Grave sobre a “correlação das forças físicas”. Não foi a teoria da eletricidade que nos deu o telégrafo. Quando este foi inventado não conhecíamos a respeito dela mais do que dois ou três fatos apresentados sem muita exatidão em nossos livros. Sua teoria não está ainda formulada, aguarda um Newton, apesar dos brilhantes esforços destes últimos anos. Ainda estava nos seus princípios o conhecimento empírico das leis nas correntes elétricas, quando alguns homens de valor estenderam um telégrafo no fundo do Oceano Atlântico, apesar das críticas das autoridades científicas. O nome de “ciência aplicada” pode induzir a erro, porque na maior parte dos casos o invento, longe de ser uma aplicação da ciência, faz, pelo contrário, com que se produzam novos ramos. As pontes americanas não foram uma aplicação da teoria da elasticidade, foram anteriores a ela e tudo o que se pode dizer em favor da ciência é que neste ramo específico a teoria e a prática se desenvolviam paralelamente, ajudando-se com reciprocidade. Não foi a teoria dos explosivos que levou à descoberta da pólvora. Esta era usada já há séculos, quando a ação dos gases num canhão foi submetida a uma análise científica. E assim sucessivamente: o grande processo da metalurgia, as fundições e as propriedades que estas adquirem pela adição de uma pequena quantidade de algum metal ou metaloide; o recente impulso que tomou a luz elétrica, e mesmo as previsões referentes às mudanças do tempo, que com razão mereceram o qualificativo de “anticientificismo””, quando foram inauguradas pelo velho marinheiro Fitzroy, tudo isto se poderia mencionar como exemplo para o que foi exposto. Não por isso se há de negar que, em algumas ocasiões, a descoberta ou a invenção não foi mais do que a simples aplicação do princípio científico, como, por exemplo, o descobrimento do planeta Netuno. Mas, na maioria dos casos, é exatamente o contrário o que ocorreu. Esta aptidão corresponde muito mais ao domínio da arte do que ao da ciência, como demonstrou Helmholtz numa de suas conferências populares. E só depois de se ter realizado o invento é que a ciência lhe vem dar a sua interpretação. É evidente que cada invento se aproveita dos conhecimentos acumulados previamente e das formas de sua manifestação. Mas em geral ele se sobrepõe ao que se sabe, dá um salto no desconhecido e, deste modo, abre uma nova série de fatos que a pesquisa oferece. Este caráter da inventiva, que consiste em dar um passo além dos conhecimentos existentes, em vez de limitar-se a aplicar uma lei, a assimilá-la, quando se refere ao processo da inteligência, ao descobrimento. Por conseguinte, as pessoas que têm dificuldade para inventar, têm também para descobrir.

Na maioria dos casos, o inventor, apesar de ser influenciado pela situação geral da ciência num determinado momento, põe-se a trabalhar com os poucos fatos comprovados que se encontram à sua disposição. Os dados científicos levados em conta para a invenção da máquina a vapor, do telefone e do fonógrafo, foram notadamente elementares. De modo que podemos afirmar que o que sabemos atualmente já é suficiente para resolvermos qualquer dos grandes problemas que apareçam: motores primários que dispensam o vapor, a acumulação da energia, a transmissão de força ou a máquina voadora. Se estes problemas não se resolveram ainda, é somente por causa da falta de gênio inventivo, de escassez de homens ilustrados, e do atual divórcio entre a ciência e a arte. De um lado, temos homens dotados de capacidade inventiva, mas que carecem tanto dos necessários conhecimentos científicos, como dos meios de entregar-se por muitos anos à experimentação. E de outro, pessoas com conhecimentos e facilidades para a experimentação, mas desprovidas de gênio inventivo, devido à educação e ao meio em que vivem, sem mencionar o sistema de patentes que separa e dispersa os esforços dos inventores, em vez de aproximá-los e uni-los.

A chama do gênio que caracterizou os operários nos primeiros tempos da indústria moderna brilhou pela ausência entre nossos cientistas profissionais, e estes não poderão recuperá-la enquanto estiverem afastados do mundo, vivendo na poeira das bibliotecas. E enquanto também não resolverem trabalhar ao lado dos operários, no calor da forja, nas máquinas das fábricas, e no torno da oficina mecânica, mesmo sendo marinheiros no mar e pescadores nas costas, lenhadores nos bosques e agricultores nos campos. Demonstrando que a arte grega e medieval eram filhas da arte antiga e que se alimentavam mutuamente, nossos professores de arte nos disseram repetidas vezes que não devemos esperar uma ressurreição da arte antiga enquanto a arte mecânica for o que é hoje. E o mesmo se pode dizer com relação à ciência; a sua separação prejudica os dois. E a respeito das grandes inspirações que infelizmente foram tão relegadas em grande parte das discussões sobre artes – acontecendo o mesmo com relação à ciência – só poderemos tê-las quando a humanidade, rompendo os seus atuais laços, der um novo passo em direção aos mais elevados princípios da sociologia, acabando de vez com o atual dualismo entre o sentido moral e filosofia.

É evidente, entretanto, que todas as pessoas não podem usufruir ao mesmo tempo de ocupações puramente científicas, pois a variedade de inclinações é tal que muitos estarão melhor nas ciências, outros nas artes, e outros também nos inúmeros ramos da produção de riqueza. Mas qualquer que seja a ocupação de cada um, o serviço que pode prestar dentro do que escolheu será tanto maior quanto maior for o seu conhecimento científico. Seja ele homem da ciência ou artista, físico ou cirurgião, químico ou sociólogo, historiador ou poeta, ganhará muito se empregar parte do seu tempo na oficina ou na granja, se estiver em contato com a humanidade no seu trabalho diário e se tiver a satisfação de saber que ele também, sem fazer uso de nenhum tipo de privilégio, desempenha sua função com qualquer outro produtor de riqueza. Que grande conhecimento da humanidade teriam o historiador e o sociólogo, se aquele o obtivesse não só através dos livros ou de alguns de seus representantes, mas através do conjunto, da vida, do trabalho e das suas relações diárias. A Medicina cuidaria muito mais da higiene do que a Farmácia, se os jovens doutores fossem, ao mesmo tempo, enfermeiros, e se estes, por sua vez, recebessem a mesma instrução que a dos médicos! Quão mais poderia apreciar o poeta a beleza da Natureza e quão mais conheceria o coração humano, se visse sair o sol com os trabalhadores no campo, sendo ele também um agricultor; se lutasse contra a tempestade com os marinheiros, a bordo de algum navio; se conhecesse a poesia do trabalho e do descanso, da tristeza e da alegria, da luta e da vitória!

A chamada divisão do trabalho é filha de um sistema que condena as massas a trabalhar o dia inteiro, a vida inteira numa mesma e monótona tarefa. Mas se levarmos em conta a limitação do número dos verdadeiros produtores da riqueza em nossa sociedade atual e como se dilapida esse trabalho, haveremos de reconhecer que Franklin tinha razão ao dizer que cinco horas de trabalho diário bastariam, em geral, para proporcionar a cada indivíduo, numa nação civilizada, as comodidades de que agora só uns poucos podem usufruir, contanto que todos tomassem parte na produção. Mas de lá para cá alguma coisa avançou, mesmo no ramo mais atrasado da produção, como mostramos nas páginas anteriores. Mesmo nele a produtividade do trabalho pode aumentar imensamente, tornando-se fácil e atrativo.

Mais da metade da jornada de trabalho ficaria assim livre para que cada qual se dedicasse ao estudo das ciências e das artes ou a qualquer ocupação de sua preferência. E o trabalho no seu campo seria tão mais proveitoso quanto mais produtivo fosse o trabalho realizado no resto do dia, se a dedicação à ciência ou à arte fosse produto da inclinação natural e não questão de conveniência e interesses. Ademais, uma comunidade organizada sob o princípio de que todos sejam trabalhadores, seria bastante rica para convir em que todos os seus membros, homens ou mulheres, a uma certa idade, dos quarenta em diante por exemplo, fossem liberados da obrigação moral de tomar parte direta na execução do trabalhado braçal, podendo assim se dedicar completamente ao que mais lhe agradasse no terreno da ciência, da arte ou qualquer outro. E os avanços de todo gênero e em todos os sentidos surgiriam seguramente de tal sistema. Numa semelhante comunidade, não se conheceria a miséria em meio à abundância nem o dualismo da consciência que envenena a nossa existência e afoga todo nobre esforço, podendo-se livremente empreender o voo em direção às mais altas regiões do progresso, compatíveis com a natureza humana.


Notas:


[1] – A química é, em grande parte, uma exceção a esta regra. Será porque talvez o químico seja, sob certo aspecto, um trabalhador braçal? Aliás, nos últimos dez anos, presenciamos uma verdadeira ressurreição nas invenções científicas, principalmente na física, isto é, num ramo em que o mecânico e o homem da ciência estão frequentemente juntos.